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SOCIOLOGIA - PROBLEMAS E PRATICAS No 21, 1996, pp. 47-68 (Re)pensar “a ciéncia como cultura’”' Carmen Diego Gongalves Resumo: Pattindo da definigo dos conceitos de cultura ¢ ciéncia propoe-se uma reflexto sobre dimensdo cientifica da cultura e cultura cientifica. Problematiza-se a sua consubstanciagio na interiorizagio de representagdes sobre a ciéncia, segundo dimensGes hierarquizadas, pressupondo um sistema de comunicagio e cultura, em fungZo de normas ¢ valores de funcionamento do campo cientffico, articulando 0 habitus cientffico num processo de sociodindmica da ciéncia. Palavras-chave: Cultura; Ciéncia, Comunicagio; Representagdes. 1. Ciéncia e dimensao cientifica da cultura Considerando que 0 conceito de cultura remete para 0 desenvolvi- mento dos diversos critérios de produgao e difusaio de sentido, designa um espaco amplo, contraditério e plural (Geertz, 1973). Incluindo dimen- sdes de partilha, perpetuagao de tradigdes e de inovagdo (Santos, 1988b), aquele conceito podera definir-se como conjunto de representagdes?, de atitudes e de referenciais que irrigam o tecido social, de forma inigualitaria certamente, mas globalmente. Se considerarmos que a ciéncia, tal como a ideologia e a cultura em geral, tem uma fungao de socializagio do pensamento, entio, possui uma significagao cultural, na medida em que por via dos princfpios, das ideias, das representagées, tem um valor efectivo de racionalizagdo das socieda- des modernas, legitimando 0 pensamento técnico-racional; porque so os principios, as ideias, as representagdes que garantem a integracao sécio- -cultural, em funcao de esquemas intelectuais incorporados, permitindo a decifragao, a atribuigdo de sentido, a inteligibilidade (Chartier, 1988). 48 Carmen Diego Gongalves “(..) a ciéncia é realmente essencial da cultura, jé que mais n&o seja, quer queiramos ou ndo, nds estamos merguthados em ciéncia.” (cientista, FCUL}* Ora, este é um tema que remete para a questo da ciéncia e técnica como ideologia nas sociedades actuais, a propésito da qual se sugere 0 confronto dos modelos propostos por Habermas (1968) e Marcuse (1977, 1981) para a caracterizacéo das sociedades capitalistas avangadas. Filiando-se, embora, na Teoria Critica da Escola de Frankfurt, apresentam modelos diferentes de desenvolvimento e “emancipagio” do homem nas sociedades capitalistas avangadas, pondo em causa a ideia, defendida por Weber, da neutralidade axiolégica, ideolégica e politica da raz4o, supondo a neutralidade valorativa da ciéncia e técnica. Assim, a ciéncia e técnica tendem a constituir-se como fora fundamental da politica e da ideologia (Marcuse, op. cit.); em que a articulagio entre continuidade e mudanga nao parece estar ancorada na determinagio econémica, mas antes numa inter-relagdo entre a dimensio técnico-cientifica, ¢ a dimensdo simbdlico-comunicativa (Habermas, 1968, 1986), Consequentemente, as relagdes de dominagdo e sua legitimagdo re- metem para a emancipagao humana, para a qual contribuem nao 6 os pro- cessos econémicos e racionais (cf. Marcuse, op. cit.), como também os de produgio de sentido, de legitimagdo ¢ motivagdo. Isto, num inter-relaciona- mento entre identidade individual e social, cuja ratureza € comunicacional (cf. Habermas, op. cit.), segundo um determinado ideal cultural, socialmente funcional, sendo precisamente neste sentido que a ciéncia desempenha nao s6 uma fungio econdémica como também cultural e, por conseguinte, estra- tegicamente politico-ideolégica. De facto, a ciéncia moderna parece ter vindo a consagrar a explicagio do real ao longo dos tltimos quatrocentos anos, ao ponto de nao sermos capazes de 0 conceber sendo nos termos gerais por ela propostos. Sem as categorias de espago, tempo, matéria e ntimeros, sentimo-nos incapazes de pensar, mesmo sendo capazes de as pensar como categorias conven- cionais. Enquanto sistema simbélico de conhecimento ¢ comunicagiio, a cién- cia, desempenha uma fungao socialmente estruturante, radicando em for- mas de conhecimento estruturadas, cujo poder simbélico é 0 de estabelecer uma ordem “gnoscolégica”, do sentido imediato do mundo, a que Durkheim chama o “conformismo légico” - “uma concepgao homogénea do tempo, do espago, do ntimero, da causa, que torna possivel a concor- dancia entre as inteligéncias” (Bourdieu, 1989: 9). Ou, como mais tarde Radcliff-Brown, num