Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
F lora Süssekind
É
predominantemente urbana a imaginação de não têm significado necessariamente comple-
literária brasileira nas últimas décadas. O xificação dos recursos formais, da prática literá-
que se evidencia até mesmo em relatos de ria e da experiência histórica recente. Muitas
forte teor regional (como os de Raimundo vezes essa complexificação resultando não exa-
Carrero), em histórias de migração e ina- tamente de representações explícitas, documen-
daptação social (como em As Mulheres de Tiju- tais, do urbano, mas da produção de espaços
copapo, de Marilene Felinto), ou nas quais ras- não representacionais e de zonas liminares, am-
tros da experiência rural se justapõem por vezes bivalentes, transicionais, da subjetividade.
a um cotidiano citadino (como em alguns dos Por isso optou-se aqui pelo exame mais
contos de Angu de Sangue, de Marcelino Freire). detido de alguns exemplos da produção poética
Essa dominância parecendo apontar tanto para brasileira e não das letras de rap ou funk, com
o fato de a população brasileira ter se tornado seu registro do cotidiano violento e excludente
sobretudo urbana nesse período, com apenas nas periferias das grandes cidades do país, ou da
30% permanecendo no campo, quanto para prosa recente, na qual se multiplicam os teste-
uma reconfiguração artística das tensões entre munhos diretos, as histórias de vida, os percur-
localismo e cosmopolitismo, rural e urbano. sos e contrastes urbanos. E de que são exempla-
Articulações que, fundamentais para a auto- res obras como o romance Capão Pecado, de
conscientização cultural, inclusive para sua dife- Férrez, escrito em linguagem propositadamen-
renciação regional, no país, se veriam marcadas te de gueto, com material autobiográfico, por
crescentemente pela hipertrofia de um dos pó- um ex-padeiro, filho de um motorista de ôni-
los, por um desdobramento das mediações en- bus, morador do bairro Capão Redondo, da
tre organização social urbana e forma artística, zona sul de São Paulo. Ou como as histórias de
processo no qual duplicação e representabilida- presidiários reunidas, em 2000, no volume
11
s ala p reta
12
D esterritorialização e forma literária
13
s ala p reta
Walter Salles e Daniela Thomas. Encontros que, ximação com relação a este quadro urbano cuja
em diálogo com os quadros urbanos baudelai- violência implícita, ao contrário da segregação
rianos que muitas vezes lhes servem de fonte, se dominante na experiência citadina cotidiana,
manifestariam igualmente na poesia brasileira resultaria, aí, numa espécie de desdobramento
contemporânea. da apreensão visual, na produção de uma pers-
É o caso de “Spiritus ubi vult spirat”, poe- pectiva dupla (minha/dele) para o relato.
ma de Sebastião Uchoa Leite no qual o sujeito, Pois, neste caso, o sem-teto também pa-
atravessando a Av. Presidente Vargas, se depara rece observar o seu observador textual, além de
“com uma sobrevivente” de saia erguida en- a reprodução em bruto da sua tabuleta escrita a
quanto todos os demais passam, indiferentes. mão também atribuir materialmente a ele fun-
Ou do encontro com o morador de rua em “03/ ção narrativa. Trânsito que se tornaria estrutu-
11/97”, de Régis Bonvicino, de que se fala, a ral no trabalho de um escritor como João Gil-
certa altura: “Ele poderia subitamente ter saca- berto Noll, cujos narradores invariavelmente
do a faca, na calçada, disseram”. Há registro se- deambulatórios, desabrigados, refiguram ficcio-
melhante no poema “Em sua cidade”, de Duda nalmente a experiência urbana dos sem-teto, as
Machado, no qual, em meio à paisagem baiana, diversas estratégias de sobrevivência na rua. E
meninos e mendigos circulam entre vendedo- não é à toa que um dos títulos de suas novelas
res e cestos de frutas, enquanto, da perspectiva envolveria uma espécie de auto-classificação
do sujeito do poema, “um dispositivo íntimo,/ narratorial errática – “quieto animal da esqui-
destinado a anular/ toda presença,/ intercepta- na” – que parece sintetizar esse trânsito entre
va o contato/ e o retraía, ainda tenro,/ à raiz do experiência ficcional e urbana, entre modos de
pânico”. deambulação.
Mas do retraimento, se passa, no poema Mas o mais habitual mesmo nessa litera-
de Duda Machado, à respiração, a um “voltar a tura urbana não é o desdobramento de perspec-
si” que “reerguia o mundo” para “além de qual- tiva, e sim a catalogação patológico-criminal
quer tentativa/ de fuga ou domínio”. E, voltan- (ironizada na coleção de fisionomias de Treze)
do ao conto “Minha História Dele”, de Valêncio de lugares e tipos humanos, o temor da hetero-
Xavier, aí o extremo realismo das fotos, assim geneidade social, a reiterada criminalização das
como sua reduplicação, ao lado do fato de se divisões sociais, o reforço a uma espécie de pa-
apresentar o texto como parte dos dizeres das ranóia urbana endêmica a que respondem as
tabuletas penduradas no pedinte, também são classes médias e as elites financeiras com movi-
elementos que parecem destravar o contato nes- mentos de auto-segregação em enclaves habita-
se registro de encontro urbano. E que parecem cionais, shopping-centers e centros empresariais
funcionar como recurso quase imediato de des- de freqüência controlada, e com o investimen-
perspectivização, de trânsito – e não separação to em formas de segurança particular, guarda-
– entre sujeito e objeto, entre narrador invisível costas, vigias, alarmes, cercamentos, privatiza-
e imagem fotográfica de um morador de rua. O ções de ruas e praças. Explicando-se, assim, em
que provoca o apagamento tanto de possível parte, em sintonia com essa insegurança gene-
retração subjetiva, quanto de uma relação me- ralizada, a popularização das histórias de crime
ramente ilustrativa entre texto e foto, pois a pró- e da literatura policial no Brasil dos anos 1980-
pria sucessão de imagens (incluindo as textuais) 1990, de que é exemplar a ficção de Rubem
é que é produtora de uma narratividade Fonseca.
