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http://dx.doi.org/10.23925/2178-2911.

2017v16p18-35

Contextualização Histórico-Filosófica de Orbitais Atômicos e Moleculares


____________________________________
Cássia Ferreira Coutinho Pereira
Alexandre Braga da Rocha
Priscila Tamiasso-Martinhon
Angela Sanches Rocha
Célia Sousa

Resumo
A compreensão do conceito de orbitais em átomos e moléculas é de grande importância para o aprendizado de
química, principalmente no que concerne ao entendimento de ligações químicas, tipos de estruturas e
propriedades de substâncias. Além disso, pode-se dizer que, de forma geral, estes conceitos embasam
discussões qualitativas da área, o que ratifica a importância de se dominá-los. Nesta perspectiva, o presente
trabalho, além de avaliar as implicações práticas dessa temática no cotidiano discente, desenvolve uma análise
crítica das teorias utilizadas para descrever e ensinar orbitais. Explicitando e discutindo não apenas as suas
mais relevantes teorias, mas também os autores por trás delas, o contexto histórico em que foram criadas e
como este contexto afetou seu desenvolvimento, este trabalho busca apresentar uma visão mais abrangente dos
conceitos de orbitais atômicos e moleculares.
Palavras-chave: Orbitais; Ligação Química; História da Ciência.

Abstract
The comprehension of the concept of orbitals in atoms and molecules has great importance to the learning of
chemistry, especially in what concerns the understanding of chemical bonds, structure types and properties of
substances. Besides, it can be said that, in general, these concepts are grounds for qualitative discussions in the
field, which ratify the importance of mastering them. Under this perspective, the present work, in addition to
evaluating the practical implications of this thematic in everyday life, performs a critical analysis of theories used
to describe and teach orbitals. By explaining and discussing not only their most relevant theories but also the
authors behind them, the historical context in which they were proposed and how that context affected their
development, this work seeks to present a more comprehensive view of the concepts of orbitals in atoms and
molecules.
Keywords: Orbitals; Chemical Bonding; History of Science.

INTRODUÇÃO
A Química é uma área das ciências exatas tipicamente fenomenológica, na qual observações
macroscópicas dão origem a modelos que, por sua vez, tentam explicar como efeitos microscópicos
originam tais observações. Estes modelos são embasados em observações experimentais e, muitas
vezes, envolvem ferramentas matemáticas para que possam ser desenvolvidos em bases sólidas e,
finalmente, utilizados em previsões nas mais diferentes situações, desde que contempladas pelas
premissas do modelo. Muitos destes modelos são essencialmente abstratos o que, na maioria dos
casos, gera dificuldade de compreensão e, portanto, rejeição por parte dos alunos.
Pereira et al Volume 16, 2017 – pp. 18-35

O estudo das substâncias químicas e de suas transformações, isto é, das reações químicas,
envolve conceitos observáveis, como o princípio de conservação de massa, mas também outros
puramente abstratos, como os orbitais atômicos e moleculares.
Milaré menciona que “considerando o grau de complexidade e de abstração que alguns
conteúdos de Química podem alcançar, dependendo da profundidade trabalhada, é necessário cuidado
do professor na abordagem destes conteúdos”. 1 Estes tópicos abstratos representam, em sua maioria,
um entrave epistemológico, devido à própria natureza do estudo de assuntos não palpáveis que estão
no imaginário do estudante. Deste modo, o ensino de assuntos puramente abstratos torna-se um
desafio aos professores, que devem buscar alternativas de ensino que facilitem o aprendizado.
Além disso, a importância da interdisciplinaridade e da contextualização para o ensino de
ciências é destacado tanto no documento do Currículo Mínimo de Química do estado do Rio de
Janeiro, quanto no documento das Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN+) do Ensino Médio - Ciências da Natureza, Matemática e suas
Tecnologias.2,3
Com base nos aspectos apresentados acima, o estudo de orbitais atômicos e moleculares
aparece, portanto, como uma das grandes dificuldades dos alunos de ensino básico ou superior, de
modo que neste trabalho tem-se como objetivo principal uma apresentação clara e bem articulada
deste conteúdo.
Para isto, o presente trabalho irá fazer uma apresentação das principais teorias de orbitais
em átomos e moléculas, não apenas sob um ponto de vista teórico, mas também levando em
consideração os períodos históricos no qual elas foram desenvolvidas e, ainda, como estes diversos
contextos influenciaram, e continuam a influenciar, sua evolução.
Tendo isto em mente, foi desenvolvida uma breve linha do tempo pontuando períodos
históricos e seus respectivos acontecimentos considerados relevantes aos conceitos que serão
discutidos e apresentados ao longo deste trabalho. A referida linha do tempo está apresentada a
seguir:
• 1913: Modelo atômico de Bohr.
• 1914 - 1918: Primeira Guerra Mundial.
• 1916: Publicação do artigo ‘The Atom and the Molecule’ por Lewis.4

1 Tathiane Milaré, José de Pinho A. Filho, “Ciências no Nono Ano do Ensino Fundamental: Da Disciplinaridade à Alfabetização Científica e
Tecnológica,” Ensaio Pesquisa em Educação em Ciências 12, nº 2 (2010): 105.
2 Secretaria de Estado de Educação, Currículo Mínimo 2012 Química (Rio de Janeiro: SEEDUC, 2012), 2.
3 Brasil, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica, Orientações Educacionais Complementares aos

Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias (PCN+ Ensino Médio) (Brasília: Ministério da
Educação; Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 2002), 31.
4 Gilbert N. Lewis, “The Atom and the Molecule,” Journal of the American Chemical Society 38, (abr. 1916).

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• 1924: Dualidade Partícula-Onda de De Broglie.


• 1926: Equação de Schrödinger.
• 1927: Princípio da Incerteza de Heisenberg.
• 1927: Teoria da Ligação de Valência (TLV).
• 1929: Teoria dos Orbitais Moleculares (TOM).
• 1930: Teoria dos Orbitais Moleculares de Hückel (TOMH).
• 1933: Ascensão de Hitler e a Alemanha Nazista.
• 1939 - 1945: Segunda Guerra Mundial.
• 1950 - 60: Desenvolvimento Computacional.
• 1970 - Dias Atuais: Releituras da Teoria de Ligação de Valência.

