Você está na página 1de 217

-; Alô, Lacan}

- E claro t{ue não.

fb.com/lacanempdf
Jean Allouch

-, Alô, Lacan?
- E claro que não.

edito r a

facebook.com/lacanempdf
TíTULO ÜRIGINAL
-Allô, L1c111? - Cert:11iiement pas.

Copyright© byEDITORA CAMPO MATÊMICO


Proibida a reprodução total ou parcial

EDlTORAÇÃO ELETRÓNICA
FA - Editor,1ç:,10 Eletrônica

TRADUÇÃO
Sa11dD1 Regina Fe~!flleirns

REVISÃO TÉCNICA
Dulce Duque Estr.1d.1

ILUSTRAÇÃO DE CAPA
Croqui frito por Frn11ç:oú- Penicr
dur.111te o se1111ii:íáo de Lac,111 de 6 de m.11-ç-o de 1963,
com a am:ível ,wtorizaç:/io dcj1cqucs Séc!.?t.

FICHA CATALOGR.Áf.ICA
A441;i
Allouch, Jean.
- Alô, Lacan? - É claro que não. I Jean Allouch ;
[cradução Sandra Regina Felgueiras]. - Rio de Janeiro :
Companhia de Freud, 1999.
224 p. ; 23 cm.
ISBN 85 85717 27 8
Tradução de: Allô, Lac.~n? Certainement pas.

1. l.acan, Jaques, 1901-1981 - Anedotas. 2. Psica-


nálise - Humor, sátira, erc. !. Tírnlo.

CDD-150.195

editora
ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Rua Visconde de Piraj:í, 547 - S"b 702
Cep 22415-900 - Ipanema - Rio de J;ineirn
Te!.: (021) 540-7954 -Tclcfox: (021) 2.W-9492
email: tercza@ism.com.hr
,
ln dice

Lista .............................................................. 7
Prefacio ....................................................... 19
Prática analítica ........................................... 31
Apresentação de doentes ............................. 99
Prática da supervisão ................................. 113
História do movimento psicanalítico ......... 131
Encontros ................................................. 193
Prefacio à primeira edição ......................... 211
U111 bistrô prlD.:i1110 ao consultório de J:icquc.;s L21ca11.

Verb.1 vol.wt. scnjJt.? 11w11c11t


A este provérbio latino, Lacm replicava, em fonnJ dc voto:
"Praza aos céus que os escritos pen11aneçam,
como é o caso das palavrJs:
pois destas a dívida indelével
ao menos fecunda nossos atos por suas transfi:rências".
(Écrits, Paris, Scuil, 1%6, p. 27)
Lista

Distinguimos com caracteres diferentes (romano, itáli-


co, negrito) os bons motnespectivamente publicados em 1984,
1992 e l 998. Esta estratificação de fato é historicamente falan-
te: bons 11wt1· num primeiro tempo censurados, bons mots
divulgados mais tardiamente no diz-se, bons mot,; um dia en-
tregues ao bagaço de cana dos pró e anti Lacan, bons mot,; que
não põem mais em causa da mesma forma tal protagonista,
etc.

Prática analítica
132 bons motç (57 + 34 + 41)
à moda de Clérambault?
.1 psican:ílise, seu público e o estado
alô L1c,111
antecipação
apanhei-te!
arreb,1t,1111ento
Mo /ãlbo?
ausêncú?
beleza
bom-dia
8 - Ató, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

café quente
casan1ento
começou
confissão
conflito sobre a próxima sessão
conhecimento paranóico
conjuração?
contestação
contratempo
conversa de bar entre dois analisantes
dado, pago
de cama ... , mesmo?
deitar
denegação faz lei
denegação faz lei (2)
depois depois
desanálise
dúlétic,1 de w1w ú1tervenção
divertir a galera
dívida
dois candidatos para um divã
e agora?
é isso
ele fã/a de mún
ele fala?
ele próprio se esqueceu
em c,1so de necessidade
encontro
ent.io er.1 isso!
errare lacunum est
erro de ortof,>rafia
estar ou não estar em análise
este nó, este íàgo
fã/o imagliiário
falso nome
felicidade
LISTA I)

felicitações +++
feminilidade
férias
fim de análise
fim de análise (2)
fobia de nome próprio
fora?
k1c,1sso do parricídio
Gloria
Gloria (2)
Glorú (3)
Gloria (4)
Gloria (5)
go-between?
h(ouve)-se bem
indicação de analista
indiscrição ... furada
imcrição 1w EFP
interdito
interpretação
inversão da demanda
irrupção do grande Outro
isso acontece
L,1ca11 nio contente
lamentações
land rover
ler e reler
línguas
}itera to ou psicanalist,1?
mal-est,1r na .1nálise
medicina
muito caro
na hora
não teria havido sessão
neologismo ou interpretação
o analisante tinha razão
IO - Ar.ó, L'\C:AN? - É C:I.ARO QUE NAO.

o que vale a palavra?


onde se vê Lacan fixar o preço das sessões
oposição
ou vai ou racha
papai protesta
para os bastidores
para se calar
pedido de agradecimento
perturbada
pleonasmo
pleonasmo?
porco-esptmana
prazer
preso na armadilha
primeira notícia
primeir,1 sessão com Lacan
primeiro o quê?
prin1eiro pagan1ento
proposta
qu::mdo "pennitir-se" não é "autorizar-se"
quando cem francos se tornam trezentos
que ... que ... que
quem é p.1cicntc?
quem endurece?
quem p,1g.1?
questão resolvida
raiva com doçurn
roubou-se ,1 beng.11.7
saber
sala de espera
sem fôlego
semblante?
sessão de semúário, sessão de ,111.ilúe
sessão por sessão
sessões curtas
simbólico
LISTA 11

sobre o bom uso do esquema L


sobre o eu
so11h1r cont,1?
suicídio
suspensão da realidade
teria sido um privilégio?
trabalho de parto
transcrição
transferência
uma palavra a mais
verborragia
vidência
zelo
zen-,w:ílise

Apresentação de doentes
30 bons mots (22 + 5 + 3)
a un1 transexual
advertido
companheiros
culp::ibilidade
cur::i
cl.1r os últimos retoques
é simples
ele sabe?
encorajamento
engrenagem
esd.1uúlo
esquizofrênico
gent.lÍ nwm,fr
hipnose
indicação de analista
Lacan diferente dele mesmo
marido e mulher
marido tomado
12 - Ai.ó, L:,CAN? - É CLARO QUE NÃO.

n1esm.o ass1111
moralidade
nos limites do saber
ordem
os eleitos perdoam
palavra imposta
prescrição no sentido certo
quem dirá?
sornr
telepatia
topologia ... ou geometria?
um tipo como eu

Prática da supervisão
31 bom mots (15 + 1 + 15)
a cen1 francos o "re"
agraciar
analisar, banalizar
antes partir que terminar
certo, mas o mal estava feito
conclusão
descolamento
domur na sessão
ela e ele
fim de análise
flagrante de donnir
ganho! mas a que preço
histeria
imitação e confiança moderada
incompatibilidade
lição de leitura literal
grana e beija-mão
o florão
objeto/sujeito
LISTA 13

parn sempre
perdido
quem fugia de quem?
retomada
reviramento
saia com fenda
sobre enganar-se, cometer falta
supervisão, depois análise
toubib or not toubib
troca?
um significante como último recurso
você disse: é falso?

História do movimento psicanalítico


118 bons mots (31 + 29 + 58)
.1 École de b cause freudienne
;1 lãrs,1

abandonar
acaso ou destino?
admiraç.io sincera
alistado
aluno nota zero
anti-Édipo
antinômico Lacan
aos nonnalistas
assin1 tur,1
aviso
axioma
barrado sim, mas como?
cama de Lacan
can I
c,1rtel?
chamada à ordem.
cóler,1 e crença
com Charcot
14 - A1ú, L:\CAN? - É CLARO QUP. NAO.

com os Nip
como disse ...
como ele dizia?
como pode?
confimwção
confirmação de esquecimento
confusão?
conta-se no instituto
cumprimento indireto
d1 merda
de resto
definição do seminário
delirante Lacan
Descartes na 1nesa
diálogo entre Lacan e o revolucionário
dissoluç-Jo
divórcio à lacaniana
do leito
do respt'Íto
do s1(/eito suposto saber
d11ch:1 l:1c:111i:111:1
e111 todo c1so, eu ...
enfr:1quecimento do dêitico
enfumaçar a ENS
envelhecer
envio de um cliente
erro de pessoa?
escola ou relação
escritos
especialista?
esquecimento de nomes próprios
estimativa sem muita estima
eu sou claro
facilidade
li,Jem, ó paredes!
fundação da École freudienne
LISTA 15

/prrafà de Klezi1
imitador de Lacan
imperdoável
inocência?
intervenção no seminário
intimidação?
ironia?
isso afixa
1/ 111
Lacan e o lacaniano
Lacan jurado
lacuna
lenda?
litoral
loucura por loucura
mal-entendido?
mal-entendido e1n alemão
1n.-1sturb.-1ç::io fi-cudi-111.-1
medida comum
111entiroso
mil novecentos e sessenta e oito
nomeação
110111e.1ç-ões
o aluno ... tal conto en1 si 111esn10?
o fenômeno lacaniano
o inconsciente
o segredo de Lacan
o últin10 seminário
obstáculo
paralelo comprometedor?
passe por escrito
perversão
propaganda?
prova comprovadora
provocação surrealista?
psicanálise à lacaniana
1ú -AI.ó, LAC:AN? -É CLARO QUti NÃO.

quando Lacan se dá mal


que história!
rei negro lendo
resposta a um convite
retorno de demanda
sem escolha
sessões curtas
s1ga111-111e
Sigmund
síntese
socialista
socrático
Sylvia se mete
televisão
televisão (ainda)
topografia
totalitário
traduções
tradutores
trocadilho
uma emenda ao que havia ... antes
uma resposta?
verd1deir,1 verd1de
vida de jesuíta
vitrine secret,1
volto a isso logo

Encontros
35 bons motr (8 + 9 + 18)
a origem do mundo
à sua sem t
apostrofado
as mãos su/1s
bebê chorão
caro livro
LISTA 17

cartesiano ... até este ponto?


católicos não-romanos?
chato
compreender
confronto evitado?
desmistificado
Duras conta
encontro com. Goebbels
t'vidênci:1
Heidegger psiquiatra
incorporação real de um objeto simbólico
jantar mundano
l:í Kw t?
M onde os calos ,1pert,1111
lapsos interpretativos?
leviano?
miuha mulher, l31a11chot e eu
não podia não saber!
nazismo
o grande segredo da eloqüência
o instante de bem ver
os Escritos e a cola
otimim10
para malandro, malandro e meio
por que ser simples...
presiden1úsion:íáo
qu::mdo Roman Jakobson encontra Jesus
um móvel
verbo 9u adjetivo
Prefácio

"Enfim, aconselhamos não comprar este livro, mas lê-


lo em uma ou mais vezes em alguma FNAC ou livra-
ria tolerante ... 1" •

... assim terminava uma resenha da p1imeira edição da


presente obra publicada numa revista de psiquiatria.
À época (1984), recolhi, sem praticamente ter procura-
do, 132 bons mots avec Jacques L1c,111. Tais como os anéis
borromeanos suscetíveis de ocupar um.o lugar dos outros, fa-
zendo cadeia, eles também, a partir de 3, estas cifras - 1, 2, 3 -
estavam destinadas a girar. Assim a segunda edição, em espa-
nhol (1992), comportava 213 ocwTenci,zi-, como se as no-
meou; esta, 321: a coerção destas três cifras a toma saturada.
O que era este livro, então, para suscitar um tão estra-
nho conselho de leitura? E, se acontecesse de este conselho ser
seguido, o que diria, no que se refere a este livro, uma tão

I Alain Chevrier, "De mau vais bons mot~", Nervure, 3 de abril de 1988.
Jean Allouch, 2 J3 ocurrendas com J1cques L.1c.111, tradução de Marcelo Pastemac
& Nora Pasternac, México, Sitesa, 1992.
20 - A1ú, LACAN? - É CLARO lJUI: NÃO.
----------------------

desconfortável leitura? Pois ler de pé, entre prateleiras aperta-


das, sentado no chão, enquanto outros visitantes da livraria
passam por cima de você mais ou menos selvagemente (quan-
do não o pis::un), não é uma posição facil de manter por muito
tempo. Esta leitura, tão particular, que este livro exigiria diz
certamente algo a seu respeito. Mas o quê? Pois bem, isso
estava também ali, escrito em letras garrafais, sob a forma do
título daquela resenha. Tratava-se (trata-se sempre) de "maus
bons mots*". Foi isto, portanto, o que faltou encontrar: um
título que não des-conhecesse 3 uma característica maior da
obra, um título que, então, apareceu 110 lado do leitor: 132
111:ws bons mots com J:1cques L:zc:111. Mas "111aus" ... em quê?
O título da resenha elevava à contradição o desacordo
presente no conselho conclusivo: ler, sim, mas sem comprar;
e, principalmente, sem pagar. Quem, então, pagaria? Curiosa-
mente, esta relação com o livro, onde a inocência praticamen-
te não impera, onde, prescrita, a desconfiança seria de praxe,
põe o livreiro na questfo. Esta leitura se fará }s suas expensas.
Imagine-se simplesmente o estado eh obra oferecic.h por ele
depois que algumas dezenas de leitores a tenham percorrido,
como foi aconselhado; ele terá alguma dificuldade de vendê-
la para quem, não tendo recebido o judicioso conselho, ou
tendo decidido não levá-lo em conta, pagasse seu preço.

* Mantivemos a express:io francesa bem mot, que n~o tem equivalente perfeito
em portu1-,•1.1ês. Para uma explicaç:io sobre o bem mot, ver o prefãcio :i primeira
a edição, no final deste livro. Além disso, chamamos a atenç:ío para o jogo feito
pelo autor com "Maus bons mots" (literalmente, bon mot seria traduzido por
"boa palavra", ou "boa fala"). (NT)
, Sobre :i funr:io d:i babaquice ver, aqui mesmo, o "Prefãcio" à primeira cdi~:ão
fDé-conn;1iu.1it: trocadilho intraduzível que envolve o verbo "desconhecer" e
o teimo cem, "babaca". (NT)l
Desenho retirado de Fliegende
Blãtter.
Dms réplicas o acompanham:
- Diga, Professor, para que tantas
rãs para predizer o tempo?
- Claro! mas se forem muitas
poderão reunir-se em conselho nos
casos difíceis.

O conselho era notivel aind:1 por dois tr::tços, que subli-


nhavam sua inveja equilibrada. Por um lado o artigo suscita,
apesar de tudo, o ato de compr:1, oferecendo, num formato
enom1e, uma reprodução da capa da obra.
Por outro bdo, o autor da resenha, como que tomado,
;1. revelia, pelo espírito da coisa, acrescentava, ou seja, punha-
se ele mesmo a contar alguns bons motç_ Praticamente o cúmu-
lo, para quem os diz "maus": ele cita o de Didier Anzieu men-
cionando Lacan como este psicanalista célebre "por ter tido su-
1 ·( ·sso em aumentar a duração das curas diminuindo a das ses-

S(.ll's"; e aponta para os leitores alguns lugares em que poderia

< ·11co11trar alguns outros (freqüentemente retomados aqui, o

l1·i11 ir hulímico poderá divertir-se identificando procedências).


1-:1< · 11;10 poderia dizer melhor que, em sua opinião também,
n1,·s 111.111s motsfiguravarn con10 nwus bons 111ots.
22 - ALÔ, LACAN? - É CI.ARC'l QUE NÀO.

"Maus" ... , tecnicamente?

Isto descarta uma primeira versão deste "maus". Não


tanto que estes bons motç sejam maus como bons mot,, diga-
mos, em sua bo11111odid:1de, "tecnicamente", no sentido em
que Freud estuda a "técnica" do chiste. Neste aspecto, no
entanto, num prefácio, não deixei de lembrar o que deviam
ser, dadas as circunstâncias (o temor que a publicação destes
bons mots suscitava quanto à reputação de Lacan), isto é, que
o bon mot, como o chiste, tem seu público, que ele pode
muito bem ser concebido como bom aqui e mau acolá. Se,
portanto, nosso detrator achasse 111aus estes bons mots, esta
surdez (vista de nossa fresta, mas também alhures ela é um:i.)
tinh:1, antecipadamente, seu lugar na obra. Além disso, este
lugar se precisa quando ele nos diz, de repente, da fom1a mais
aberta e fr:11JCa, qual é sua posi('io em relação a Lacan: Lacan
era, segundo ele, um novo Mesmer. Um semelhante julga-
mento devia exatamente ter como efeito que o espírito de
certos bons motç lhe escapasse, a começar por aqueles em que
Lacan mostrava ter sido outra coisa que um avatar do célebre
magnetizador - tanto é verdade que cada um tem bons mot1·
que sua transferência auto1iza.
Dando a conhecer que não comia, em todo caso não de
boa vontade, este pão espirituoso, ele sublinhava uma compo-
nente de fato presente. Poder-se-ia, com efeito, lendo tal bon
mot, ficar frio, até pensar que não há aí, no caso, o menor
traço espirituoso. Onde está o espírito, quando Jacques Lacan
diz a Marguerite Duras: "Você não sabe o que diz"? Quando
declara a François Perrier: "Você m.e toma por uma garrafà de
Klein''? Ou ainda, caso-limite, onde está o espírito quando
não manda um exemplar de seus E,cn"tos à biblioteca de sua
l'RHÁCI< > ~~:\

escola? E, certamente, pode-se muito bem pensar que o que


foi dito a Duras é falso, tolo, inconveniente, até mesmo gros-
seiro. Ou que Lacan delira, acreditando saber por quem Perrier
o toma. Em suma, que estas historietas não teriam nada do
bon mot. Entretanto, esta posição negligencia o que em ne-
nhum caso pode ser negligenciado, isto é, que isso foi conta-
do, referido como t,11. Uma negligência imediatamente san-
cionada por duas outras. De fato é rápido passar ao largo do
que efetivamente ocorreu, da Wirklichkeitda coisa. Por exem-
plo não ver que a declaração então feita a Duras era um cum-
primento; sensível a isto (o lingüista diria: à enunciação), nossa
cara Marguerite recebeu-a como um bo11 mot, também não
ver que o que foi dito a Perrier oferecia a este uma chave, até
a chave de sua transferência com Lacan (por que, se assim não
fosse, Perrier o teria espalhado?) - já que o interlocutor de
Lacan não ignorava que, não tendo nem exterior nem interi-
or, uma tal garrafà não poderia conter nenhum líquido e então
que, assim tomado como garrafa de Klein, Lacan era nada
menos que o lugar da falta de Perrier. Enfim, é uma outra
negligência passar ao largo da própria rede dos bons mots na
medida em que eles ensinam, e ao largo do que eles trazem ao
ensino, não marginal, de Lacan. Este bon mot diz a Duras e
por Duras esclarece, de uma maneira não-trivial, a interroga-
ção pública: "Como ela sabe o que eu ensino 4 ?"; a frase dita a
Perrier lança uma viva luz no ato de fimdaç/io d:1 École
fi-eudienne (cf o bon mot assim intitulado 5).

4 Dever de casa: dizer em que estas duas asserções combinam.


Dever de casa: dizer em que a posição de Perrier é duas vezes a mesma.
24 -A1ú, LAC:AN' - É CLARO QUE NÃO.

Tudo isto, é verdade, desaparece amplamente quando


se concota a história num molho simili-universitário, onde, as
influências intelectuais disputando, na ambição do poder (esta,
sugere-se, servindo àquelas), nem o espírito nem o ato têm
mais seu lugar6 . Antes de ser comercializada esta "história", o
lugar dos bons motf era esta margem à qual dá lugar todo
ensino "digno deste nome" (dizia, sem baratear a coisa, Lacan).
Doravante tudo se passa como se não houvesse mais margem.
Perde111-se então, ao mesmo tempo, o ensino e os bons mots",
estes não mais sendo levados em conta como tal.
Entretanto, como não saudar a efetiva introdução desta
margem na caricatura de Lacan que François Perrier, assistin-
do à aula de(, de março de 1963 do seminário, desenhava justa-
mente :i 111:11ge111 de suas notas de ouvinte (ela é retomada aqui
mesmo, na capa)? Ou ainda, anos mais tarde, como na entrada
em funcionamento como suporte de escrita da borda do portão
que dava para o consultório de Lacan, onde um desconhecido
inscreveu um grafite que a fànúlia teve muita dificuldade de
apag.ir (cf, aqui mesmo, o "bon motfoto", p. 132)?
Dizia-se "limite" o caso do não-envio dos Escútos. O
que Lacan queria ou não fazer pouco importa; o fato é recebi-
do como um bon mot, se nos lembrannos que estes Escútos
foram feitos para "levar o leitor a uma conseqüência onde lhe
será preciso pôr de seu" (cf Écúts, p. 10), por meio do que se
mostra que este não-envio é coerente com seu endereço (no
duplo sentido do tem10). Este bon mot sublinha então um
traço maior, embora negligenciado, da relação de Lacan escri-

'• CfJean Allouch, "Un_Jacques Lacan sans guen: d"objet ni d'expérit:nce", Re-
vista Littor,1/, nº 38, Paris, E.P.E.L., novembro de 1993, pp. 121-154.
tor com a École fi-eudic1111e: ele não a considera con10 capaz
de não ter, ou não mais ter, de ali "colocar de seu"; a seu
respeito não tem nenhum papel - tal é o ensinamento engastado
neste bon mot - o par exotérico/ esotérico (a oposição entre
um ensino dirigido a qualquer um e um ensino deliberadamente
voltado unicamente para aqueles que o seguem e feito para
eles) que se tem, ainda hoje, tanta dificuldade de aplicar ao
trilhamento lacaniano 7 .
O fato de que só haja, às vezes, bo11111otpara quem está
por dentro (mas por dentro de quê? Isso é completamente
colctivizávcl?) exige que urna tal coleção seja assinada. Quem
então acolherá espontaneamente como espirituoso o fato de
que Lacan tenha proferido, de seu leito: "Meus alunos, se sou-
bessem para onde os levo, ficariam horrorizados!"? Quem
poderá apreender que este leito, lug;u- da enunciação no senti-
do mais concreto deste termo "lugar", é a resposta - n:i:o o
leito de que um freudiano ortodoxo fi.1~iria por temor de uma
relação homossexual com Lacan (!), nus aquele que este bon
1110t designa (pois tal é seu alcance de ensinamento parcial-
mente esotérico) enquanto lugar - terrível, então - da não-
relação sexual?

"Maus" ... , 1noralmente?

Mas estes bons mot~ são ditos maus em um outro senti-


do além. do técnico. Eles veiculariam algo de discordante, de
socialmente inconveniente.
Ora, todos estes "bons 111ot1·" - escrevia ainda nosso
leitor decididamente encolerizado - são "1ni5 ,1ções".

7 Cf Jean-Claude Milner, L 'ornvrc dún:, Paris, Seuil, 1995, cap. 1.


2(> - Ai.ó, LACAN? - É CI.ARO QUt-: NÃO.