conflituosa, desconfortável, movida pelo encon- Pois é fundamentalmente um imaginário
tro com o sem-teto e pelos recortes e acrésci- do medo e da violência que organiza a paisa-
mos visuais impostos ao texto-tabuleta que o gem urbana dominante na literatura brasileira
cobre. E pelos exercícios de afastamento e apro- contemporânea. O que é também parcialmente
14
D esterritorialização e forma literária
2 Emprego aqui expressão cunhada, como se sabe, por Gilles Deleuze e Félix Guattari em O Anti-Édipo,
e retrabalhada por Fredric Jameson em The Cultural Turn, mas submetida a desdobramentos bastante
distintos e a um contexto particular, o das relações entre imaginário literário urbano e processo cultural
no Brasil contemporâneo.
15
s ala p reta
nessas imagens do lixo, por aproximação, por modo geral. Nowhere Man, por exemplo, deste
incorporação, esse movimento parece apontar último, já se iniciava com o seu “Fausto” em
simultaneamente, no entanto, para um “formi- trajes meio ensangüentados, tendo um pseudo-
gamento”, uma experiência corporal dolorosa cadáver feminino como interlocutor. E, na sua
próxima dos mecanismos de desfiguração, das segunda montagem do Quartett, de Heiner
exposições cruentas de corpos, por meio dos Müller, os dois personagens, também com rou-
quais se tem constituído, com freqüência via pas e facões sujos de sangue, circulavam entre
horror, a subjetividade na produção cultural enormes pedaços de carne suspensos e um ce-
brasileira sobretudo desde os anos 1980. nário em que escorriam manchas sanguinolen-
tas por todos os lados. Dado de horror que tem
estado presente regularmente no seu teatro. Bas-
Subjetividade e horr
horroo r ta lembrar ainda os pedaços de corpos espalha-
dos pelo chão em Matogrosso ou o coração e a
Não é, de fato, difícil perceber um rastro de cabeça arrancados às duas figuras femininas de
Guignol na vida cultural brasileira das últimas The Flash and Crash Days.
décadas. Passando das minuciosas descrições dos O que parece ter ocorrido, porém, se nos
corpos e assassinatos de mulheres em Acqua fixamos, por exemplo, em algumas das monta-
Toffana, de Patrícia Melo, à exumação dos ca- gens de Gerald Thomas dos anos 1990, foi um
dáveres do pai e de um irmão relatada no conto aumento de ênfase nesses sinais de sangue, mu-
“A Carne e os Ossos”, de O Buraco na Parede, tilação, tormento físico, acompanhado da expli-
de Rubem Fonseca. Da exposição de um corpo citação auto-irônica de se estar trabalhando, aí,
de criança atravessado por uma estaca de ma- muitas vezes, com alguns dos truques mais ca-
deira, presente numa das fotos de C. A. Silva, racterísticos do gênero “Grand Guignol”. Des-
exibidas na Galeria da Funarte em 1996, à “me- de as facas com pontas retráteis às mesas que
nina de rua morta nua” do relato, cheio de re- ocultam corpos, das gradações de cor e varia-
tratos e registros policiais, de Valêncio Xavier. ções de composição e textura do sangue fictício
Ou aos “dentes do apodrecimento” que “engo- ao despedaçamento físico da atriz Fernanda Tor-
lem o corpo” num dos poemas de Cheiro Forte, res em The Flash and Crash Days, à sua cabeça
de Silviano Santiago, aos vivos vorazes, do poe- arrancada do corpo em O Império das Meias Ver-
ma “Os Vivos”, de Ferreira Gullar, que, “glu- dades, ou aos corpos atravessados por setas
tões ferozes”, “devoram os outros vivos” e “até (como o de Fernanda Montenegro em The Flash
dos mortos comem/ carnes ossos vozes”. Da and Crash Days) e facões (como na abertura de
perna amputada do narrador do romance Hotel Nowhere Man).
Atlântico, de João Gilberto Noll, ao sujeito – Se o teatro do Grand Guignol, de grande
“todo em fios” – preso a uma cama de hospital popularidade de fins do século XIX até o perío-
na seção “Incertezas” do livro Ficção Vida, de do entre-guerras, ancorava seu efeito cênico no
Sebastião Uchoa Leite. fait divers médico ou criminal e num misto de
Referência guignolesca também particu- interpretação e hábil exercício de mágica, o que
larmente acentuada, e, ao que parece, metódi- parece torná-lo especialmente curioso é, de um
ca, na produção teatral recente. Passando de “O lado, a sua transformação de inovações técnicas
Livro de Jó” e “Apocalipse”, de Antônio Araújo (dos truques de iluminação e áudio aos telefo-
e do grupo “Teatro da Vertigem”, de “As Bacan- nes, automóveis e novidades médicas) em ele-
tes”, na versão de José Celso Martinez Correia, mentos dramáticos, e, de outro, a apresentação
às descrições e exposições de tortura que cons- de uma espécie de pastiche de horror não ape-
tituem “Bugiaria”, de Moacir Chaves, aos espe- nas da experiência moderna do corpo e da pró-
táculos de Gerald Thomas dos anos 1990 de pria subjetividade como instáveis, fragmenta-
16
D esterritorialização e forma literária
dos, mas, sobretudo, da figuração do corpo sídio do Carandiru, em São Paulo, no mesmo
como “corpo em pedaços”, dominante, mas ano, como a execução de 21 pessoas em Vigário
com variações de sentido, na arte moderna e Geral, em 1993, de oito meninos de rua na igre-
pós-moderna. E há, sem dúvida, nesse sentido, ja da Candelária, no Rio de Janeiro, também
nesse Guignol brasileiro recente, um diálogo em 1993, de dezenove trabalhadores sem terra
com a extrema crueldade com o corpo presente no município de Eldorado dos Carajás, no Pará,
em alguns exemplos da body art contemporâ- em 1996, ou como o assassinato de onze pessoas
nea, com a figuração atormentada, a fragmen- no Bar Ponto de Encontro, em Francisco Mora-
tação paradigmática e polivalente na produção to, em São Paulo, em 1998. Ocorrências que
artística do século XX, das bocas de Bruce padronizam, via fotojornalismo, um tipo pecu-
Nauman ou Francis Bacon, aos olhos imensos, liar de iconografia corporal dolorosa, subli-
pedaços de pernas, mãos, aos desmembramen- nhando a disseminação da violência, o aspecto
tos diversos operados por Louise Bourgeois, das cruento da história brasileira contemporânea.
