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Corpo adoecido pelo pecado

Bianca Gomes Pereira1

Sei que quereis continuar vivos. Não desejais morrer. Quereis passar desta vida para
outra de tal maneira que não vos reergais como mortos, mas plenamente vivos e
transformados. É isso que desejais. Esse é o mais profundo sentimento humano:
misteriosamente a própria alma anseia por isso e instintivamente o deseja. (Santo
Agostinho - Sermão 344.4: 39: 544).

Oriundas de um tempo distante de nós, tais palavras carregam a tradução


de um pensamento e forma ideais de vida que certamente o homem
contemporâneo comum não almeja alcançar. Contudo, elas indicam ao menos um
ponto de contato entre essas realidades separadas por séculos e séculos: o desejo
humano de eternidade. Não raro em nossos dias são os exemplos do caminhar do
homem em busca da plena forma física, o que pode ser também percebido como
recusa do envelhecimento, recusa da morte. A edição de 13 de setembro último da
revista Veja, "O Laboratório do Corpo", serve-nos como ilustração desta realidade.
Sob o título "As Lições de Sydney Para a Sua Saúde", tal veículo de informação
oferece aos leitores, além de um ensaio fotográfico onde atletas australianos
exibem uma plástica perfeita, algumas conclusões a que chegou a medicina
esportiva em relação ao funcionamento, conservação e limites do corpo humano.
Ao discorrer sobre a glória efêmera do pódio olímpico, buscada por tantos e
conseguida por tão poucos, fala-nos do conceito de saúde e também do papel
desempenhado, por exemplo, pela alimentação balanceada para o alcance de tal
objetivo.

Os monges cristãos medievais são o tema da pesquisa em andamento, que


nos permitirá a escrita da monografia de final do nosso curso de Bacharelado em
História, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Dento desta perspectiva, o
corpo nos figura como importantíssimo objeto de estudo, posto que, no ideal de
santificação monástica, ele deve refletir a pureza do espírito. Ou seja, retomando o
pensamento do apóstolo Paulo de que o espírito está pronto, porém fraca é a carne
(Mateus 26:41), o monge precisava continuamente zelar pela santificação de seu
corpo, uma vez que seria juntamente com o espírito que ele ascenderia ao céu.
Contudo, havia que se percorrer um longo caminho até o referido destino, caminho
este repleto de obstáculos para a carne, como o pecado da Luxúria e o da Gula, sua
íntima companheira. O primeiro tinha lugar no exercício da sexualidade e o
segundo, na alimentação.

Desenvolveremos nossa argumentação tendo por base, além das referências


paulinas, os ensinamentos do monge Santo Agostinho em relação à sexualidade.
Para ele, a consumação do ato carnal refletia a ruptura do corpo e da alma, que
tivera início com o pecado original de Adão e Eva, pecado este de cunho sexual e
que viera trazer corrupção ao corpo antes incorruptível. Gostaríamos antes de
pontuar que é justamente esta corrupção que entendemos como doença. Ou seja, o
intercurso carnal como responsável por macular um corpo que deveria refletir a
pureza de um espírito forte, 'saudável', incorruptível.

1
Aluna de graduação do curso de História- UFRJ. b.gpereira@terra.com.br
A citação com a qual demos início ao presente trabalho, remete-nos a
princípios da Idade Média, período histórico normalmente associado a "um mundo
de padres monges e freiras celibatários" (BROWN: 1998, p. 353) e foi proferida
originalmente por Santo Agostinho, um dos Pais da Igreja. Ela reflete a crença ou
constatação de uma dolorosa realidade: a ruptura da alma em relação ao corpo,
com o fim de uma harmonia existente no Paraíso, conseqüência da queda de Adão
e Eva. Assim, a morte era para este monge de fins do século IV e início do V o mais
amargo sinal da fragilidade humana, pois frustrava o desejo da alma de viver em
paz com o corpo, provocando a distorção da vontade nos seres humanos. Desta
forma, a sexualidade recebe um peso que não tivera até então. Agostinho
considerava que, no estado decaído do ser humano, o desejo e o intercurso carnal,
a exemplo da morte, zombavam da vontade. Os movimentos aleatórios do ato
sexual, para ele, simbolizavam uma minúscula sombra da morte, figurando a
discórdia que se instaurara no homem com a Queda.