sentido estrutural-funcionalista, faz assentar a “so- lidariedade social” na participagio de um sistema simbélico de base e, (Re)pensar a ciéncia como cultura 49 neste sentido, o simbolismo desempenha uma fungao social donde emer- gem os simbolos como instrumentos de conhecimento e comunicagao tornando possivel o consensus acerca do sentido do mundo, que por sua vez tem uma funcdo integradora, contribuindo para a reprodugao da “or- dem das coisas”; porque a “integragio légica” é a condig&o da “integra- ¢do moral” (Id.: 10), mediada pela fungio politico-ideolégica de “integragao” do simbolismo. Remetendo, afinal, para o que Merton con- sidera “a interdependéncia dindmica entre ciéncia, como actividade soci- al em movimento que faz nascer produtos culturais e de civilizagao, e a estrutura social que a envolve” (Merton, 1970: 631). “A cultura é mais uma atitude, uma maneira como a sociedade e os diversos grupos se expressam (...), como véem e sentem a historia, como sentem a prépria ciéncia (...). Mas, atengdo, hd hoje, na componente dessa grande drea que é a cultura, hd uma componente cientifica, isto é, cultura cientifica, que é extrema- mente poderesa e importante na nossa vida e que, infelizmente, no nosso pais, (...) a nivel dos préprios cultores da ciéncia, muitas vezes eles ndo se interrogam no sentido de saber se o que esto a fazer faz enriquecer a cultura cientifica do povo portugues (...). Nestes tempos que correm hd consciéncia de que naquilo que caracteriza um povo - as diversas facetas que caracterizam, de facto, a génese, a alma, o cardcter dum povo, que é a sua cultura - a parte cientifica é, hoje, também, importante (...). Mas, como sabemos, cultura é tudo (...) ela evo- lui, ela enriquece, ela tem diversas componentes... (cientista, FCUL). A ciéncia deve ser vista como parte integrante da cultura em sentido lato, Concorda 381% 1.2% 0,6% Nio concorda nem discorda n=162; no respostas=1 Fonte: Inquérito aos cientistas da FCUL Grafico 1 50 Carmen Diego Gongalves Sendo, portanto, neste sentido que a ciéncia poderd ser considerada parte integrante do tecido cultural, (Grafico 1 e Fig. 1), que se refere ao desenvolvimento das sociedades. E, a sua identificagao e difusao reveste- -se de decisiva importincia nas sociedades contemporaneas onde, a par de outras formas culturais, poderé ser vista como um elemento indispensdvel de cidadania*. Abandonando, assim, definitivamente(?) 0 sonho iluminista duma ciéncia modelo cultural; antes admitindo uma ciéncia como uma das manifestagdes sdcio-culturais, “cujos pressupostos, valores € objectos sao agora os principais eixos de um debate sempre em aberto.” (Carilho, 1994: 50). Historicamente, a ciéncia procurou instituir-se como campo auténomo, por oposigéo ao dogmatismo teocéntrico da Igreja na Idade Média, época em que © homem medieval funcionava segundo um predominio das preocupag6es religiosas, sobretudo no que dizia respeito & salvagao da alma e vida para além da morte. No Século XVIII, século do optimismo histérico e muita fé na Razao humana, institucionaliza-se, de facto, a ruptura entre cultura huma- nista e cultura cientifica - cultura instrumental, racionalista; entre julgamen- tos de valor ¢ julgamentos de realidade, por via de um esclarecimento dos axiomas do cientismo [1. O homem nao é naturalmente depravado; 2. A “boa” vida na Terra pode ser nao s6 definida mas também alcangada; 3. A Razao € o instrumento supremo do homem; 4. O conhecimento libertaré o homem da ignordncia, da superstigao ¢ dos males sociais; 5. O universo € ordenado; 6. Essa ordem do universo pode ser descoberta pelo homem ¢ expressa por meio de quantidade e relagdes matemiaticas; 7. Embora haja muitas maneiras de perceber a natureza, como, por exemplo, a arte, 2 poesia, a misica, etc., s6 a ciéncia pode chegar & verdade, que permitiré ao homem dominar a natureza; 8. A observacao e a experimentagio so os tinicos meios validos de descobrir a ordem da natureza; 9, Os factos observados sao inde- pendentes do observador; 10. As qualidades secundarias nao sio susceptiveis de medida e, por isso, nfio sio reais; 11. Todas as coisas da Terra sio para uso do homem; 12. A ciéncia é neutra, livre de valores ¢ independente da moralidade ¢ da ética.”