fotos de fragmentos de cadáveres de Andres Ser- Parecem combinar-se, então, desse pon-
rano às supressões corporais na obra de Samuel to de vista, na refiguração em pedaços, em ago-
Beckett. nia, de personagens, retratos e narradores, na
Talvez, no entanto, haja outras fontes, não produção cultural brasileira recente, três ordens
exclusivamente plásticas ou artísticas, para esse de fatores contextuais. De um lado, o diálogo
rastro guignolesco. E algumas delas talvez pos- com a fragmentação corporal característica à
sam ser sugeridas, como no teatro do “Grand arte moderna e a um de seus pastiches, o
Guignol” propriamente dito, por uma simples Guignol. De outro lado, o registro indireto da
consulta ao noticiário jornalístico do país em experiência da tortura, das execuções, e da vi-
fins dos anos 1990. Por exemplo à sucessão de vência política dos anos 1970. E, de outro lado,
fotos de ossadas e imagens de arquivo de anti- ainda, a convivência com o aumento do crime
gos retratos e de corpos executados dos militan- violento, das zonas de domínio do tráfico, e da
tes de esquerda, dos desaparecidos políticos bra- violência também por parte das forças de segu-
sileiros dos anos de autoritarismo militar, que rança pública, durante as décadas de 1980 e
invadiram as páginas de jornal, no último decê- 1990 no Brasil. Chamando a atenção, no en-
nio do século XX, por conta do aparecimento tanto, o fato de, nessas tentativas de identifica-
de novas informações, da localização de ossos e ção cruenta dos sujeitos ficcionais, sua exposição
restos humanos e dos processos das famílias às não se ancorar em idealizações subjetivas, ima-
voltas com o reconhecimento dos seus mortos. gens corporais coesas, de o processo mesmo de
Ao lado dessa iconografia política do período figuração e subjetivação envolver uma espécie
da ditadura militar no país, não é difícil perce- de consciência necessária de sua instabilidade,
ber também, no entanto, a quase exacerbação um impulso concomitante, impositivo, de desfi-
de um cotidiano marcado pela banalização da guração, de guignolização.
violência, da brutalização, exposto diariamente Trata-se, no entanto, de uma desfigura-
nas páginas policiais da imprensa brasileira. E ção ambivalente. Pois se, por vezes, aponta para
com repercussão intensificada no caso de chaci- vitimizações, por vezes sobrepõem-se máscaras
nas praticadas a mando dos grupos que domi- de agentes da violência a personagens, narrado-
nam o tráfico de drogas nas grandes cidades bra- res e sujeitos poéticos, mantendo-se, com fre-
sileiras. Ou perpetradas pelas próprias forças qüência, igualmente, uma espécie de registro
policiais, como a de onze jovens em Acari, na híbrido, no qual um misto de vítima e perse-
Baixada Fluminense, em 1990, a de dez adoles- guidor é que move o processo de subjetivação
centes assassinados no Morro de São Carlos em literária. Daí, inclusive, a proliferação de híbri-
1992, como o massacre de 111 detentos no pre- dos, aberrações, figuras autodefinidas como
17
s ala p reta
monstros na literatura brasileira recente. E que, o caráter inquietantemente próximo, nada exó-
se em diálogo direto com um contexto particu- tico, de tais animais e monstruosidades. É o caso
larmente cruento, apontam, via figuração das “aberrações” propositadamente invisíveis de
monstruosa, para uma lacuna epistemológica, Bernardo Carvalho. Ou, no conto “Mandril” de
uma desestabilização classificatória, um con- Zulmira Ribeiro Tavares, da aproximação entre
fronto, na própria prática cultural, com os li- o jardim zoológico onde está o animal e um
mites da expressividade e dos mecanismos de domingo numa sala com a televisão ligada num
identificação, experimentados diante da afirma- programa de calouros. Ou, movimento aparen-
ção de novas formas de organização das diferen- temente inverso, como em Decálogo da Classe
ças sociais em cidades pautadas simultaneamen- Média, nas figurações horrendas da classe mé-
te numa homogeneização globalizadora do dia por Sebastião Nunes, “cruzamento impro-
espaço e numa exacerbação do pânico da vável de cigarras e formigas”, órgãos genitais em
heterogeneidade social, na emergência de cida- proliferação, lagartos, insetos variados, crânios
delas autônomas fortificadas, na expansão da cheios de ratos, camaleões, cães, porcos, corpos
criminalidade violenta e de uma contínua vio- tricéfalos, mas sempre em meio às atividades
lação dos direitos de cidadania justamente no mais habituais, casamentos, reuniões de traba-
contexto de uma redemocratização política em lho, festas, exercícios esportivos. Ou, como nos
processo no país. Movimentos em meio aos contos de Nélson de Oliveira, cheios de “ani-
quais é via vitimização e figurações proteicas, mais dos mais estranhos lugares”, “criaturas
aberrantes, que parece possível engendrar retra- aprisionadas”, figuras assombradas, gente “mo-
tos ficcionais, subjetividades literárias, represen- vendo-se contra os próprios pés”, sonâmbulos,
tações disformes da diferença, corpos culturais canibais, gente de “maneiras primitivas e mal
híbridos em estreita ligação com um processo formadas”, “mais besta do que homem”, mons-
histórico de redefinição de identidades e das for- tros por vezes medonhos, que, no entanto, se
mas de agenciamento social. dedicam ao mais corriqueiro, a telefonemas,
Não que as figurações monstruosas e cheques, cálculos, coisas do dia-a-dia. Numa es-
animalizações da ficção contemporânea sejam pécie particularmente perversa de hibridização,
unívocas. Observem-se, nesse sentido, as dife- entre o cotidiano e o bestial, entre a perversida-
renças, por exemplo, entre, de um lado, o hí- de e a vitimização, a paralisia e a aniquilação.