Afora este "todos", mais uma vez abusivo 8 , há verdade


nesta observação. Principalmente porque traz o fato de que
alguns - considerados como tendo Lacan em boa conta - te-
miam por sua reputação (e, por ricochete, pela deles), a saber,
que sejam transcritas preto no branco certas destas "más ações".
Ao que se acrescentavam os temores levantados pelas possíveis
reações de certos protagonistas de bons mots; isto fez com que
se chegasse até a consultar um advogado especializado'1] Final-
mente, aceita-se a publicação de 132 bons mots sob uma du-
pb condição: l) de censurar alguns deles, onde a "má ação"
aparecesse muito flagrantemente e 2) que se acrescentasse a
alguns deles um comentário suscetível de acalmar antecipada-
mente os tão m;-il nomeados bem pensantes. Foram necessiri-
os mais de dez anos, foi preciso esperar esta terceira edição,
para publicar, enfim sem concessão, um florilégio de bons mots
com Lacan, para poder dispensar-se de fi.mcionar como bis-
pos, afastando caridosamente do leigo toda ocasião de ficar
escandalizado, para deixar a São Paulo seu, aliás arrogante,
"tudo é possível, mas nem tudo edifica".
Principalmente este grande Satã, o dinheiro, tão presen-
te na prática analítica de Lacan (mas não o era na própria medida

" Albrt.ms bons mots são mesmo (haverá dificuldade de acreditar nisto?) boas ações,
d:iquelas que o 111:iis obtuso bom senso· acredit:i saber, sem nenhuma reserva,
fucilme;1te identificar. Usando seu bom senso, nosso leitor é aqui convid:ido a
redigir sua lista. Muit:is vezes aind:i, Lacan, longe de cometer uma má ação, de
ser seu agente, vé-se cm posição de paciente, :\s vezes até se encontrando como
alvo (cf o bon mut "J.1/cm, ó p;1rcdt's!').
'' O qual, tr:iço notável, recusou cobrar Sl'US honor:írios. Que se seja aqui publica-
mente agradecido, não somente por esta recusa, nus também e sobretudo pelo
acolhimento que deu :\ obra, confimundo-nos, ele que não estav:i por dentro da
psicanálise mas que não deixava de ter fibra literária, que tinha apreciado sua
espirituosidade.
l'ltEFÁCIO 27

de seu posto em nossa sociedade de mercado?), deveria ser


objeto de censuras. É o dinheiro que nosso crítico põe em
primeiro plano quando relata como um bom bon mot, de seu
ponto de vista ao mesmo tempo típico e mau, o fato de que
Lacan tenha pedido, depois de tê-lo recebido por três minu-
tos, 500 francos a um pai que veio queixar-se a ele do pouco
resultado da análise de seu filho. Em que haveria aí uma "má'
ação"? Em que haveria aí um desvio em relação à deontologia
médica que mereceria, afinna-se, uma incriminação? É preci-
so nunca ter encontrado a intervenção selvagem de um pai na
análise de uma criança, intempestiva no que se produz num
momento de virada da a1ülise e p:i.ra impedir que uma tal
virada seja feita, para que não se possa apreciar como rnna
pm:,ível perfonnance de Lacan neste dia esta fonna de despedir.
De fato, como o despedido pode perdoar ao analista de seu filho
não tê-lo deixado falar enquanto pai (dizer sua per-versão?), a
não ser aceitando deixar uma soma polpuda, dando corpo ao
fato de que ele mesmo, e não forçosamente o pai de seu filho,
consultou Lacan neste dia?
Mas assim mesmo, se certamente não tem fundan1ento
qualificar todos estes bons mots de más ações (há mesmo as
boas! muito boas também!) e empregar a seu respeito, de ma-
neira confusa e sem sentido, tennos que tira (mas ele o sabe?)
de Lacan (que é uma "passagem ao ato perversa"?), recebo
deste crítico como um cumprimento o que ele consideraria
uma reprovação. Confesso-lhe, algumas de suas asserções me
agradaram. Suprimam o "infelizmente", a publicação dos bons
mots não foi confimuda em sua pertinência, quando ele é
levado a escrever
O retrato que se pinta de Lacan, de acordo com estes
bons mots é, infelizmente, somente uma caricatur:1.
28 - At<\ LAC,'\N? - É CLARO QUE NÂO.

Nisto reside uma grande parte da verdade do persona-


gem.?

Logo, ato.
Quanto ao "infelizmente", ele vem na linha direta da
"razão comunicacional", desta raüo que teria - assegura-se-nos
- um "b om o b'~etlvo
. " , aque1e das " pessoas comuns " . T er-se-a'
compreendido que se trata do grito não da razão (logm), mas do
bom senso, não de uma ética, mas de moral das mais depen-
dentes do patológico. Qual a fónnula, de fàto, deste grito? A que
se pode esperar a partir de um semelhante lugar: "Escândalo!".
1- .. 1 os altos feitos atribuídos ao indivíduo Lac::111 e
relatados neste livro, se efetivamente ocofferam, sio
simplesmente escandalosos. O fato de relat{1-los com
admiração o é igualmente, se nio ainda mais.

O fato ele que o bom senso grite "escândalo" a propósi-


to de uma prática analítica que não se desviava do campo pa-
ranóico d:is psicoses, eis o que pode, no mínimo, ser recebido
como um reconhecimento de que esta prática se dava por
outros meios que os do bom senso! O curioso fica sendo que
este grito seja propagado por uma revista de psiquiatria, por-
t:into de um lugar de onde se poderia esperar, num tempo
passado, que se estivesse um pouco advertido do fato de que,
na abordagem da loucura pela razão, o bom senso não dá o
tom. Se não para que serviriam psiquiatras, analistas?

"Mau" ... Lacan?

Mas nosso detrator testemunha, no n1omento mesmo


em que introduz a palavra "admiração", que justamente não
apresentei um Lacan tão admirável. Se tivesse feito isso, ele
não ficaria tão escandalizado! De fato, há muitos bons mots
PRHÁCJ<) 29

(mas ele os leu?) dos quais Lacan não sai especialmente en-
grandecido, suscetível de ser idolatrado. É verdade, certas falas
ou atos de Lacan são de tirar o chapéu. Ter-se-ia medo, ao
recusar-se a isso, de pegar frio nos miolos? Mas vê-se também,
em alguns bons motç, Lacan cair numa am1adilha narcísica,
agarrar-se ;10 ,1g.1]111;1 como o mais banal dos colecionadores,
em outros tender para um fetichismo duvidoso, em outros
ainda tentar corrigir um erro e, em outros ainda, deixar-se
atingir com razio, etc. Cego por sua transferência negativa a
Lacan, o crítico não vê tudo o que, neste livro, poderia vir
alimentá-lo proveitosamente. Projetivamente, me atribui a
construção de um Lacan sempre admir:í.vel. Está aí, aliás, um
traço comum entre certos antilacanianos e alguns adeptos: Lacan
fica sendo um ídolo. Fez-se mesmo, com Lacan, novo bon
mot para acrescentar à lista, uma associação chamada Éole!
Quer dizer: "Vento!".
Mas não se trata somente ele Lacan. É aqui sobretudo
que nosso camarada demonstra uma secura de coração dificil
de imaginar. Como não vê, para 1;r disso, tudo o que este
florilégio de bons motç veicula de humano excessivamente
humano in7 Ninguém, no final das contas, verificaremos, faz o
espertinho nestes bons mnt1· onde muitos dos que os viveram
e contaram expuseram, como se diz, suas tripas.
As tripas, sim, são ela espécie "partes baixas". Estas, simples-
mente, são temperadas à moda de Lacan. Pode-se, evidentemen-
te, não apreciar, e fabr mau dos bons 111ot1· com Lacan pela razão
de que se os recebe como bons motç com um mau Lacan. O que
vale dizer que é à transferência, e não à sua análise, a que, agora,
muito banalmente, se deixa a última palavra.
1" O que,. no entanto, ele mesmo indica assinalando que alguns bons mot.,· s~o
atribuídos a Lacan como "só se empresta aos 1icos".
Prática analítica*

* Rebristemos, simplesmente, que os bons mots são colocados, no original, em


ordem alfabética em relação ao título, procedimento que repetimos aqui, o que
inevitavelmente acarreta que se encontrem posicionados diferentemente do texto
em francês. (NT)
-~-----·
"""""''"

,.~ ,,,.,..""'

H·:if·,~

.............. ~,,
=:......:-._,

Entrada do conrnltório de Jacques Lacm, Kuc de Lille, 11º 5,


l'llÁTICA ANALÍTICA 33

à 111od1 de C/ér,1111bault?

Durante um tempo, ela vinha à análise com Lacan tendo sem-


pre na cabeça a frase:
- "O que é que ela vai dizer?".
Um belo dia, está exatamente decidida a lhe comunicar a coi-
sa; mas, para sua maior surpresa, se ouve então dizer-lhe:
- Então, o que ela diz?

:1 psicanJ/úc, seu público e o cst:zdo

Graças a unu lei que favorecia, dizia-se, a assimilação dos ju-


deus, seu pai tinha optado por um sobrenome claramente fran-
cês. Ele, até aí, não se interessara por esta questão.
Mas eis que ela está agora na ordem do dia em sua análise.
Torna-se claro que se trata, para ele, de acrescentar a "seu"
nome próprio o nome de antes da decisão paterna. Ele se cha-
maria, doravante, Senhor X hífen Y.
'!'ratar-se-ia de uma veleidade? De fato, Lacan não lhe deixa
tempo para hesitação. Presidindo então uma reunião da École
fi·eudie1111e durante a qual seu analisante deveria tomar a pala-
vra, declara:
- Bom, passo agora a palavra a ... (seu nome) X-Y.

1'< lST-SCRIPTUM: por três vezes o Conselho de Estado recusou


11 pedido de mudança de nome, argumentando que a "esqui-

,·.1" de seu pai caminhava no sentido do progresso, que não se


.!1 ·vi;1 ir contra isso.
34 -AI.Ó, LACAN? - É CI.ARO QUf. NÃO.

alô Lacan

- Alô, Lacan?
- É claro que não.
E desliga.

antecipação

Etnólogo em análise com Lacan, ele traz um sonho:


- Lévi-Strauss morreu.
Resposta e conclusão da sessão:
- Mas que coisa ...

•1p:wh ci-tc!
A propósito de uma confidência que lhe havia feito, ela acaba
de dizer a Lacan:
- Percebi que estava esperando para te pegar de jeito.
Resposta:
- Isso não me escapou, mas poderia escapar a você.
J>ilÁ'J'JCA ANALÍ'J'ICA 35

arrebatamento

1-:lt· teve a felicidade - mas era uma? - de receber uma impor-


1.,11 te herança.
< :1 imo era claro, o acontecimento foi comentado em sua análise.
/\ partir deste dia, Lacan multiplicou as sessões, chegando a
t 11to por dia, e n1Llitos dias por semana.

1'ara quem queria escutá-lo (e eles eram muitos), ele contava a


t iperação a que Lacan se entregava.

Seu ton1 o mostrava: estava encantado.

ato fàlho?

Para o encontro seguinte, Lacan propõe um dia e uma hora


em que o analisante sabe muito bem que Lacan não estará em
seu consultório.
Uma hora depois, Lacan lhe telefona:
- Mas onde é que eu estava com a cabeça?

ausência?

Durante sua sessão, eis que chamam Lacan ao telefone. Deci-


dindo atender, Lacan sai do consultório, dizendo a seu
analisante:
- Que isto não impeça você de continuar sua sessão
durante minha ausência.
3(, - AI.ó, L.-. '.AN? - É CLARO QUE NÃO.

belez:i
Ela menciona uma declaração lisonjeira.
Lacan:
- Quem é que ainda está lhe chateando com a beleza?

bom-di:1

O analisante tem um certo número de sessões por dia, cinco


ou seis. Na quarta, Lacan, como se estivesse muito espantado
de vê-lo:
- Puxa! bom-dia, meu caro.

c:1fé quente

Os dois estão em análise com Lacan. Eles se conhecem, fre-


qüentam-se e às vezes se encontram num café próximo à Rue
de Lille, 5.
Um deles, francamente adiantado para a hora de sua sessão ...
espera. O outro acaba de vir de sua sessão com Lacan e deve
voltar para a segunda sessão do dia. Eles batem papo.
Num certo mmnento, o segundo chama o garçom, pede un1
café. Depois, deixando seu pedido, decide ir imediatamente
para sua segunda sessão.
Ele vai, volta e toma seu café.
Quente.
l'llÁTIC:A ANAl.i'l'IC:A 37

casamento

1·:le levou muito tempo para se decidir!


I hl!"ante muitos meses, contara a Lacan sobre seu amor por
"XX, falou dela, de sua relação com ela, de sua vida enfim,
1i 11 ha analisado tudo, o porquê de sua escolha dela, a que seu

110111e re1netia, etc.


1·:le chega à sessão e diz:
- Eu me caso na próxima semana.
l.acan:
- Com quem?

COJJJC(Oll

Seu melhor amigo, chamado ''Jean", estava em análise com


Lacan. Ele termina por procurá-lo. Marcou entrevista por te-
lefone, da.ndo seu nome e seu sobren0111e.
Mas de modo incompleto. Naturalmente tinha dito seu so-
brenome mais habitual e deixado de lado o outro, que - por
um destes curiosos acasos que não param, na análise, de sur-
preender - era: "Dejean".
Chega a hora. do primeiro encontro.
Lacan:
- Você é o XX.X (seu nome) XXX (seu primeiro so-
brenome) Dejean?
Ele não pôde deixar de sorrir. Era claro, de fato, para ele, que
Lacan considerava este "Dejean", justamente ... de Jean.
Lacan, com um olhar, nota o sorriso e replica:
- Bom, então vamos nos entender bern!
38 - Ató, LACAN? - É Cl.AI\O QUE NÃO.

confissão

Ela entra em confidências, decidida a confessar. E Lacan, sem


nenhuma curiosidade, interrompe antes que pudesse fàzê-la.

conflito sobre a próxima sessão

- Quando você volta?


- Segunda, ... segunda-feira próxima ...
- Volte então sexta-feira.
- É que estou cheio de problemas agora: não tenho mais
um tostão. Estou sem trabalho. E pedi que X não me mandas-
se mais nada ...
- Bom, volte sexta-feira e se vire para ter com que 111e
pagar. Até a vista.
Saindo, ele se dá conta: pela primeira vez Lacan lhe disse "até
a vista".
PRÁTICA ANAI.Í ncA 39

conhecimento paranóico

Vendo o dinheiro da sessão, Lacan (estamos nos últimos tem-


pos de sua prática) lhe diz:
- O que é isso?
A intervenção o deixa perplexo ... ao menos até o instante em
que se lembra de que devia a Lacan (há anos) uma soma não
muito grande, mas também não desprezível.
Decide acertar isso na próxima sessão.
Como de hábito, deixa o dinheiro na sala e a secretária vem
para apanhá-lo. Percebendo o maço, ela o pega no momento
em que atravessa a porta:
- Mas você é louco! O que é este dinheiro todo?
- Lacan sabe.

conjm-.1ção?

No tom irritado que é habitualmente o deste tipo de afim1a-


ção, ele diz:
- Puxa! eu sou uma besta.
Lacan:
- Não é porque você diz que não é verdade.
40 -AJ.ú, LAC:.'\N? - É CLARO QUE NÃO.

contesté1ção

Ele é analisante, há algum tempo, de Lacan. Com efeito, acei-


ta as sessões curtas, ao menos até o dia em que ... declara que
não tem muito tempo para associar, que precisa de tempo.
Conseqüentemente, quer que Lacan lhe conceda mais tempo.
Feita esta exigência, espera, certamente, que Lacan o leve gen-
tilmente à porta. Com algo do gênero:
- Be111, n1eu caro, até amanhã.
Mas nada, Lacan não se move, assim esta sessão se prolonga
por um tempo inabitualmente longo.
Só que: o analisante ficou de tal fonna siderado por esta não-
in terrupç:10 que se viu incapaz, durante todo este tempo, de
articular uma só palavra.
Coisa entendida: nunca mais se tratar1, na continuação de sua
análise, de exigir de Lacan um prolongamento do tempo das
sessões.

con tre1 tempo

Em 1969, usava um penteado de três tranças que saem do alto


da cabeça. Lacan demonstra um grande interesse:
- O que é este penteado?
Ela, ligeiramente perturbada, titubeia:
- Sim, sem dúvida significa alguma coisa ... fülica ... ???
Em 1972, eis que as tranças borromeanas desembarcam no
seminário. Ela se diz:
- Falta de sorte!
De fato, agora usa cabelo solto.
PRÁTICA ANALÍTICA 41

conve1:,;,1 de for entre dois analisantes

Dois analisantes se conhecem.. Um deles, 110 bar mais próximo


da Rue de Lille, 5, esperava a hora de sua próxima sessão,
quando viu apontar o outro que, a julgar por seu aspecto ca-
tastrófico, devia exatamente ter acabado de sair de uma peno-
sa sessão. Ama.velmente, lhe oferece sua mesa e manifesta, ao
amigo, inquietação por seu estado.
O outro fez um discurso onde desabafava seu abatimento. Foi
então que teve a idéia de que devia, como diz imediatamente,
retornar - entenda-se: à sua análise. Dito e feito.
O primeiro pem1anece 110 bar. Logo vê o outro voltar, com o
humor completamente mudado, um grande sorriso nos lábios.
Esta mudança, tão espetacular e tão repentina, suscita - claro -
a curiosidade do primeiro. O que se passara? E como o outro,
parece, estava louco para contar, pergunta diretamente:
- E então. O que você disse a ele?
- Que me sentia fodido!
- Sim? E o que ele respondeu a você?
- Ele me disse: "Mas VOCÊ ESTÁ fodido".

Chegando para sua sessão, um analisante oferece a Lacan uma


estatueta de valor.
Lacan pega o presente, pede o dinheiro da sessão, e acompa-
nha o analisante até a porta.
42 -At.ú, LACAN? - É CLARO QUh NÃO.

de cam.1 .. ., mesmo?

- Vim ontem, mas você não pôde me receber, estava de


cama.
- Como?! Mas é claro que eu podia receber você na-
quele momento.

deÍtar

- Sonhei que você me propôs que eu deitasse e eu lhe


dizia:
- Por que isso agora?
Lacan:
- Deite, meu caro.
Pl~ÁTICA ANALÍTICA 43

denegação faz lei

Enfim! enfim se decidira a pedir uma análise a Lacan, a não


mais se contentar com um discípulo - mesmo que dos mais
próximos.
Quando deste primeiro encontro, ele diz por que acabava de
romper com seu primeiro analista, por que lhe era preciso
continuar - e com Lacan. O acolhimento foi caloroso, atento,
sorridente (sobretudo este último traço o surpreendia, em con-
traste com a expressão perpetuamente neutra e piedosamente
protetora de seu primeiro analista).
No final da sessão, Lacan pergunta:
- Como você pensa pagar suas sessões?
Eis que ele ficou muito surpreso com esta pergunta. A coisa
que lhe veio imediatamente à cabeça - ele a diz (não é are-
gra?) - é o caso de P. L. (ele dá o nome), que paga atualmente
cen1 francos por sessão. Acrescenta logo que não tem os mes-
mos rendimentos, que não pode nem pensar em pagar seme-
lhante quantia.
- Bom - conclui Lacan -, hoje você vai pagar cem francos.
Ele mesmo acabava de fixar o preço de suas sessões.

denegação faz lei (2)

Ele constata, a análise lhe é suficiente para se orientar em sua


prática; certamente não há necessidade de uma supervisão.
- Claro, conclui Lacan, a supervisão começa na semana
que vem.
44 - Ai.ó, I.. ACAN? - É CLARO <JUE NÃO.

dcpoú dcpoú

Havia algumas pessoas na biblioteca que às vezes funcionava


como sala de espera. Logo entra um de seus amigos, o Doutor
Martin que, vendo-o, senta-se a seu lado. Eles trocam algu-
mas palavras enquanto, pouco a pouco, a sala se esvazia. Eis
agora os dois sozinhos.
Lacan chega, olha-os, convida o Doutor Martin a entrar em
seu consultório. Depois chega a sua vez.
Mal se deita no divã, é tomado por uma intempestiva e impre-
vista crise de lágrimas. Chora, chora, chora como nunca tinha
chorado, a não ser, talvez, em sua primeira infã.ncia - mas não
se lembra mais. E, assim, não há jeito de articular a mínima
palavra.
Lacan ent:io marca para ele uma sessão na manhã seguinte.
Na manhã seguinte, de fato, ele é capaz de formular qual era a
sua questão: seu filho se chama Martin, como Lacan não igno-
ra, e então, na véspera, Lacm terá (tcri:i?) escolhido fazê-lo
entrar depois daquele que veio depois.

dcs~w:ílúe

Ela fala a Lacau de suas curas precedentes. Muito rápido, ele


lhe responde:
- É de uma desanálise que você precisa.
PRATICA ANALÍTICA 45

dúlét1ó de uma i11tcrvc11çc10

Jesuíta em análise com Lacan, ele faz parte da primeiríssima


geração de alunos. Um dia, na sessão, fala de sua intenção de
deixar a Companhia e se casar.
Lacan fez tudo para dissuadi-lo disso, chegando até a dizer-lhe
que o supereu, no casamento, seria pior que na igreja.
Resultado? O analisante realiza sua decisão, mas de certa ma-
neira: ficou convencido de que a tomara sozinho.

divertir ;i g:ilcr:.1

A primeira vez cm sua vida que foi, na Rue d'Ulm, ao semi-


nário de Lacan, o conferencista falava briosamente sobre adi-
visão harmônica, enquanto a platéia passava da agitação ao
tumulto. Ela ficou maravilhada com tanta fulgurância.
Alguns anos depois, enfim se decide a procurar Lacan para lhe
pedir uma anilise. Ela lhe conta o deslumbramento da primei-
ra vez, na medida em que na época estudava matemática.
Lacan (mansamente):
- É preciso divertir a galera.
4<1 -Ar.ó, LA.CA.N? - É CI.AllO QUE NÃO.

dívid:1

Lacan concordava com as férias, n1as restava111 as sessões a que


faltara.
- Bem! eu vou pagá-las.
- Você me deve cinco sessões.
- Mas de costume só venho duas vezes, portanto ...
- Nada disso, pague-me estas cinco sessões que você
não fez ...
Bamlho de carteira mexida ...
- Você é muito exigente ...
- Eu sou muuuuito [ exigente. treeeesl

doú c.wdid1tos p.11~'1 um div:i

A cena acontece diversas vezes com diversos analisantes, nos


últimos tempos da pr:í.tica de Lacan.
Quando ele manda entrar um analisante em sua sala, já havia
alguém lá, deitado no divã. Com um gesto da mão, Lacan
pede ao intruso (entendamos: aquele que já estava lá) que se
levante para dar lugar ao outro:
- Verei você logo depois.
Um dia, encontrando uma analisante que assim tinha sido ti-
rada do divã, ele lhe diz:
- Eu sabia muito bem que podia pedir isso ... a você!
l'rlATICA ANALÍTICA 47

e agor.1?

l ·:i-la perguntando a Lacan se podia, acerca de um certo caso,


,·111pregar, con10 fizera n1uitos anos antes, nwn outro caso, o
I cn.110 "duplo".

Iz. esposta:
- Naquela época, você não podia se enganar.

éúso

Uma analisante explica longamente a Lacan a situação em que


se encontra agora que se candidatava a um emprego. Fala so-
bre as razões pelas quais este trabalho não lhe convém, justifi-
ca, argumenta e ele, durante toda a sua exposição:
- C'cst ça, c'est ça, c'est ça, sait ça, sais ça sait, s'assez,
sassez, sacé* ...
Ele não cessa de repetir isso.
Passando pela porta, ela o ouve dizer ainda: ele não cessou de
dizer "chega! fassez!l''-
* Lacan vai produzindo variações baseadas em homofonias. (NT)
48 - Au\ LACAN? - É c1.Allo QUt: NÃO.

ele fãl:z de mim

Ele estava praticamente convencido, Lacan falava dele em seu


senúnário.
Esperava então, nesta semana, com mais impaciência que nunca,
o próximo seminário, quando Lacan, recebendo-o para uma
sessão, lhe pergunta, à queima-roupa:
- Diga-me, como você se chama?

ele f:zf:,?

