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( eviroraufmg O TRABALHO DA CITACAO ANTOINE COMPAGNON © 1979, Editions du Seuil '-@ 1996, da traduco brasileira, Editora UFMG 2007 - 14 reimpressao “Titulo original: La seconde main ou le travail de la citation Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizacao escrita do Editor. Compagnon, Antoine C736t O trabalho da citacdo / Antoine Compagnon ; tradugao de Cleonice P. B. Mourao. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 1996. 176 p. ‘Traducao de: La seconde main ou le travail de la citation (Textos selecionados) 1. Literatura I. Mourdo, Cleonice P, B. II. Titulo CDD: 801 CDU: 82.01 Ficha catalogréfica elaborada pela Divisdo de Planejamento e Divulgacéo da Biblioteca Universitaria da UFMG ISBN: 85-85266-11-2 COLABORACAO NA TRADUCAO DA SEQUENCIA I: Luciana Lobato Burros Eliane Mourao PROJETO GRAFICO E CAPA Cassio Ribeiro EDITORACAO DE TEXTO Ana Maria de Moraes REVISAO E NORMALIZACAO Lilian de Oliveira FORMATACAO Robson Miranda PRODUCAO GRAFICA Warren M. Santos Editora UFMG Av. Anténio Carlos, 6627 ~ Ala direita da Biblioteca Central - Térreo ° Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG ‘Fel. (031) 3499-4650 Fax (031) 3499-4768 wwweditora.ufmg.br editora@ufmg.br a NOTA AO LEITOR Este volume é uma edicao reduzida de La seconde main ou le travail de la citation, de Antoine Compagnon, — publicada pelas Editions du Seuil, em 1979. Para a selecio dos 39 tépicos traduzidos das seis seqiéncias que compéem a obra, optou-se por fragmentos que tratam da escrita como exercicio da intertextualidade. Primeiro, ninguém pensa que as obras e os cantos poderiam ser criados do nada. Eles esto sempre ali, no presente imével da meméria. Quem se interessaria por uma palavra nova, no transmitida? O que importa nio é dizer, mas redizer e, nesse rédito, dizer a cada vez, ainda, uma primeira vez. Maurice Blanchot CONVERSAGAO INFINITA O que ha de terrivel em nds e sobre a terra e no céu talvez seja o que ainda no foi dito. S6 estaremos tranqiiilos quando tudo estiver dito, uma vez por todas, entio, enfim, faremos siléncio e nao mais teremos medo de nos calar. E assim sera. Céline VIAGEM AO FIMDANOITE Copiar como antigamente, Gustave Flaubert BOUVARD E PECUCHET he at TESOURA E COLA ABLAGAO GRIFO ACOMODAGAO SOLICITAGAO A LLEITURA EM AGAO © HOMEM DA TESOURA UMA CANONIZACAO METONIMICA ENXERTO REESCRITA © TRABALHO DA CITACAO A FORGA DO TRABALHO O SUJEITO DA CITAGAO CULPA DE GUILLAUME EMBREAGEM A FRICCAO MOBILIZACAO SUMARIO 13 7 20 24 27 30 33 37 41 44 AT 49 52 56 58 UM FATO DE LINGUA UNIVERSAL? FORMA E FUNCAO © SIMULACRO MOSTRAR UMA “BOA” CITACAO? © CORPO MARAVILHOSO DO DISCURSO “VOX”: A POSSESSAO UMA REGULAGAO INTERNA DO DISCURSO A REGULAGAO CLASSICA DA ESCRITA OU O TEXTO COMO HOMEOSTASE A PERIGRAFIA O INTITULADO E O TITULAR A BI(BLI)OGRAFIA DIAGRAMA OU IMAGEM NA FACHADA © POSTO AVANGADO © FOSSO ASSEPTIZANTE © COMEGO DO LIVRO E O FIM DA ESCRITA AVOCAGAO DA ESCRITA POSSE, APROPRIAGAO, PROPRIEDADE A CITAGAO ACABADA UMA ECONOMIA DA ESCRITURA FESTIVIDADES ESPACOS DE ESCRITA NOTAS REFERENCIAS 61 65 69 75 79 81 84 90 96 104 106 112 115 118 120 124 128 135 139 150 153 156 160 167 173 TESOURA E COLA Crianga, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as criangas sao muito desastradas até que atinjanya idade da razao, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura nas mios, recorto papel, tecido, nado importa o que, talvez minhas roupas. As vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. Sao grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estao dispostos, em desordem, barcos, avides, carros, animais, homens, mulheres e criangas. Tudo o que é necessdrio para reproduzir