brido adolescente –braços compridos demais, Daí a figura do dragão invencível capaz de trans-
pernas de avestruz, pêlos todos errados- do con- formar-se em qualquer um, dissolvendo qual-
to “Pequeno Monstro”, de Caio Fernando quer possibilidade de auto-identificação, de di-
Abreu, no qual se sobrepõem, nesse “pequeno, ferenciação, no conto “Não sei bem o quê,
pequeno monstro, ninguém te quer”, duas aqui”. Daí a impossibilidade de auto-reconhe-
liminaridades, a da puberdade e a da descober- cimento da “pequena Victor” no belo conto “A
ta da homossexualidade, e, de outro lado, o ri- Visão Vermelha”, do livro Naquela época tínha-
tual de auto-canibalização de uma mulher em mos um gato. Daí o desaparecimento, pedaço a
“Canibal”, conto de Moacyr Scliar no qual a pedaço, do corpo do Sr. McPiffs, outro perso-
personagem se vê forçada a isso pela recusa de nagem de Nélson de Oliveira, semelhante ao de
sua rica “irmã de criação” em compartilhar com Angelina, a criatura “esguia e escura, de grandes
ela de seu grande baú de alimentos, numa figu- olhos assustados”, que se auto-devora no conto
ração exemplarmente cruel das divisões sociais “Canibal”, de Moacyr Scliar. Num movimento
em meio a aparente prosperidade econômica de instabilização da fronteira mesma do mons-
circunstancial. truoso, de refiguração lacônica do “não somos
O que parece estar em jogo, porém, nes- humanos” da G. H. do romance A Paixão se-
sas anomalias e zoologias ficcionais recentes, é gundo G. H. de Clarice Lispector.
18
D esterritorialização e forma literária
19
s ala p reta
parado/ como uma víbora/ antes do bote/ ob- cas de observação entre sujeito e matéria urba-
serva/ calado/ o passar do tempo/ pelos relógios/ na. Mesmo porque os papéis entre observador e
controlado/ passa pelas folhas/ do livro entrea- observado, na sua obra, sempre podem se in-
berto/ o úmido índice do medo)”, lê-se noutro verter. Não há um movimento de catalogação
poema de 1997. Trata-se, nos dois casos, de tex- de figuras urbanas, excluídos, desabrigados, cri-
tos não à toa limitados por parênteses, num minosos, como na literatura de testemunho, na
misto de ocultamento e suspensão, numa espé- prosa quase fotográfica das últimas décadas.
cie de figuração gráfica da espreita. Em ambos Pois se os quadros citadinos de Sebastião
os poemas pressentindo-se uma violência poten- Uchoa Leite são percorridos por “in-seres”, pas-
cial, da qual o sujeito tanto pode ser o agente santes “sob tendas de plástico azul”, espécimes
quanto a vítima. de uma “humanidade de cócoras”, “sem-teto/
A indeterminação identitária não se limi- estáticos/ frente à multidão vil”, a perspectiva
taria, porém, a essas figurações do sujeito, mas poética – sempre marcada por uma violência
se espraiaria, igualmente, pelas relações entre as surda – não é hierárquica ou sistêmica, é oblí-
imagens do eu e as do espaço na poesia de Se- qua. Ou como se explica em “Exibicionistas e
bastião Uchoa Leite. Não à toa apontando para Voyeurs”, poema de A Ficção Vida: “Voyeurs
uma dissolução aquática mútua entre sujeito e olham de viés”. E, neste caso, seria possível
paisagem na série de poemas sobre a chuva do acrescentar, por vezes trocam de papel. Como
livro A Espreita. De que é exemplar “Andando em dois poemas-anotações de A Ficção Vida.
na Chuva: São José”: “O meu eu-água/ autodis- Num deles, “O Sobrevivente”, um sujeito ob-
solvente/ cabelos/ pêlos/ olhos/ todos os poros/ serva “uma louca” que “discute consigo mesma/
entregues”. Ou expondo-se – vide “Numa in- Hamlet aos brados” e registra, via pronome pes-
certa noite”– uma contemplação de mão dupla, soal, uma sobreposição entre observador e ob-
“vertigem inversa”, entre o passante, “vendo a servada: “Este ‘ser ali’/ Em alto regozijo/ Do
copa das árvores”, e as folhagens e copas de ár- meu perfeito juízo”. Na outra anotação, “A obra
vores cujo “ciclópico olho vegetal” o contem- lírica”, sobrepõem-se literalmente poema e fe-
plam nas ruas que atravessa. Não à toa assina- zes, pois a “obra” em questão resultava de um
lando-se, ainda, a perda dos limites entre dentro detrito urbano, de uma figura de cócoras defe-
e fora, observador e cenário urbano, como em cando em plena rua Azeredo Coutinho, no Rio
“Dentro/fora: Rio de Janeiro”, onde “a rua pé- de Janeiro.