O período compreendido entre os séculos IV e VI, assistiu ao surgimento e


difusão de uma literatura de incentivo à castidade masculina. De inspiração
oriental, esta literatura era composta de relatos da vida monástica feito por homens
que a tinham praticado anteriormente, como João Cassiano, que se retirou ao
deserto entre 385 e 399 (VAINFAS: 1986, p. 15). Ora, o monaquismo ocidental
nasce no século IV e apresenta uma nova forma, a saber, o cenobitismo. Seus
defensores eram homens que, como forma de resistência e contestação à
mundanização da Igreja, abandonavam o século e recolhiam-se aos mosteiros ou
cenóbios, onde viveriam contemplativamente, ou seja, em busca da salvação da
alma por meio das orações e recusa das relações carnais. Tendo representado
inicialmente oposição à Igreja, os monges serão mais tarde responsáveis pela
evangelização de várias regiões da Cristandade, e tidos como importantíssimos
intermediários de Deus e os homens, já que através de uma elevada espiritualidade
só possível nos mosteiros, viviam em constante penitência e orações, por si e por
todos os homens.

Era a Igreja que hoje podemos denominar católica que desempenhava na


Idade Média o papel de órgão regulador da vida moral e espiritual das pessoas. Era,
portanto, ela quem especificava os atos sexuais permitidos, com quem, como e
quando eles poderiam acontecer. Contudo, não podemos dizer que sejam cristãs as
raízes da pureza e do celibato religiosos. Encontramos em Michel Foucault a
afirmativa de que a mística da virgindade se desenvolveu ao longo do século III,
com a forma negativa da continência revertendo-se em "promessa de casamento
espiritual". Tal assunto é também abordado por Peter Brown, que ao escrever sobre
o cristianismo na Antigüidade nos mostra quão difícil seria estabelecer um divisor
seguro entre a visão acerca da sexualidade no período em questão e na Idade
Média (BROWN: 1988). De acordo com a teóloga alemã Uta HankeHeinemann, a
hostilidade ao prazer é uma herança da Antigüidade, preservada pelo cristianismo.
Para fazerem-se mediadores santos e puros entre seus deuses e povo, muitos
sacerdotes pagãos castravam-se para não serem maculados pelo sexo. O
pessimismo sexual é derivado principalmente de considerações médicas, como, por
exemplo, Pitágoras (século VI a.C.), que recomendava a satisfação carnal no
inverno, mas não no verão. Seu uso deveria ser moderado na primavera e no
outono, embora o sexo fosse realmente prejudicial à saúde em todas as estações.
Para ele, a melhor ocasião para o ato sexual era quando se desejava o
enfraquecimento do corpo (RANKE-HEINEMANN: 1988, p. 21-22).

Assim, os monges ocidentais cristãos buscavam na solidão do claustro o


local por excelência do exercício ascético. Tinham-no como a ante-sala do céu,
lugar onde podiam mortificar o corpo e mantê-lo em harmonia com a alma, em
contínuo processo de purificação espiritual. Então, a atividade sexual mostrava-se
inconcebível, pois incorporava o pecado da Luxúria. Dentro desta perspectiva, a
figura feminina representava um constante risco a ser evitado; a personificação do
próprio diabo para os homens desejosos de fazerem de si morada santa do Espírito
de Deus. Segundo teorias desenvolvidas pelos Padres da Igreja, a mulher é filha e
herdeira de Eva, a fonte do pecado original, um instrumento diabólico. Ela
representa um perigo para os monges devido sua natureza espiritual e por propiciar
ocasião para o desencadeamento de seus mais baixos instintos, levando os ao
pecado carnal, ou seja, a fornicação.