o mundo. Nao sei ler as instrug6es, mas tenho-as no sangue, a paixdo do recorte, da selegao e da combinacao. Meu gesto desejaria ser minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras, um trago negro em volta do corpo. Mas o recorte é de todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro os punhos, bato o pé, rolo pelo chao. Sapateio de raiva quando as coisas me opdem resisténcia, quando se recusam a submeter-se 4 minha vontade, rebeldes que sao a se deixarem representar em meu recorte, em meu modelo de universo. Ultrapasso sempre de alguns milimetros 0 limite, corto as pontas de papel que se dobram sobre os ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelao nu. Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha mie dispée, para seus trabalhos de costura, de longas tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar, sem mutilar as finas lingiietas? E preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas nao tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro. Sou fascinado como o ultimo indio Ishi pelos atributos que definiam, para ele, o homem branco: 0 fésforo e a cola.1 Quanto a mim, tenho somente um pequeno pote de onde me vem 0 odor de xarope de cevada, uma espatula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a consisténcia, o cheiro e o gosto dessa sobremesa servida nos restaurantes chineses de Paris, sob a denominagao apécrifa de “delicia das ilhas”. Colar novamente nao recupera jamais a autenticidade: descubro 0 defeito que conhe¢o, nao consigo me impedir de vé-lo, sé a ele. Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeicao. Nada se cria. Eu parodio o jogo recortando novos elementos em: papel comum que vou pintando sem levar em conta obom senso. Isso nao se parece mais com coisa alguma; nao me reconhego, a mim. Mas eu amo essa “coisa alguma”. 10 Recorte e colagem sao 0 modelo do jogo infantil, uma forma um pouco mais elaborada que a brincadeira com o carretel, em cuja alternancia de presenga e de auséncia Freud via a origem do signo; uma forma primitiva do jogo da porrinha — papel, tesoura, calhau — e mais poderosa se nada, no fundo, resiste 4 minha cola. Construo um mundo 4 minha imagem, um mundo onde me pertengo, e é um mundo de papel. Imagino que, quando bem velho — se eu ficar bem velho —, reencontrarei o puro prazer do recorte: voltarei a infancia, Todas as manhis, receberei 0 jornal, que recortarei linha por linha, em longas tiras de papel que colarei umas as outras e enrolarei como uma fita de maquina de escrever. Meu dia estara cheio: nao lerei mais, nao escreverei mais, nao saberei mais nem escrever nem ler, mas estarei ligado ainda ao papel, a tesoura e a cola. Recorte e colagem sao as experiéncias fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita nao sio senio formas derivadas, transitérias, efémeras. Entre a infancia ea senilidade, que terei feito? Terei aprendido a ler e a escrever. Leio e escrevo. Nao paro de ler e escrever. E por qué? Nao seria pela unica razo inconfessavel de que, no momento, nao posso me dedicar inteiramente ao jogo de papel que satisfaria o meu desejo? A leitura e a escrita sio substitutos desse jogo. Sinto saudade dos livros antigos, do tempo em que era preciso abri-los previamente com 0 corta-papel: “A dobra virgem do livro, além disso, pronta para um sacrificio que fez sangrar o corte vermelho dos tomos antigos; a introducao de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer a tomada de posse:? Gosto do segundo tempo da escrita, quando recorto, junto e recomponho. Antes ler, depois escrever: momentos de puro prazer 11 preservado. Sera que eu nao preferiria recortar as paginas e cola-las num outro lugar, em desordem, misturando