OS PRIMÓRDIOS DO CONCEITO DE ORBITAL


Antes que possamos fazer uma apresentação e discussão mais aprofundada de algumas das
principais teorias de orbitais atômicos e moleculares, é necessário compreender a evolução que
ocorreu ao longo da história da ciência para que tais conceitos pudessem ser construídos e,
eventualmente, se tornar o que são hoje. Com isso em mente, alguns cientistas e intelectuais com
contribuições significativas para este desenvolvimento precisam ser discutidos para que tenhamos,
então, os fundamentos dos conceitos que serão apresentados ao longo deste trabalho.

Erwin Schrödinger (12/08/1887 – 04/01/1961)


Erwin Schrödinger foi um importante físico austríaco nascido em Viena, no ano de 1887.
Desde seus tempos de escola, Schrödinger demonstrou uma variada gama de interesses, não apenas
pelas áreas científicas, mas também por línguas e poesia. Estudou na Universidade de Viena nos anos
de 1906 a 1910 e foi durante este período que primeiramente demonstrou um excelente domínio sobre
problemas de autovalores em física, dando início à fundação de seu brilhante futuro na área. 5
Durante a Primeira Guerra Mundial (1914 – 1918), serviu como oficial da artilharia e, a partir
de 1920, assumiu diversas posições acadêmicas em Stuttgart, Breslau e, finalmente, na Universidade
de Zurique, onde permaneceu por seis anos, seu período mais proveitoso. Sua grande contribuição, a
chamada Equação de Schrödinger, foi desenvolvida ao final deste período, em 1926. Seu trabalho o
levou a dividir o Prêmio Nobel de Física de 1933 com Paul Dirac. 6

5 Nobel Media AB 2014, “Erwin Schrödinger: Biographical,” Nobelprize.org,


http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1933/schrodinger-bio.html.
6 Ibid.

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O modelo atômico de orbitais empregado atualmente no ensino de química geralmente parte


da solução da Equação de Schrödinger, ilustrada pela equação (1).

2𝑚
∇2 Ψ + [𝐸 − 𝑉 ]Ψ = 0 (1)
ℏ2

Schrödinger apud Figueiredo propôs esta equação com base nas ideias trabalhadas por de
Broglie7, físico francês que, em 1924, desenvolveu a hipótese da dualidade partícula-onda, segundo a
qual dizia que se a luz apresenta natureza dual, do mesmo modo uma partícula poderia também
apresentar características ondulatórias. Com isso, ele foi capaz de incorporar, em uma única
expressão, a natureza dual dos elétrons, impulsionando o desenvolvimento da mecânica quântica. 8
Apesar da Equação de Schrödinger só apresentar uma solução analítica de fato para o átomo
de hidrogênio, ela ainda assim pode ser estendida aos átomos hidrogenoides (átomos com apenas um
elétron ligado a eles). 9 A resolução desta equação leva a um conjunto de soluções das chamadas
funções de onda, representadas pela letra Ψ (psi), que não possuem, por si próprias, um significado
físico. Entretanto, a interpretação probabilística oferecida por Born 10 indica que o quadrado de tais
funções nos oferece informações importantes acerca da probabilidade de, em um determinado instante
t, se localizar o elétron em um elemento de volume definido 𝑑𝑟⃗ com centro em 𝑟⃗, conforme a equação
(2) apresentada abaixo. 11

Probabilidade = |Ψ(r⃗, t)|2 . dr⃗ (2)

Na equação descrita acima, o termo |Ψ(r⃗, t)|2 representa a probabilidade por volume,
também chamada de densidade de probabilidade.

Werner Heisenberg (05/12/1901 – 01/02/1976)


Werner Heisenberg foi um físico teórico alemão nascido em 1901 na cidade de Wurtzburgo.
Após terminar seus estudos, em 1920, ingressou na Universidade de Munique para estudar Física. Ao

7 Erwin Schrödinger, citado em Raimundo O. M. Figueiredo, “Função Part-wave: Uma Proposta para Solução da Equação de Schrödinger
ante a Dualidade Onda-partícula,” (dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará, 2008).
8 Louis de Broglie, citado em Nelson H. Morgon, “O Comportamento do Elétron: Uma Análise do Efeito Compton e da Relação de Broglie,”

Química Nova na Escola 31, nº 7 (2008): 1869-1874.


9 Jeferson N. M. Mendes, Karine F. Magnago, & Márcio M. Martins, “O Uso do Maple no Ensino de Físico-Química: Orbitais Atômicos e

Moleculares,” in II Encontro Estadual de Ensino de Física-RS, 2007, 192.


10 Max Born (1882-1970) foi um físico e matemático alemão com contribuições indispensáveis à mecânica quântica.
11 Ramiro D. B. de Meneses, “A Probabilidade Segundo Max Born: Da Mecânica Quântica à Filosofia,” Eikasia: Revista de Filosofia 19,

(2008): 200-224.

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longo de sua carreira, Heisenberg estudou sob a tutela de grandes nomes como James Franck, David
Hilbert e Max Born, tornando-se assistente do último na Universidade de Göttingen após concluir seu
PhD.12 Por suas contribuições à criação e ao desenvolvimento da mecânica quântica via
estabelecimento das bases para formulação matricial, Heisenberg recebeu, em 1932, o Prêmio Nobel
de Física.
Em 1927, Heisenberg elucidou seu famoso Princípio da Incerteza, pelo qual existem
restrições em relação à precisão com a qual é possível realizar medidas simultâneas de duas
grandezas diferentes, como no caso da posição e velocidade de uma partícula, o que pode ser
aplicado ao elétron. Deste modo, determinações destas grandezas inerentemente irão apresentar erros
associados às medições que apesar de insignificantes em uma escala macroscópica não podem ser
desconsiderados nos estudos do átomo.
O Princípio da Incerteza de Heisenberg demonstra que não se é possível determinar uma
órbita específica para o elétron, apenas regiões de probabilidade de encontra-lo, distanciando-se,
portanto, do modelo atômico de Bohr. Este conhecimento representa, segundo Bathista e Silva e
Nogueira, uma passagem “do conceito de órbita definida para o conceito probabilístico de orbital”. 13
Deste modo, a solução da Equação de Schrödinger aliada aos conhecimentos obtidos a partir
do Princípio da Incerteza informa o conceito de orbital que temos atualmente. Um orbital pode ser
considerado como uma função de onda espacial de um elétron, sendo usado na obtenção aproximada
de funções de onda para átomos polieletrônicos.
Cada orbital descreve, portanto, uma distribuição particular de densidade eletrônica no
espaço, de acordo com a probabilidade tendo, assim, energias e formas características associadas a
ele.
Agora que já temos uma fundamentação para o conceito de orbital, podemos ampliar seu
entendimento para os orbitais em moléculas. De modo geral, existem duas abordagens principais para
se discutir este tópico a partir da mecânica quântica: a Teoria da Ligação de Valência (TLV) e a Teoria
dos Orbitais Moleculares (TOM). Ambas serão discutidas neste trabalho, não apenas do ponto de vista
teórico e conceitual, mas também analisando o contexto na qual surgiram e como os acontecimentos
históricos que as seguiram influenciaram sua evolução, gerando ramificações importantes até os dias
atuais.