No entanto, mais acirrada que a luta contra o demônio da fornicação, que


tornava o corpo doente do pecado da Luxúria, era a batalha contra o pecado da
Gula. Fora após comer do fruto proibido e consequentemente ser expulsa com Adão
do Paraíso que Eva dera à luz a seqüência de humanos decaídos. Portanto, maiores
dificuldades teria uma alma para manter o equilíbrio e a articulação do espírito
quando presa num corpo cumulado de alimentos desnecessários. Geradores de uma
energia excessiva e maléfica, eles traduzir-se-iam em apetite físico e desejo sexual.
Ora, se contra a Luxúria uma das armas dos monges era afastar-se de mulher,
aproximar-se o quanto possível de práticas de continência alimentar era valioso
instrumento contra o pecado da Gula. Logo, a nutrição monacal consistiria de
alimentos simples, consumidos com moderação. Aqueles que estimulassem a
circulação sangüínea deviam ser evitados e o consumo de vinho banido (VAINFAS:
1986, p. 17). Nem mesmo a água e o pão deviam ser tomados à saciedade, pois
com os excessos o inimigo estaria sempre pronto a trançar perigosas redes de
pensamentos libidinosos para capturar os Castos do Cristo, que necessitavam ter
refletido no corpo a pureza imaculada do espírito. Este, lembra o apóstolo Paulo,
estava pronto, mas jazia na carne a fraqueza.

Complementando o consumir-se moderadamente uns alimentos e o evitar-se


outros, a privação total de alimentos, ou seja, o jejum, é também um elemento
sobremaneira importante na ascese monástica. Enfraquecer o corpo era
considerado remédio eficaz para a saúde espiritual. Os monges deviam praticá-lo
em tempos fixos, ocasiões determinadas como, por exemplo, a Quaresma, ou por
motivo de luta pessoal contra a concupiscência da carne e em busca da pureza do
corpo e da alma, numa comunhão mais íntima com o Divino.

Iniciamos nossa comunicação lembrando as palavras agostinianas acerca do


desejo medieval humano de imortalidade, desejo este que postulamos ter
atravessado os séculos e chegado à contemporaneidade, e que antes era buscado
através da religiosidade, por via espiritual. Cabia aos monges fazer a intermediação
do terreno com o sagrado, devido sua elevada espiritualidade, só alcançada através
da vida ascética intramuros.

Concluímos nossas linhas retomando o apóstolo Paulo e lembrando um


questionamento seu que igualmente trata da incapacidade humana diante do
inevitável fim: "Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta
morte?" (Aos RomanosXII:14). A Gula e a Luxúria de Eva expulsaram-na
juntamente com Adão do Paraíso e expuseram seus descendentes à pequena morte
cotidiana de que nos fala o monge Santo Agostinho. O ato sexual repete a dolorosa
ruptura do corpo e da alma, lembrando ao homem a miséria em que se encontra.
Morrendo para o mundo, mas vivendo para Deus, os monges figuram na Idade
Média como aqueles capazes de oferecer, através de seus corpos livres da doença
do pecado carnal, as condições terrenas necessárias para um maior e mais puro
contato com o Divino. Glória esta que não tem a duração contemporânea efêmera
da subida a um pódio olímpico, e, sim, prefigura a ascensão e presença do homem
no céu. Eternamente.

Bibliografia

1. ARRIÉS, A., BÉJIN, A. (Orgs.). Sexualidades Ocidentais: contribuições para a


história e para a sociologia da sexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1982.
2. LABORATÓRIO de História Antiga. UFRJ. Phoinix 2000. Rio de Janeiro: Sete
Letras, 2000.
3. PILOSU, Mario. A Mulher, A Luxúria E A Igreja Na Idade Média. Lisboa:
Estampa, 1995.
4. RANKE-HEINEMANN, Uta. Eunucos Pelo Reino de Deus: mulheres,
sexualidade e a Igreja Católica. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1996.
5. O Laboratório do Corpo. Revista Veja, São Paulo, 13, set. 2000. Ed. 1666.
6. RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: as minorias na Idade Média. Rio
de Janeiro: J.Z.E, 1993.
7. ROUSSELLE, Aline. Porneia: sexualidade e amor no mundo antigo. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
8. VAINFAS, R. Casamento, Amor e Desejo no Ocidente Cristão. São Paulo:
Ática, 1986.

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