trea/ de pedestres/ com pressa”, vista “lá fora”, E é em parte por meio dessa constante
“por trás dos vidros”, parece deslizar “por den- possibilidade de cruzamento de fronteiras iden-
tro do vidro”, vir “do outro lado da mesa”. E titárias, sociais, espaciais que, apesar de Sebasti-
chegando-se mesmo a atribuir à paisagem cario- ão Uchoa Leite trabalhar regularmente com fios
ca uma das máscaras mais características do de enredo policial e tramas narrativas reconhe-
sujeito poético em Sebastião Uchoa Leite, a da cíveis, se intensifica o desconforto de um leitor
serpente, transferida, em “O grande brilho”, exposto a zonas liminares, ambíguas, descon-
poema de 1991, para a baía de Guanabara: tínuas, que se desdobram mesmo do ambiente
“Infusos no mar de amarelos/ Os focos verdes/ mais cotidiano, e em meio a sinais imediata-
vermelhos/ Da enseada-serpente”. mente reconhecíveis do cenário urbano, como,
E, ao contrário da territorialização etno- no caso do Rio de Janeiro, a estátua do Cristo
gráfico-classificatória operada em geral pela fic- Redentor, o túnel que liga Botafogo a Copaca-
ção neodocumentalista dos anos 1990, a pro- bana, a Avenida Presidente Vargas. Num movi-
dução de uma zona transicional entre dentro e mento de instabilização e desterritorialização,
fora, poeta e paisagem, na poesia de Sebastião desconfortável do ponto de vista da recepção
Uchoa Leite, parece reduzir distâncias hierárqui- poética, e que, se em relação direta com a emer-
20
D esterritorialização e forma literária
gência de novas práticas urbanas, com a inten- E se, a rigor, o que chama a atenção é so-
sificação de uma segregação assimétrica do es- bretudo a instabilização espacial, não faltam, a
paço social e de uma generalização da violência essas desterritorializações, componentes cruen-
e da incivilidade diárias, não se limita a inven- tos. Do “sofrimento em festim”, referido num
tariar a experiência citadina brasileira. Fazendo- dos poemas de Lu Menezes, ao corpo “blinda-
se dela elemento fundamental de indetermina- do”, em Ronald Polito, à “sensação de chum-
ção e negatividade estruturais, de um difícil bo”, ao “pé inoxidável” do trabalhador na fábri-
processo de formalização literária que, no tra- ca, ao “corpo caído”, “coagulada paisagem”, no
balho de Sebastião Uchoa Leite, se aproveita dos livro de Fabiano Calixto. Dos “arrastões/chaci-
clichês da criminalização e os instabiliza em in- nas megalópicas/infanticídios” ao “morto à
sólitos enfrentamentos e solidarizações entre o bala”, ao “inferno alighierico dos pobres”, em
sujeito e “os ruídos da polis”, e converte o to- Sebastião Uchoa Leite. Do “sopro de mortali-
pos moderno das caminhadas pela cidade, e suas dade dura”, em Quase Sertão, ao “varal/ atraves-
tramas implícitas, em figuras mesmas de uma sando a garganta/ o cômodo/ fio cego do pu-
antilírica, de uma narratividade auto-corrosiva nhal partindo o céu/ a privação/ no arame do
pautada numa quebra constante de versos e cabide” no poema “Crente”, de Angela Melim.
imagens, em “não-localidades” e num “jogo hi- Do “desejo de fuga”, em “Giro”, de Duda Ma-
perrealista/ entre o eu e a margem”. chado, à “batalha/ travada em/ lugar algum”, ao
Se, na poesia de Sebastião Uchoa Leite, a “não sei na madrugada/ se estou ferido/ se o cor-
desterritorialização do cenário urbano se acha po/ tenho/ riscado/ de hematomas” do poema
imbricada a toda uma série de trocas identitárias “Mau Despertar”, de Ferreira Gullar. Ou ao “eu
e desfigurações, teria resultados poéticos distin- sou pobre, pobre, pobre”, ao “difere, fere, fere”
tos o recurso a procedimento semelhante por do “Vers de circonstance”, de Carlito Azevedo.
Ítalo Moriconi, em cujo livro Quase Sertão se Os sinais de violência nessas figurações do
forja uma figuração espacial híbrida – a de um urbano, se dizem respeito fundamentalmente ao
deserto-cidade, por Angela Melim, cuja poesia próprio processo criativo, remetem, é claro,
é marcada por uma problematização recorrente também, ao imaginário citadino contemporâ-
do horizonte, ou por Duda Machado, em cujos neo, ao crescimento do crime violento e das re-
poemas se tematiza o espaço como deriva, fuga ações igualmente violentas a ele, à generaliza-
à formalização, para ficar com apenas três exem- ção da sensação de risco e de conflito potencial
plos significativos de um movimento de inde- e à perda do sentimento de coletividade no co-
terminação nas figurações urbanas da poesia tidiano das grandes cidades brasileiras. Questões
brasileira contemporânea. Movimento a que se que têm motivado um número igualmente cres-
poderiam acrescentar desde a janela que se fe- cente de estudos na área das ciências sociais no
cha à visão da paisagem marinha, “de maneira a país. Por vezes com o privilégio da tensão entre
proscrever, velar a desfraldada/ tarde marinhei- redemocratização política e expansão dos crimes
ra”, do poema “Proscrição”, à névoa em que se de sangue, duplicados, de acordo com Angeli-
figura a baía, em “Enseada”, também de Lu Me- na Peralva, “entre 1980 e 1997” e resultantes, a
nezes, da quase calçada inscrita no corpo – “ras- seu ver, de uma insegurança ampliada pela
tro de mosca-bicheira/ imperceptível”– de um “interpenetração entre o universo dos morros e
dos poemas de Fábrica, de Fabiano Calixto, ao o da classe média”, pela “continuidade autoritá-
horizonte “fora de qualquer perspectiva”, à ria” e pela reestruturação das relações dominan-
recorrência da imagem do deserto, passando por tes até o fim da ditadura militar “entre o Esta-
uma auto-figuração do sujeito como cacto, em do, o sistema político, a nação e a sociedade”
Solo, de Ronald Polito. (Peralva, 2000, p. 22, 59, 84 e 89). Já Teresa
Pires do Rio Caldeira aponta, em Cidade de
21
s ala p reta
Muros, para essa contradição “entre expansão da cesso interno de formalização movido a orien-
cidadania política e deslegitimação da cidada- tações contraditórias. Apontando a indetermi-
nia civil” e para o “caráter disjuntivo da demo- nação espacial, o geograficamente “informe”,
cracia brasileira” como elementos nucleares de para a exposição de uma experiência formal
uma experiência urbana segregacionista, rela- marcada pela exacerbação das tensões entre ho-
cionando a criminalidade violenta não só à rizonte e deriva, figuração e instabilização, per-
transformação das “configurações tradicionais sistência e dissipação.