Lacan concorda em que ela não diga uma palavra, mas sua
analisante está longe de admitir a recíproca: exige que ele lhe
fale.
Resposta:
- Se falo, você não suporta e, se não falo, também não.

ele próprio se esqueceu

Depois de ter ficado muito tempo de molho na biblioteca,


acabou concluindo o que estava acontecendo: Lacan simples-
mente o tinha esquecido.
Ele decide levantar-se, depois vai bater à porta do consultório.
Reação de Lacan: dar-lhe um esporro por não se ter manifestado
antes.
PRÁTICA AN.'\l.iTICA 49

cm caso de necessidade

e ) analisante teria deixado o consultório se, neste 111.esmo ins-


1.111tc, Lacan não o tivesse retido.
- Quero lhe deixar o telefone onde você poderá me
,·11contrar durante o fim de semana, em caso de necessidade.
- Em caso de necessidade?
- Sim. Se você tiver necessidade de falar comigo.
( :onclusão, que surgiu quando o analisante estava na rua,
11 nmido com o pequeno papel que Lacan lhe colocou nas mãos.
- Ele sabia que eu ia desabar.
Mas o resultado desta intervenção foi outro. Ao sair desta ses-
s.fo, o an:1lisante tirou uma fotografia numa cabine: ele se re-
conciliava com sua imagem.

encontro

Lacan a um analisante:
- Venha amanhã às onze horas ... menos três minutos!
50 -AI.ó, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

então er,1 isso!

Sim, era uma bela e jovem moça. O cuidado que dedicava a


sua apresentação só se comparava à sua beleza natural.
Em análise com Lacan, ela lhe diz, um dia, de sua intenção de
ir assistir, nesta noite mesma e pela primeira vez em sua vida,
uma reunião na École íi·eudie1111c.
Resposta:
- Proíbo que você apareça lá.

cJTtirc lacmmm cst

Ela lhe reprova uma intervenção precedente.


Lacan:
- Sim, eu entrei bem nessa*.
Advertida, ela ouve o equívoco.
* ]e me suis fõutu ded.ws, também "cu me fodi". (NT)
PRÁTICA ANAI.ÍTICA 51

en-o de ortografia

l ·:lc escreveu a Lacan para lhe pedir uma entrevista; deseja fà-
.-n sua análise com ele.
l ', n1co depois, recebeu a resposta esperada, mas ainda mais.
1 >L' fato, a carta de Lacan tinha o cuidado de precisar onde
I icava, geograficamente, seu consultório na Rue de Lille, 5.
1 ;1can lhe indicava que ele devia se apresentar, no dia e na
lima combinada, "nos fundos l:w fond~·*I do pátio".
l 111ediatamente ele soube: isto custaria caro.
* 11 u timd = nos fündos; :wx fimc/1· = fundos no sentido de investimento
monetário. (NT)

estar ou mio estar cm an:ílisc

1 15. muitos anos ele está em análise com Lacan; talvez mesmo
,11ais que muitos, se se considera o número de sessões sema-
I J;llS.

1)epois da última interrupção devida às férias de verão, telefo-


11a para confinnar a hora de sua próxima sessão.

( aoria o passa para Lacan. Ele se anuncia:


-ÉXXX.
- Sim, e então?
- Bem, liguei para saber quando posso retomar minha
;111álise.
- Porque você está em análise comigo?
52 -AI.ó, LACAN' - É CLARO QU>. NÃO.

este nó, este rogo*

A SNFC está instalando telefones no trem Paris-Lillc.


Ele, mergulhado nos Esciitos, resolve aproveitar a oportuni-
dade. Então telefona para Lacan, do trem:
- Estou lendo seus Escritos. Queria lhe dizer o quanto
aprecio o caráter mallam1eano de sua escrita.
- Então venha me ver!
- Sirn, com prazer. Mas quando?
- Esta noite, às 20.30 h.
- Posso lhe perguntar onde?
- Em Paris, na Rue de Lille, 5.
* Em fr:mcc:s, cc nocud, cc íé:u, homofonia das iniciais SNCr: ccnccdc. (NT)

falo i111agi11:fzio

Ele entra, fumando chamto, na sala de Lacan. Acrescentemos


que não se tratava de um chamto qualquer, mas deste célebre
Davidoff torto que Lacan freqüentemente exibia nesta época
e que se tomou, aos olhos de todos, praticamente seu emble-
rna, até o dos lacanianos.
Lacan se apodera do objeto e o apaga num cinzeiro, dizendo-
lhe:
- Dê-me isto ... , você ficará mais à vontade.
J>JlÂTIC:A ANAI.ÍTIC:A 53

falso nome

I l 111analisante esperto decidiu pregar uma peça em Lacan. Ele


llw telefona com um nome falso:
- Aqui é Jacques Dupont.
- Claro que não, responde Lacan.
I ·. desliga.

1-:le fonnub assim o resultado de sua análise com Lacan:


- Pude enfim experimentar a felicidade de ser vulnerável.

fclicimçõcs +++
/\. analisante não tinha muita certeza de que ela mesma tinha
f :1lado, tendo a impressão de ter usado palavras estranhas a si

11rópria:
- Está realmente muito, muito bem.
Ela já havia recebido este tipo de cumprimentos. Mas, desta
vez, quando se prepara para sair, Lacan barra seu caminho:
- Você está de acordo?
- (dando de ombros) Não sei.
- Pois bem, eu acho que você está muito bem, fique
sabendo.
54 -At.ú. LACAN? - É CI.A!U) QUE NÀ(.l.

feminilidade

Via Lacan muito regulam1ente: uma vez a cada quinze dias.


No entanto, daquela vez, depois que lhe tinha dito ... não sabe
o quê, viu Lacan buscar um calendário e depois consultá-lo
diante dela.
- Bom, desta vez você voltará em vinte e oito dias.
Esclarecendo hoje este bon mot, precisa quais foram :1s conse-
qüências disto para sua prática analítica. Recebe seus pacientes
durante um tempo que não é o dos ortodoxos 45 minutos,
nem o das sessões pontuadas lacanianas. Ela se baseia no calen-
dário que cada um tem em si.

Estamos no final do ano. O analisante:


- Boas férias!
Lacan:
- Porque você vai sair de férias?

fim de éllléÍÍÚc

Ele não sabia - acreditava ...... como pôr um fim a sua análise.
Muitas interrupções ocorreram, mas, então, a cada interrup-
ção, Lacan o chamava; cada vez, certa111ente, pagava a sonia
correspondente às sessões não realizadas.
Ao fim de uma décima sessão de reencontro, Lacan lhe diz:
- Então, é preciso calcular quanto lhe devo.
Pll.Á'J'IC:A ANALÍTl<:A 55

fim de análise (2)

1\ história acontece no último período da prática analítica de


1 .1c:m, uma véspera de Todos os Santos.
-Senhor, não tenho mais nenhum motivo para vir aqui.
- Neste caso, não venha mais.
- É duro deixá-lo!
- Neste caso, volte amanhã.
- Não, amanhã não.
1:oi assim que, inesperado, um bofetão tem lugar como última
n'.·plica.

fàbi:1 de nome próprio

.J.-M Ribcttes, durante sua primeira entrevista com Lacan,


menciona que tinha uma fobia de animais.
Lacan:
- É um fàto: as bestas que seu nome traz não fàzem rir.
56 -ALÔ, l..ACAN? - É CIJ\IU) QUE NÃO.

for,1?

Ela sonhara o seguinte: Lacan recebia seus pacientes na casa


dela e depois, no meio da tarde, tomava um táxi para a Rue de
Lille, 5; ele continuava a atender no táxi, depois em casa.
Ainda aturdida com este sonho, não fora, nesta manhã, à ses-
são.
Cerca de cinco horas da tarde, quando ela própria estava rece-
bendo um paciente, o telefone toca; ela atende; é Gloria:
- Fique na linha. Vou lhe passar Lacan.
Voz de Lacan:
- Eu ponho você porta afora.
E desliga.
Assim que terminada a sessão em curso, liga para Lacan. Glo-
ria atende, tergiversa, recusa passar para Lacan imediatamente,
propõe vagamente um encontro telefônico para o dia seguin-
te. Ela, vivamente irritada, telefona no dia seguinte. Mesma
tergiversação de Gloria. Ela tem1ina por concluir:
-130111, diga a Lacan que estarei na sua porta na hora de
minha próxima sessão.
- Não desligue ...
depois de alguns instantes:
- A que horas?
Ei-la, pois, no dia seguinte, situada no próprio lugar que a
palavra de Lacan lhe tinha designado: na porta de seu consul-
tório.
P11..ATIC:t\ AN1\l.[TICA 57

fi-c1cc1sso do pc1111.cídio

- Enquanto jornalista, suponha que eu queira acabar com


você. Você sabe como eu faria isso?
Mas o analisante mal tendo fommlado uma primeira versão
, lo que seria um parricídio perfeito, Lacan o interrompe:
- Então, você também, você está contra núm?

Gloá.1

Sentado na salinha, espera que Lacan o convide a entrar no


consultório. É seu primeiríssimo encontro, ele ignora os hábi-
tos da casa e, particulam1ente, o nome da pessoa que, alguns
n1omentos antes, o fez entrar.
Um cliente sai da sala, imediatamente seguido por Lacan que,
percebendo, grita:
- Glo1ia!
- Tibi gloii,1,
responde ele imediatamente.

Gloria, ele ignorava, era o nome da secretária de Lacan. Existe uma


variante: algut'm, de fato, ao "Gloria" de Lacan, respondeu um dia: -
ln excclsú Dt'o. E uma outra variante ainda (decididamente!) onde a
réplica teria sido: - G/011~1 tibi domini, que é a verdadeira fómmla
sagrada.
58 -Au), LAcAN? - É c:r.A1~0 ciur. NÃO.

Gl01ic1 (2)

Ela não pára de reclamar de seus muitos quilos a mais, da ine-


ficácia de todos os regimes - aliás, não crê mais neles.
Sabe que o problema está em outro lugar, etc, etc.
Um dia, entretanto, Lacan responde:
- Pergunte a Gloria, ela conhece um regime para ema-
grecer.
Uma vez no corredor, cruza com Gloria ... mais magra ... efeti-
vamente ... ; mas hesita em lhe perguntar qualquer coisa.
É somente fora que o apóstrofo se impõe:
- ... um regime para me azedar*.
* O jogo é entre 11w~i;rir, "emagrecer" e m:11:i;Jir, "amargar", "azedar". (NT)

Gloria (3)

Surpresa! Chegando ao patamar da Rue de Lille, 5, para sua


sessão, vê no capacho uma nota de cinqüenta francos.
Ele se abaixa, apanha a nota e fica um pouco embaraçado. Mas
já tocou a campainha e Gloria abre a porta. Naturalmente, ele
lhe estende a nota.
Pegando-a, ela declara:
- Bem, conheço alguém que teria ficado com ela!
i>ILÍ\TIC:A ANALÍTICA 59

Gloáa (4)
!\ cena poderia acontecer na ausência de analisante(s) teste-
II nmha(s)?
I acan, então, neste dia, tendo quebrado un1 copo em seu con-
\t tltório, chama Gloria para que faça a limpeza. Depois, en-

quanto assistia à operação:


- Mas não pegue estes cacos de vidro com suas mãos!
- De qualquer jeito, não posso pegá-los com meus pés!
Silêncio até o fim do trabalho. Depois, o recolhimento ten11i-
11ado:
- Muito obrigado.

Gloró (.,)

'rendo dado a Lacan uma nota de quinhentos francos para


pagar sua sessão, esperava seu troco. Em vão. Lacan embolsara
o dinheiro e estava ocupado com um outro analisante.
Mas acontece que ele pegara tudo! Não lhe restava mais nada!
Não se resolvia a sair, falava em voz alta do hotel, do trem,
mas sobretudo deste "n1ais nada".
Toda vez que Lacan saía do consultório tentava interceptar
aquele que o ignorava, ou o olhava sem vê-lo.
Ele tennina por se dirigir a Gloria.
Ela:
- Mas o que você quer que eu lhe diga? Ele fez isso
porque tinha suas razões ... ele deve ter suas razões ...
Depois, incisiva:
- Da próxima vez preste mais atenção!
(,O -Ai.,\ LAc :1\N? - É CLA!ll.l QUE NÃO.

go-between?

Médico hindu, ele faz uma pequena análise com Lacan. No


fim deste percurso, ousa perguntar:
- Você diz que uma carta sempre chega a seu destino.
Ora, Althusser diz o contrário: acontece de uma carta não
chegar a seu destinatário. O que você pensa de sua tese, que
ele diz materialista?
Lacan, a se crer neste analisante, refletiu dez bons minutos
antes de responder:
- Althusser não é praticante.

h(ouVL)-sc bem

Terceira entrevista com Lacan. Ele.lhe diz, desta vez:


- Você se (h)ouve bem comigo.
Pela primeira vez, apesar de uma experiência de analisante
com um aluno de Lacan, ela encontra um equívoco na fula do
psicanalista. Enfim, é por bem ouvi-la que ela se h(ouve) bem.
l'H.ÁTICA ANALÍTICA 61

indica~-io de analista

Ela nada sabia da história dos grnpos analíticos. Procurou um


jovem psiquiatra em "fom1ação analítica" no Instituto, algum
conveniado, porque estava então sem recursos. A psicoterapia
chegava a seu fim, ele lhe aconselhou a con1eçar uma análise.
- Procurarei Lacan, como alguns colegas e amigos meus.
- Nem pense nisso! Você vai fantasiar quanto quiser
quando estiver em análise, mas não na busca de seu analista!
E acrescenta:
- Note que ele é muito gentil; você sempre pode ir vê-
lo e pedir conselho sobre a escolha de um ;i.nalista.
Ela acabava de compreender: depois do que acabava de ouvir,
o único analista possível era Lacan.

indúcri~·:io ... fi.,rad:1

Um analisante, no tom de alguém que diz algo tão confiden-


cial quanto importante:
- Descobri, por uma indiscrição, que se escrevia um livro
sobre você!
Lacan:
- Muitos mesmo!
62 - AI.<°), LACAN? - É C:I.ARO QUl-i NÃO.

inscâção n1 EFP
Ela queria inscrever-se na É cole /i-cudienne e fala disso a Lacan.
Nesta mesma noite ele telefona para ela. É uma filha de sua
analisante que atende.
Ele pede seu endereço exato e conclui dizendo à garota:
- Você não é obrigada a dizer que eu telefonei.

interdito

Ela deixa entender a Lacan que tem uma ligação com XXX.
Resposta (dita 1111111 tom seco):
- Proíbo você de se encontrar com ele.
Um silêncio, e depois:
- Você SABE que ele está em a1ülise comigo.

interpretação
Aluna de Lacan e em análise com ele, ela vai participar, en-
quanto membro da École /i-eudienne, dos Júris [Assises] do
passe.
Quando de sua sessão antes desta importante reunião, men-
cionou uma importante crise hemorroidiria que acabava de
lhe acontecer.
Lacan:
- Os assentos [assises]?
PRÃTICA ANALÍTICA 63

invcrs/io da dcmandéz

/\contece que um analisante diz a Lacan algo como:


- Não sou mais eu que estou pedindo, agora é você.
ikcito continuar se você vier a minha casa*.
- Fechado.
I·'. feito.
* (,'/n·z moi admite a tradução por "você entrar na minha". (NT)

únzpç:io do gr:mdc Outro

No fio de suas associações de idéias, acabava de falar a Lacan,


,l'm nem mesmo reparar, tanto a coisa lhe era natural desde
-;ua mais tenra infância vivida em meio a vinhas, de falar a
l .:1can de ... rebentos [dnzgeons].
l.acan:
- O que você diz?
1'rimeiramcnte ficou surpresa com a pergunta e logo algo in-
quieta; ela se lern.brava de que Lacan fizera da palavra
"g,1Jopú1er' um neologismo, signo patognomômico de psico-
se (como todo mundo, desconhecia então que se tratava de
11111 regionalismo que Lacan ignorava);já se via como psicótica ...

- ... rebento, ...


Lacan (aos gritos):
- Gloria.
Entrada de Gloria na sala. Lacan:
- Meus dicionários!
64 - A1ú, L.4.C.4iN? - É CI.ARO QUH NÀO.

isso :1contccc

Ele se deita e, depois de alguns instantes:


- Não tenho nada a dizer. ..
Resposta divertida de Lacan:
- Pois é! Isso acontece! Até amanhã, meu caro.

L1can não contente

Jovem médico indiferente aos debates, querelas, cisões analíti-


cas, que aliás ignora, ele inicialmente foi pedir uma análise
didática no circuito do Instituto.
Ele conta a coisa, quando de sua primeira entrevista com Lacan.
- Como tive que passar um ano no sanatório, eles ter-
minaram por me encaminhar a uni psicanalista psicossomático.
Lacan:
- Ah! não pense que estou contente com tudo isto!

hmcn ttzções

Lacan:
- Gloria, quem entrou?
Gloria:
-Foi X.
Tendo ouvido este nome, Lacan se fan1enta insistentem.ente, ge-
mendo continuamente como se, conta aquele que relatou este
bo11111ot, Gloria o estivesse beliscando ou puxando suas orellias.
PRÁTICA ANAl.iTICA úS

land rover

I Je sonhava sempre com calhambeques e não sabia por quê.


l Jm belo dia, este irritante carro aparece sob a imagem de um
Lmd rover. Neste últim.o sonho ele estava atolado na larn.a e
11:io andava mais que a interpretação deste sonho reiterado.
- O que é um land rover?
1:le, siderado pela estranha pergunta:
- ... ?? ... um carro ... ???
l .acan (desta vez ríspido, muito zangado):
- O que é um land rover?
Sem resposta. Fim de sessão.
Ele só teve um estalo já no trem que o levava a sua casa. Mas sim!
Era um ca1To com tração nas quatro rodas. Ora, ele era etnólogo!

ler e reler

Médica especialista, ela, num certo momento de sua análise


com Lacan, tinha escolhido abandonar sua profissão para se
estabelecer como psicanalista.
Algum tempo depois da realização de sua decisão, anuncia a
seu psicanalista que vai, nesta noite mesma, participar de uma
reunião na École fi-eudÍe1111e. Resposta:
- Não apareça [paraissez] na escola.
Ela ficou complet.amente enlouquecida. Teria errado em se engajar
como havia feito? Tê-lo-ia feito prematuramente? Irn.agina-se
quantas questões não ocupavam agora sua cachola analisante.
Somente seis meses mais tarde lhe veio a idéia. Lacan, neste
dia, lhe tinha dito:
- Não se acomode fparessez] na escola.
66 - Ai.ó, LACAN? - É CI.All(.) QUE NÂD.

língiws

Atravessar o Atlântico, foi-lhe preciso nada menos que isso


para se encontrar neste dia pedindo a Lacan que o tomasse em
análise (ele era latino-americano, o espanhol era sua língua
materna).
Lacan, no final da primeira entrevista:
- Bem, telefonarei p:ira você.
- Mas ... eu estou instalado numa mansarda, nao tenho
telefone ...
Insistência de Lacan que, no entanto, precisa:
- Eu lhe telefonarei daqui a quinze dias.
Passa-se uma se111ana. Depois, uma noite, vem-lhe um sonho:
ele caminha com dificuldade, mas assim mesmo caminha, sus-
tentado por urn:i bengab. No sonho, pensa: "a bengala ll:1
c,111e-, e, L acan.,,, .
E era de fato; decide telefonar uma segunda vez para pedir
uma outr:i entrevista.
PRÁT!Cr\ AN/\LÍTICA 67

lite1~1to ou ps1ón.1lista?

1·I, · tinha ido ver Lacan para dizer-lhe o quanto apreciava sua
, p 1;11idade de homem de letras. Lacan o recebeu, fulou com
,·lt·; depois, no fim da entrevista, pediu-lhe trezentos francos,
·., ,ma não desprezível.
- Caberia também a você me pagar. Você também fa-
l, ,11 muito!
l 11sistência:
- Ao sair você deixará um cheque de trezentos francos
11.1 gaveta da cômoda pequena. Se você voltar, receberei você

11 t'·s vezes por semana e você me pagará trezentos francos por


, .ida vez. Faça os cálculos para saber quanto isto lhe custará
l't>r 1nês.
I ·:le se vai, deixando o cheque no lugar designado e decide
p:fftir em viagem.
11ara a África Central.

mal-estar m1 análise

1)e tempos em tempos, Lacan o recebia durante um tempo


mais longo que aquele, quase habitual, das sessões curtas. Ele
l;1lava destas excepcionais intervenções de Lacan dizendo que,
:1ssim fazendo, Lacan "renovava o mal-estar destes prolonga-
mentos".
68 -Ar.ó, LACAN? - É CI.ARO QUE NÃO.

medicina
Envolvido tanto quanto podia estar com a psicanálise lacaniana,
acabou por considerar que lhe era preciso, custasse o que cus-
tasse, obter seu diploma de médico, até de psiquiatra.
Na próxima entrada na universidade, ei-lo então inscrito no
primeiro ano de medicina.
Ele fala a Lacan de seu empreendimento.
Como resposta, Lacan dobra imediatamente o preço das sessões.
Assim ele se encontra impossibilitado materialmente de pros-
seguir estes famosos estudos.

111uito c.1ro

Não se sabe por que, mas tal era o fato: suas sessões, no entan-
to aceitas antecipadamente como "didáticas" num país vizi-
nho, eram singularmente baratas.
Como o gmpo ao qual pertencia tomou contato com Lacan e
com a École fi:eudienne, ele decidiu encontrar Lacan, mas
"por sua própria conta".
Então teve diversos encontros com Lacan, ao mesmo ten1po,
aliás, continuando sua análise.
Certamente estes encontros eram pagos por um valor que
correspondia a dez vezes o de cada uma de suas sessões.
Aconteceu o que tinha que acontecer: ele quis continuar sua
análise com Lacan.
Motivo dado ao primeiro analista para parar sua análise com.
ele: isso custava muito caro.
i'tlÁTICA ANALiTICA 69

na horc1

·gando um analisante pontualmente à sessão, encontra Lacan


1 · 11(

.1,, volante de seu carro, no pátio da casa.


- Mas você está atrasado!
- Não, absolutamente.
- Então você está adiantado!
- Também não.
l 1111 silêncio ... perturbador. Então o analisante retoma a palavra:
- Lembre-se de que você marcou comigo, hoje, exata-
111cnte nesta hora ... e eu estou na hora.
- Então, já que é assim, volte em 45 minutos.
70 -A1ú, LACAN? - É CI.Al<..O QUE NÃO.

não tcii,1 h1vido sessão

Havia muitas pessoas na sala de espera. Lacan chegou a recebê-


lo, mas mal tinha começado a relatar um sonho ele o inter-
rompeu, fez com que ele pagasse e confirmou a sessão do dia
seguinte.
Ele não deixou de, quando desta sessão seguinte, perguntar-se
sobre a escansão da véspera. Como se deveria interpretá-la?
Depois de que palavra ela ocorreu? Qual era, para ele, a im-
portância desta palavra?
Foi então que Lacan interveio, fazendo-o notar que ... pois
bem, palavra de honra ... havia muitas pessoas que esperavam,
que via muito bem que tinha sido empurrado, ... enfim, que
sua intervenção não queria dizer nada e que esta última pala-
vra da sessão precedente não er:1 algo para que teria querido
atr:1ir sua atenção espcci:1lmcnte ...
Não se pode ter algo de mais su111rcc11dente, e até difícil de
engolir para alguém que, como tantos outros nest:1 época, con-
siderava que tudo o que Lacan fazia ou dizia merecia ser ob-
servado, interpretado, repercutido.
Deve-se crer que Lacan não desconhecia quanto seu desmen-
tido era pouco crível, pois acrescentou a intervenção seguinte:
quando seu analisante pagava a sessão, disse-lhe que ele não a
devia. Já tinha, na véspera, sido paga.
PII..Á rl\.A ANALÍTICA 71

11eologú1110 ou inte1prctt1ç,io

Mais desdenhosamente tratado por Lacan em sua terceira en-


I revista que nas precedentes, ei-lo tendo que esperar. Enfim
rl'cebido, ele não deixa de assinalar a Lacan seu atraso.
- Eu não sou responsivo.
l ·:sta resposta, diz ele, deixou-o no mais completo desamparo.

o a11,1lirnntc tinha raz/io

Ele conta a Lacan o motivo de sua ruptura com seu primeiro


:malista.
A coisa foi a seguinte: tinha trazido um sonho que jogava com
:1 homofonia entre médicli1 !médico]/ mes deux sei11s frneus

dois seiosj. E, nas associações referentes ao sonho, apresentou-


se a figura de um de seus amigos que, antes de ter completado
seus estudos de medicina, engajou-se na sociologia médica.
Apesar do diploma, não podia considerar este amigo como
sendo um médico, à falta de uma prática efetiva da medicina.
Seu primeiro analista então acreditou bom intervir, dizendo-
lhe que não, que seu amigo certamente tinha obtido o direito
de ser chamado de médico. E continuou, afim1ando que isso
bastava, que já era tempo de parar de fazer exigências de "re-
alidade", que a suspeita com que Lacan encarava esta dita re-
'."ilidade tinha os mais deploráveis efeitos (aluno de Lacan, este
psicanalista estava - vê-se - "distanciando-se dele"). Mas o
analisante não estava disposto a se deixar convencer. E esta sessão
descambara num bate-boca, o analista sustentando obstinada-
mente sua tese e o analisante não menos vigorosamente a sua.
Lacan, com um tom ríspido:
- Mas você é que tinha razão.
72 -AI.ô, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

o que wile ,1 palavra?