de qualquer jeito? Seré que o sentido do que leio, do que escrevo tem uma real importancia para mim? Ou nao seria antes uma outra coisa que procuro e que me 6, as vezes, proporcionada por acaso, por estas atividades: a alegria da bricolagem, o prazer nostalgico do jogo de crianga? E por isso que se deve conservar a lembranca dessa pratica original do papel, anterior a linguagem, mas que 0 acesso a linguagem nao suprime de todo, para seguir seu trago sempre presente, na leitura, na escrita, no texto, cuja definigéo menos restritiva (a que eu adoto) seria: 0 texto é a prdtica do papel. Dois dentre os grandes escritores deste século comprovariam essa defini¢ao: Joyce e Proust. O primeiro apresentava a tesoura e a cola, scissors and paste, como objetos emblematicos da escrita;> 0 segundo, pregando aqui e ali seus pedacos de papel, comparava de bom grado seu trabalho ao do costureiro que constréi um vestido, mais do que ao do arquiteto ou do construtor de catedrais. E no texto, como pratica complexa do papel, a citagdo realiza, de maneira privilegiada, uma sobrevivéncia que satisfaz 4 minha paix4o pelo gesto arcaico do recortar- colar. 12 ABLAGAO Quando cito, extraio, mutilo, desenraizo. Ha um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; eocurso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atras: re-leio. A frase relida torna-se formula auténoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior edo que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, nao mais fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado; ainda nao o enxerto, mas ja érgao recortado e posto em reserva. Porque minha leitura nao é monétona nem unificadora; ela faz explodir o texto, desmonta-o, dispersa-o. E por isso que, mesmo quando nao sublinho alguma frase nem a transcrevo na minha caderneta, minha leitura j4 procede de um ato de citacdo que desagrega o texto e o destaca do contexto. Nao seria isso simplesmente reconhecer que, em um livro, ha algumas frases que leio e outras que nao leio, variando a proporgao entre as duas, segundo os livios, segundo os dias? Mas as frases que leio, aquelas que me 13 prendem e que afixo no meu mostruario, com certeza eu as cito. Quintiliano valia-se disso para explicar as vantagens da leitura sobre a audicao: “A leitura é livre e nao é obrigada a acompanhar o orador. Pode-se voltar a cada instante sobre os préprios passos, seja para examinar uma passagem mais atentamente, seja para melhor memorizé-la.” Voltar sobre os préprios passos, memorizar (repetere, para Quintiliano), édecompor 0 texto, alterar sua organizac4o. E Quintiliano, para aproximar esse gesto necessdrio da leitura a ser apreendida, recorre a uma outra metdfora, diferente da cirurgica, mas ainda uma metafora corporal ou organica, nao mais a do texto como corpo a retalhar, mas a do leitor como 0 agente da manduca¢4o que antecede toda digestao, toda assimilacao: Assim como se mastiga por muito tempo os alimentos para digeri-los mais facilmente, da mesma maneira 0 que Jemos, longe de entrar totalmente cru em nosso espirito, nao deve ser transmitido 4 memoria e a imitagao sendo depois de ter sido mastigado e triturado.