de poder”, mas à “deslegitimação do sistema ju-
diciário como mediador de conflitos”, à “priva-
tização dos processos de vingança”, à “legaliza- Ítalo Moriconi e a Cidade como Sertão
ção das formas de abuso e violação de direitos”
(Caldeira, 2000, p. 343). Ou, como enfatiza A simples sobreposição do título Quase Sertão a
Luiz Eduardo Soares, a uma duplicidade cons- reprodução fotográfica de paisagem nitidamen-
titutiva à organização social brasileira, a de uma te citadina, na capa da coletânea de poemas de
sociedade orientada por elementos de um “mo- 1996 de Ítalo Moriconi, já indica, via nomea-
delo cultural hierárquico” e “socializada de acor- ção, a dominância de uma visualidade urbana,
do com o modelo cultural próprio ao indivi- mas exposta a partir de um seu avesso potencial.
dualismo igualitário liberal”, a de um “projeto Sem que, no entanto, o movimento proteico, a
liberal-democrático” no contexto “de uma forte condensação das duas imagens de fato se efeti-
tradição nacional autoritária e excludente” (Soa- ve. Daí o advérbio, o “quase”, responsável pela
res, 2000, p. 34-6). Pois quando “são intensos persistência das duas referências geográficas, da
os padrões de exclusão política e grande parte disparidade evocada por elas, por essa conjuga-
da população não se reconhece como partícipe ção de cidade e sertão, acumulação e deserto.
de uma trajetória coletiva”, como observa Ma- As imagens estruturais ao livro apontando si-
ria Alice Rezende de Carvalho, “a cidade se tor- multaneamente para uma interseção de ambiên-
na objeto da apropriação privatista, da predação cias e para a impossibilidade de sua conciliação
e da rapinagem, lugar onde prosperam o ressen- metafórica. A diferença, a conflitualidade laten-
timento e a desconfiança sociais” (Carvalho, te entre elas, sugerindo uma amorfia metódica,
s.d., p. 56). um limite propositado – “palavra que falta”,
Desse modo, torna-se problemática a per- “meias-palavras” – nessa figuração urbana pelo
cepção da cidade, e de suas figurações literárias, avesso.
como unidades espaciais definidas, como espa- É evidente que as imagens do desértico,
ços comuns de socialização. Ora expandindo-se do silêncio, do áspero, da “vegetação esdrúxula,
“súbitos/ espaços”, como em “Neste fio’, de cheia de espinhos”, de uma violência potencial,
Régis Bonvicino, ora assistindo-se à sua intensa em meio a derivas, ruas, “carnavais”, a uma
compressão, como nas “quatro paredes rentes”, “multidão sem face”, a uma “chuva de figuras”,
no “casulo/ compacto, nulo”, no “espaço espar- “braços”, “quadris”, “carros retardatários”, “pré-
so” sugerido no livro Solo, de Ronald Polito. dios apagados”, “calçadas”, e a uma sucessão de
Ora desdobrando-se do urbano o deserto, como caçadas amorosas anônimas – “ciscando no as-
é o caso do “quase sertão” de Ítalo Moriconi, falto” –, emprestam à evocação do “sertão”, nes-
ou da “cidade deserta” mencionada em “Giro”, se caso, a possibilidade de exposição das trilhas
de Duda Machado; ora privilegiando-se os “es- homoeróticas da cidade, da outra cidade embu-
paços-entre”, as zonas de transição, como em tida na cidade usual, na Av. Rio Branco, na Co-
Angela Melim. Com a diferença de, no caso pacabana, na praia, nas esquinas de todos os
dessas desterritorializações literárias, estar em dias. E de uma tensão recorrente entre o mais
pauta não apenas a forma urbana, mas um pro- íntimo e o mais público, o sertão “mais pra den-
22
D esterritorialização e forma literária
23
s ala p reta
24
D esterritorialização e forma literária
locamento, “exploração dos pontos cegos, das ram o espaço e a escrita, por uma espécie de
margens de indeterminação na linguagem e na dramatização do horizonte, desdobrado em for-
paisagem” (Collot, 1988, p. 17), como assinala mas diversas, mas obrigatórias, de conflito e in-
Michel Collot em L’Horizon Fabuleux, que ela determinação.
tematiza e transporta, para o espaço poético, a “E ela gostaria”, lê-se em “Os Caminhos
noção de horizonte. O que, do ponto de vista do Conhecer”, “de pintar as unhas de vermelho.