12 Nobel Media AB 2014, “Werner Heisenberg: Biographical,” Nobelprize.org,


http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1932/heisenberg-bio.html.
13 André L. B. Bathista e Silva, & José S. Nogueira, “Breve Discussão da Mecânica Quântica: História e Formalismo Matemático,”

http://www.geocities.ws/andrebathista/mecanica_quantica_ ufmt.pdf.

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TEORIA DE LIGAÇÃO DE VALÊNCIA (TLV)


A Teoria de Ligação de Valência, abreviada como TLV, foi desenvolvida ao final da década
de 20, em 1927, a partir dos estudos de dois grandes físicos alemães.
Walter Heitler (02/01/1904 – 15/11/1981), nascido em Karlsruhe, foi responsável por grandes
contribuições para o desenvolvimento da química sob a ótica da mecânica quântica. Além de seu papel
no desenvolvimento da TLV, Heitler também se destacou nas áreas de teoria quântica de campos e
eletrodinâmica quântica, aonde chegou a ser, por certo tempo, um dos líderes mundiais.
Fritz London (07/03/1900 – 30/03/1954), por sua vez, foi uma das maiores figuras do século
XX no que diz respeito ao desenvolvimento da Física e da Química teóricas, apesar de ter iniciado seus
estudos na área da Filosofia, até que, no ano de 1925, se mudou para Munique para estudar Física
com Sommerfeld.14,15
Contudo, foi em Zurique, na Suíça, que, junto a London, Heitler chegou a talvez o ponto mais
alto de sua carreira, ao aplicar a nova mecânica quântica que havia começado a ser desenvolvida por
Schrödinger e Heisenberg ao estudo das forças atrativas e repulsivas na molécula de hidrogênio. A
união da química à mecânica quântica, tema recorrente nos trabalhos de Heitler, tornou o tratamento
deste problema através do estudo de ligações de valência um grande marco na história da Química. 16
A Teoria de Ligação de Valência descreve a formação de pares eletrônicos de valência
compartilhados pelos orbitais atômicos sem que os mesmos percam suas características. Esta teoria
foi desenvolvida inicialmente com o intuito de se utilizar dos conceitos da recentemente desenvolvida
mecânica quântica de Heisenberg e Schrödinger para explicar as ligações químicas.
Suas raízes podem ser relacionadas ao famoso artigo publicado por Lewis, The Atom and the
Molecule, que primeiramente introduziu as noções de ligação de pares de elétron e a chamada ‘Regra
do Octeto’ aos estudos de ligação química. 17 Este trabalho de Lewis foi publicado aproximadamente
uma década antes da nova mecânica quântica, mas representa a base da construção e
desenvolvimento da TLV. Pode-se dizer, então, que a Teoria de Ligação de Valência funciona por uma
tradução quanto-mecânica da teoria de ligação de Lewis.
Lewis propôs que uma ligação química seria formada pela interação entre elétrons de orbitais
de valência semipreenchidos e definiu um modelo de representação das moléculas então formadas
como uma chamada ‘estrutura de Lewis’.

14 Arnold Sommerfeld (1868-1951) foi um físico teórico alemão.


15 Kostas Gavroglu, Fritz London: A Scientific Biography (Cambridge: Cambridge University Press, 2005).
16 Nevill Mott, "Walter Heinrich Heitler. 2 January 1904-15 November 1981," Biographical Memoirs of Fellows of the Royal Society 28

(1982): 141, http://rsbm.royalsocietypublishing.org/content/ roybiogmem/28/140.full.pdf.


17 Sason S. Shaik & Phillipe C. Hiberty, A Chemist’s Guide to Valence Bond Theory (New Jersey: Jon Wiley & Sons, 2008), 2.

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As ideias de Lewis representaram um promissor novo caminho para os estudos que


buscavam compreender os mecanismos pelos quais um par de elétrons seria capaz de formar uma
ligação química, um mistério que só foi esclarecido em 1927 com a publicação de Interaction Between
Neutral Atoms and Homopolar Binding18 por Heitler e London, quando estes foram a Zurique, Suíça,
trabalhar com Schrödinger.
A partir da Teoria de Ligação de Valência foi possível, pela primeira vez, calcular as
propriedades de ligação da molécula de H2 a partir das ideias da mecânica quântica. A abordagem de
Heitler e London viria a ser aprofundada por John C. Slater e por Linus Pauling, tornando-se,
eventualmente, o modelo mais comumente utilizado para se trabalhar as ligações químicas em
moléculas.
No modelo da TLV, portanto, a molécula seria formada a partir dos átomos por meio de
emparelhamento de elétrons. À medida em que os núcleos dos átomos se aproximavam, haveria uma
superposição dos elétrons de spins contrários de orbitais semipreenchidos. Deve-se considerar, porém,
que essa proposição não contempla casos em que a ligação envolve apenas um elétron, como no íon
H2+, o que será corrigido nas versões modernas da Teoria de Ligação de Valência.