| (Morais, 1988: 40-41). Consequentemente, desde 0 Século das Luzes - aquando do surgimento das Academias Cientificas na Europa, desempenhando um papel importante no percurso do saber ociden- tal, reunindo notdveis homens de ciéncia, possibilitando o intercimbio, a stematizagao e compilagdo do conkecimento (Santos, 1988a), promovendo, enfim, o cardcter institucional da ciéncia - paradoxalmente instala-se a cren- ¢a, ou a curiosa ilusio, com base na indubitabilidade dos seus pressupostos, de que a ciéncia pudesse vir a responder a todas as inquietagdes do ser humano. No actual mundo industrializado, onde seria de esperar que o im- (Re)pensar a ciéncia como cultura Si “A cléncia é uma das facetas da cultura (..). Tem que haver uma ligagdo intima porque a ciéncia, obviamente, faz parte do conjunto de conhecimentos humanos, tal como todas as outras partes da cultura; toda a vivéncia humana, tanto artistica, como cientifica, fazem um todo e, portanto, ndo hd uma distinedo entre ciéncia e cultura. Simplesmente, para se chegar a apreciar a beleza na ciéncia € preciso ter-se evoluide bastante na ciéncia e, talvez, 0 aspecto afectivo em relagdo aos aspectos artisticos seja mais fécit do que encontrar a beleza intelectual, a beleza racional na ciéncia, porque a beleza na ciéncia jd ndo é uma coisa que vd directamente ao coragao - ndo é to hedonista! Para se encontrar a beleza na ciéncia é preciso ter-se evolutdo até um certo ponto, de outra maneira ndo se vai ld!” (cientista) Cultura Cultura i Hi Ha Visto ortodoxa Visio emergente Inyestigagio cientffica enquadrada no ambito (lnvestigagio cientffica enquadrada no m= de uma cultra racional, que se auto-te¥é como bito-de uma cultura racional, questionsvel, soviaimente neutra) em inter-acgao e com responsabitidade social) A visio ortodoxa no tem vindo a integrar a dimensdo cientifica da cultura, evidenciando um modelo de grande especializagio € separagao disciplinar e cultural Por seu lado, a visio emergente, evocando, de algum modo, 0 passado na ilustragao do presente (cf. Santos, M.L.L., 1985; Conde, 1992), remete para um éptimo desejavel, em que a possibilidade de se constituirem areas interdisciplinares surge como factor de comu- nicagio e enriquecimento cultural; sendo a ciéncia um microcosmo dentro da cultura, a cultura cientifica um caso particular da cultura geral, cuja diferenciabilidade radica preci- samente na especificidade da orientagdo de cada uma das areas de produgao de sentido, permitindo simultaneamente distingui-las ¢ identificd-las, donde resulta, em suma, 0 cor ceito total de cultura, contendo - mas nfo se reduzindo - as sobreposigdes parciais das miltiplas formas de conhecimento, expressio e criatividade humana, social e institucionalmente enquadrada Especificidade da Cultura Cientifica + Uma das formas possiveis de compreender / descrever / interpretar / pro- duzir 0 real, ancorada em valores € normas de funcionamento do campo cientifico; + radica na epistemologia e na metodologia - garante de objectividade; + possui conceitos e discurso herméticos; + remete para um conhecimento especializado, exigindo estudo: + pressupde uma atitude reflexiva ¢ critica, ¢ uma representagao racional dos fenémenos => causa a efeitoc>previsdescoregularidadesesleis gerais; + a sua especificidade paradigmatica € intrinseca e metodologicamente autoquestiondvel, progressivamente mutavel, cuja esséncia é a propria criatividade humana; Fonte: Enirevistas aos cientist FCUL Figura 1: Cultura cientifica numa perspectiva de cultura integrada 52 Carmen Diego Gongalves pacto da ciéncia implicasse um decréscimo na crenga religiosa - na linha da tuptura com o poder espiritual, iniciada na Idade Média e institucionalizada no século XVIII - talvez seja um erro concluir que existe uma relagio directa de causa a efeito entre um declinio na crenga religiosa e a predominancia do crédito na ciéncia. Muita gente parece preservar no seu intimo crengas pro- fundas sobre a riatureza do mundo, que podem ser classificadas de religiosas, mesmo que essas pessoas possam ter rejeitado ou, pelo menos ignorado, as doutrinas cristas mais tradicionais. Se a religido e a perspectiva biblica foram desalojadas da consciéncia das pessoas, nao terao sido, certamente, substitu- {das pelo pensamento cientifico-racional No mundo moderno, a ciéncia, tal como a magia, a astrologia, a religiao..., representam sistemas do pensamento humano e formas de conhecimento, com cardcter parcelar na explicagao dos fenémenos, con- trariamente & ideia que esteve na origem da instituig’o da