da organização gráfico-sintática do poema ex- Enquanto escrevesse as palavras no caderno ia
plica a quantidade de brancos, intervalos, pa- prestar atenção nos dedos de pontas brilhantes
rênteses, travessões, estruturais nos seus textos, segurando a esferográfica e sentir prazeres confli-
ou o gosto acentuado pelo verso isolado, solto, tantes”. Movimento semelhante ao que, entre
atravessando a página, cortando ou fechando um “lá dentro” e um “pé de jasmim”, em “Mu-
alguns dos poemas à maneira de uma divisória, lheres”, entre um “à flor da pele” e um “fosso
de uma linha interna do horizonte, muitas ve- fundo”, em “Faca na água”, entre “cristas sus-
zes intensificando um desdobramento ou um pensas/ pedras de sal/ fiapos de mar” e “seu fun-
conflito de liminaridades. Como na frase longa do longínquo/ âncora/ os leitos de areia e seus
que, em “O Mar não Existe”, depois de cinco lençois limpíssimos”, em “Um Navio”, figura
versos curtos, internaliza um mar de ausência e “janelas”, “lagos no peito”, “navio”, imagens de
impossibilidade numa espécie de horizonte or- fronteira, espécies de não-lugares. A que se po-
gânico em corrosão: “A acidez é um fogo co- deriam acrescentar a bainha, o varal, a beira-mar,
mendo o tubo escuro que atravessa o corpo”. a fresta, a aresta, o vão, as grades, a beira, de tan-
Como no caso de “Ronca um motor”, de Mais tos outros poemas seus, nos quais se tensionam
Dia, Menos Dia, o verso “É o verão que se abre”, e convivem essas direções conflitantes. Ou que,
que, separado dos demais por dois espaços em em meio a uma sucessão de marinhas e paisa-
branco, parecendo sintetizar, via destaque grá- gens à primeira vista pouco habitadas, quase
fico, as imagens anteriores de barco, mar, calor, desistoricizadas, ativam uma espécie de conflito
e figurar uma extensão paisagístico-temporal “a surdo, quase imperceptível, entre quadro natu-
céu aberto”, se faz acompanhar, no entanto, de ral e horizonte histórico. Entre um exercício lí-
um outro horizonte, conflitante, que inverte rico em torno de sol, flores e perda, como “Co-
não só o seu movimento de ampliação, mas a rajoso como a Beleza”, e sua sucessão de imagens
referência temporal a um período que começa, bélicas: disparos, bala, dor, estrondos, combate.
transformando-se a gênese de um verão em ima- Entre “os ladrilhos/ o verde baço do cloro/ a pis-
gem de um passado próximo à dissolução: “Tar- cina” e o “arame” que a resguarda, em “Álbum”,
de, sorvete, amor/ varanda/ em taças do passa- o “cheiro/ do jasmim” e um “sangue vivo/ a pena
do/ a derreter”. contido”, o “céu azul e limpo” e “granadas”,
A consciência do horizonte na poesia de “fogo, fumaça” , em “Fogos Juninos”. Ou entre
Angela Melim, em vez de suporte espaço-tem- o horizonte da cidade e o da escrita, em “Tri-
poral ou ponto de orientação da perspectiva lha”, com a mediação de um terceiro horizonte,
subjetiva, aponta, portanto, para um movimen- bélico, de “cerco, baixas, barranco, armas”, que
to de sistemático redimensionamento mútuo do parece redimensioná-los historicamente.
sujeito e da paisagem, de que é exemplar a re-
flexão sobre a morte contida em “Limão Ir-
mão”, na verdade o simples registro de uma fru- Duda Machado e a deriva metódica
ta que cai e rola pela terra, “que agora traga/ a
carne aberta/ desesperada/ do limão”. E de que Já os poemas de Duda Machado, se igualmente
é exemplar, igualmente, sua preferência pelo marcados por uma exposição conflitiva do es-
intervalar, pelas linhas que figuram e desfigu- paço, parecem movidos por um princípio de
25
s ala p reta
contra-organização, por uma indeterminação vive”. Assim como, no turvo espelho interior,
metódica, mas variada, que, de dentro, os des- lê-se em “Tanto Ser”, “desfiguram-se os atos” e
dobra e reengendra, apontando para uma for- o corpo se mostra “impalpável, carcaça/ que o
ma poética propositadamente instável, em fuga, espírito não acha”.
não à toa figurada, repetidas vezes, por imagens Em Margem de uma onda, essa tensão
marcadas exatamente pelo movimento, pela entre movimento de formalização e de dissipa-
transparência e pela tendência ao informe, à ção, de figuração e iminente desfiguração, tema-
desterritorialização, como as do vento e da tizada, de modos diversos, em todo o livro, da-
onda, fundamentais à auto-explicitação de uma ria lugar à poética singular exposta em “Fábula
poética pautada na modulação (“quem reina?/ do Vento e da Forma”, “Manhã Piscina” e “Mar-
uma modulação/ capaz de afinar/ o entendi- gem de uma onda”, em parte em diálogo com
mento”), na tensão entre desgarre e condensa- “Imitação da água”, de João Cabral de Melo
ção, deriva e desejo de fixação (“brisa/ ainda há Neto. Nela estabelecendo-se, a princípio por
pouco formada,/ a confluência/ entre passagem negação, uma analogia entre o vento e a forma,
e morada”), dominantes em Margem de uma elementos a rigor incompatíveis, em irredutí-
onda (1997), seu livro mais recente. vel desacordo, de um lado, pelo desejo de per-
Há, no entanto, desde Zil, uma recorrên- sistência próprio à forma, de outro lado, pelo
cia dessas imagens aéreas, aquáticas, móveis. Da aspecto passageiro próprio ao vento. Em ambos
associação do livro ao rio, no texto inicial deste os casos, porém, o percurso diverso sinaliza-
volume de 1977, ao “mar/ na ponta dos cascos” ria no sentido de uma correspondência, pelo
de “Verão”, às vogais “líquidas, cascateantes, en- avesso, entre essas diferenças, que seria levadas
chentes”, ou às imagens de vôo, os mandacarus à própria mútua negação. Do lado da forma, ati-
revoando, em “Ária”, ou poema-pergunta sobre vando-se um processo de múltiplo desdobra-
o que soaria mais alto, se “o vôo ou o canto do mento em metamorfoses. Do lado do vento,
pássaro”. Imagens em movimento dominantes por conta da possibilidade de subitamente to-
igualmente no seu segundo livro, Um Outro mar forma, caso o seu movimento se opere, por
(1990).Como nos seus diversos percursos, alvos exemplo, “sobre a harpa eólia/ ou nos móbiles
em movimento, na multidão definida como de Calder”, como sublinham os dois últimos
“moinhos de braços”, na chuva que segue a versos do poema.