A DÉCADA DE 1930 E A ASCENSÃO DA ALEMANHA NAZISTA


Tendo em vista o contexto histórico mundial durante o qual a Teoria de Ligação de Valência
e, como será visto posteriormente, a Teoria dos Orbitais Moleculares foram desenvolvidas, final da
década de 1920 e início da década de 1930, é impossível não falar sobre um dos mais importantes
marcos deste período: a tomada de poder de Hitler na Alemanha.
Após a derrota dos chamados ‘Impérios Centrais’ na Primeira Guerra Mundial (1924 – 1918),
dos quais a Alemanha fazia parte, o país sofreu graves consequências socioeconômicas, com uma
significativa perda populacional (aproximadamente 15% de sua população masculina em idade ativa) e
crescente dívida devido às indenizações da Guerra às quais foi submetido pelo Tratado de Versalhes
(1919).19
Até ocorrer a ascensão do Nazismo via tomada de poder pelo Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães, liderado por Adolf Hitler, a Alemanha encontrava-se como um dos maiores,
senão o maior, centro científico do mundo. Desde o século XIX e especialmente durante as primeiras
décadas do século XX, a ciência alemã liderava o mundo, tendo a Grã-Bretanha e, até certo ponto, os
Estados Unidos, como principais rivais.

18 Walter Heitler & Fritz London, “Wechselwirkung Neutraler Atome un Homöopolare Bindung nach der Quantenmechanik,” Zeitschrift für
Physik 44 (1927).
19 Martin Kitchen, Europe Between the Wars, 2ª ed. (New York: Routledge, 2013).

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Se tentarmos quantificar esta declaração, podemos observar que desde 1901, ano em que
ocorreu a primeira cerimônia do Prêmio Nobel em ciência, até o ano de 1932, ano anterior à chegada
de Hitler ao poder, 100 prêmios nas áreas científicas foram entregues: 33 destes, isto é,
aproximadamente um terço, foram atribuídos à alemães ou cientistas trabalhando na Alemanha. Com o
segundo maior número de prêmios encontrava-se a Grã-Bretanha, com 18, e os Estados Unidos, por
sua vez, receberam apenas 6.20
Dos cientistas alemães laureados com o Prêmio Nobel neste período, aproximadamente um
quarto, ou 25%, possuíam ascendência judaica, apesar de, à época, a população total judaica existente
na Alemanha não alcançar mais do que 1% da população total.21 Estes números revelam uma
prevalência significativa da comunidade judaica em meio à comunidade científica alemã, o que, devido
às políticas antissemitas de Hitler que viriam a ser aprovadas em 1933, levou a um significativo declínio
na sua produção científica a partir de então.
Nesta época, encontravam-se, na Alemanha, grandes centros de excelência científica, como
era o caso da própria capital, Berlim, devido à presença de grandes cientistas, como Max Planck,
Walther Nernst e eventualmente, por influência destes, Albert Einstein; e da cidade de Munique,
fortemente católica e liderada por Sommerfeld; e Göttingen, com a presença do matemático David
Hilbert.22
Entretanto, sentindo os efeitos devastadores do período pós-guerra e diante da necessidade
de recuperar a economia do país e reconstruir uma nação que passava por um grave período de crise,
uma das soluções implementadas por Hitler envolvia o reestabelecimento científico no país.
Segundo Newton23, Hitler e seus aliados acreditavam que uma das razões principais para o
estado de declínio da Alemanha era devido à influência da comunidade judaica na sociedade alemã, o
que levou à severa condenação do que consideravam uma ‘Ciência Judaica’, “which the Nazis believed
was responsible for a technological collapse in Germany, as well as a corruption of the very process of
scientific research in the nation”24 em favor da implementação de uma ‘Ciência Alemã’ ou ‘Ciência
Ariana’.
Pouco tempo após sua tomada de poder no ano de 1933, o governo Nazista de Hitler passou
a demitir cientistas, pesquisadores e acadêmicos judeus, e pertencentes a outros grupos não
considerados parte da idealizada raça ariana, das Universidades alemãs.

20 Jean Medawar & David Pyke, Hitler's Gift: The True Story of the Scientists Expelled by the Nazi Regime (New York: Arcade Publishing,
2001), 3.
21 Ibid.
22 Ibid., 6-8.
23 David E. Newton, Science and Political Controversy: A Reference Handbook (Colorado: ABC-CLIO; LLC, 2014), 33.
24 Tradução livre da autora: “a qual os Nazistas acreditavam ser responsável por um colapso tecnológico na Alemanha, bem como pela

corrupção do próprio processo de pesquisa científica da nação.” (Newton, Science and Political Controversy).

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Em 7 de abril de 1933, dois meses após a ascensão de Hitler ao comando da Alemanha, foi
passada a “Lei para a Restauração do Serviço Público Profissional” que determinava uma herança
ariana pura como pré-requisito para ocupação de cargos como professor (escolar e universitário), juiz e
outros, excluindo grande parte da população judaica do funcionalismo público em geral. 25
Como consequência desta e outras políticas antissemitas adotadas por Hitler, durante a
década de 1930 ocorreu uma saída em massa de intelectuais, cientistas e estudantes judeus da
Alemanha. Dentro de semanas, centenas haviam sido expulsos de seus cargos, enquanto outros
renunciaram a suas posições. Estima-se que em torno de 2600 membros da comunidade científica
deixaram a Alemanha apenas no primeiro do regime Nazista, encontrando refúgio em países como a
Inglaterra e os Estados Unidos26. Departamentos científicos por todo o país foram decimados.
Importantes nomes na comunidade científica da Alemanha, incluindo alguns já mencionados
neste trabalho, foram forçados a deixar, ou escolheram abandonar, as Universidades onde lecionavam.
Heitler, com o auxílio de Max Born, conseguiu uma posição como pesquisador na Universidade de
Bristol, no Reino Unido;27 a London, em agosto de 1933, foi oferecida uma bolsa de estudos na
Universidade de Oxford, Inglaterra;28 Schrödinger inicialmente foi para a mesma Universidade mas
posteriormente aceitou uma posição na Universidade de Graz, na Áustria.29
Ao mesmo tempo, passaram a ocorrer mobilizações por parte da comunidade científica para
auxiliar acadêmicos alemães em perigo. Especialmente importante foi a fundação em 1933 da AAC (do
inglês Academic Assistance Council, posteriormente renomeada Society for the Protection of Science
and Learning ou SPSL, em 1936).
A organização, iniciada pelo húngaro Leo Szilard e pelo britânico sir William Beveridge, e sob
a administração de Esther (Tess) Simpson, buscava resgatar cientistas e intelectuais demitidos de suas
posições em universidades alemãs e realocá-los em novos locais de trabalho fora de perigo. 30
Atualmente, a organização britânica adota o nome de CARA (Council for At-Risk Academics),
auxiliando acadêmicos em perigo imediato e fugindo de perseguição e violência, incapazes de
continuar seus trabalhos em diversos países do mundo.
Diversos dos mais de dois mil refugiados que vieram a ser resgatados pela organização
durante o período do regime da Alemanha Nazista eventualmente tornaram-se laureados do Prêmio