® Aleitura repousa em uma operaco inicial de depredagao e de apropriagao de um objeto que o prepara para a lembranga e para a imitagao, ou seja, para a citagado. (Répeticao, memoria, imitagdo: uma constelagdo semantica em que conviria delimitar o lugar da cita¢o.) Mas o teor dessa operaco preliminar nao pode ser avaliado senao através de metaforas. Quintiliano nao se recusava a isso: sua Institui¢ao Oratéria é cheia de imagens que traduzem ao vivo o gestual sutil do discurso. A aproximagao metaférica, de certo modo impressionista, marca (como 14 uma fotografia aérea) os campos de uma investigacao ulterior e menos superficial (a fotografia aérea servird para estabelecer um mapa geografico, para promover pesquisas geoldgicas ou geotérmicas). Jé um discurso imediatamente metalingiiistico desconheceria, sem esperanga de volta, os fatos de linguagem mais ténues que a retérica antiga —uma arte, isto é, uma ciéncia e uma técnica, mas também uma pratica — deveria explicar. Somente uma analise fenomenolégica do nosso préprio exercicio da linguagem descobre e retém esses fatos mais finos, apega-se a eles e deseja interpreta-los. Algumas séries metaféricas atravessarao, portanto, essas paginas, séries dispares e as vezes divergentes: uma cirurgica, outra financeira ou econdémica, porque a citacdo poe em circulagao um objeto, e esse objeto tem um valor. Uma outra metafora ainda, da costura, falar de corte, de montagem, de alinhavo e de chuleio. E ainda todas estas: topografica, estratégica, militar, teoldgica, anatémica, que nao tém outra ambi¢ao sendo a de fazer aflorar hipéteses, tracgar um itinerario para uma série de questées a se aprofundar ao longo do trabalho. E os desvios légico, lingiiistico, histérico, psicolégico nao serao, também, menos metaféricos que os outros. Ora, 0 que sao elas, essas metaforas heuristicas que, do mesmo modo, nao levarao a lugar nenhum (pelo menos a paisagem tera sido descrita)? Evidentemente: citagdes. Todas seriam justificaveis como tais por referéncias aos Essais (Ensaios), de Montaigne. Da mesma forma, toda citagdo é ainda — em si mesma ou por acréscimo? — uma metdfora. Toda definicéo da metdfora conviria também a citagdo; a de Fontanier, por exemplo: “Apresentar uma idéia sob o signo de uma outra idéia mais surpreendente ou mais conhecida, que, alias, nao se liga 4 primeira por nenhum outro Jaco a nao ser o de uma certa conformidade ou analogia.” 16 GRIFO Ler, com um lapis na mao, como recomendava Erasmo, em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da Renascenga, contornar algo do texto com um forte traco vermelho ou negro é tracar o modelo do recorte. O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que sobrecarrega o texto com o meu préprio traco. Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na pagina; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: faco-o meu. E por isso que na biblioteca toda essa gesticulacao intima me é proibida. Olivro que eu maltratei lembra esses objetos transicionais de que fala o psicanalista inglés Winnicott,’ uma ponta de cobertor, um urso de pelicia que a crianca chupa antes de adormecer. Nao me desprendo dele, eu o amo. Pois 0 livro lido nao é um objeto realmente distinto de mim mesmo, com o qual teria uma verdadeira relacdo de objeto: ele é eu e ndo-eu, uma not-me possession. Nao é assim que se pode compreender 0 estatuto do livro de cabeceira, o livro por 17 exceléncia — a menos que ele nao passe de um mito —, esse volume, sempre 0 mesmo, do qual leio uma pagina cada noite ao me deitar e junto ao qual eu durmo? Mas todos os livros de que me cerco,séo, em um grau menor, not-me possessions, um corredor entre mim e 0 mundo, uma zona protegida, um espaco reservado. Nao me separo deles de boa vontade, gostaria de té-los sempre comigo. Quando passeio, levo muitos deles em meus bolsos ou em minha bagagem. E é também como um pretexto para nao empresta-los (a discrigéo, o pudor) que os sublinho, que os rabisco ternamente. O grifo é o menos contestavel dos ex-libris. Esse gesto reproduz um sublinhar anterior, aquele grifo que a pena efetua sobre a pagina manuscrita, a fim de assinalar para o tipégrafo aquilo que ele deverd colocar em itdlico. O quirégrafo e o tipdgrafo so dois personagens distintos, duas