moça, na ciclista que passa, e na colocação em O curioso, no caso dessa fábula, estando
roda até mesmo das “idéias fixas”, exemplo qua- não só no “desacordo uníssono” em que ela se
se paradoxal da poética eólia, instável, de Duda baseia, mas no fato mesmo de as duas imagens
Machado. se encaminharem necessariamente para o pró-
Ventos, vôos, moto contínuo se acham prio esgotamento. à maneira do que se dá com
contrastados, porém, em Um Outro, a uma in- a voz que “se recolhe” em “Interferência”, a cor
dagação, também recorrente, sobre a margem, que “cai sobre si mesma” em “Aventura da Cor”,
o horizonte, o limite, do acontecimento, da lin- os detalhes “moldados pela desagregação” em
guagem, ou entre “contemplador, céu e mar”, “Poética do Desastre”, a “fadiga” que “a cada
“céu e asfalto”, “jardim e tarde”, “morte-vida”. coisa/ desdobra e dissipa” em “Dentro do Espe-
Entre um desejo de contorno, recorte, forma- lho”, o quarto que, “depois de condensar/ tem-
lização, e por uma espécie de hesitação das for- po e espaço”, se concentra na janela e encontra
mas, de desmaterialização inevitáveis. “A vida‚/ o vácuo e “os limites da calçada/ embaixo” em
sem medida/ e isto/‚ rigor”, lê-se no segundo “Resumo quase abstrato”. Não sendo de estra-
poema de Um Outro. “O horizonte”, expõe a nhar, ainda, em meio a essa sucessão de dissolu-
primeira estrofe de “Juntos”, “é a luz/ que em ções e a ameaça de auto-anulação embutidas nas
cor tão unânime/ apaga as superfícies/ de que imagens dominantes de tantos desses poemas,
26
D esterritorialização e forma literária
27
s ala p reta
Referências bibliográficas
ABREU, Caio Fernando. Os dragões não conhecem o paraíso. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
_______. Ovelhas negras. Porto Alegre: Sulina, 1996.
AZEVEDO, Carlito. Sob a noite física. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros. Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo.
São Paulo: Editora 34/EDUSP, 2000.
CALIXTO, Fabiano. Fábrica. Santo André: Alpharrabio, 2000.
CARRERO, Raimundo. As sombrias ruínas da alma. São Paulo: Iluminuras, 1999.
CARVALHO, Bernardo. Aberração. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “Violência no Rio de Janeiro: uma reflexão política”. In:
Pereira et alii (org.). Linguagens da Violência.
COLLOT, Michel. L’ Horizon Fabuleux. Paris: Librairie José Corti, 1988.
CONTI, Mário Sérgio. “Encontros Inesperados” (Entrevista com Ismail Xavier). In: Mais!. Folha
de S. Paulo, 3/12/2000, p. 8-9.
FELINTO, Marilene. Mulheres de Tijucopapo. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 1992.
FERREZ. Capão Pecado. São Paulo: Labor Texto Editorial, 2000.
FONSECA, Rubem. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
_______. O buraco na parede. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
FREIRE, Marcelino. Angu de Sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
Inimigo Rumor. Revista de Poesia. N. 3. “Dossiê Ferreira Gullar”. Set-Dez. 1997.
LEITE, Sebastião Uchoa. “A Metáfora da Perseguição”. In: Jogos e enganos. Rio de Janeiro/São Pau-
lo: Editora UFRJ/Editora 34, 1995.
_______. A Espreita. São Paulo: Perspectiva, 2000.
_______. A Ficção Vida. São Paulo: Editora 34, 1993.
_______. A uma incógnita. São Paulo: Iluminuras, 1991.
_______. Obra em Dobras. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MACHADO, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Editora 34, 1997.
MELIM, Angela. Mais dia menos dia. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
MELO, Patrícia. Acqua Toffana. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
MENEZES, Lu. Abre-te, Rosebud!. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
NOLL, João Gilberto. Romances e Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
NUNES, Sebastião. Decálogo da classe média. Sabará: Edições Dubolso, 1998.
28
D esterritorialização e forma literária
OLIVEIRA, Nélson. Naquela época tínhamos um gato. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_______. Treze. São Paulo: Ciência do acidente, 1999.
Ortiz, Esmeralda do Carmo. Por que não dancei. Org. de Gilberto Dimenstein. São Paulo: Senac,
2000.
PERALVA, Angelina. Violência e Democracia: o paradoxo brasileiro. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
POLITO, Ronald. Solo. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
SANTIAGO, Silviano. Cheiro Forte. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
SCLIAR, Moacyr. Contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
SILVA, Hélio R. S. & MILITO, Cláudia. Vozes do Meio-Fio. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1995.
SOARES, Luiz Eduardo. “Uma Interpretação do Brasil para contextualizar a violência”. In: PEREI-
RA, C. A. M.; RONDELLI, E.; SHOLLHAMMER, K.-E. & HERSCHMANN, M. (orgs.).
Linguagens da Violência. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
TAVARES, Zulmira Ribeiro. O Mandril. São Paulo: Brasiliense, 1991.
VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
VÁRIOS. Letras de Liberdade. São Paulo: Madras, 2000.
XAVIER, Ismail. “O cinema brasileiro dos anos 90” (entrevista). In: Praga. Estudos Marxistas, n. 9.
São Paulo: Hucitec, 2000.
XAVIER, Valêncio. “Minha história dele”. In: Ficções. Ano 1, n. 1. Abril, 1998.
29