Na primeira vez em que encontrou Lacan não se tratava, pro-


priamente falando, de um encontro. Tinha onze anos e parti-
cipava, com seus pais, de um retiro na abadia onde se encon-
trava Marc-François Lacan, im1ão de Jacques. Rezava-se em
conjunto por Jacques Lacan cuja alma, lhe tinha sido dito,
estava nas mãos do diabo. Isto a impressionara muito e sua
prece pela ovelha desgarrada era ainda mais intensa. Mas eis
que ... por acaso, n1uitos anos mais tarde, ela se casa com ... um
psicanalista ... , aluno, além disso, do "endiabrado". É preciso
admitir que nada, nesta nova experiência, vinha desmentir o
que primeiramente lhe disseram sobre este Jacques.
Um dia, no entanto, deve ir consultá-lo. Ela se recusa muito
obstinadamente a dizer o qúe a levava nesta direção; acredita-
se quando diz que lhe foi preciso um motivo muito sério para
decidir-se por isso; certamente não era de boa vontade. Mais
exatamente foi invadida por engulhos quando, acabada a con-
sulta, Lacan lhe propôs voltar na terça-feira seguinte. Claro
que não, não voltaria.
Chega então o momento de pagar. Lacan lhe pede uma quan-
tia "enon11e"; ela recusa dizer qual, mas aceita precisar que era
dez vezes maior que o que seu marido cobrava, por cada ses-
são, a seus próprios pacientes. Muito chocada, ela no entanto
é muito orgulhosa para discutir. Já que é isso que ele exige,
pois bem ... ele o terá! Faz o cheque. Pegando o cheque, Lacan
o olha com um ar que ela julga de suspeita. Sua febrilidade
aumenta um furo; então não pode impedir-se de dizer, num
tom glacial:
- Senhor, a palavra de meu marido vale tanto quanto a sua!
PRÁTICA ANALÍTICA 73

onde se vê L1.cc1n fixar o preço das sessões

j(>Vem psiquiatra, chefe de clínica como tinha sido seu mestre


l•ainda colega Lacan, esperou, para retomar sua análise desta
vez com ele, saber o que Lacan dizia sobre a transferência.
-Agora, quero fazer uma análise com você.
- Convide-me para jantar.
Quando no jantar, num grande restaurante parisiense:
- François, isto vai-lhe custar caro!
A conta se eleva, de fato, a oito mil francos (de então).
Alguns dias depois, ele se deitaria no divã de Lacan.
A oito mil francos a sessão.

oposipio

De toda fonna, ele se estava tornando um especialista da pri-


meira entrevista. A cada uma, algo mancava e lhe interditava
continuar com o psicanalista que acabava de encontrar.
Lacan, despedindo-o:
- Enfim, você não busca um analista, mas a análise.
74 -Au\ LACAN? - É CLARO QUE NAO.

ou vai ou racha

Fim de férias, início de setembro, mas nao ainda a volta is


aulas. Lacan lhe diz que a recebe por fàvor, que ainda não
recomeçou suas consultas. Seria então mais caro neste perío-
do. Ela aceita o sacrifício.
Entretanto, seus amigos se divertem. Eles também são atendi-
dos e ... sem suplemento!
Ainda mais. Ela acha que está se iludindo, que ele não aceitar;Í.
mais, na data prevista, o retorno ao preço anterior. Ora, ela
não poderá continuar por aquele preço por todo o ano.
No dia da volta às aulas, paga sem comentários o preço antc-
nor.
Lacan não manifesta nenhuma reação.
PRÁTICA ANALÍTICA 75

papai protesta
l Jm pai acaba de encontrar Lacan a respeito da análise de seu
filho ... com Lacan. Esta análise, a crer nele, não anda. Pior: há
.1gravamento dos sintomas.
Lacan o recebe por três minutos, e depois:
- São quinhentos francos.
- Mas eu não pude dizer-lhe que ...
- São quinhentos francos.
- Mas ... eu ....
Lacan, desta vez claramente decisivo:
- Quinhentos francos.
O pai:

Lacan, virando-se:
- Gloria!
Gloria chega imediatamente. Lacan:
- Receba quinhentos francos deste senhor.
Depois, virando-se para um analisante que esperava na biblioteca:
- Você, venha.

pc1r"1 os b"1stidores

A frase é dita a alguém na saída de uma sessão, proferida em


voz alta. A porta da sala já está aberta. Estas circunstâncias
parecem convidar os que estavam nas duas salas de espera vizi-
nhas a escutar.
- Não escute nunca, está me ouvindo, não escute nunca
as pessoas que lhe falam de experiência!
76 -Aril, UCAN? - É CLARO QUH NÃO.

para se calar
A cena se passa na entrada do consultório de Lacan, no fim de
julho. É contada por uma de suas analisantes que, sentada na
biblioteca esperando ser atendida, ouviu tudo (barulhos e voz
º~·
A porta do consultório foi aberta. Ruídos de passos de Lacan e
de um analisante. Este volta a dizer (o "volta a" se entende por
seu tom) que não retomará as sessões em setembro, que sua
análise temunou naquele instante mesmo.
- Bom, volte em setembro, para se calar.
l'llÁTICA ANAI.ÍTICCA 77

pedido de agr,1decimento

Alguns são excelentes exercendo sobre seu interlocutor, e da


fom1a mais manifesta, mais crua, mais ultrajantemente insis-
tente, toda a pressão em seu poder para obter uma coisinha,
um sinal, mesmo que seja um simples "obrigado". Estes par-
ceiros, pegajosos, suscitam, se não um aborrecimento, ao me-
nos um real embaraço para alguém que tenha sérias razões
para não dar o que pesadamente é exigido.
Era com um tal personagem que Lacan lidava neste dia. Por
algumas palavras trocadas na soleira da porta aberta no fim da
sessão, aquele que, da sala de espera, assistia a esta pequena
arre1netida, conclui que o personagem mandara um certo pre-
sente para Lacan. Que presente? Isto pouco importa.
Importava, entretanto, esta insistência; era preciso a todo cus-
to obter de Lacan uma palavra que teria dito o efeito deste
presente sobre seu destinatário.
Fon1mlada no tom do maior dos reconhecimentos, a resposta
seguinte põe um fim à interminável exigência:
- Não posso lhe dizer - enuncia Lacan - a que ponto
isto me agradou.

perturbada

Irá ceder ao cham1e de uma relação amorosa?


Ela explica a Lacan sua perturbação: o sedutor é o pediatra de
seus filhos. Diz não estar, longe disso, indiferente ...
A resposta a leva a mudar de pediatra:
- Você não tem nenhuma razão para manter uma rela-
ção com alguém que a importuna.
78 -A,ú, LACAN? - É CLAllO QUE NÃO.

pleonasmo
Um traço o fascina muito particulan11ente na prática analítica
que Lacan realiza com ele: às vezes, durante a sessão, Lacan
levanta de sua poltrona e anda pelo consultório. Por que ele se
comporta assim? E em que rn.omento da sessão ele se manifes-
ta desta enigmática fon11a?
Não consegue responder!
Sempre intrigado, decide, enfim, fàzer a pergunta diretamente
a Lacan:
- Em que momento preciso de minha sessão você deci-
de se levantar de sua poltrona?
- No bom momento.

plco11:1smo?
- Como dizer o que se passou com você?
Lacan:
- É isso exatamente, com.o dizer?

porco-esp1m,111a
Ei-lo no divã, trazendo a Lacan um sonho onde se tratava de
um porco-espinho. Depois de algumas elucubrações sobre o
sonho, conclui:
- Primeiro pensei que você fosse o porco-espinho, mas
depois não, não creio.
Lacan (interjeição inicial longamente suspirada):
- Ahhhhhhhhh, graças a Deus!
PRÁTICA ANALÍTICA 71)

prazer

Um analisante de Lacan tem a surpresa de ver seu analista no


público que veio assistir à defesa de sua tese. Ficou ainda mais
t·spantado porque sabia que Lacan, neste horário, recebia uma
,·11om1idade de pessoas.
- Sua presença me agradou muito, dir-lhe-á ele depois.
- Mas era por isso que eu estava lá!

preso 11;1 .1rmad1lh:1

.1 ean 13eaufret, porta-voz conhecido, na França, do pensamen-


to heideggeriano, fica irritado com o silêncio de seu analista;
decide pregar-lhe uma peça:
- Há dois ou três dias, diz a Lacan, estive com Heidegger
cm Fribourg e ele me falou de você.
- O que foi que ele lhe disse?
pergunta logo Lacan.
/\. brincadeira fi.mcionou.
80 - A1.c\ LAC-.AN? - É CI.ARO QUli NÃO.

primára notícú

Aluno de Lacan, ele está, há muitos anos, em análise com o


mestre. Após um ten1po "conveniente", e continuando sua
cura, começou a trabalhar como psicanalista.
Depois de um tempo suplementar, e não menos conveniente,
pareceu-lhe que sua análise tinha terminado.
Ele fala disso a Lacan e, no dia que lhe parece ser o da última
sessão, se levanta do divã dizendo:
- Pois bem, minha análise acabou.
Resposta:
- Mas ela não começou.

pnincira scss/10 com Laca11

Ela pede a Lacan retomar sua análise com ele, seu analista
acaba de morrer, será enterrado naquele dia.
-Quando?
-Agora.
- Você não pretende ir ao enterro?
- (ela, um pouco hesitante) ... sim.
- Você dispõe de um meio de locomoção?
Uma velha 4L a espera, de fato, nas proximidades da Rue de
Lille, 5, então ela responde afim1ativamente.
Depois, dirigindo-se a Gloria:
- Gloria, meu casaco!
Abandonando os clientes que se amontoavam na sala de espe-
ra e na biblioteca, eis Lacan em sua 4L, acompanhando-a ao
enterro de seu ex-psicanalista. Foi assim a primeira sessão com
Lacan.
PRÁTICA ANALÍTICA 8J

pni11e1i-o o quê?
1 >11 umbral da porta, Lacan gerahnente olhava quem estava lá:
, , 1111 um sinal, convidava então aquela ou aquele para entrar em

...-11 consultório. A ordem de chegada, aliás, parcialmente ignora-

, l.1 por Lacan, não detem1inava a da entrada. Isto ele percebera.


1'< idavia, a partir de um certo momento de sua análise, teve
, 111c se render à evidência: Lacan o fazia sempre ser o primeiro.
1 ) que ele assim lhe mostrava? O que queria dele? Certo, ele

.1·,sociava sobre este "o primeiro"; até se lembrou, na sessão,


1<T sido, na classe, o primeiro; acontecia toda vez que tinha

I l·petido o ano anterior! Mas nada mudava: ele continuava a

·,<To primeiro!
Isto chegou ao ponto de, certo dia, ele nem mesmo ter tempo
, lc sentar numa cadeira. Logo chegado, logo atendido - mes-
1110 quando muitas pessoas esperavam.

Neste dia, atravessando a ponte do Carrossel, depois de sua


sessão, a última palavra da coisa lhe vem à cabeça. Seu sobre-
nome era duplo, mas o uso familiar promovera o segundo (a
< irdem de referência é a da inscrição dos dois nomes na cartei-

ra de identidade), considerado mais nobre. Ele se ativera a este


uso, sem jamais questioná-lo.
1)ecide por uma sessão extra, volta para a casa de Lacan onde
é, não se tem nenhuma dúvida, novamente, o primeiro. Con-
ta o que descobriu. Lacan, saindo de seu consultório, fato muito
raro, lhe estende a mão. Era isso então! Ele, sua mulher e sua
descendência usariam então, doravante, este primeiro nome
até então escondido.
A partir deste dia, não é mais o primeiro, como qualquer um,
a não ser excepcionalmente.
82 -Ai.ó, LACAN? - É CLARO QU~ NÃO.

primeiro pagamento

(A história tem mais sabor se se lembra que Lacan declarara


que "o amor é dar o que não se tem"; entretanto ignoramos
se, sobre esta definição, a pessoa de que se trata estava infor-
mada.)
No final desta primeir:1 entrevist:1, Lacan estendeu a mão:
- Você certamente me dará alguma coisa.
Mas ela não tem consigo a soma que ele lhe pede. Então:
- Dê-me o que você tem.

propost:1

Ela e ele estavam à porta, 110 inst:111te de se despedir.


L;ican:
-- Então? ...
Ei-la inteiramente atenta, como contida no suspense do dis-
curso.
- Então quando é que faremos ...
A mesma observação acima, agravada. Além disso, vindo-lhe
imediatamente à cabeça a idéia disto que se diz que se pensa
quando se diz que não se pensa a não ser nisto.
Contando com o pior, ela se atira:
- Fazer o quê?
- Venh:1 anunhã. Faremos a supervisão.
PRÁTICA ANAl.iTJCA 8.)

quan d o ,,pe11111t1r-se
.. '' nao
- e, ,. ''.1utonzar-sc
. ''

Ei-lo em companhia de outros, sentado na biblioteca, espe-


rando que Lacan venha buscá-lo para a sessão. Entretanto, ele
se distingue dentre todos pela presença, a seu lado, de um
enorme cão. Todos suspeitavam, aos frêmitos, aos rugidos e
aos_ movimentos esboçados pelo espantoso animal, que ele se
tornava facilmente feroz.
Lacan aparece à porta. Depois de ter olhado as pessoas presen-
tes, seu olhar se detém no homem com o cão.
Então, com uma voz severa, Lacan rosna:
- Você se permite tudo!
Depois, o homem, seu cão e Lacan se fecham no consultório.
84 - Ar.ô, LACAN? - É CLARO QUE NÃ< l.

qiwndo cem francos se tomam trezentos

1. No :final da primeira entrevista preliminar, Lacan interroga


este analisante sobre seus rendimentos. Ele diz que não é rico
e, amavelmente (dado o valor desta soma nesta época), Lacan
lhe pede 100 francos. Eis que simplesmente a abertura do por-
ta-moedas deixa ostensivamente aparecer três notas de 100
francos.
- Dê-me 300 francos - corrige Lacan -, é o que cobro,
normalmente, por uma primeira sessão.
II. Na segunda sessão, o analisante traz somente 100 francos na
bolsa? No momento de pagar, Lacan pergunta:
- Quanto você me deu da última vez?
- 300 francos.
- Pois bem pague-me a mesma coisa.
III. Muito depois, não podendo continuar a pagar 300 francos
por sessão, o analisante lembra a Lacan estes primeiros aconte-
cimentos. Ele lança esta resposta:
- Você tinha toda razão de me pagar 300 francos. Quando
você volta?
- É impossível para mim continuar assim.
- Pois bem, eu estou te pondo pra fora. Adeus.
PllÁTICJ\ ANALÍTICA 8:

que... que... que...


\utilmente ele notara que Lacan interrompia sua frase - e sus-
Iwndia assim a sessão - toda vez que ela incluía "que" demais
1 ·, mais precisamente ainda, que a intervenção de Lacan se

produzia justamente logo depois do terceiro "que" (caso da


li·ase que acabamos de ler!).
Neste dia, além disso, decidira enfim falar de sua relação com
o dinheiro.
- Bom-dia, doutor. Eu gostaria de lhe fazer uma pergunta.

- Será que isso ... (ele hesita, notando já, apesar dele, um
primeiro "que").
Mas, frustrando desta vez suas previsões, Lacan dá a impressão
de interromper a sessão.
- Não. Escute-me até o fim, doutor... será que isto não
é aborrecido ...

- aborrecido que ...


Eis que os três "que" aí estão!
Mas, frustrando novamente suas previsões, Lacan não corta a
sessão.
- ... que o que recebo todos os meses de XX.X contri-
bua, de certa fom1.a, para pagar minha análise?
- Sim, quando vejo você novamente?
- Na próxima segunda-feira, doutor. É mim?
- Sim, certamente ... certamente o fàto de que você re-
ceba isto é totalmente legítimo.
- Obrigado, doutor.
Muito depois percebe, escrevendo ele mesmo esta sessão, que
havia agradecido.
8(> -AI.ó. LACAN? - É CI.Altn QUt:. NÃO.
------ --- ------------------------- -------

quem e~ paciente?

Carta de Lacan a um analisante: "Eu espero você. Pacicnte-


1nente".

quem endurece?

Ela se sente rígida e desajeitada, pouco à vontade neste corpo.


Lacan é muito gentil com ela.
Encantada, ela lhe confessa um dia:
- (Ju:mdo você me sorri isto me perturba, há uma rigi-
dez em mim que se acentua.
Ele exclama:
- Excelente!
Ela entende então o que acabava de lhe dizer.

quem paga?

Sim, Lacan está de acordo com o término desta análise; mas a


redução concedida do número de sessões não se fará em quais-
quer condições:
- Para que o esforço seja o mesmo de sua parte, você
continuará a me mandar a mesma quantia de quando fazia três
sessões.
PltÁ'l'lCA AN.',,l.í·r·rcA 87

qucsúio resolvida

Aluna de Lacan, ela continua sua análise com ele· e começa a


praticar a análise. Entre suas relações, uma moça também em
análise com Lacan {talvez mesmo a encontrasse is vezes na sala
de espera).
Por diversas vezes, esta pessoa lhe manifestou algum interesse.
Depois as coisas chegam a um ponto em que n:io pode mais
recusar a entrevista que esta mulher se aventurou a lhe pedir.
Ela a recebe então e ouve, meio espantada, uma declaração de
amor. No final da entrevista, lhe pergunta qual é o preço de
suas sessões com Lacan, depois cobra exatamente o dobro.
Tão logo resolvida a questão, telefona a Lacan, dizendo que
acaba de receber uma de suas analisantes. Ela nota, em seu
interlocutor, uma certa surpresa, um en1baraço, talvez n1esmo
um real descontentamento - mas contido. Prosseguindo seu
relato, conclui que a fez pagar o dobro do que ele recebia.
- Bem, isto não acontecerá novamente.
E, de fato, "isto" não aconteceu mais.

1~11va com doçura

Ele, raivoso:
- Você possivelmente pensa que não sou tão inteligente
quanto você?
Lacan, depois de um suspiro como de fim do mundo, e co111
uma desconcertante doçura:
- Quem lhe diz o contrário?
88 - Atú, LJ\C:t\N? - É CLARO QUE NÃO.

roubou-se a bengala [la cannc]

Um analisante de Lacan rouba uma bengala numa loja de


antigüidades próxima à Rue de Lille, 5.
Infonnado, Lacan intervém.
E a bengala foi devolvida.

saber

O analisante:
-Eu não sei ...
Lacan:
- Não vamos nos preocupar, logo saberemos.

s:d:1 de espera

Ele vem a suas sessões com uma regularidade de metrônomo;


parece ter seus hábitos, sempre imperturbável nesta sala de
espera de Lacan.
Ela começou há pouco tempo, chega às vezes correndo, ou-
tras vezes adiantada ...
Lacan entra na sala de espera, olha o tipo e berra, chegando a
sacudir o lustre:
- Isso vai durar muito tempo?
Ela morre de vergonha.
Lacan a olha e, com uma voz muito suave:
- Venha, minha cara ...
P1tATIC:A ANAI.ÍTICA 89

sem fôlego

Sessões e supervisões se multiplicam num ritmo insustentável.


Não tem mais dinheiro, não pode mais aceitar isso; vai reagir,
vai dizer-lhe:
Ela se deita e começa vigorosamente sua sessão:
- Estou chegando ao fim ...
Lacan se inclina sobre ela com um ar deliciado e, com uma voz
de fàlsete:
-Sim!
Muito tempo depois ela aind'l conta isto com um certo encanta-
n1ento.

scmblwte?

Seu analisante estava muito surpreso: desde que tinha anunci-


ado a dissolução da École fi-eudiennede Paris, Lacan não atendia
mais, de manhã cedo, com roupas descuidadas (um roupão
bastante usado), mas, pelo contrário, com um terno novo e
pomposo.
<JO -A1ú, LACAN? - Ú c:1.AllO QUE NAn.

scssSo de se111i11.i11ó, sessão de :111:ílúc

Neste dia Lacan convidou, para participar de seu seminário, o


senhor Caquot, grande professor da universidade. Este, cum-
prindo seu papel, mostra da maneira mais indiscutível a que
ponto o método e as afirmações de Sellin são inadequadas e
suas conclusões, erradas.
Ora, Freud decisivamente apoiou-se em Sellin para seu últi-
mo trabalho sobre Moisés!
Lacan diz algumas palavras. Fim do seminário.
Há apenas o tempo de comer um sanduíche antes de estar no
divã de Lacan, onde abre, um pouco hesitante, o bico:
- Quanto mais eu escutava Caquot, mais tinha a im-
pressão de que, apoiando-se em Sellin, Freud estava com a r:izão.
- Com certeza!

scssJo por scssSo

Lacan, ao sair de uma sessão e com um largo sorriso:


- Te daria prazer. .. (grande pausa do discurso) voltar
esta tarde?
O analis::mte (rivalizando em espirituosicbde com seu analista):
- Prazer não é exatamente o termo.
Lacan, de cara fechada e num tom raivoso:
- Então venha!
O analisante, de fato, retoma.
Não sem ter percebido que esta sessão da tarde, não prevista,
já tinha acontecido.
PRÁTICA ANAl.iTICA 1) 1
·-----------·-----·----

sessões curt:1s

1·:b pergunta a Lacan:


- Por que você me atende por tão pouco tempo?
- Para que isso seja mais sólido.

súnbólico

Uma pesso:i muito rica acaba de pedir uma análise a Lacan.


Con10 sempre acontece, chega o momento de fixar o preço
da sessão :.malítica. O fulano interroga Lacan sobre isso, não se
sabe se inquieto, divertido, ou simplesmente interessado na
resposta, 111as, em todo caso, sempre tendo como fundo dispor
de muito dinheiro para nunca poder (se) pagar o que quer que
seJa.
Lacan:
- Por cada sessão, você pagará um franco simbólico.

sobre o bom uso do esquema L

Ele viu em sonho o esquema L [schém:i LJ.


Lacan:
- Na minha casa [chez moi*l
* Chez moi também pode signific;ir "estar na m.inha". (NT)
92 -A1.ú, LA':AN? - É CLARO QUE NÃO.

sobre o eu [11101]

Em pleno desamparo, ela diz a Lacan que não tem mais eu.
- Pois bem, o que lhe falta?

sonh.1r conta?