ciéncia como campo auténomo. O que, por sua vez, paderd estar relacionado com as dificuldades que os indivfduos encontram em compreender-se a si prépri- ‘0s, os seus modos de funcionamento, as suas convicgdes mais profundas, tanto ao nfvel individual como social e para as quais a ciéncia ainda nao foi capaz de dar resposta. Por seu lado, quando a ciéncia se intromete na vida das pessoas talvez seja mais ao nivel pratico da tecnologia do que propriamente a um nivel intelectual. Neste sentido, 0 crédito na ciéncia, enquanto corpo de conhecimentos capaz de explicar ou vir a explicar toda a realidade, poderé nao invalidar a crenga noutras formas de interpreta- ¢ao do mundo, mesmo consideradas nio cientificas. Sendo, enfim, neste hibridismo de estruturas cognitivas que parece residir uma das caracteris- ticas culturais do mundo (pés-)moderno, em que a emergéncia de novos valores incorpora dimensGes valorativas consideradas ortodoxas. “A ciéncia ndo é a verdade absoluta, a ciéncia é sobretudo a posigao de. inter- rogar - a partida de toda a ciéncia é sempre um porqué (...). E depois tudo se desenvolve no método de poder fazer depois, por em pratica essa interrogagdo e chegar a conclusdes. Mas nunca o cientista pode esquecer que essas conclu- sdes sdo sempre provisérias, sempre provisdrias!” (cientista, FCUL). “A ciéncia é questiondvel, renovdvel, esté constantemente a renovar-se, porque ela propria representa uma progressdo.” (cientista, FCUL) A ciéncia poderd, assim, ser definida como um subsistema social e civilizacional - historicamente condicionado a circunstancias estruturais € individuais -, com capacidade legitima na definigao do real e interiorizacio de imagens sobre esse mesmo real, capaz de engendrar problemas e de os (Re)pensar a cigncia como cultura 33 resolver. O seu cardcter normativo, objectivo e racional posicionam-na na saciedade como uma instituigdo social capaz de corresponder a “procu- ras” sociais’. Sendo, enfim, por via de um processo comunicacional entre a ciéncia e as experiéncia quotidianas, que sao moldadas as formas de concepgo do mundo. Neste sentido, nao ha cultura sem comunicagao, sem troca, sem pratica social, sem centramento no quotidiano, “Acho incompreenstvel que uma pessoa hoje em dia se possa dizer culta sem saber ciéncia! Ciéncia, para mim, (...), € a compreensio do mundo.” (cientista, FCUL). Concomitantemente, objectividade racional, objectividade técnica objectividade social so trés caracteristicas das sociedades modernas, fortemente imbricadas®. E, na medida em que 0 progresso € demonstrdvel, por via da sua funcionalidade pratica, a sua demonstragio torna-se um elemento pedagégico indispensdvel ao desenvolvimento da cultura cien- tifica - especifica de um grupo de profissionais especializados -, como também, por extensio, da dimens§o cientifica da cultura - uma das di- mensdes especificas da cultura em geral. Trata-se de um processo hist6- rico, em que meméria e comunicagao sao dois factores de extrema importincia, tanto na acumulagao como na actualizagao dos conhecimen- tos, reactualizando, de forma mais ou menos inovadora, 0 passado no “presente @ projectando-os no futuro. “Sem diivida que é possivel considerar-se a ciéncia como uma manifestagdo cultural, alids, a ciéncia tem a sua histéria e, portanto, aprende-se muito com a Historia; & uma das maneiras de cultura intrinsecamente cientifica, que esta ligada a eultura geral; é as pessoas terem consciéncia que cada ramo da ciéncia onde trabalham tem uns antecedentes, tem umas linhas evolutivas, umas condi- goes de produgdo determinadas ¢, (...) se se tiver consciéncia do passado cien- tffico, nem que seja da érea onde se trabatha, poderd até contribuir para que, cientificamente, se produza melhor. (...) 0 conhecimento cultural ndo é sb 0 conhecimento da ciéncia, é 0 conhecimento da maneira como as pessoas funci- onam (...). A produgéo de conhecimento cientifico é um contributo importante ..” (cientista, FCUL). para a cultura cientific Ora, se por um lado é possivel admitir a interacgdo entre desenvol- vimento cientifico e contexte social, numa légica do que designarfamos por sociodinamica da ciéncia, por outro, a dimensdo cientifica da cultura nao deverd ser confundida com a cultura cientifica, pois que, ainda que parcialmente sobreponiveis, esta Ultima remete para uma cultura profis-

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