razées sociais que acenam uma paraa outra através de um grifo interposto ou de qualquer outra convengao. O escritor cochicha ao outro, em aparte: “Aqui vocé usaré caracteres diferentes.” E o grifo assume a fungdo de um conector, de uma marca da enuncia¢ao no enunciado, através da qual o autor da a entender a algum leitor alguma coisa além da significagao e que Ihe é irredutivel, alguma coisa que remete a sua propria leitura de seu proprio texto, e mesmo a sua propria audicao no momento de uma leitura em voz alta. O grifo corresponde a uma entoacio, a um acento, a uma outra pontuacao que ultrapassa o codigo comum. Dai a exigéncia de um sinal especial que possa torné-la inteligivel. Quando se publicam as notas de leitura de um autor célebre — alids, por que publica-las sendo na hipdtese de que se trata de um primeiro estado de sua prépria escrita? 18 — épreciso recorrer a artificios tipograficos complicados para distinguir os patamares miltiplos e sucessivos da enunciacdo. A leitura de Hegel por Lenin torna-se um texto novo. Figuram sobre a pagina impressa: 0 texto primeiro, o de Hegel, com seus itdlicos, que sio antigos grifos; os sobrescritos de Lenin, seus grifos reconstituidos, apesar das convengées, pelos grifos tipograficos; e suas rubricas ou suas notas marginais impressas com 0 auxilio de um terceiro tipo de letra. Lendo, eu acrescento ainda. Pode- se imaginar que a cadeia nao se interrompera: como na Patrologia, de Migne.* O grifo na leitura é a prova preliminar da citagéo (e da escrita), uma localizacdo visual, material, que institui o direito do meu olhar sobre o texto. Tal como um reconhecimento militar, 0 grifo coloca marcas, localizadores sobrecarregados de sentido, ou de valor; ele superpée ao texto uma nova pontuagio, feita ao ritmo da minha leitura: sao os pontilhados sobre os quais mais tarde farei recortes. Toda citac4o é primeiro uma leitura — assim como toda leitura, enquanto grifo, é citagio —, mesmo quando a considero no sentido mais trivial: ja li outrora a citagdo que faco, antes (seria exato?) de ela ser citagao. ACOMODAGAO Existem pessoas que sao pagas para ler — e mal pagas, segundo se diz. Sao os “leitores” das editoras. Uma vez por semana, eles vao ao seu patrao esvaziar sua sacola e voltam com a sacola cheia de manuscritos recentemente datilografados. Essas pessoas sao profissionais da leitura: ela é, para as mesmas, uma atividade social, um trabalho temunerado. Essas pessoas tém prazos, produzem notas de leitura. Ora, para tal exercicio nao ha método, o ensino nao prepara para isso, pelo menos na Franca. Nos Estados Unidos da América cada aluno recebe, periodicamente, _ durante toda a sua vida escolar, um reading list no qual escolhe alguns volumes de cuja leitura prestara contas, nao como um erudito ou como um critico, mas como um leitor inocente (na Franga nao se acredita mais na inocéncia de nenhuma leitura). Admite-se até que o aluno produza uma senten¢a decisiva contra Shakespeare ou Dickens. - O que se pretende em uma nota de leitura? Sem duvida, provar alguma coisa, isto é, que o manuscrito merece ou nao ser lido por mais de um leitor que assim deseje e 20 que pague por isso, em vez de ser pago. Como fazer tal demonstra¢do? Pelo levantamento estatistico de algumas amostras do manuscrito: um capitulo, uma pagina, uma linha. E ainda a técnica do grifo, que, com certo treino, aprende-s@ a fazer rapidamente. Gide, descobrindo o manuscrito de Em Busca do Tempo Perdido, que chegara ao editor pelo correio, destacou dele uma frase e a utilizou contra Proust. “Ha algumas frases a destacar em seu manuscrito” A destacar, quer dizer, a citar, a recitar: elas suportam a prova da citagao. Essas frases sdo citagdes