O analisante:
- Sonhei que ...
Lacan, interrompendo-o:
- Muito bem, meu caro, até amanhã.

suicídio

Ele conta em sessão que seu amigo X, psicanalista, a quem,


além disso, devia estar em análise com Lacan, acaba de se sui-
cidar. Continuando a amarrar e desamarrar fios de cores dife-
rentes, Lacan parece imperturbável. O analisante explode:
- É assim que você reage?
- O que mais você queria que ele fizesse?

suspensão d1 re,1lidadc

O analisante:
- Minha avó era muito bonita ...
Lacan (que certamente nunca conheceu a avó em questão):
- Certamente.
PRÁTICA ANALÍTICA 93

te11~1 sido um piiv1légio?

Fom1Lilando a Lacan sua demanda de análise, ele declara, não


sem antecipar algum efeito de aprovação de seu interlocutor:
- Acabo de deixar um psicanalista do Instituto!
- Eu também venho do Instituto.

t1~1balho de parto

Sua barriga está muito grande, a gravidez chega ao fim.


Lacan, no seu último sonho, passa-lhe uma descompostura:
- Ah! você e seu complexo de Édipo!
O sonho prossegue assim: ele folheia um livro; trata-se das
páginas 115 ou 1.05.
Ela tem, percebe-se, a intenção de contar seu sonho e a pri-
meira associação, que a fez rir: seu pai nasceu no dia 15.
Vendo-a, neste dia ainda e sempre, na sala de espera, Gloria
exclama:
- Oh! você ainda está aí?
Ela dá à luz nesta mesma noite.
Ú dia 15, lü.05 h.
')4 -Ai.ó, f.ACAN? - Í-'. CLARO l}UI: NÃO.

transcriç/io

Como sua função de médica de hospital punha uma secretária


a sua disposição, ela dava a esta fitas gravadas do seminário de
Lacan, para que as transcrevesse.
Muit1s vezes, quando de suas sessões com Lacan, teve a opor-
tunidade de notar seu grande interesse por este trabalho. Ele
não deixava de lhe pedir as folhas datilografadas, ou ainda de
lhe perguntar sobre o andamento do trabalho.
Um dia, quando de uma sessão, ele lhe diz i queima-roupa:
- Então ... como vai Lewis Canoll?
Esta pergunta não tinha nenhuma relação claramente
imaginável com o que ela acabava de dizer-lhe; então ficou
aturdida.
Mais tarde, se lembrou de que ele tinha falado de Alice quan-
do de seu último seminário.
Corre para ver rn11:1 cópia da transcriçifo que tinha dado a
Lacan. Sua secretária tinha introduzido um curioso monstro
na passagem que falava de Alice; este monstro se chamava, oh!
jé)ias da transliteração: "um pequeno de um pequeno*".
----·-----····-··

* Em fr.mcÊs, uu pé·tit d'uu pctit = Humpty-Dumpty. (NT)

tr:111sfcrêncú

O analisante:
- Você me faz pensar em faqui, um nomej.
Lacan:
- Outra vez!
i'RÁTICA ANALÍTI< :A 95

uma p,1lzvra ,? 111,1ú

Assim que deitado no divã de Lacan, eis que ele diz:


- Finalmente ...
- Bem, meu caro, quando vejo você de novo?

vcrbon1gi:1

Quando de uma reunião da SPP, afinna-se que Lacan "sofria


de verborragia". Lacan não estava lá mas, como é de praxe,
ouviu falar; all'm disso, por um analisante.
- Quem, pergunta ele, falou assim?
O analisante se recusa a "entregar" os non1es, mas faz mna
exceção que esburaca o muro desta recusa.
Resposta:
-· Vindo dele, isso não me espanta.
96 - Au), LACAN? - É CLAll.O QUli NÀ<1.

vidêncú

Na véspera de um de seus exames de medicina, ele diz a Lacan


na sessão:
- Puxa, que noite!
Evocava assim, não sem ênfàse, sua noite de trabalho? Ou de
insônia, motivada por sua preocupação com o exame?
De toda fonna, Lacan logo replicou:
-Leucemia?
Ele decide preparar a questão "leucemia".
No dia seguinte, na sala de exame, inquietação ...
Pois bem, não! Não é leucemia que cai.
Mas logo se percebe que há erro: vai ser examinado numa
outra sala; e lá, t:1to extraordinário, lhe é pedido exatamente
"tratar" da leucemia!
O que ele fez. Brilhantemente.
Saída do exame. Ele vai a sua sessão. Com esta incrível ques-
tão: como Lacan pôde saber?
Resposta:
- É pura questão de lógica*.
* Lógica do significante: noite branc,1 == leukos == leucemia'!

zelo

Lacan, depois de lhe deixar contar, num tom exaltado, tal ato
falho deste analisante:
- Enfim, isto não tem. nenhuma importância.
l'RÂ"llC:.'\ ANAI.ÍTIC.'\ fJ7

zcn-an:ílisc

flor iniciativa de Lacan, sessões de análise e de supervisão se


multiplicavam; chegaram a atingir a marca de uma sessão de
.111álise e uma supervisão por dia.
'l 'udo ia muito bem até o momento em que ele fez suas con-
1;1s. Não, decididamente, não podia continuar assim! Então
I orna a iniciativa de dizer a seu analista que, no que dizia res-
peito à análise, tudo be111, continuava, mas que não podia 111ais,
financeiramente, assumir as supervisões.
Chega a hora da próxima supervisão, que estava decidido a
recusar. Mas Lacan não queria saber disso; e, como ele resistiu,
recebeu como resposta um murro no tórax, adornado por um
'' cara babaquinha", resmungado de fato, entretanto audível.
Voltando para casa, telefonema de Lacan, um Lacan muito
muito muito gentil. Ele lhe diz para vir a sua próxima sessão,
que isto ... , que aquilo ... , enfim, lhe passa Gloria, que ia orga-
nizar tudo.
No dia seguinte, sessão de análise, depois supervisão. No ou-
tro dia, análise. No momento da supervisão, reitera sua recusa,
dizendo a Lacan que se levantasse a mão para ele, pois bem, ia
rodar a baiana!
Ele acabava de decidir, neste momento, que análise e supervi-
são, para ele, tinham terminado.
Não esperava, entretanto, uma vez tendo descido a escada e
estando no cotTedor da casa, ver abrir-se a janela do consultó-
rio de seu analista, este aparecer e jogar em sua direção um
vaso de flores, gritando:
- Cara babaquinha, cara babaquinha.
Apresentação de doentes
O Uospital S:,inre-Anne: a entrada principal e a capela.
A1•1u~~ENTA<;Ão 1)l: POl:N 11:s I OI

,1 um transcxual

- Escuta aqui, meu velho, você assim mesmo tem barba


no queixo e nada pode fazer quanto a isso.

:zdvcràdo

Lacan dá autorização para sair à doente que acaba de entrar:


- Adeus, minha criança. Você vai encontrar. .. Só fique
advertida de que seri capaz, em certos momentos, de tomar
alhos por bugalhos.
- Sim, certamente.

conzp:whciros

- Mas quem são estas pessoas?


Pergunta, inquieto, o rapaz que Lacan apresentava neste dia.
Resposta de Lacan, bonachão, quase trocista, sorrindo:
- São todos companheiros!
102 -Au\ LAC.'\N? - Í~ ctAJt.() <.JUE NÃO.

culpc1bilidade

Depois que a doente sai, começa uma discussão entre Lacan e


o médico que o consultou a respeito deste caso.
A doente está se divorciando: o médico viu o marido e trans-
mite seu sentimento:
- Ele se sente culpado. Toma todos os erros para si.
Aceitou tudo dos advogados.
Lacan:
- Ele se sente muito culpado, ... quer dizer que decidiu se
mandar.

Clll-:1

O doente:
Eu sou um caso de psicotia? Eu tomei consciência
disso.
Lacan:
- Você é, evidentemente, um homem feliz.
Depois, tendo o doente saído da sala:
- É um homem feliz; está curado. Ele me parece acredi-
tar que está curado. Isto me parece uma idéia das mais perigosas.
A1•RESENTAÇÀ<l l>E l>OENl'ES 103

dar os últimos retoques

Lacan:
- Você tem o sentimento de que este pedido de divór-
cio lhe foi inspirado por...
A doente:
- Não é exatamente assim.
Lacan:
- ... por algum outro?
A doente:
- Não é exatamente assim.
Lacan (um tantinho irritado):
- Então dê os últimos retoques!

é simples
A um doente que declara que seus convidados ouvem os maus
pensamentos que lhe vêm a respeito deles:
- Você assim mesmo deve perceber um pouco que, se
você pensa que os outros pensam que você pensa mal sobre eles,
isto talvez seja simplesmente pelo fato de que você pense mal.

ele s,1bc?

O doente:
- Agora eu sou eu mesmo, sei do que gosto e do que
não gosto.
Lacan (muito surpreso):
- Você sabe isso?
104 -A1.ú, Lo\CAN? - É Cl..J\IUl (JUE NAn.

cncor,y:1111ento

A doente:
- Amo minha filha.
Lacan:
- Sim, certamente!. .. Digo "certamente" para encor;~á-
la a me falar disso.

engrenagem

O doente conta sua experiência de uma relação sexual:


- Fui obrigado. Eu estava em seus braços; ela estava cm
meus braços. É uma engrenagem, a gente é obrigado a fazê-la
andar. Eu não podia repeli-la, então fui até o fim.
Lacan:
- Quem fazia a engrenagem rodar? Era ela ou você?

cscíndalo
Jovem psiquiatra latino-americano, ei-lo em Paris, um dos pólos
que considera como mais decisivos da psiquiatria moderna.
Ele trabalha no santo dos santos, o hospital Sainte-Anne. É lá
que ele ouve que um certo Jacques Lacan deve brevemente
vir fazer uma apresentação de doentes. Pergunta se pode assis-
ti-la; dizem-lhe que sim.
Ele ficou, propriamente fulando, indignado, porque, durante
toda esta apresentação, Lacan não parou de bocejar.
Acrescentemos que não se prestava para apaziguar o escândalo
que o habitava o que aconteceu no final da apresentação: Lacan
deixou a sala sem dizer uma palavra.
A1•RESEN"l"AÇÂl> l">E l>OHN"J"l:S 105

esquizofi-ênico

A 11 de março de 1977, Lacan foi levado, acontecimento


raríssimo, a fazer um diagnóstico de esquizofrenia.
O doente:
- ... mas é preciso englobar tudo. Eu sou também ani-
mal... em transição ... não ter nenhum medo da morte. O erro
não vem de nós. Se meu guru é falso, não, não pode ser fàlso,
eu creio nele.
Lacan:
- Por que este "eu creio" é tão importante para você?
Seu "eu creio" serve para dizer "eu". Seu "eu creio" serve
para compensar o efeito medicamentoso; há todo o peso do
efeito medicamentoso.
Depois, após algumas réplicas do doente e de sua saída:
- Eu creio que é um esquizofrênico.

gentil mam:ic

Lacan:
- Como ela era?
A doente:
- Gentil.
Lacan:
- Quer dizer, cheia de boas intenções ...
A doente:
- ... que ela podia não realizar. Isto acontecia.
Lacan:
- Alguém do seu tipo então.
10(, -A,ú, LA<:AN? - É CI.Al\<1 QUI·. NÁO.

hipnose

Lacan:
- Em suma, o que vocês aprenderam é que o hipnotis-
mo existe.
O doente:
- Claro que existe! Eu vou explicar a você o que é. É
quando uma criança é mal criada por seu pai, está sob a influ-
ência de seu pai, dos amigos de seu pai. O hipnotismo é re-
produzir todas as babaquices de seu pai. É isto o hipnotismo, é
a influência. Aliás, Freud fala disso nos seus escritos.
Lacan:
- Sim, é isso.

indic.1ç:10 de .walúta

Começa uma discussão depois que a doente sai. A evocação


do diagnóstico de histeria traz a questão de uma possível análise.
Uma voz se levanta na sala:
- Mas quem lhe indicar?
Com um amplo gesto de braço, Lacan aponta o auditório e,
sorrindo, observa:
- Psicanalistas, existem aos montes*.
E logo designa um.
*escrita fonética
[Em francês, il y en .1 .i l.?pel. Á 1.7 pelle = aos montes; :i l'.1ppel = ao alcance das
mãos. (NT)]
Al'RESENl"AÇÀ<.'l DE l>t>f.N'l'l:S 107

Lac,w diferente dele mesmo

Uma doente um pouco infom1ada:


- De qualquer maneira, Jacques Lacan ou qualquer ou-
tro, isto não tem importância.
Lacan:
- O que dá no mesmo.

111.111do e mulher

Para uma mulher que lhe dizia que seu marido tinha a mesma
profissão que ela:
- Vocês não trabalham no mesmo lugar, pelo menos?

111.1Iido tomado

A doente:
- Não se deve pensar em alguém que tomou seu rnari-
do.
Lacan:
No que ele foi tomado? Ele não foi toma.do! Um
marido, isto não se toma assim. Ele não foi tomado; ela não o
faz fazer tudo o que ela quer!
A doente:
- Foi o tem10 que ela usou: ela tomou o homem, n;'io
tomou o marido. É isto, a frase me veio.
108 -A1.o. LACAN? -É CI.AlU) l)Ui: NAo.

JJJCSJJlO c?SSllll

A apresentação se aproxima de seu fim. Lacan:


- Bom, tentaremos ver com ...
A doente:
- XXX (o nome de seu médico).
Lacan:
- Com este XXX que cuida tão bem de você e em
quem você deve ter, mesmo assim, toda a confiança; vamos
agora fular com ele.

m 01~'1 lid:1 de

Conclusão de uma apresentação:


- Ser psicótico é acreditar-se uma neurose.

nos limites do saber

Uma questão, há muito tempo, preocupava muito este doen-


te: como o pensamento se formula, interrogava ele, a partir de
interações neurônicas?
Lacan:
- Mas você sabe que não sabemos disso mais que você.
Al'IU'.Sl~NTAC,:ÃO 1)E DOENTES 1(}()

ordem

Ela é dada a um doente, no início de uma apresentação:


- Eu lhe deixo a palavra. Encarregue-se de dizer a ver-
dade. É sem esperança; nunca se chega a dizer a verdade. Mas,
se você fizer um esforço, não será tão mau.

os eleitos perdoam

Como se definia o público da apresentação de doentes? Que


traço distinguia os eleitos?
No final c.h t:1rde, Lacan respondeu:
- Aqui participam os que podem me perdoar.

pal:1vr:1 imposta

Ao doente apresentado em 13 de fevereiro de 1976:


- O que é que você chama a palavra que você diz ser a
"palavra imposta"?
Depois, quatro dias mais tarde, no seminá1io:
- Como é que não sentimos, todos, que as palavras de
que dependemos nos são, de certa forma, impostas?
110 - Atú, LACAN? - Ú Cf.ARO QUE N.-\0.
------ ··--------·

prcscá~·:io no sentido certo

O doente desenvolveu ;1111plamente como, pen1unenteme11-


te, se sentia seguido.
Est;1mos agor;1 no fim da apresentação, que Lacan termina di-
zendo a seu interlocutor, muito gentilmente:
- Bom. Vamos agora indicar-lhe alguém que v;1i segui-lo.

quem dú-á?

A doente:
- A voz não é uma voz estranha; tenho a impressão de
me ouvir; ela fica atrás de mim, na minha altura .
.Lacan:
--- Você tem a impressão de se ouvir; isto quer dizer que
ela fala?
A doente:
- Sim .
.Lacan:
-Ela fala como? Ela lhe impede de pronunciar palavras?
A doente:
- Sim... como se ela me impedisse de falar ... não sei como
dizer...
Lacan:
-Tente. Quem dirá se não for você?
APR ESt-.NTAÇÃl> DE DOENl"ES 111

son1r

Um doente intrigado, até um pouco escandalizado:


- Por que você está sorrindo?
Lacan:
- Não há razão para que eu não sorria.

tclcp:1ti:z

Lacan interroga um doente que se apresenta como "telepata-


emissor". Corno ele sabe que o outro recebe suas mensagens?
- Eu, por exemplo, eu recebi?
- Não creio.
-Nfo?
-Não.
Manifestamente, esta decepção não convém a Lacan, aborre-
ce-o, talvez mesmo o irrite.
Ele formula imediatamente a razão de sua insatisfação, e a seu
próprio interlocutor:
- Bom, porque tudo prova que eu estava boiando nas
perguntas que lhe fiz.
______
112 - Au·,,
,_.,
LA1 :AN? -
___ .....
Í:: CI.All.O lJUE NAn.
·--------------·-----··--·-·-..·----------··· - ··-··-··--·--------

topologú ... ou gcomctúa?

Há muito tempo Lacan já se apoiava na escrita topológica, a


qual, sabe-se, é de outra ordem que a geometria.
Na época do borrorneano, durante uma apresentação de do-
entes, tratou-se de círculo, isto - é claro - por parte do doen-
te. Este se definia, de fato, como centro solitJnó de um circu-
lo .1·0/it:írio, o que não o in1pedia de tambt·rn dizer que de não
tinha limites.
Lacan lhe frz um aparte sobre esta contradição:
- Um círculo tem bordas!
Resposta do doente:
- O senhor pensa em termos geométricos.

1 m 1 t!JJO como cu

Nos anos 70, uni cartel da É'colc Ji-t'udicnne transcrevia, estu-


dava, comentava as apresentações de doentes.
Tratava-se, neste dia, de um delírio cosmológico de tipo
parafrênico. Quando da apresentação, o médico do hospital
tiniu indicado que tinha em mãos um importante escrito des-
te doente.
- Gostaria muito, disse Lacan, de ler tudo isso.
Lacan estava presente, excepcionalmente, quando da reunião
do cartel que discutia esta apresentação; e o médico então
aproveita para lhe dar os documentos em questão. Enquanto a
discussão acontecia, Lacan folheava o caderno, parecendo ler
algumas frases aqui e ali. Depois, com o gesto de devolvê-lo:
-Bem, sim, é um tipo como eu, um dogmático.
Prática da supervisão
i'RÁTICA DA SUl'El<VISÁ<> 115

,1 cc111 fhmcos o "re"

Um de seus amigos está em supervisão com Lacan e ei-la de-


cidida a também procurá-lo. Combinado. Ela paga 100 fran-
cos, uma sorna significativa para ela.
Quando de uma sessão de supervisão, Lacan lhe diz:
- Leia então "Sobre uma questão preliminar".
A intervenção a srnvreende, a ponto de ela fàlar sobre isso
com seu amigo. Ele pagava 200 francos. Ora, para ele, Lacan
dissera:
- Releia então "Sobre uma questão preliminar".
Conclusão comum: custava 100 francos o "re".

:1gr:1d:ir

A roupa, entretanto escolhida por ela nesta manhã, pensando


bem, não lhe convinha. No momento de partir para sua su-
pervisão com Lacan, se olha no espelho, hesita ... Pois bem,
não, não mudará de roupa!
Entretanto, manterá seu casaco cuidadosamente fechado. Sen-
tada na pontinha da pequena poltrona, escrupulosamente evi-
ta todo 111ovimento inte111pestivo.
Lacan:
- Você não vai tirar seu casaco?
-N ... nnnnão ...
- Sua roupa não lhe agrada?
1!6 -Alú, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

analúm; b.walizar

Sua paciente lhe contava seus devaneios, antes de domur: ca-


sava com um ator célebre, tinha um filho dele ...
Lacan:
- Você avisou a ela que este tipo de devaneio é muito
comum?

antes partir que terminar

Sua posição numa muito eminente instituição religiosa lhe dava


acesso a uma certa biblioteca de onde tirava livros raros que
Lacan - quando das sessões de supervisão - lhe dizia desejar
consultar.
Um dia, depois de um novo pedido deste tipo, ele responde:
- O senhor sabe muito bem que pode me pedir qual-
quer coisa!
Depois paga e sai.
Logo que do outro lado da porta, pára, bate na testa: "Mas o
que foi que eu disse?!".
Decidiu ali mesmo que poria um fim a sua supervisão.
PRÁTICA DA SUPERVISÃO 117

certo, mas o mal estava frito

A primeira coisa que lhe vem à cabeça dizer a Lacan, a respei-


to deste analisante, é cortante, é o mínimo que se pode dizer:
- Trata-se de alguém (aqui os sinais de irritação que o
habitam não ficam somente nas palavras) que me enche o saco!
Lacan (tom. doce, mas afirmativo):
- Se não lhe convém tomar alguém em análise ... , (um
breve mas marcado silêncio), pois bem ... , (outro silêncio do
mesmo teor) não o tome.

co11clwâo

Dois psicanalistas conversam; ambos estão em supervisão com


Lacan.
- Eu lhe fàlei de um maníaco-depressivo. Ele me disse:
- "Não o tome em análise!".
- Sim? Você imagina que eu lhe apresentei um caso de
paranóia, o que ele concluiu dizendo: "Ponha-o porta afora!".
Generalização conclusiva (e errada, cada um esquecendo que
é a ele que Lacan se dirige): segundo Lacan, a maníaco-
depressiva e a paranóia são contra-indicações para a psicanálise.
118 - Ate">, LACAN? - I~ Cl.,\RO QUE NÃO.

dcscobmcnto [décollemcntl

Ele menciona um sonho de mn de seus analisantes; trata-se,


entre outros elementos, de um avião que decola [décollel e da
visão.
Lacan pergunta:
-· Quem, no seu meio, tem um descolamento de retina?
Vem alguns dias depois o estupor, quando lhe vem à cabeça
que era no meio dele que alguém sofria de um tal descolamento.

donnir n1 scss,io

(variação sobre a questão das sessões pontuadas)


Conrad Stein falava a Lacan, neste dia, sobre uma paciente
que dormia no divã. Lacan então se mostra muito surpreso:
ele não sabia que isto podia acontecer!

ela e ele

Ele conta a Lacan um futo, a seus olhos inteiramente extraor-


dinário: durante uma mesma noite, sua paciente e ele tiveram
exatamente o 1nesn10 sonho!
Resposta:
- Certo, mas é ela quem sonha.
PRÁTICA l)A. SUPER VISÁü 1] 9

fim de análise

A supervisão devia rapidamente confirmar que se tratava de


um caso de fetichismo. A angústia do analista resultava de que
era colocado em posição de puro olhar.
O analisante, quanto a si, certamente não pedia ser "curado"
de sua prática fetichista; simplesmente queria que ela não pre-
valecesse em relação a sua vida profissional, o que era o caso e
a razão pela qual tinha vindo consultá-lo.
As coisas, no correr do tempo, melhoraran1 tanto que este
paciente encerrou o tratamento.
O analista sabia que o objetivo terapêutico do paciente fora
atingido, mas, no que se referia a uma análise propriamente
dita ... nem pensar. Tratou-se de uma boa psicoterapia.
Daí uma certa consternação, que se tomou sensível na forma
como relatou a Lacan a intem1pção do tratamento.
Resposta:
- Não se aborreça, este personagem era inanalisável.

flagrante de dormir

Ei-lo em supervisão contando ... Deus sabe o quê. Num certo


momento olha Lacan, percebe que ele está dom1indo. Esco-
lhe calar-se.
Depois de alguns instantes deste silêncio inabitual, Lacan des-
perta, depois, com um olho aberto e num tom singularmente
imperativo, dadas as circunstâncias:
- Continue!
120 -ALÔ, LAC:AN? - É C:1.AllO QUE NÃO.

ganho! mas. a q~re preço?