25 Ibid., 34.
26 Medawar & Pyke, Hitler's Gift, 29.
27 Gordon Fraser, The Quantum Exodus: Jewish Fugitives, the Atomic Bomb, and the Holocaust, (New York: Oxford University Press,

2012), 128.
28 Gavroglu, Fritz London, 106.
29 Nobel Media AB 2014, “Erwin Schrödinger – Biographical,” Nobelprize.org,
http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1933/schrodinger-bio.html.
30 Anthony Grenville, “The Rescue of Refugee Scholars,” The Association of Jewish Refugees (fev. 2009),
http://www.ajr.org.uk/index.cfm/section.journal/issue.Feb09/article=1883.

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Nobel e receberam outras distintas premiações por suas contribuições ao desenvolvimento da ciência e
tecnologia após serem realocados em países na Europa e para os Estados Unidos. 31
Ao final dos anos de 1930, Hitler havia obtido sucesso em essencialmente eliminar os judeus
da comunidade científica alemã, mas a um grande custo intelectual e tecnológico, devido a perda de
grandes acadêmicos das mais diversas áreas do conhecimento em nome do antissemitismo. Além
disso, suas políticas acabaram por fortalecer outros países que, com o fluxo de muitos destes grandes
nomes, desenvolveram ainda mais suas comunidades científicas, como no caso dos já mencionados
Estados Unidos e Inglaterra que se tornaram, então, ainda mais poderosas potências mundiais no
campo científico e tecnológico.

TEORIA DE ORBITAIS MOLECULARES (TOM)


A Teoria de Orbitais Moleculares, abreviada como TOM, também conhecida como Teoria de
Hund-Mulliken, foi desenvolvida logo após o surgimento da Teoria de Ligação de Valência, a partir dos
trabalhos de Friedrich Hund (04/02/1896 – 31/03/1997) e Robert Mulliken (07/06/1896 – 31/10/1986),
fundamentada pela mecânica quântica. Oficialmente o termo para orbitais moleculares só aparece em
1932, mas já vinha sendo desenvolvida anos antes.
Mulliken foi um físico e químico estadunidense e principal responsável pelo desenvolvimento
inicial da Teoria de Orbitais Moleculares, trabalho pelo qual recebeu o Prêmio Nobel de Química em
1966.32 No ano de 1927, trabalhando na Europa junto a grandes nomes como Heisenberg, Born e
Schrödinger, uniu-se a Hund no desenvolvimento da Teoria de Orbitais Moleculares.
Hund, um físico e químico alemão, por sua vez, nunca chegou a receber o Prêmio Nobel,
mas foi responsável também por inúmeras outras contribuições importantes na história da Química e
da Física, como o ‘Princípio da Máxima Multiplicidade’ (também chamado de ‘Regra de Hund’) e a
descoberta do efeito quântico de tunelamento.
A Teoria de Orbitais Moleculares nos oferece um ponto de vista bem diferente da Teoria de
Ligação de Valência, uma vez que ela parte de uma molécula já formada e, em seguida, distribui os
elétrons de modo a respeitar o Princípio de Pauli. 33 Ao contrário da TLV, na Teoria de Orbitais
Moleculares, não há necessidade de se conectar a molécula formada a seus átomos formadores, de
modo que os orbitais não necessariamente mantém seu caráter atômico.
De modo geral, esta teoria se utiliza de um processo chamado Combinação Linear de
Orbitais Atômicos (do inglês Linear Combination of Atomic Orbitals ou LCAO), primeiramente

31 Medawar & Pyke, Hitler's Gift, 68.


32 Nobel Media AB 2014, “Robert S. Mulliken – Biographical,” Nobelprize.org,
http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/1966/mulliken-bio.html.
33 Wolfgang Pauli (1900-1958) foi um famoso físico austríaco.

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introduzido por Sir John Lennard-Jones.34 Segundo este modelo, um determinado número de orbitais
atômicos é substituído por um novo conjunto de orbitais moleculares, em mesma quantidade, via
combinação matemática de suas funções de onda.
Estas combinações das funções de onda podem dar origem ao que chamamos de Orbitais
Moleculares Ligantes (aqueles que possuem menor energia e, consequentemente, estabilizam o
sistema) ou Orbitais Moleculares Antiligantes (aqueles de maior energia, tendendo a desestabilizar o
sistema).
Deve-se ressaltar, contudo, que a formação destes orbitais moleculares via Combinação
Linear de Orbitais Moleculares é apenas uma abordagem conveniente. Os mesmos orbitais também
poderiam ser formados, por exemplo, utilizando-se funções centradas em outros pontos da molécula,
como o próprio centro de massa da mesma.

INICIAL RIVALIDADE ENTRE TLV E TOM


Quando se discute a história destas teorias, é importante notar que ambas surgiram
aproximadamente na mesma época, ao final da década de 1920 e início da década de 1930. A
princípio, as duas foram desenvolvidas com fins diferentes em mente: enquanto a Teoria da Ligação de
Valência foi criada com o intuito de descrever as ligações químicas, especialmente na molécula de
hidrogênio em seus primórdios, a Teoria dos Orbitais Moleculares estava voltada para o estudo dos
espectros eletrônicos de moléculas.
Apesar disso, eventualmente passou a ocorrer uma associação também da TOM à descrição
de ligações químicas por parte da comunidade científica da época, o que pode ser atribuído, em parte,
ao desenvolvimento simultâneo de ambas as teorias. A partir do desenvolvimento da TOM, viu-se a
necessidade de se adaptar ideias relacionadas à ligação química a esta teoria, levando ao surgimento
de conceitos como ordem de ligação e os próprios orbitais ligantes e antiligantes.
Observa-se que, desde sua concepção até meados da década de 1950, a Teoria de Ligação
de Valência predominou na área da Química, até cair em descrédito e desuso pela comunidade
científica e ser quase que por completo abandonada em favor da Teoria de Orbitais Moleculares, por
motivos que serão explicitados neste trabalho.
Em sua conferência como Laureado do Prêmio Nobel de Química de 1966, Robert S.
Mulliken discorre sobre os motivos que acredita terem levado a Teoria de Ligação de Valência (à qual
se refere como Teoria de Orbitais Atômicos) a ser inicialmente mais atraente para os químicos da

34Yehuda B. Band & Yshai Avishai, Quantum Mechanics with Applications to Nanotechnology and Information Science (Oxford: Academic
Press, 2013), 562.