que o leitor faz no texto, sao as paradas, as reticéncias ou os obstaculos de sua leitura. Se esses tropegos forem demasiadamente raros ou desagradaveis, o manuscrito ser4 julgado inaceitavel. O texto contemporaneo — e este é o mais inegavel dos seus sucessos — torna impraticavel tal modo de leitura: é pegar ou largar. Pois a frase que se sublinha é quase sempre a que se desejaria modificar ou suprimir — modificd-la por pouco que seja para apropriar-se dela —, mas 0 texto contemporaneo é 0 que ele é: nenhuma mudanga é concebivel. E impossivel citd-lo. Ora, quais sao as frases a serem destacadas em um manuscrito? Seria divertido e muito plausivel que fossem justamente suas citagdes, confessadas ou encobertas, suas alusées, que orientam o leitor para um autor sob cujo signo se quer colocar o aprendiz. O leitor acomodar- se-ia em alguns lugares conhecidos e reconhecidos, em numero suficiente para incluir o manuscrito em uma grande tipologia intuitiva das competéncias de leitura: o requisit de leituras prévias, necessérias para abordar um livro-dado, seria o indice desse livro, seu lugar na tipologia. Pouco importa que o aprendiz nao se reconhega no lugar 21 em que foi acomodado: entregando-se a leitura, ele aceita todas as citagées que lhe queiram impor, sejam elas provenientes ou nao de sua propria leitura, de sua propria competéncia. Além do mais, uma competéncia pode muito bem depender da atmosfera da época. A unica liberdade que o texto concede ao leitor é a da acomodago: que ele acomode 0 texto e que nele se acomode, sendo as duas coisas muitas vezes contraditérias. O leitor dever4 encontrar o lugar de onde o texto lhe seja legivel, aceitavel. Nao se pode exigir dele que esse lugar lhe seja inteiramente desconhecido no momento em que abre o livro: um livro que nao me oferecesse nenhum ponto de acomodagao, que subvertesse todos os meus habitos de leitura, que nao exigisse nenhuma competéncia especial, mas as ultrapassasse todas, esse livro ser-me-ia completamente inacessivel e eu haveria de rejeitd-lo. A citacao é um elemento privilegiado da acomodagao, pois ela é um lugar de reconhecimento, uma marca de leitura. £ sem divida a razdo pela qual nenhum texto, por mais subversivo que seja, renuncia a uma forma de citagdo.. A subversdo desloca as competéncias, confunde - sua tipologia, mas nao as suprime em principio, o que significaria privar-se de toda leitura. Dentre as numerosas defini¢6es em torno da citac4o, proporemos esta: a citagéo ¢ um lugar de acomodacao previamente situado no texto. Ela o integra em um conjunto ou em uma rede de textos, em uma tipologia das competéncias requeridas para a leitura; ela é reconhecida e nao compreendida, ou reconhecida antes de ser compreendida. Nesse sentido, seu papel ¢ inicialmente fatico, de acordo com a definicao de Jakobson: “Estabelecer, prolongar ou interromper a comunica¢io, [...] verificar se o 22 circuito funciona.” Ela marca um encontro,"° convida para aleitura, solicita, provoca como uma piscadela: é sempre a perspectiva do olho que se acomoda, do olho que se supde na linha de fuga da perspectiva. Havera muito a dizer sobre a cita¢éo como olho, tal como a qualificam, entre outros, Quintiliano e Sao Jerénimo. 