Ei-lo hoje presidente de uma seção local da I11tematio11al


psychoa11alyt1ál association. Isto, no entanto, não quer dizer
que não tenha passado por Lacan. Foi para uma supervisão.
Ele julgava que Lacan não lhe concedia muito tempo. E então
rompeu com Lacan e dirigiu-se a P., didata patenteado da
Société psyclwmllytique de P.1rú, onde os 45 minutos estavam
garantidos.
Mas ... não era bobo! Rapidamente percebeu que 45 minutos
com P. não valiam alguns instantes com Lacan.
Então, entrou em contato com Lacan. Queria retomar sua
supervisão com ele, mas com uma condição: que ele se com-
prometesse a recebê-lo por 45 minutos.
Fechado.
Ele não devia tardar a notar, entretanto, que estes minutos
foram certa1nente "ganhos", mas às expensas de um amigo
cuja sessão vinha logo depois da sua.

histeria

Um jovem psiquiatra-psicanalista em supervisão apresenta a


Lacan o material trazido por uma pessoa que recentemente
viera consultá-lo. Ele se pergunta: trata-se de um caso de psi-
cose ou de histeria?
E conclui:
- Para temunar, penso que se trata apenas de uma rusteria.
Réplica de Lacan:
- Ah, porque você pensa que a rusteria é menos grave?
PRÁTICA DA SUl'EllVISÀO 121

imitaçcio e confiança moderada

Este analisante, diz ele em supervisão, sabe tomar-se insupor-


tável e ele, seguindo o exemplo de Lacan, deu livre curso a
seu afeto.
Lacan:
- De que você se autoriza para sustentar semelhante
posição?
Em seguida, depois das explicações dadas num tom de exame
oral:
- Eu confio em você para a análise deste sujeito*.
* S1!fct = sujeito, assunto. (NT)

inco111pat1b1Jid:1dc

Enquanto a pessoa em supervisão lhe fala, Lacan beberica um


whi~ky.
Em seguida, após alguns instantes:
- Eu sei, você gostaria muito de um copo ... , mas ... whisky
with whisky, isto não seria mais uma supervisão.
J 22 - A1ú, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

liçio de leitm~1 litc1~1l

Uma jovem neurótica lhe disse:


- Minha mãe teve quatro filhos comigo.
O que ela comenta dizendo a Lacan que sua paciente talvez
quisesse dizer que se contava entre os quatro filhos de sua mãe
(em seu seminário, Lacan tinha sublinhado a importância de
tais contagens, tendo principalmente comentado o chiste in-
funtil: "Tenho três irmãos, Pierre, Paul e eu").
É então vivamente repreendida:
- Como (pelo tom deste "como" se entende a incredu-
lidade, o ceticismo e já a reprovação)?
E Lacan prossegue:
- Ela disse: sua mãe teve quatro filhos com ela!
PltÁTICA DA SUPEll VISÃO 123

gr,:111a e beija-mão

Ele está cm análise com Lacan. Ela, sua mulher, com um ana-
lista que se poderia acreditar, naquela época, ser um de seus
fiéis discípulos. Ela decide, num certo momento de sua análi-
se, começar uma supervisão e escolhe ... Lacan.
Depois de um certo número de sessões de supervisão que a
história não revela, decide suspender esta supervisão por uma
razão que a história também não revela. Informa Lacan disso,
depois junta o ato a suas palavras, parando de vir às sessões.
Mas Lacan não entende assim. Atormenta o marido, toman-
do-o como mensageiro; pedindo-lhe dizer à sua esposa que a
espera na hora do que continua a ser, para ele, sua própria
sessão.
As coisas assim duram mn certo tempo. Aumenta, então, o
número de supervisões "não-realizadas" e a "dívida" da espo-
sa para com Lacan. "Uma grana fim1e", diz ela.
Defrontada com a insistência de Lacan via marido, -resolve lhe
confirn1ar sua decisão de suspender a supervisão. Previdente,
prepara a quantia em questão.
Mas as coisas não se passaram exatamente como previra; per-
cebendo-a na sala de espera, Lacan imediatamente se dirige
para ela e a honra - publicamente - com um ... beija-mão.
124 -AI.ó, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

o floreio

Uma supervisão com Lacan era, a seus olhos, como que o


coroamento de uma carreira de analista bem conduzida. Sua
análise se desenrolara satisfatoriamente para os dois parceiros,
ele fez, com tal e tal outro notável da É cole, excelentes super-
visões ... , enfim, nada mais lhe faltava além do assentimento do
mestre.
Suas sessões, com Lacan, ocorriam regulam1ente. Acolhedor e
amável, Lacan não dizia grande coisa.
Um dia começa a falar de um caso dito "psicossomático" que
aceitara em análise. Depois de algumas sessões centradas neste
caso, vê Lacan lhe estender uma carta; estava dirigida ao mé-
dico clínico que acompanhava sua paciente!
Lacan escrevia que seu discípulo, o Doutor X, que o infom1a-
va regulannente sobre o tratamento da Senhora Y, não agia
adequadamente.
Ser ao mesmo tempo chamado de "discípulo" e desacreditado
e1n seu trabalho era muito ... e muito pouco.
Ele interrompeu ali sua supervisão.

objeto/sujeito

Comentário teórico de um supervisionando depois da apre-


sentação de um caso.
- Penso que sou o objeto.
Lacan:
- Sim, só que você é o sujeito.
J>1tÁTICA DA SUl'EltVISÃO 125

para sempre

Ele discute a questão de saber se vai, ou não, aceitar um


psicótico em análise.
Lacan:
- Você pode fazê-lo; saiba que será para toda a sua vida.

perdido

Ele vinha de muito longe para sua supervisão com Lacan, era-
lhe mesmo preciso tom.ar um trem de longa distância.
Deus sabe por que, desta vez, no momento de comprar sua
passagem, decidiu que não, que parava. Telefona a Lacan, in-
forma Gloria da decisão.
Retomando para casa - segundo imprevisto do dia-, percebe
que perdeu o dinheiro desta supervisão.
Nunca soube onde.
126 -Au\ LACAN? - É c1.A1to qui-: NÃO.

quem fz1gi;1 de quem?


Ei-la com um outro analista. Acaba de deixar o seu por causa
da mudança para uma cidade distante. Ele interpretou esta
partida como uma fuga, ao passo que ela mesma teria sentido
que esta interpretação anulava seu ato e desvalorizava sua pa-
lavra.
O que ela pedia? Pois bem, virar a página.
- "'Virar a página', claro que não!", lhe retorque o novo
analista (que conta tudo isto, quando de uma supervisão, a Lacan),
julgando que esta fórmula poderia valer como pretexto para
uma passagem ao ato.
Resposta:
- Pergunte-lhe o nome de seu analista.