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época, dizendo que “the AO method at first appealed to chemists because it was much easier to fit into
customary ways of thinking”.35,36
Um dos grandes méritos da TLV é o fato de sua função de onda ser quase intuitiva,
envolvendo uma combinação de estruturas que apresentam um significado químico facilmente
reconhecido.37 Esta relativa facilidade conceitual foi um dos aspectos fundamentais para seu sucesso
inicial por volta da década de 1940, em oposição à TOM.
Além disso, em parte porque o extenso e útil papel da Matemática na Física ainda não havia
sido igualmente transferido para a Química, foi apenas nas décadas de 1940 e 1950 que as ideias de
Mulliken passaram a ganhar maior aceitação na comunidade científica, recebendo reconhecimento com
um Prêmio Nobel apenas mais de três décadas após o início de seus trabalhos com a Teoria de
Orbitais Moleculares, em 1966. 38
Por um lado, na área da Química, a TLV começou a passar por um período de estagnação
conceitual que a levou a acumular um conjunto de percebidos ‘fracassos’.39 Um destes fracassos, por
exemplo, se refere à molécula de O2, e ao fato de a TOM ser capaz de revelar seu caráter
paramagnético imediatamente, o que não era observado via TLV.
Ainda no início da década de 30, um físico-químico alemão chamado Erich Hückel
desenvolveu uma adaptação da TOM de Hund e Mulliken, à qual deu o nome de Teoria dos Orbitais
Moleculares de Hückel (TOMH). Este é um modelo de cálculo para determinar, de forma aproximada,
as energias em orbitais moleculares com elétrons π em sistemas de ligações duplas conjugadas, como
o benzeno. Sua teoria serve como uma base teórica para a chamada Regra de Hückel, também
desenvolvida por ele, e utilizada para estimar se uma molécula cíclica planar terá de fato propriedades
aromáticas.
Apesar de inicialmente o trabalho de Hückel não ter sido bem recebido, ele passou a ganhar
credibilidade ao longo dos anos com a aplicação de sua TOMH ao estudo do benzeno e outras
moléculas. Os subsequentes sucessos obtidos a partir da Teoria de Orbitais Moleculares em sua
utilização na Química Orgânica culminaram nos anos de 1960-1970, quando a molécula de C4H4 teve
suas propriedades determinadas via TOM.40

35 Nobel Media AB 2014, “Robert S. Mulliken - Spectroscopy, Molecular Orbitals, and Chemical Bonding,” Nobelprize.org,
https://www.nobelprize.org/nobel_prizes/chemistry/laureates/1966/mulliken-lecture.pdf.
36 “Tradução livre da autora: “O método de Orbitais Atômicos a princípio apelou aos químicos porque se encaixava com muito mais

facilidade nas maneiras usuais de se pensar.” (Ibid.).


37 Sason S. Shaik & Phillipe C. Hiberty, A Chemist’s Guide to Valence Bond Theory (New Jersey: Jon Wiley & Sons, 2008), 1.
38 José A. Chamizo & Andoni Garritz, “Historical Teaching of Atomic and Molecular Structure,” in International Handbook of Research in

History, Philosophy and Science Teaching, 3 vols., ed. Michael R. Matthews (s.l.: Springer, 2014).
39 Sason S. Shaik & Phillipe C. Hiberty, “Valence Bond Theory, its History, Fundamentals, and Applications: A Primer,” in Reviews in

Computational Chemistry 20, ed. Kenny B. Lipkowitz, Raima Larter, & Thomas R. Cundari, 10 (New Jersey: Jon Wiley & Sons, Inc., 2004).
40 Ibid., 11.

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Outro fator que contribuiu significativamente para o declínio da TLV está relacionado ao
crescente interesse por parte dos químicos da época de estudar moléculas maiores e mais complexas,
tornando a TLV cada vez mais impraticável quando comparada aos emergentes métodos semi-
empíricos de OM. Junto aos rápidos avanços na área de Química Orgânica utilizando-se dos trabalhos
de Hückel, a relativa falta de um maior desenvolvimento conceitual da TLV até então impulsionou a
Teoria de Orbitais Moleculares a tornar-se mais aceita e utilizada durante as décadas de 1960 a 1980.
À frente desta mudança em direção a uma crescente popularidade da Teoria de Orbitais
Moleculares está o advento dos computadores digitais e os avanços na computação e sua
aplicabilidade aos estudos realizados na área da Química.

A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL E OS AVANÇOS NA COMPUTAÇÃO


Antes do advento dos computadores digitais, inúmeros dispositivos físicos foram
desenvolvidos para auxiliar os seres humanos a calcular, cujas origens podem ser rastreadas até
milhares de anos atrás. Acredita-se que por volta do ano 3000 a.C., na Babilônia, já havia sido
desenvolvido, por exemplo, o ábaco, capaz de resolver problemas matemáticos básicos de até 12
números inteiros. Posteriormente, o quadrante, instrumento utilizado para cálculos astronômicos, foi
principalmente desenvolvido a partir do século XVI, na Europa.41
Avançando um pouco na linha do tempo, mais recentemente o contexto histórico da Segunda
Guerra Mundial (1939 – 1945) serviu como um grande incentivo à evolução dos computadores, devido
à demanda para realização de tarefas desde interceptação e desencriptação de códigos inimigos e
distribuição de mensagens militares até criação de novas armas, cada vez mais complexas e
destrutivas.42 Diversos projetos desenvolvidos na área começaram a se destacar, em especial os
criados pela Universidade de Harvard, o Mark I, e pelo grupo de Tommy Flowers,43 o Colossus.
Principalmente a partir da década de 1950, com o advento da computação moderna e das
máquinas digitais, os computadores passaram a substituir métodos tradicionais de processamento de
dados, além de vir a se tornar o principal meio de comunicação atual. 44 Seu desenvolvimento permitiu
que cientistas fossem capazes de encontrar novas soluções para as teorias que buscavam entender
melhor o funcionamento dos elétrons, algo que vinha se tornando cada vez mais matematicamente
complexo nos últimos anos, em especial desde os estudos de Niels Bohr.