23 SOLICITAGAO Quando leio, o que faz com que me interrompa, com que pare diante de determinada frase e nao de outra? O que esse tropeco desperta em mim? Ele pée em movimento todo o processo da citac40. Mas 0 que antes despertou esse trope¢o? Bem anterior a citagdo, mais profunda e mais obscura, foi a solicitacao: um pequeno choque perfeitamente arbitrario, totalmente contingente e imaginério. Louis Massignon assim o descrevia: Quao singular o ascendente suibito da frase que nos choca numa volta de leitura; j4 nao é entio o peso de uma ex- periéncia coletiva que nos faz ceder (como € 0 caso dos provérbios), é, dentro da nossa mais intima preferéncia, a intervencao docemente persuasiva de uma outra per- sonalidade, despertando fraternizacao." A solicitagao é uma comogao total e indiferenciada do leitor, um encantamento que precede, compreende e oculta a atribuigao para si mesma de uma causa. A sonoridade 24 de uma gutural, o eco de uma vogal, um ritmo adaptado a minha respiracdo ou aos meus reflexos — nunca deixo de sublinhar os alexandrinos perdidos em uma obra de filosofia — ou, mais banalmente ainda e se possivel, o tempo morto para apagar um cigarro, uma buzinada sob minha janela, uma caibra no dedo do pé: todos acidentes que nao dependem do proprio texto, mas que me solicitam da mesma forma. A solicitacdo é essencialmente fortuita. A prova é que o mesmo livro pode cair-me das mios hoje e arrebatar-me amanha. O que me solicita nao é 0 livro, nem eu mesmo, mas um encontro casual, uma passante, assim como acontece com 0 ser que vejo todos os dias e do qual (imagem fugidia e inatingivel), de repente, venho a enamorar-me e pelo qual, gracas talvez a uma perspectiva, a uma simples circunstancia particular e imprevisivel, me apaixonarei loucamente. E quando, entao, a excitagéo intervém: ela vai em busca, no texto, do alicerce (0 ground, o solo, a base) da solicitacao. Mas a solicitag4o talvez tivesse uma outra causa. A excitagao faz o texto sair de si mesmo, diferencia-o, destaca-o, trabalha para expulsar dele um elemento que poderd, provavelmente, ser considerado como causa, acidental, da solicitagdo. Entretanto, a excitagao nunca remonta a origem, jamais reencontra o abalo original e intratavel. Eu posso me excitar com um texto, sublinhd-lo, riscd-lo, recorta-lo, rasg4-lo e cobri-lo de injurias, 0 abalo inicial me é inacessivel, porque est4, ao mesmo tempo, dentro do texto e fora dele, na configuragao imaginaria da leitura da qual, com todo o meu corpo, sou uma parte recebedora e 0 ultimo referente. A solicitagdo se ocupa de meu desejo, e 0 objeto assinalado que eu expulso do 25 texto a fim de conserva-lo como memoria de uma paixao (a da solicitagéo), esse objeto nado passa de um residuo, um dejeto, um logro, um fetiche e um simulacro que se somam ao.meu estoque de cores. Meu litterarum penus, como diziam os antigos, ou meu “Fundoliterario”, segundo a expressdo retomada por Mallarmé, nao é senao uma reuniao de lutos excitados, de nostalgias solicitantes. O que seria uma leitura da solicitacdo? Ela limitar-se-ia ao namoro, deixaria de excitar, de retalhar o texto. Seria, sem diivida, uma interpreta¢ao, assim como a tinica leitura concebivel da enunciagao. A solicitag4o é o correspondente, em leitura, da enunciacéo: um acomodamento, uma conciliagdo do enunciado. E as marcas da solicitacao no texto so as excitagdes, os grifos e os desmembramentos: sinais sempre aproximativos e insatisfatorios, mas presungées de uma verdade que foi, instantaneamente, a da minha leitura. £ por isso que eu resisto a emprestar meus livros, pois eles trazem os tracos indiscretos das minhas excursdées (e incursées) através deles, de minhas aventuras cheias de desejo e de amor, datadas e localizadas, como se o entregar-se a leitura nas suas glosas excitadas proviesse de exibicionismo acrescido de cegueira. A solicitagao, ainda da mesma forma que a enunciacao, sé tem valor (de reconhecimento) no tempo da leitura, mas esse tempo, essa duracao é, na maioria das vezes, mal conhecida. A leitura, como a escrita, paralisa o tempo, fecha-o sobre si mesmo: tal é o axioma ilusério que desconhece a solicitagao. 26

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