rcto111:1d:1

Há algum tempo parou sua supervisão com Lacan. Mas eis


que, no fim de um seminário, logo, publicamente, Lacan, em
voz alta, lhe diz:
- Então, recebeu minha carta do Japão?
Não foi preciso mais para que, algum tempo depois, ela reto-
masse suas sessões.
PII..ÁTIC:r\ IJA SUl'ERVISÃLJ 127
~~~~~~~~~~~~~~~~~~

reviramento

I. O supervisionando submete a Lacan sua interpretação do


caso.
Lacan:
- Você é fonnidável, é exatamente isso.
II. Três meses mais tarde:
- Minha construção deve ser falsa, isto vai de mal a pior.
No entanto, você me disse que era exatamente isso. Não pode
• 1
ser isso.
Lacan:
- Estou contente ...
_;>f

Lacan:
- Estou contente que você também tenha percebido.

s.1ú com fcnd:1

De visita, em entrevista ou em supervisão com Lacan, todos


sentavam numa pequena cadeira baixa, tão baixa que os joe-
lhos, por pouco que as pernas se dobrassem, ficavam sensivel-
mente mais altos que as nádegas.
Ela veio, para esta supervisão, enfarpelada numa saia generosa-
mente fendida e, necessidade fàzendo lei, uma vez sentada,
viu-s~ oferecendo um espetáculo acima do que o costume
que uma época, entretanto tão liberal, admitia sem proble111;1.
- Que bela saia! comenta Lacan.
128 -Ató, LACAN? - É CLARO QUS NÃO.

sobre enganar-se, cometer íàkz

Sobre um erro que ela lhe diz ter cometido, Lacan:


- Quando se está enganado, é preciso* confessar.
*li /;wt, também "f:ilta". (NT)

mpcrv1sao, depois análise

Segundo ele, seu analista fez uma manobra em falso depois da


qual ele o deixou. Em supervisão com Lacan, informa-lhe
sobre sua decisão de continuar em outro lugar sua análise.
Resposta:
- Você está em boas mãos.
Retorno para o analista, o qual... não acreditou no que ouviu.
Por três vezes, pelo menos, pediu a seu analisante que repetis-
se a fala de Lacan.
A continuação da história? Ele temüna por se encontrar, en-
fim, no divã de Lacan.
Outra continuação? Seu ex-analista, quando da dissolução daEFP,
assina a carta denunciando Lacan ao tribunal de Paris.
Pn.t\"J'JC:A DA SUl'UlVISÃD 129

toubib or not toubib*

Sua primeiríssima sessão de supervisão. A paciente de que es-


colheu falar é uma histérica, inclusive as paralisias.
Lacan:
- Você examinou os reflexos?
Ela (siderada):
- ... Nnnnnnnão!
- Você tem um martelo?
-Não!
- Compre um! ...
Depois, como que para reforçar:
- Assim como papel timbrado.
* Tauhih, pJbvra de origem 5rabc, usJciJ como gíria na frança, sib'l1ificJndo
"médico". (NT)

troca?
- Mas, senhor, este rapaz (o analisante daquele que as-
sim interrogava Lacan) me vem ver três ou quatro vezes por
semana, me conta histórias que não acabam n1.ais, me paga e
vai embora. O que lhe dei em troca?
- Seu silêncio!
130 -A1.ú, LAt:AN? - É CLARO QUE NÃO.

um signific,mte como último rccw:w

Ele tinha muita dificuldade em convencer sua analisante (uma


de suas primeiras) a não operar o nariz.
Lacan:
- Seu nariz é realmente feio?
-Não!
- Então diga que um recém-nascido* não seria oportuno.
* A expressão é nouve.w-né, referida a notwe.w nez, "nariz novo". (NT)

você disse: "é íàlso "?

Ele escolheu como psicanalista um dos mais renomados e fiéis


entre os alunos de Lacan, depois ac1bou pedindo supervisão
ao próprio Lacan. Não sem hesitação.
Sempre preparava cuidadosamente suas supcrvisões, m~mori-
zava o material que ia apresentar e caprichava sua interpreta-
ção do caso. Lacan não dizia nada.
Um dia, entretanto, quando ele ia embora, Lacan se dirige a
ele, fazendo alusão ao que acabava de escutar:
-É louco rc'est fou]!
Ele não acreditou no que ouviu; já saindo, não pôde se impe-
dir de se voltar para Lacan:
-Desculpe, senhor, o senhor disse: "É falso [e 'est tâuxl"?
A partir deste dia, não era mais supervisão, mas análise o que
ele fazia com Lacan.
História do movimento
psicanalítico
-.......
-·> t~ ..: ... ·• ·\( ·'>. ....
•i'>'I .>: ~- ,.,. ~

. '"'· ... ~~·


1 ..... )\.,, > <

..• .
....

l'ort.10 do prédio onde ficava o O mesmo lado do portão, fotogra-


consultório de Jacqucs Lacan. fado em 16 de outubro de 1993
Foto tirada em 31 de maio de (Élise Amoux).
1993 (Fouad el Korny, Lc Monde
de 17 de setembro de 1993).

Primeira imprcssfo lkstes dois clichês na Revista do Littor,1/, n" 38,


Paris, E.P.E.L., novembro de 1993.
I-l1s·JúRIA !)() MIWIMENTO PSIC:AN:\I.Í"rtc:o ·133

c1 École de b cwse fi-eudiennc

Ex-membro da falecida École fi-eudienne, ele participava des-


te movimento que devia chegar à criação da Cwse fi-eudienne.
Mas as coisas andavam muito rápido, tratava-se agora do esta-
belecimento da seguinte instituição: a École de J,1 cause
fi-eudienne.
Durante um:1 de suas sessões de análise, pergunta a Lacan:
- Você é pela criação da Écolc de Lz cwse freudienne?
- De modo nenhum.
É claro, ele espalha logo :1 novidade a seus próximos: Lacan
não estava a favor.
No dia seguinte, telefonema de uma pessoa que estava pro-
metida a um belo futuro na futura instituição. Esta pessoa ti-
nha a sua frente os estatutos da nova escola e Lacan acrescen-
t:1ra, com a mão certamente trêmula, mas com tinta vermelha:
"Esta é a escola daqueles que me amam".
Estava escrito, então ...

Alguérn chamado Turquet* tinha sido encarregado, pela


Intematiomzl psycho;z11;1Jytictzl c?ssocútion, da pesquisa que vi-
sava instruir o pedido de afiliação da Société íi-:znçaise à dita
Internacional.
Lacan o chamava:
- Senhor Peru.
* Turkcy, em inglês = peru. (NT)
134 -Au\ LACAN? -É CLARO QUE NAo.

:1ba11don:1r

Teriam-no abandonado? Trata-se de Lacan, dizendo no mo-


mento em que a ruptura com a lnternation;z/ psychoc111alytic1/
assocútion se concretizava, para aqueles que, pelo próprio fra-
casso de sua negociação com a casa matriz, tinham emancipa-
do Lacan, Serge Leclaire e W1adimir Granoff
- Olhem com quem vocês me deixam!

acaso ou dcstÍno?

O número de telefone de Lacan começava por:


LIT*.
* "Lt:ito", "lê". (NT)

admiraçio sincera

Depois de um quarto de hora de entrevista sobre vários assun-


tos com um jornalista, Lacan declara a seu interlocutor, no
tom da mais sincera e incontestável admiração:
- Estou fascinado com. sua ignorância.
f-hSTÚRIA IX) M<WIMf.NTO l'SICANAT.ÍTICO 135

1975, em Yale. Lacan encontra Robert Jay Lifton, cujos tra-


balhos sobre os "holocaustos" eram :famosos. Conversam..
Audacioso, Lifton propõe substituir a simbolização psicanalí-
tica clássica centrada no sexual por uma outra simbolização;
não se trataria mais da oposição masculino/feminino, mas de
continuidade/morte.
Lacan:
- Como você se chama?
Lifton:
- Robert Lifton.
Lacan, entusiasmado:
- Sou liftoniano!

aluno nota zero

Tendo, não sem bom senso, evocado o grau de abastardamen-


to a que chegara o ensino do que Freud havia descoberto, ele
prossegue seu testemunho dizendo a que ponto, face a isto,
Lacan lhe havia dado o gosto de ler Freud. Muito bem [Fort
bien].
Mas não, Fort-Da! De fato, o que ele dizia ter lido em Freud?
"Nen1 mais nem menos" que o que Lacan dizia que havia lá.
13(, -AI.ó. LAt:AN? -Ú CI.ARO QUE NAO.

anti-Édipo
Deleuze e Guattari acabavam de publicar seu Anti-Édipo. O
segundo é membro da École. Para os dois autores, como aos
olhos de todos, o desafio a Lacan é patente.
Curiosos para saber o que Lacan ia dizer sobre isso, Deleuze e
Guattari não podiam aparecer em pessoa no seminário Gá há
muito tempo eles não o freqüentavam regulam1ente).
Uma engenhosa solução foi no entanto encontrada: a mulher
de Deleuze assistiria, sorrateiramente, às próximas sessões.
Decepção, Lacan não fez a menor alusão à obra.
Para fàlar a verdade - finta suprema? - falará dela praticamente
logo, mas ... em Bn1xelas.
I-IJST<)RJA IK) l\.l(lVIMENºfl) 11s1c:ANAr.í·1·1cn 137
-----··-------------

,1ntli1ômico Lac:111

Ele estava interessado no ensino de Lacan mas dizia não que-


rer nada com sua pessoa. Escolhera, para sua análise, não Lacan,
certamente, mas nem mesmo um membro qualquer de sua
escola. Deixemos a palavra a ele:
"Quando de um seminário na Rue d'Ulm, pendurei meu ca-
saco num cabide perto do estrado. Quando Lacan chegou,
pendurou seu casaco em cima do meu. No fim do seminário,
quando eu recuperava meu bem, Lacan me interpela:
- Você fatia o favor de me passar meu casaco?
Eu o dei a ele e, enquanto eu ainda o estava segurando, Lacan
se inclina para mim e, mergulhando seus olhos nos meus por
um longo tempo, me diz, com urna intensidade inteiran1ente
extraordinária e fora de propósito:
- Você é tão gentil!
Vacilei de surpresa e de perturbação diante do abismo de se-
dução que se abria à minha frente. Tudo nfo durou mais que
um instante, pois Lacan pegou seu casaco e saiu para o mun-
do. Esta breve cena foi suficiente para tornar Lacan para mim,
não antipático, mas radicalmente antinômico. Eu viera para
ouvi-lo, não tinha nada a lhe dizer e não queria saber nada de
sua pessoa".
138 - A1.ú, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

,ws no1111alistt1s

Alguns notáveis da École estão reunidos certa noite na casa do


responsável pela revista Scilicet. Motivo: a revista da École
não satisfazia a ninguém, e andava mal.
A discussão cai na areia movediça; nada de pertinente sairá
dela. Então, os participantes saem.
Em seu 1nini-austin, ele leva Lacan para casa. Comentário do
transportado:
- Mesmo assim eu não vou confiar tudo isso aos
nom1alistas!

1976. Um casal de psicanalistas (um tal sintagina nominal tem


algum sentido?) argentinos solicita uma entrevista com Lacan
e a obtém.
Mandando-os entrar em sua sala, Lacan lhes pergunta, de cara:
- Vocês são argentinos, querem uma assinatura?
Depois, no final da entrevista, mesmo não se tendo tratado em
nenhum mom.ento da questão da situação política na Argentina:
- Vocês queren1 uma assinatura?
H1s·n:m.1A IX) M()VIMf.N'fO PSICANAI.i 1·1co 139

c1VJSO

Co1110 que concluindo um congresso sobre seus rnatenus,


Lacan, a propósito de colegas e/ ou alunos que acabava de ouvir,
larga essa:
- Eles não vão encontrar nada! Eles encontrarão nada!

ax10111:1

Pode ser que tenha ocorrido durante as célebres jornadas de


Bonneval sobre "A causalidade psíquica", ou em algum.a ou-
tra circunstância, que a história não conta. Mas Lacan escan-
daliza bastante Henri Ey, dizendo:
- Uni homem caga, ejacula e se empanturra.

ban-:1do siin, mas como?

Uma sessão de trabalho na École fi-eudie1111e. Um jovem passa


pelo quadro-negro e escreve S barrado assim:
~
- Não, corrige logo um notável, é:

que se deve escrever.


140 - Atú, lr\C.'\N? - É CLARO <JUE N:\O.
-------~------------

canw de L:1ca11

Lacan cert:unente trabalhou muito para fazer valer sua doutri-


na, mas seria falso concluir disso que outros e, entre eles, mui-
to especialmente aqueles que ele combatia, n:'io contribuíram
para t:1zer a cama de Lacan. Esta historieta é um testemunho.
Isto se passa depois da guerra e nos fi.)i contado por alguém
que ouviu de Wladimir Granoff Trata-se de uma supervis:'io
coletiva com Maurice Bouvet, um dos maiores figurões entre
os teóricos da época.
- O que fazer, pergunta um aluno, quando, doente, um
paciente não vem a suas sessões?
Resposta do mestre, após madura (e longa) reflexão:
--- Podcn ms fazê-lo pag;u- até 38 de febre, além dissô não!
E Cranoff nota que isto era meter uma sonda, um termômetro
no cu de uma disciplina.
Um termo ao mestre*?
* l lomofonia !Ili tcnnc .711 m;11i:rc e thcnno111l\trc, um tenn,imetro. (NT)

C.111 !*

Aquele que pergunta:


-Você acredita que um canalha possa tomar alguém louco?
Lacan, sem a menor hesitação:
- Sim.
Alguns meses depois, a própria mulher daquele que pergunta-
va devia ser reconhecida como louca.
* Em inglês, c.111 f ("posso?") soa como c;111.1ille ("canalha"). (NT)
H1sn)1t1A IX) /\·\OVl/1,11-:NTO l'SICAN,\l.ÍTIU) 141

cartel?

Ei-lo embarcado por um. psicanalista lacaniano num trabalho


de cartel. O psicanalista, transfom1ado pelas circunstâncias em
gentil animador, escolhe ao acaso uma frase de "A instância da
letra no inconsciente"; depois, encarando cada um alternada-
mente, pergunta:
- Então, o que isso quer dizer?
Abre-se então para ele um abismo: cada palavra era em si mesma
um mundo, que remetia a um saber desconhecido, que evo-
cava uma infinidade de outras disciplinas fora do alcance ...
Para ele, o trabalho de cartel nunca pôde ir mais longe que
esta primeira frase.

chamada à ordem

Uma discussão entre dois alunos de Lacan sobre o trottoir da


Rue Claude-Bernard, 69. Ao cabo dos argumentos, um diz
ao outro:
- Não se esqueça do que Lacan nos ensinou: nunca ce-
der a seu desejo.

cólc1:1 e crença

Secretária da universidade que acolhia de maneira insatisfatória


o seminário de Lacan, ela conta:
- Um dia, ele me descompôs; depois, exatamente antes
de desligar, arrebentou de rir me perguntando: "Você acredi-
tou na minha cólera?".
142 -AtiJ, LACAN? - É CJ.Aito qur. NÃO.

com Charcot
Por ocasião de suas (últimas) jornadas de trabalho, a École
fi-eudie1111e de Paás organiza uma recepção. Alugou-se, no
l3ulevar Saint-Germain, a casa da América Latina. Chique,
não? Mas outra coisa estava em jogo.
Ele, naquele dia, não sem um certo falsete ou mesmo finta
inocente, se dirige a Lacan, num breve aparte:
- Você s:ibe que estamos na antiga mansão de Charco6'
No dia seguinte, recebe um telefonema de Gloria:
-Alô, X?
-Sim.
- Lacan mandou dizer que foi uma brilhante tolice.

COJl] os Nip

Grande jantar oficial, no Japão, em homenagem a Lacan. Este


está sombrio e mudo. Não se sabe se se aborrece, se está des-
contente, se bebeu ...
Conversa falsamente animada, para esconder o embaraço. O
ton1 aun1enta:
- Sei o que digo, diz brilhantemente uma das convivas.
- Claro que não, lança Lacan.
Consternação.

como dúsc ...


Ouve-se dizer que se diz, nos cenáculos da École de la cwse
fi-eudienne:
- Como disse Jacques-Alain Miller: "O significante re-
presenta o Sltj eito para um outro significante".
H1sróRIA 1)() MOVIMEN"l"O l'SICAN,\LÍ"l"ICO 14J

como ele dizú?

Em viagem para o Líbano, em l 973, Lacan declarou a seu


hospedeiro:
- Como eu ficaria aliviado se alguém que não eu tivesse
dito que o inconsciente é estruturado como uma linguagem.

como pode?

Balint praticamente não era conhecido por ninguém, naquela


época, na Franç:1. O que não impedia Lacan de pôr em circu-
hção um texto dele, um texto um pouco corrosivo.
Choc:1do com os costumes dominantes nos meios psicanalíti-
cos ortodoxos, Balint lev:1ntou seu protesto escrevendo que
(segundo os termos de Wladimir Gr:1noff, que contou este
bon mot no verão de 1997) "sobre nossas vidas de analist:1s e
sobre nossas vidas em instituições, sobre a prática e a teori:1,
nos faltavam o vocabulário e a gramática". Não pouco! Pois a
gramática, pode-se fular sem sabê-la. Mas o vocabulário? Balint
então jogou isso na cabeça dos dirigentes da Sociedade Psica-
nalítica Inglesa, provocando uma certa comoção.
Por sua vez, Lacan então difundiu este escrito. Mas ... sem
imprimatur de autoridades.
Alguns alunos do Institut psychamzlytique de l?ms diziam:
- Mas ele se entregou a uma agressão espantosa contra
nós! Como pôde deixar circular semelhantes escritos, fazer-
nos ler semelhantes coisas, nós, que estamos em fom1ação?
144 -AI.Ó, LACAN? - (: C:I.ARO QUE N1\l),

confin11.1 ç,io

Estava-se numa destas recepções mundanas às quais alguns


analistas se sacrificam paralelamente a seus congressos. D11i1ks,
salgadinhos e bate-papos. Lacan, então idoso, circula entre os
colunáveis; olhos abertos mas avaro de palavras, aperta mãos,
dá a uns e outros um sinal de amizade.
Entre os c011vidados, um dos jovens conferencistas do dia, psi-
canalista de província. Com o acolhimento de sua fala, não se
pode dizer que não se preocupa. Sua esposa está a seu lado.
Os acasos de seu percurso conduzem Lacan a aproximar-se do
grupo que o casal provinciano fom,a com um outro casal.
Saudações, apresentarões, pequeno silêncio.
Depois o confrrencista, dirigindo-se a Lacan:
- A última parte de minha exposição não pareceu 1nuito
clara. Parece que eu estava enchendo lingüiça ...
Um angélico sorriso de Lacan adorna sua resposta:
- foi exatamente isso!

confin1uç:So de esquecimento

Lacan, quando de seu seminário de 11 de março de 1980:


- Há pessoas que se queixam de que as esqueci. É bem
possível. Que elas se dirijam a Gloria.
HJSTÚIUA l'X) MOVIMENTO PSICANALÍTICO 145

confi1s,io?

Como lhe fosse pedido o nome de um psicanalista, ele res-


pondeu:
- Vá ver Legendre*.
Algum tempo depois, soube que o fulano em questão foi pe-
dir uma análise a... Jacques-Alain Miller.
* Lc gcndrc = o genro. (NT)

conta-se no instituto

- Por que, pergunta-se a Lacan, você mantém as pessoas


por tanto tempo em análise?
Para ensinar-lhes a contar até três.

cumpámento indireto

Roma, 1953. A novíssima Société íh111ç-aise de psychamlyse


faz seu anti-congresso, como provocação ao da IPA.
Um era oficial, o outro não. Daí a importância da recepção
para a qual a embaixatriz da França convida os participantes
do anti-congresso.
Reflexão de Lacan, cochichando para um colega, ao sair desta
recepção:
- A embaixatriz soube transfomur esta graça do Estado
em estado de graça.
146 -A1.ó, LAC:AN? - [é CI.Alto QUE NÀ<l,

da merda

Uma conferência em Bordeaux. Lacan fula ali do problema


das cidades modernas, dizendo que não é o que se quer crer.
Ele é, precisa, o da circulação e da evacuação da merda. De-
pois, como pondo os pingos nos is.
- Em Bordeaux, quanto à evacuação da merda, tudo
resta a ser feito.

de resto

Em julho de 1953, Lacan foi a Londres para defender sua cm-


sa no pré-congresso da IP A; vai tentar evitar (quem sabe?) um
banimento que muitos consideram inelutável.
Ele fala em inglês, embora com dificuldade. Num certo mo-
mento, não consegue encontrar o equiv:1lente para a palavra
"resto". Defrontado com sua pane, apela para a ~tjuda de al-
guém no auditório. Em vão: não haverá um único para :tjudá-
lo a não restar, de resto*, con1 este "resto".
* Rester en reste= pcm1anecer cm dívida. (NT)

dcfiniç/io do scminánó

Sobre o seminário de Lacan pôde-se dizer que era "esta sala


onde enfin1 estamos no restaurante e onde imaginamos que nos
alimentamos porque não estamos no restaurante universitário".

'
HISJÚRI:\ 1)() l\"l<Wf,',.1~;NJ"l1 l'SIU\NAI.Íl°ll:l1 147
-------·---·-··----·----------·-···--··-------- - - - · - - ·

dchi-:wtc Lac.w

A cena acontece no Grande Hotel de Estocolmo, em julho de


1963. A cidade recebe o congresso da IP A. Ao lado dos traba-
lhos "científicos", tratar-se-á da afiliaçfo do grupo daqueles
que tinham deixado a Société psyclwn:zlytique de P:ms.
Leclaire est:1 lá, saudando Granoff e Pttjol que chegam ao ho-
tel. Imediatamente Leclaire diz a Granoff
- Devo avisá-lo de que Lacan está convencido de que
você está em Estocolmo há dois ou três dias e que você colo-
cou uma escuta cm seu quarto.

J)csc:1rtcs 11:1 mesa

"Lacan e Descartes", este era o título da exposição que tiniu


escutado, na véspera, na Écolc fi-eudic1111c.
De manh:i cedo, no dia seguinte, na sessão, ele comunica a
Lacan seu sentimento: há algo de it,·emcdiavelmente fracassa-
do em abordar assim as questões.
Resposta:
- Eu não me tomo por Descartes.
148 -Au\ LACAN? - É CLARO QUH NÃO.

diálogo entre Lacan e o rcvolucio11ciáo

Lacan dá uma conferência em Louvain e fala já há algum tempo


quando chega, interrompendo o discurso, um revolucionário:
- Você que discutir comigo?
Lacan:
- Sim, já. Você quer?
- Mas você ainda não terminou seu monólogo, não?
- Sim, é verdade!
Esta resposta constituía uma brecha? De toda forma, o revolu-
cionário continuou sua insurrecional tomada da palavra, rei-
vindicando intervir quando bem lhe aprouvesse, tratando como
mentira e espetáculo em decomposição a cultura que, exem-
plarmente nesta conferência de Lacan, se propagava.
Lacan:
- Você não quer que eu tente explicar a continuação?
- Que continuação? Em relação ao que acabo de dizer?
Gostaria muito que você me respondesse.
- Pois bem, meu caro, vou responder-lhe. Venha cá.
Mas o que você quer fazer?
- É a pergunta fundamental que os pais, os curas, os
ideólogos, os burocratas e os polícias fazem a pessoas como eu.
Posso responder-lhe, é a revolução.
Lacan:
-Sim.
- No momento, um de nossos alvos preferidos é gente
como você, que está trazendo, no fundo, para toda esta gente
que está aqui, a justificativa da miséria cotidiana.
Lacan:
- Oh, nada disso!
O revolucionário, gritando um pouco:
HrsTÓRI/\ IX) MOVIMl-:NTO l>slCANAI.ÍTICO 149

-SIM!
Lacan:
- Primeiro é preciso mostrar-lhes a miséria cotidiana.
- Mas não se tem necessidade de especialistas para mostrá-
la. Se as pessoas que estão aqui percebem que a vida deve ser
mudada, se estas pessoas se organizam entre si ... porque, no
fundo, a única coisa que no momento atual é necessária é que
haja uma organização ...
Lacan:
- Você vê, eis você na organização.
O revolucionário:
- Sim, sim.
Lacan:
- Porque o próprio de uma organização é ter membros e
os membros, para que se mantenham juntos, o que é necessário?
O revolucionário:
- Coesão.
Lacan:
- Eu não fiz você dizer!

dúsolm;:io

Uma reunião dos partidários da dissolução daÉcole freudienne


de Paris. Jacques-Alain Miller deve fazer sua exposição. Sala
lotada. Lacan está presente. Zumzumzun1. Enfim Lacan dá a
palavra a seu genro:
- Seja breve*.
*escrita foni'.·tica
* F.útt·s kw; aqui, h:í múltiplas possibilidades: f:iit,,s court ("seja bn•ve"); t.iit,·s
cours ("dê curso"; "faça o preço"); tãitcs cour ("faça a rnrtr") .... (NT)
150 -A1ú, l.ACAN? - Í: l:I.AltO <)UE N.-\t).

divórcio d hcc111ia11:1

Eles estavam se divorciando.


Numa rua da cidade onde ocorria o congresso da Soáhé
fi-:wç:;úse de psychana~vse, cruza com sua mulher passeando
con1 Lacan.
Conclusão imedi:lta (e que a continu:-ição dos acontecimentos
deve1ia confim1ar): ela doravante toma1ia seu lug:-ir 110 divã de
Lacan.

do leito

Em Guitrancourt, Lacan recebeu naquek dia um de seus alu-


nos (que vinha fazer-lhe um comunicado), na cama. Te1'111i-
nada a exposição, Lacm conclui suas despedidas dizendo:
- Meus alunos, se soubessem para onde os levo, ficariam
horrorizados.

do rc.spcito

Lacan, sobre o título de seu seminário 1975-1976, escreve a


sua secretária da École p1-;1úquc des hwtcs études. Ele lhe amm-
cia o título como sendo "LE SINTOME", precisando-lhe, e alüs
por escrito, "respeitar esta ortografia".
Já então, a falta de acordo revela que há algo de suspeito es-
condido. No dia seguinte, de futo, 30 de setembro de 1975,
ele lhe telefona para retificar o título. Será "LE SrNTI·IOME".

'
H1STÚII..I.'\ l)t) 1\1(.)VIMEN I'() l'SIC.:AN/\1.Í rn:n 151
------------·----------···-

cio sujeito suposto saber

Traduziu-se "sttjeito suposto saber" em espanhol de uma for-


ma tal que fica claro que o psicanalisante supõe que o psicanalista
sabe. Ele, encarregado de verificar as traduções, vai ver Lacan.
Ele diz o que lhe parece:
- Parece-me, senhor, que não é absolutamente o que o
senhor quer dizer.
- Mas sim.
- Posso perguntar-lhe ... em que h..1. nisso um en·o de tradução?
- O sttjcito suposto saber é o sujeito do inconsciente.

duclw lac:wún:z

Uma grande livraria parisiense. Um jovem vendedor é ener-


gicamente repreendido por Lacan, cujo livro, encomendado,
não estava lá na data que fora combinada.
Lacan:
- Mas cu sou Lacan!
O vendedor só sabe responder a seu colérico interlocutor com
um olhar embasbacado.
- Mas enfim, eu sou Lacan ! .
Depois, defrontado com o espanto persistente do vendedor e
sempre gritando:
- Você então não sabe quem é Lacan?
Ao que o outro, pois bem, responde que não, e não, decidida-
mente não, não sabia.
Então, passando-lhe o braço pelo ombro, Lacan leva doce-
mente seu "ignorante" interlocutor para um canto da livraria
para, com a mais delicada cortesia, explicar-lhe ... quem [- 1 ;11 .111
152 -AI.ó, LACAN? - É CI.All.O QUE NÃO.

e111 todo c.1so, cu...

Uma cidade da província francesa. Lacan vai fazer um.a confe-


rência.
Ele menciona o acontecimento no divã, acrescentando que
devia comparecer.
Resposta de seu analista:
- Em todo caso, eu não irei!

c11fh1queci111ento do dêitico

Para a comemoração de um aniversário de Lacan, fora encar-


regada de escolher o presente que lhe dariam os mais cheg~dos
da École fi-cudiem1e. Neste sentido, foi convidada (urna gran-
de honra!) para a pequena recepção de entrega do presente.
Ei-la entrando na sala, a capa negligentemente lançada no
ombro esquerdo, mantida presa neste ombro pelo indicador
da mão do mesmo lado. Um pouco atrás dela, seu namorado,
que levara por não se sabia qual (inconfessável?) motivo.
Vendo-a êhtrar assim duplamente enfarpelada, Lacan se dirige
a ela, dizendo-lhe, com o tom de uma extrema gentileza:
- Querida, livre-se disso tudo.
H,s·rólllA !)() Ml)VIMEN"f"O l'Sl<:ANAl.i"nc:o 153

e11íiu11:1çar a ENS

Segundo Louis Althusser, Lacan foi expulso da École normale


supéâeure por não ter impedido seus ouvintes de enfumaçar a
sala onde ocorria seu seminário, nem de enfumaçar, sobretu-
do, através do teto, as preciosas prateleiras da biblioteca, que
ficava justamente em cima.

envelhecer

Surpreso com sua própria gentileza, Lacan disse:


- Eu envelheci, estou ficando gentil.

envio de um cliente

Ele, no entanto considerado por todos como um dos mais


brilhantes alunos, nunca recebeu cliente enviado por Lacan.
Salvo uma única vez.
Tratava-se do filho de um dos melhores amigos de Lacan.
Infom1ando-o de que o havia mandado, Lacan esclarece a seu
aluno:
- Não posso ficar com ele, ele não tem dinheiro.
15-1 - A1ú. LACAN? - É CLAllO </UE N..\o.
-----·------·--·-

erro de pcsso.-1?

A ruptura entre Granoff e Lacan está acontecendo. Neste


momento, eles almoçam com Perrier e Leclaire. A situação
está tensa. Lacan explode. Mesmo quando Granoff não falava
com ele há já algum tempo, ei-lo dizendo:
- Ah! escute, Granoff, verdadeiramente estou de saco
cheio de você! E devo dizer que sua sede de respeit1bilidadc
burguesa acabará com você.
Lcclairc:
- Jacques, enfim, apesar de tudo, não, não isso, para
Granotl~ "respeitabilidade burguesa". Reflita!

Laca 11:
- Venha então à École fi-eudienne!
Ele:
- Senhor, temos excelentes relações. Quero conservá-
las.
Lacan:
- Como você tem razão, meu caro.

cscátos

Em 1966, qu:mdo de sua publicaçio, Lacan não mandou um


exempbr de seus E\·critos para a biblioteca de sua École.

'
·-·---·-··-··-·· ____
H1srúRl1\ 1)() A,U)VIA.lt:NH) l'SIC:.-\Nt\l.Í"nClJ
------------·--·-······---------·--···- ----···--··---·--- .. -- .......
155

cspcci:.ilút:i?

Henri Ey e seus colegas distribuem o trabalho de redação de


capítulos que devem compor o primeiro fuscículo "Psiquia-
tria" da Enciclopédia Médico-cirúrg1ó, obra de referência, se
é que isso existe.
A Lacan são pedidos dois artigos. E "Variantes da cura-tipo"
será publicado, de fato, cm l 955.
Quanto ao artigo "Paranóia", foi uma outra história. Não ten-
do enviado o artigo 110 prazo previsto, Lacan foi de novo so-
licitado, depois instado, depois vivamente pressionado ... em
- 1
vao.
Era óbvio que o artigo "Esquizofrenia" tocava a Ey e que
"Paranóia" devia ser escrito por Lacan, e somente ele.
Assim se resolveu, coisa entretanto impensável já que um "tra-
tado" deveria cobrir todo o conjunto da nosografia, publicar
este volume da EMC sem o artigo "Paranóia".
Como não saudar a performance deste "não todo", deste furo
no saber?
156 - Au), ] AC:AN? - É (:I.ARO QUE NÃO.

esquecimento de nomes própâos


Lacan se pergunta publicamente sobre algo horrível que lhe
aconteceu: esquecer nomes próp1ios. Não acreditando num
centro de nomes próprios no cérebro, ele pergunta a que se
liga um tal esquecimento. Então se lembra de que uma pessoa