41 Cléuzio F. Filho, História da Computação: O Caminho do Pensamento e da Tecnologia (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2007), 85.
42 Gabriel Gugik, “A História dos Computadores e da Computação,” Tecmundo, https://www.tecmundo.com.br/tecnologia-da-
informacao/1697-a-historia-dos-computadores-e-da-computacao.htm.
43 Thomas H. Flowers (1905-1998) foi um engenheiro eletrônico britânico.
44 Michael S. Mahoney, “The History of Computing in the History of Technology,” Annals of the History of Computing 10 (1988): 113-125.

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No que diz respeito às teorias de orbitais em moléculas especificamente, a evolução da


capacidade de se utilização da computação na área da química, via aplicação de conhecimentos de
química teórica a programas computacionais eficientes, teve direta influência nos caminhos que o
desenvolvimento das duas teorias seguiu. Em particular, esta evolução tem direta relação com o
continuado declínio da Teoria de Ligação de Valência em relação à Teoria de Orbitais Moleculares,
uma vez que a TLV demanda uma maior capacidade computacional por envolver orbitais não
ortogonais.
As décadas de 1960 e 1970 representaram um grande avanço na área de computação
mainframe. Em comparação com a TLV, que era extremamente complicada de se implementar
computacionalmente, a TOM era mais fácil e demandava um custo computacional significativamente
mais baixo. Com os avanços na área da química computacional, passou a ser possível calcular e
estudar moléculas mais complexas e prever suas propriedades com uma acurácia cada vez maior.
Novos cálculos passaram a revelar ainda mais dos chamados ‘fracassos’ da Teoria de Ligação de
Valência, cimentando a Teoria de Orbitais Moleculares como a mais viável e legítima dentre as duas
teorias na época. 45
Ainda assim, apesar de ter caído em desuso e passar por um longo período de grande
descrédito e desvalorização em meio a comunidade científica, a Teoria de Ligação de Valência não
chegou a desaparecer por completo e, eventualmente, passou por um processo de renascimento,
voltando a se mostrar como uma alternativa viável à Teoria de Orbitais Moleculares.

RESSURGÊNCIA DA TEORIA DE LIGAÇÃO DE VALÊNCIA


Os períodos mais recentes, desde a década de 1970 em particular, têm sido marcados por
uma ressurgência da TLV, tanto no que diz respeito a uma aplicação mais qualitativa da teoria, quanto
em relação ao desenvolvimento de novos métodos computacionais para sua aplicação, alguns dos
quais serão brevemente elucidados neste trabalho, a seguir.46
Investigações mais aprofundadas acerca de algumas das, até então, chamadas ‘falhas’ da
Teoria de Ligação de Valência mostraram que estes supostos fracassos eram representativos apenas
de versões simplificadas da mesma, não da TLV em si, e, mais ainda, de uma má aplicação dos
conceitos da TLV aos estudos em questão. Observou-se, porém, que quando propriamente aplicada a
Teoria da Ligação de Valência era tão bem sucedida quanto cálculos baseados em Orbitais
Moleculares.

45 Sason S. Shaik & Phillipe C. Hiberty, “Valence Bond Theory, its History, Fundamentals, and Applications: A Primer,” in Reviews in
Computational Chemistry 20, ed. Kenny B. Lipkowitz, Raima Larter, & Thomas R. Cundari, 13 (New Jersey: Jon Wiley & Sons, 2004).
46 Sason S. Shaik & Phillipe C. Hiberty, A Chemist’s Guide to Valence Bond Theory (New Jersey: Jon Wiley & Sons, 2008), 1.

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Atualmente, entendemos que químicos modernos devem ser capazes de reconhecer o


significativo valor em ambas as teorias. Ao não enxergá-las como contrastantes entre si, mas sim
como complementares uma da outra, compreende-se que ambas são representações distintas da
mesma realidade e tem seu espaço e seu papel nos estudos da área. A exclusão de uma ou outra
apenas irá servir para comprometer a herança intelectual da Química como um todo. 47
Com esta ressurgência da Teoria de Ligação de Valência a partir da década de 1970,
diversas releituras do método passaram a ser desenvolvidas. Além disso, avanços mais recentes na
área de química computacional marcados pelo desenvolvimento de novos métodos e softwares,
facilitam a aplicação da TLV a moléculas de tamanho moderado, até então impossível.
As ditas versões Modernas da Teoria de Ligação de Valência, algumas das quais iremos
mencionar brevemente, conseguem com sucesso descrever diversas características moleculares que,
em sua forma inicial, a TLV não demonstrava ser capaz de explicar, tais como ângulos de ligação e o
próprio paramagnetismo, considerado um fracasso da teoria em sua versão anterior.
Uma destas novas releituras que vem se popularizando cada vez mais é a que recebe o
nome de Teoria de Ligação de Valência Generalizada (abreviada como GVB, do inglês Generalized
Valence Bond), que foi desenvolvida por volta de 1970 pelo químico estadunidense William A. Goddard,
III (29/03/1937)48 para realização de cálculos ab initio de estruturas eletrônicas.
As principais vantagens deste método estão relacionadas ao grau de liberdade dos orbitais.
Por meio dele, a composição dos orbitais é determinada pela otimização da função GVB para cada
caso distinto, ou seja, os orbitais terão sempre a forma e a composição mais adequadas para
descrever um átomo em cada situação particular, ao invés de uma forma única, rígida e pré-
estabelecida.
Ao contrário, por exemplo, do chamado método Hartree-Fock,49 amplamente utilizado para
descrever o comportamento de elétrons em átomos polieletrônicos, no método GVB não há a
necessidade de “forçar os orbitais de um átomo polieletrônico a terem a mesma forma dos orbitais
hidrogenóides e impor a dupla ocupação dos orbitais”.50 Neste método tais restrições não ocorrem.
Os diagramas GVB dos átomos onde, em geral, apenas representam-se orbitais de valência,
constituem um excelente ponto de partida para o estudo de moléculas. Por meio deles, podemos
prever o número e os tipos de ligações que podem ser formados entre dois átomos. Além disso, eles

47 Shaik & Hiberty, Valence Bond Theory, 16.


48 International Academy of Quantum Molecular Science, “William A. Goddard III,” http://www.iaqms.org/members/goddard.php.
49 Nelson H. Morgon & Kaline Coutinho, eds., Métodos de Química Teórica e Modelagem Molecular (São Paulo: Editora Livraria da Física,

2007).
50 Marco A. C. do Nascimento, “Moléculas Diatômicas Homonucleares,” Química I, vol. 2, (Rio de Janeiro: Fundação CECIERJ, 2009),

145.

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também permitem fazer previsões qualitativas sobre propriedades e geometria de moléculas. 51


Outra releitura moderna da Teoria de Ligação de Valência é a chamada ‘Spin-Coupled’
(abreviada como SCVB, do inglês Spin-Coupled Valence Bond). Neste caso, a função de onda é
otimizada variando-se os coeficientes das funções de base nos orbitais LV, bem como os coeficientes
das funções de spin. A função de onda é bem flexível, de modo que se pode escolher a ordem dos
orbitais, bem como o conjunto de funções de spin, de forma variada, podendo-se reduzir o trabalho
computacional gasto para determinar a função de onda. 52
Desse modo, assim como é observado na Teoria de Ligação de Valência Generalizada
apresentada anteriormente, nesta versão da TLV os orbitais também não são pré-determinados ou
apresentam formas fixas, possuindo, portanto, graus de liberdade suficientes para se deformar de
acordo com cada sistema.
Além de recuperar aspectos da química que a versão inicial da Teoria de Ligação de Valência
não era capaz de explicar e que, portanto, foram interpretados como fracassos da teoria, como já
discutido, estas modernas releituras da TLV também permitiram a introdução de novas ideias, até
então não passíveis de serem exploradas. Uma destas novidades se encontra, por exemplo, nos
estudos realizados acerca da estrutura eletrônica da molécula de benzeno.
A visão oferecida pela Teoria de Orbitais Moleculares, e amplamente aceita pela comunidade
científica, determina que o caráter aromático da molécula de benzeno seria explicado via orbitais
deslocalizados. Utilizando-se de SCVB, por outro lado, pode-se descrever a estrutura do benzeno
como sendo composta por seis orbitais altamente localizados e distorcidos em direção aos átomos
vizinhos.53
Atualmente, inúmeros programas diferentes são utilizados para dividir os orbitais de uma
molécula em espaços ativos e não ativos, tratando os últimos como sendo de camada fechada e os
primeiros via um formalismo LV. Estes programas, com isso, são capazes de otimizar ambos os orbitais
e os coeficientes destas estruturas, diferenciando-se uns dos outros de acordo com o modo pelo qual
os orbitais são definidos para cada caso.
Dentre os programas computacionais desenvolvidos para cálculos com base nas versões
modernas da TLV temos, por exemplo, o GAMESS,54 o VB200055 e o MOLPRO.56

51 Ibid., 148.
52 Joseph Gerratt et al., “Modern Valence Bond Theory,” Chemical Society Reviews 2 (1997): 92.
53 David L. Copper, Joseph Gerratt, & Mario Raimondi, “The Electronic Structure of the Benzene Molecule,” Nature 323 (1986): 600-701.
54 Mike W. Schmidt et al., “General Atomic and Molecular Electronic Structure System," Journal of Computational Chemistry 14 (1933):

1347-1363.
55 Jiabo Li & Roy McWeeny, “VB2000: Pushing Valence Bond Theory to New Limits,” International Journal of Quantum Chemistry 89

(2002): 208-216.
56 Hans-Joachim Werner et al., “Molpro: A General-purpose Quantum Chemistry Program Package,” WIREs Computational Molecular

Science 2 (2012): 242-253.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ensinar por meio da consideração de aspectos históricos do conhecimento científico faz com
que o mesmo se apresente, para os alunos, como uma progressão natural e gradual ao longo do
tempo.
Descobertas e artefatos científicos, histórias reais de vida de cientistas e intelectuais da área,
fracassos e sucessos no progresso científico enriquecem de forma imensurável a aprendizagem das
ciências em geral, e não devem ser deixados de fora da sala de aula. 57
Quando o conhecimento representado em livros e outros materiais didáticos, ou em qualquer
ambiente de aprendizado científico em geral, é reduzido única e exclusivamente ao produto final da
ciência, estudantes e professores, respectivamente, não aprendem ou ensinam sobre os pressupostos,
controvérsias ou contradições que são parte natural e fundamental da evolução científica.
Em particular o entendimento dos conceitos de orbitais em átomos e moléculas é, sem dúvidas,
essencial para uma mais completa compreensão da química. No entanto, as barreiras epistemológicas
criadas durante o processo de aprendizagem destes conteúdos nos diferentes níveis escolares, torna
esse assunto, que já possui uma complicada natureza abstrata, ainda mais difícil de ser compreendido
e mais distante de ser realmente incorporado aos saberes dos estudantes.
Tendo estas observações em mente, acredita-se que este trabalho demonstra que os tópicos
relacionados ao ensino de orbitais atômicos e moleculares podem ser apresentados de forma mais
abrangente e desmistificada por parte dos professores, de modo a facilitar sua compreensão por parte
dos alunos.

SOBRE OS AUTORES:
Cássia Ferreira Coutinho Pereira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(e-mail: cassiaferreira.04@gmail.com)

Alexandre Braga da Rocha


Universidade Federal do Rio de Janeiro
(e-mail: rocha@iq.ufrj.br)

57José A. Chamizo & Andoni Garritz, “Historical Teaching of Atomic and Molecular Structure” in International Handbook of Research in
History, Philosophy and Science Teaching, ed. Michael R. Matthews (s.l.: Springer, 2014).

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Pereira et al Volume 16, 2017 – pp. 18-35

Priscila Tamiasso-Martinhon
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(e-mail: pris@iq.ufrj.br)

Angela Sanches Rocha


Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(e-mail: angela.sanches.rocha@gmail.com)

Célia Sousa
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(e-mail: sousa@iq.ufrj.br)

Artigo recebido em 30 de maio de 2017


Aceito para publicação em 30 de julho de 2017

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