jovem lhe dizia esquecer também os nomes próp1ios - isto lhe
tinha acontecido depois de sua análise.
Conclusão:
- "É porque sou bem analisado que esqueço os nomes
próprios".
Segunda conclusão:
- "Quando se foi verdadeiramente analisado se deveria,
com efeito, não ter o mínimo interesse pelos nomes próp1ios".

cstinwtiv:1 sem nmitél cstúna

De Didier Anzieu, quando um dia se pergunta a ele sobre a


importância de Lacan para o movimento psicanalítico:
- Lacan? É 5% do Vocabuüiio d1 psic111:ílút·.
HISTÓlllA no MOVIMENTO l'SICANAI.ÍTICO 157

cu sou claro

Ela queria relatar, numa grande revista de atualidades, o con-


teúdo dos seminários de Lacan, desprezando o que lhe tinham
dito, isto é, que era impossível.
Uma entrevista com Lacan teve lugar, durante a qual ela es-
creveu seis folhas de notas. Escrevendo a partir delas seu arti-
go, teve a impressão, diz ela, de "traduzir chinês". Depois, um
pouco inquieta, ei-la submetendo a Lacan o fmto de seu tra-
balho. Resposta:
- Você vê que eu sou claro.

fàolidadc

Um analista parisiense explica assim, um dia, ~l'i ditas "sessões cmtas":


- Lacan é claustrófobo.

fàlcm, ó paredes!

Eis Lacan, neste 6 de janeiro de 1972, falando no hospital


Sainte-Anne, mais precisamente na capela do hospital. Ele fala
como analisante, deixando-se levar pelo que lê no que diz.
Então percebe que :fala ... à capela Sainte-Anne: ele queria di-
zer neste lugar, mas se ouve dizer que fula à capela, que se
dirige a ela, que então fala para as paredes ...
Uma voz impertinente então se fuz ouvir:
- Devemos todos sair?
Lacan:
- Quem está falando comigo?
A voz:·
- As paredes.
158 - A1ú. LACAN? - Íi LLI\U.l.l QUE NAn.

íi.mdzç:'i'o d:1 Écolc frcudicnnc

A ata de fundação d:1 EFP, redigida por Lacan, começa por


esta frase: "Eu fundo - tão sozinho quanto estive sempre na
minha rebção com a causa psicanalítica - a Écolc fi--:mpúe de
p.\ych:w:1(vsc". O rebto que se segue é o das 111emoriveis des-
venturas deste "cu".
Diante do cenáculo restrito de seus mais próximos, L:icm leu
uma primeira vez esta ata de fi.mdação, acontecimento que foi
gravado numa fita. No momento de tomar pública a coisa,
Lacan, dirigindo-se a François Perrier, lhe pede que leia seu
texto. "Eu fi.mdo ... " teria proferido Perrier! Deus sabe por
que, ele se recusou a isso. Isto seria no entanto muito cômico.
Mas a história n:io acaba aí.
Justamente antes da rcuni:io. com efeito, Lacan telefona };:ira
de: n:io iria :"'1 rcunifo. Poi o que fi.~z. J>crrier então decide ligar
o gravador que, então, articula pela primeira vez publicamen-
te o ainda 11:10 famoso "cu fi.mdo". Mas a liistória nilo acaba aí.
O gravador d.e fato fez sua parte, recusando-se - ele també·m -
a falar: a fita estav:1 inaudível!
Telefonema para Lacan; uma hora depois, este entra na sala
onde todos estavam reunidos. Com lágrimas nos olhos, Lacan
aperta calorosamente a mão de Perrier, depois toma a palavra.
Nesta primeira recusa a Lacan, a EFP estava criada.
l llSTÓRI.'\ 1)() f\lOVIMl:N ro JJSIC.'\NAl.i nc:o 159

gan:.if:J de Klein

Sua reputa(10 de alguém que tem uma tendência para o álco-


ol não era ainda inteiramente de domínio público; mas seus
próximos e muitos de seus colegas sabiam.
Aluno de Lacan, se separaria dele quando da adoção pela É cole
da Proposiç·;io de outubro de 1967 sobre o psic:111c1/isrn da Es-
coh. Sua franqueza, que às vezes confinava com a rudeza, lhe
fazia dizer que esta dolorosa separação só se devia a uma for-
midável e inultrapassável rivalidade.
Pouco antes da ruptura, teve breves conversas com Lacan.
- Pcrricr, lhe diz então Lacan, você me toma por uma
garrafa de Klein.

imit:ulor de L:zc:w

Em 8 de abril de 1975, Lac:m, em seu seminário, tinha jogado


com ';"'oui.i· Ieu ouço I", em sua homofonia com ';"ouú !gozai".
Analisante com um seguidor de Lacan, assistira a este seminá-
rio; seu analista igualmente.
A partir de sua sessão seguinte ele acreditou bom dar-lhe a
palavra dizendo:
- j'ouü.
Ela não pôde pronunciar uma única palavra.
lú() -A1.,·1, LAt:AN? - É CLARO QUE NÃ<).

impcrdo:ívcl

Pouco antes de uma reunião da École, Lacan telefona para um


de seus alunos:
- Você vai presidir a reunião. No fim, quando eu tiver
tenninado, você suspenderá a sessão sem esperar nenhuma
objeção. É muito importante!
O aluno obtemperou, mas nunca lhe perdoou ... por ter
obtemperado.
1-IIS'l'ÓlllA lll> M<lVIMl:Nl'O PSl<:ANAI.Í'l"l(:<1 161

inocência?

Em 13 de outubro de 1972, Lacan aproveita a ocasião que lhe


dá uma conferência no estrangeiro para dar, à história de psi-
canálise na França, alguns destes detalhes que fàzem, quando
há cham1e, todo o cham1e; não sem razões, porque eles falam
dos acontecimentos que foram como que verdadeiras placas
giratórias.
- Encontrou-se alguém para agir como sempre se age ...
enfim ... quer dizer que se não se está mais de acordo, diz-se:
"Peço minha demissão"; então, esta pessoa que amo muito -
no final das contas cu a amo muito; não sou louco, mas, en-
fim, eu a amo muito - esta pessoa pediu sua demissão da In-
ternacional. Isto não me foi dito, isto foi feito na véspera do
dia em que devia haver um encontro comigo para formar um
novo grupo.
Aqui, poder-se-ia talvez não confi.mdir tempo lógico e levar
vantagem. Mas Lacan prossegue.
- Se ele me tivesse dito, eu lhe teria dito: "Assim mes-
mo consulte os estatutos! O que pedir demissão tem como
conseqüênci:"t? Isto tem sempre conseqüências, é preciso saber
quais".
Se hoje se sabe que o emprego da palavra "excomunhão" por
Lacan (antes de ser promovido por seu genro) não era justifi-
cado, não deixa de se colocar a questão: não foi este amigo,
que Lacan amava muito muito muito (ele o disse três vezes)
que, sem. saber, fez com que ele fosse expulso da comunidade?
1ú2 -A1.ó, LACAN? - É Cl.,\llO <JUE NÃO.

intervenção 110 scmimíiio

Ele era um daqueles psicanalistas que tinham escolhido ensi-


nar em Vincennes, à época universidade-piloto. Como o que
dizia provocou alguma agitação na direção (um de seus mem-
bros influentes assistia a seu curso), decidiu-se que isto seria
discutido no contexto do curso do Diretor do Departamento
de Psicanálise.
Ele prepara sua intervenção por escrito. Em análise com Lacan,
lhe remete o texto que pretendia falar.
Meia-noite, neste dia mesmo. Telefonema de Lacan·:
- Proíbo você de fazer esta intervenção em Vincennes.
Você a faó cm meu seminário, na próxirna terça-tcira.
Assim foi feito.
HISTÓU.I:\ l'M> /\\llVltvlENT<> l'SU:ANAI.ÍTICl) 1(,J

Ji1t1111id:zçâ'o?

Há uma tensão no grupo analítico enquanto, aluno, ele está


em an5.lise com Lacan. Há, ouve de um amigo "bem inten-
cionado", cisão no ar. O amigo, que também está por dentro,
lhe propõe escrever uma carta aos mais antigos, pedindo-lhes
que se entendam para o interesse dos alunos. Já que são estes,
os alunos, que o dizem ... mas, no último instante, eis que o
amigo se recusa, recusa assinar a carta. Seria preferível, lhe diz
o amigo, que a iniciativa parecesse vir somente dele. Amargo,
ele todavia concorda.
Não pode, é claro, deixar de falar disso a Lacan, o qual pede a
carta. l )epois de lê-la, ele pede a seu analisante que detenha
esta iniciativa, suplic:1-lhe não difundir esta carta, encontra mil
argumentos para convencê-lo e, diante da incompreensão de
seu interlocutor, um pouco aturdido com o qi.ic acontece,
acaba por dizer:
- Se você a divulgar, eu me suicidarei deixando um
bilhete onde direi que é culpa sua.

ironi:i?

Ele acaba de ser nomeado psicanalista.


Lac:m:
- Então, está aí, você é dos nossos?
164 - A1.ú, LAC:AN? - É CI.AU.0 QUf. NÃO.

isso afixa

Para o anúncio oficial do seminário O sintom,1, estava conten-


te de oferecer a Lacan um cartaz que enfeitara com cursivas
inglesas.
Ele logo lhe telefona, dizendo-lhe que, de fàto, achou muito
bonito ... , mas ... , no entanto ... , todavia prefere os caracteres
cow-boy (ele os chamava assim).
São, conta ela, caracteres retos, de serifas como botas feitas de
chumbo.
E acrescenta:
- Seria preciso batalhar para obtê-los do impressor.

1 / m*

Dizia-se na Argentina, talvez se diga ainda:


- ,1 teorú 111acania11a**,
* Jogo com cllc .1iJnc, "da ama". (NT)
** M.1c;111i.w.1, derivado de nwc,111.1: bobagem, mentira, desconhecimento.

L1c,w e o lac,111Í;1110

Muito contente, ela diz a Lacan que escolheu trabalhar numa


instituição psiquiátrica orientada por seu ensino.
- Que diabo você vai fazer lá?
- Quero um serviço lacaniano!
- Vá para Daumézon!
H1sróu..1A IX) M(.)VfMl:.NTO !JSIC:t\NJ\.LÍTIC:0 "165

Lacc111 jurado

Uma reunião do júri de assentimento, à qual cabia a decisão


de nomear aqueles que se apresentavam como passantes.
O júri ouve os dois passadores. Há pouca discussão pois é
claro para todos que houve engano, que se trata de um pedido
de qualificação profissional. Então a resposta só poderia ser
negativa.
Lacan intervém:
- Sou a favor.
É um escândalo. E cada um que se interrogue em seu foro
interior. O silêncio é finalmente rompido por um membro do
júri que ousa interrogar Lacan:
- Você poderia me dizer por que você está a favor?
- É boa gente.
O espanto toma o lugar da desolação, até mesmo a consterna-
ção. Novo silêncio. Finalmente, a mesma pessoa faz uma nova
pergunta:
- O que você entende por isso?
- Apesar do que ele disse para vocês, ele teve um bom
contato comigo.

lacuna

Dizia-se na École:
- A Lacan, sua lacuna.
166 -Ar.ó. LACAN? - É CI.AH.Cl qllE NÂO.

lenda?

Como teriam sido inventadas as sessões curtas? Wladimir


Granoff tem sua versão da histó1;:1 e, num momento, :1 revela.
Um di:1, depois da guerra, Lacan não resistiu ;1 vontade de
mandar um paciente embora, depois estremeceu, reprovan-
do-se ter cedido a sua imp:1ciência, inquietando-se para saber
se o paciente em questão voltaria. Mas oh! surpresa, alívio, ei-
lo 15, presente, na hora combinada de sua próxima sessão.
A sessão curta nascera.

Um encontro do campo freudiano. Psicanalista sul-america-


no, ele não pode mais, depois de um certo ternpo de escutar
exposições e de debates, reter o que tem a dizer:
- De um lado, ó objeto, do outro o significante, de um
lado isto, do outro aquilo, estas oposições simplistas e perma-
nentes não fi.mcionam.
Generosamente, acrescenta o que lhe parece ser a solução:
- Seria preciso, para sair disso, retomar a questão da lc-
tra.
Resposta de um dos responsáveis pela reunião:
- Você lê Littcm1/i.
Ele:
- Não. Não conheço esta publicação, mas agradeço a
você por me indicá-la.
HISTÓRIA IX> MOVIMENTO PSICANALÍTICO 167

loucm-.1 por loucw-.1

1974. A École fi-eudiennerealiza congresso em Roma. À par-


te, Lacan se predispõe à entrevista coletiva da imprensa. Ele
chega a comentar o efeito de curiosidade que se produz em
tomo dele e diz:
- É uma loucura, mas é assim.
Voz:
- O que motivou esta loucura?
Lacan:
- Foi motivada pela minha, provavelmente.

111:1l-c11tc11dido?

Pergunta, quando de uma conferência de Lacan:


- Ü que não é ato de fé [fo1l?
- É isso que é terrível, é que ... sempre estamos na feira
jfàiré].
- Mas eu disse fé, não feira.
- Sim, sim, mas eu, eu, eu, é minha maneira de traduzir fe.
168 -A1ú, LACAN' - É CI.Allll QUE NAO.

nwl-cntendido cm .-ilcm/io

Pediu-se a L:.1can intervir qu:.1ndo de um colóquio em Berlim.


Ele mesmo não foi, mas 111:.1ndou um de seus "lug:.1res-tenen-
tes" (sic! como se sustentar o lugar de Lacan fosse possível).
Algum tempo depois, cart:.1 de Lacan ao organiz:.1dor. As des-
pes:.1s do lugar-tenente não foram reembolsadas! Ora, Lac:.1njá
tinha telefonado para falar sobre isso. Até manteve sua mu-
lher, no telefone, dando-se mesmo o trabalho, durante vinte
longos minutos, de lhe con1unicar o problema em alemão (sua
mulher, de fato, não fala francês). Espanto.
Verificação feita, Lacan estivera, de fato, no outro lado da
linha, com a empregada, que não sabia certamente francês,
mas, afora algumas palavras, tampouco o alemão!
Perguntada, esta moça se lembrou de que, de fato, alguém lhe
falou muito tempo sem que compreendesse nada. Então jul-
gou que isso não devia ser importante.

masturb:1ção íi.·cudiana

Verificando a tradução em espanhol dos Escritos, esbarra numa


curios:.1 111;1110 dei mono, mão do macaco.
Ele vai ver Lacan, perguntando-lhe:
- O que é esta "mão do macaco"?
- É a masturbação!
- Mas se trata de Freud!
- Você não sabia que Freud era um grande masturbador?
H1sT(m.rA I}() MOVJMEN !'t) l'Slt:/\NALÍ'rlC() 1GCJ

medida comum

Lacan, sabe-se, devia enunciar o aforismo segundo o qual nio


h{ relélçJo sexu:zl. Mas isto não é tão fãcil de dizer, eis a prova.
Na Proposiç5o de outubro de 1967 sobre o psicanalista d1
E~cob, seguindo um célebre artigo de Octave Mannoni, de-
signava Fliess como sendo o psicanalista na origem da psicaná-
lise, Fliess, "o rnedicastro, o caçador de nariz, homem a quem
se revela o princípio macho e fêmea nos números 2 l, 28, quei-
ra111 ou não, en1 suma, este saber que o psicanalisantc, Freud o
cientista,[ ... [, rejeita com todas as forças pelo juramento que o
liga ao programa de Helmholtz e de seus cúmplices".
28, cifra da fêmea. Mas é Lacan quem inventa 21 como cifra
do macho, já que, em Flíess, esta cifra é ... 23!
-Então?
- Em todo caso podemos notar que, 23 sendo um nú-
mero primo, não há, segundo Flíess, medida comum entre
este 23 princípio macho e o 28 princípio fêmea, então, em
todo caso neste sentido matemático da palavra "relação" (este
sentido mesmo que Lacan escolheu), sem relação sexual.
- E então?
- 28 = 4 x 7. Ora, 21, cifra dada por L::i.can, = 3 x 7.
Ou seja, Lacan introduz aqui uma medida comum entre o
p1incípio macho e o princípio fêmea, ou seja, uma relação.
170 -Ar.ú, L\CAN? - É CI.A.R() QUE NÃO.

mentiroso

Era de bom tom, no grupo analítico a que ele pertencia, ter fre-
qüentado Lacan, poder dizer ter recebido algo diretamente dele.
Num dia em que jantava com alguns colegas, chegou a uma
confidência com um deles: não sabia? Tinha estado com Lacan!
- Ah, sim! E ele o recebeu?
- Mas sim.
- E quanto tempo?
- Seguramente quarenta minutos!
Assim se soube que ele mentia.

--·---·--------
11111 JJOVCCCJJtOS e SC.\:\"Cllt:l e oito

Contaminados pelos "acontecimentos", alguns psicanalistas se


reuniam ... Para tomar a palavra? Era muito estranho pa1:a aqueles
que professavam seu acolhimento. Mas, vamos adiante.
Fala-se de Lacan. Comenta-se que ele trata diferentemente
mulheres e homens, que es'tes não tinham chance, que não
chegavam a se desembaraçar pois ... Lacan os amava! Que des-
coberta!
Em Estrasburgo, quando do congresso da École freudie1111e
que aconteceu exatamente em maio de 68, alguém decide
que não devia manter a coisa para si, mas dizê-la - publica-
n1entc - a Lacan.
Foi o que foi feito.
Réplica:
- 1 like ou f lave?

'
I--l1s·r()lllA lX) M()\'!Ml·.N l'O l'Slt::\NAl.Í rn:t) 171

nomc:zç:io

Lacan, na intimidade, chamava Octave Mannoni, marido de


Maud Mannoni, de uma fom1a um pouco curiosa. Ele dizia:
- Mannoni O.
Porta abe1ta paGl os engraçadinhos de mau gosto da École que liam:
- Mannoni O.

JJOJ]]C:JÇÔCS

Granoff, Lechire e Pe1Tier tiveram um papel irnpo1iante na ne-


gociaç:io do pedido de :1filiação eh Sociét( fiwç-:ú,c ;1 IPA. Eles
estavam tio freqüentemente juntos que se os cha111av:1 "a tro"1ka".
Em suas conversas íntimas, :1 tro'i"ka apelidava Lacan: o grande
Jacques.

o aluno ... t:zl como c111 si 111cs1110?

Durante todo um ano, seguira o seminário de Lacan intitubdo


A angústia.
Decide entfo procurar Lacan. Ele o adora! Está tão absoluta-
mente entusiasmado que pensou que seria preciso afogá-lo.
Era, segundo ele, a única conclusão possível.
Reação de Lacan? Bronquear com este aluno, botá-lo porL1 .d; ,1.1.
não sem acompanhar este gesto con1 Lmu saraiv:t<h I l1 · i 11·.11 li, "·
l~eação do aluno? Não smnente sobrevivn ;111 .1, , ,11t r·, 1111n1111
mas, melhor ainda, aderir à escola ck 1.w.111
172 -Alú, l.At:AN? - Í; CLARO QUI, NÀ<.l.

o .fc,nômeno lacaniano

O próprio Lacan conta esta história em seu seminário de 1O de


dezembro de 1974.
Pessoas de uma cidade de província o tinham contatado, per-
guntando se aceitava ir fazer uma conferência cttjo título já
tinham escolhido: "O fenômeno lacaniano".
A evidência de uma preocupação comercial era muito patente
para que Lacan não a notasse: este "fenômeno", observa ele
então, não se trata tanto de falar dele, mas de exibi-lo - na
própria pessoa de Lacan.
Aceita, não somente ir falar, mas tarnbém o título. Não aceitá-
lo, observou, só poderia ser percebido como uma denegação.
l-lcsultado da operação? Ao fim de sua exposição, retornam-
lhc perguntas cuja pertinência era tamanha que só pôde con-
cluir que este "fenômeno lacaniano", apesar mesmo da visada
exibicionista, de o tinha ... demonstrado.

o inconsciente

Conversando com Lacan, ele lhe conta, não sem divertimen-


to, que há quarenta anos estivera no liceu com u111 tipo que se
chamava Lacan. Aliás, um incorrigível imbecil. Um dia eles
quase chegaram à confrontação. Esse tal Lacan de fàto se per-
mitiu enviar-lhe uma carta - lembra-se disso ainda, eles ti-
nha111 treze ou quatorze anos - que começava por "Senhor".
- E depois? pergunta Lacan.
- Não, você não entende. Não fui eu que escrevi a car-
ta, foi ele!
- Ah! você sabe, o inconsciente ...

\
H1s·n'm.. 1A 1)() MOVIMl-:N"I"() PSl<:ANAÜl'll:l) 173

o segredo de Lacan

A cena se passa numa cidade estrangeira, onde Lacan acaba de


se apresentar como conferencista. Os notáveis estão lá, pres-
sionando o mestre para dizer seu segredo. Lacan ficava em-
burrado, não respondendo a ninguém.
Mas ei-lo logo se voltando para a moça cham1osa que estava à
sua esquerda, perguntando-lhe no ouvido:
- Você me permite dizer-lhe meu segredo?
Afustada da psicanálise mas esposa de um "analistínha", a eleita
responde:
- R..ealmente, eu ficaria feliz em ouvi-lo ...
- Meu segredo ... é que eu tenho cinco anos.

o último sc111i11Jáo

Gloria, prepar:mdo seu anúncio:


- O que devo colocar como título?
Lacan:
- Sem título ... Será um seminário sem título!
Gloria:
- Sem título e sem palavras.
17-1- -AI.ó. LA<:AN? - Ú CLARO QUE NAO.

obsdculo
Início de uma conferência de Lacan em Louvain e preocupa-
ção do orador: estão ouvindo bem? Deve-se dizer que ele
colocou o microfone que prenderam nele sob a brravata.
Lacan:
- Mas se, por acaso, isto atrapalhar, tenham a gentileza
de me falar. Ouvem-me? Não me ouvem!
Lacan, virando a gravata ao contrário, põe então o microfone
para cima.
- E assim, me ouvem? Está bom?
Deve-se acreditar que a resposta foi positiva, o que devia per-
mitir ao conferencista concluir esta pequena experiência qu;,-
se que cientificamente:
-- Então a gravata era um obstáculo.

p:1r:1lclo co111pro111ctcdor?
Pamiliarizado com o ensino de Gu]"(ljieff~ Granoff perguntava
a Lacan:
- Mas seri que você não vai nos embarcar numa aven-
tura do tipo da de Gurdjieff?
- Ah, lá vem você!
Uma resposta pelo menos enigmática! Mas que se esclarece se
se a lê à luz da segunda cena do bon mot. Ela tem lugar, não
no tempo da camaradagem, da afeição, do amor entre seus
dois protagonist:is, 111:is qu:indo consumada :i ruptura entre os
dois. Ela constitui, também, a única reprovação que Lacan
dirigiu :i Gr:inoff depois desta rnptura:
- E quando penso que foi você quem, outrora, me fez a
pergunta de que me lembro ainda: "Será que você não vai nos
fazer entrar numa aventura co1110 Grnjieff?", que você me
tenha feito esta pergunta, e que me faça isso agora!

\
HIS'J'ÓlUA J){) Ml)VIMl~Nn> i'Sll:t\Nt\LÍ'J'IO) 175

passe por escáto

Tendo chegado a um ponto de sua análise em que começava


a encarar a apresentação de sua candidatura ao passe, ele fez
uma proposta original a Lacan: desejava entregar os elementos
deste passe por escrito.
Resposta:
- Sim, se você quiser. Todavia, saiba que isto não será lido.

pcrvc1:ç,10

Última reunião "científica" da Société th1nç::Ii1·e de p.1ycl1:maly1·e.


Jean Clavreul apresenta um tr::i.balho sobre a perversão.
Depois dos cumprimentos de praxe, Lacan, não sem malícia,
decbra:
- Somente os perversos podem falar conveniente1nente
da perversão.

propaganda?

- Em que a École fi-eudienne de Pan"s se distingue das


outras escolas psicanalíticas?
Lac::i.n:
- Nela se é sério.
- Porque as outras escolas não são sérias?
- Absolutamente não.
17<> - A1.(1, LAU\N? - É CLARO lJUE NÃO.

prov:1 comprov:1d01~1

Convidado a tratar da identificação na École nomwle supérieure,


Lacan tira da pasta dois tubos de vidro; um continha um grilo
peregrino isolado, o outro um grilo peregrino que pertencia a
uma coletividade.
As diferenças morfológicas dos dois animais, que o indicador
de Lacan mostrava a seus ouvintes, deviam comprovar-lhes a
incidência da imagem do semelhante na constituição do cor-
po próprio.

provocaç-:'io suJTc:dúta?
ou dc111:wd1 impossível?

Alguns membros eminentes do grupo Te/ Qut'/, naqueles me-


morivc1s tempos "amigos" da China e de seu presidente Mao,
projetam uma viagem para o Oriente. Ainda que não fazendo
parte do grupo, Lacan participa deste projeto. As discussões
prepar:itórias estão bem encaminhadas. Circula um formulá-
rio, onde todos escrevem suas "sugestões" para a organização
da vi:igem. Elas serão dirigidas às autoridades chinesas, as {mi-
cas habilitadas, cm última instância, a aceitá-las ou recusá-las.
Lacan, radiante, escreve, no pequeno fommlário: "Visita de
um campo de correção para os intelectuais recalcitrantes".

\
f-llSTÓRIA IX) MOVIM~NTO PSICANAI.ÍTICO 177

psicm:flise :i bcania1w

Certo psicanalisante nunca deixava de fazer o que lhe agrada-


va. Um belo dia infonna a seu psicanalista que decidiu parar
de fumar.
No fim da sessão, seu psicanalista se levanta e dá alguns passos
na sala, para desenferrLtjar as pernas. Ele pára diante de uma
mesa baixa, dirigindo-lhe um olhar que nada vê.
Estouro de riso do analisante. De fato, este, ao entrar, colocou
na mesinha uma revista, virada de costas, de modo que se
oferecia ao olhar uma publicidade de página inteira onde se
podia ler, em letras grandes: PETER STUYVESANT.

quando L.1c:111 se dí 111.11*

Dois membros da École fi-eudienne pensavam em fundar uma


revista muito original. Original, até premonitória, já que seu
título era: O ordin:írio do psic,w:dút,1.
Em busca de editor, os dois amigos vão falar dela a Lacan.
Lacan fica empolgado: propõe fazer parte do comitê de reda-
ção e deseja que a futura revista seja publicada pelas Edições
Seuil. Diante da dupla recusa de seus interlocutores, exclama:
- Por que vocês me procuram se não aceitam nada do
que lhes proponho?
* E:,q,ressão francesa t?trt· de l.7 revut~ entre os militares, significa ter sido
escalado para a parada e, portanto, ter que abrir mão de seus planos para o fi111
de semana. Há um jogo de palavras com revue (parada, desfik 111ili1.11) ,.
ll'\'l\l ,I ( t,r J )
178 -A,ú, LACAN? - É CLARO QUE NÃn.

que histó11~1!*
Ele lhe enviou a obra de história que acabava de publicar.
Resposta - escrita - de Lacan:
- Sempre se fica atrapalhado no terreno da história.
* Hystoirc não é a grafia correta. que seria húto1i-c·. Pode haver referência à
histeria. (NT)

rei nccrro
b
lendo

Lacan foi visitar uma população africana. Sua primeira visita,


formalidade obrigatória, foi para o rei.
Como para entrar no assunto, quando desta audiência pública,
Lacan estende para o rei uma carta de apresentação. O rei a
pega, mas de cabeça para baixo, deixando depois, por algum
tempo, seu olhar errar pelo papel. Seu visitante compreende
que ele não sabe ler mas que, diante de seu povo reunido, um
legítimo cuidado com o prestígio o obriga a fingir.
Lacan evita intervir de qualquer maneira que pudesse ferir a
astúcia do rei.
Depois de alguns instantes, o rei dá a seu visitante todos os
testemunhos da melhor das hospitalidades.
H1s'l'ÓlllA l>O /'vlOVIMEN"l'O l'~ICANAl.incn 179

resposta ,1 um convite

Jovem interno de psiquiatria, ele resolveu tomar a iniciativa,


ousou pegar sua caneta para. convidar Lacan à sala dos planto-
nistas.
A aceitação o surpreendeu um pouco; mas o que verdadeira-
mente o espantou foi a fonna como Lacan se dirigiu a ele em
sua resposta. Lacan lhe escreveu, de fato:
- Caro colega,

rcto1110 de dcm:wd:1

Lacan lhes ensinara a diferenciar ncc~ssidade, demanda e dese-


jo e eles acreditav:un ter aprendido bem a lição. Esta, aliás,
havia praticamente se transformado em palavra de ordem: o
psicanalista não responde à demanda, mais ainda, nunca de-
manda.
Vinte de maio, (i8. Psicanalistas se reúnem, com líderes do
movimento estudantil.
- O que nos demandam?
lança um psicanalista, sem ter a 111enor percepção da incon-
gruência de sua ... demanda.
180 - Ai.ó, LAC:AN? - É CLARO QUE NÀO.

sem escolha

Mil novecentos e sessenta e nove: alguns analistas - dentre eles


alguns amigos de Lacan há muito tempo - deixam a École
íi:eudienne. O acontecimento preocupa um analisante de Lacan,
que um dia resolve lhe fazer sua pergunta:
- Perrier assim mesmo continua lacaniano?
Lacan, num tom divertido:
- Bem, que outra coisa você queria que ele fosse?
HlSTÓU..JA IX1 MOVJMEN"fO PSICi\NAI.Í'J'JCO 181

sessões curtas

Foram, muito claramente, as que foram infligidas a Lacan.


Contamos duas, com alguns anos de intervalo.
Paris, 1932. Jovem psiquiatra, Jacques Lacan sustenta sua tese
de medicina diante de seus mestres. Um deles pede que for-
mule o que se tinha proposto. Ele cumpre:
- Em suma, senhor, não podemos esquecer que a lou-
cura é um fenômeno do pensamento ...
O examinador interrompe imediatamente o orador con1 um
gesto significativo:
- O quê? E que mais? Passemos às coisas sérias. Vamos
ficar nos escondendo? Não desonremos esta hora solene.
Reação, quatorze anos depois, de um Lacan que por vezes
tem memória longa: ton1ar cômico este corte, à 111aneira de
Moliere, Num dignus eris i11t1~1re i1111ostro docto c01pore cw11
isto vocc: pe11s:1re!
Lacan seria melhor acolhido pelos psicanalistas? Eis o segundo
corte de sessão anunciado.
Marienbad, 1936. Lacan se dirige aos psicanalistas reunidos
em congresso, apresentando-lhes seu EstJdio do espelho. Ernest
Jones preside a sessão. Escondido atrás do respeito ao cronô-
metro, interrompe o orador no quarto sinal depois do décimo
minuto do tempo que lhe coubera a pâoú
Dupla reação de Lacan. Nesta própria noite, em seu hotel,
começa a redigir "Além do 'princípio de realidade"', texto ...
inacabado!
Depois, contra o aviso de um dos organizadores, abandona a
eminente assembléia, dando preferência a seu interesse pl'i, 1\
Jogos Olímpicos organizados pelo nazismo em esc;1Lid.1
182 -ALÔ, l.l\CI\N? - É CLARO <~UE NÃO.

s1ga111-111c

Numa noite de 1953, entre a primeira cisão da SPP e a criação


da SFP, no subsolo do Care Capoulade, Lacan reuniu seus
alunos para dizer-lhes de sua alegria por a nova Sociedade
estar a ponto de ser criada.
Ele conclui sua arenga dizendo-lhes:
- Sigam-me, eu os levarei ao fim do mundo.

Sigmund

Ele é alemão, tradutor, psicanalista e suficientemente assenta-


do socialmente para poder um dia dizer a Lacan:
- Vou fi.mdar a S1:!fnw11d r1:cud Sclmlc.
Parecendo não compreender, Lacan pergunta:
- A segunda Freud Schule?
H1STÓRI/\ !)() M(>VIMf.N ro l'SIC:ANAJ.i"rn:o 183

sÍntcsc

Lacan:
- A minha atitude não lhe parece uma atitude comedida?
Uma voz:
- Estou escutando.
Lacan:
- Você está escutando, sim. Mas você pegou aí alguma
coisinha, assim, que parece real? Não?
A voz:
- Não sei, não é de minha alçada. Cabe a mim fazer
depois, de alguma fon11a, uma síntese.
Lacan:
- Você vai fàzer uma síntese? Você tem a chance disso!

socialútél

Como ele interrogasse Lacan, perguntando-lhe:


- Você é socialista?
Lacan responde:
- Não, a não ser em meus momentos de fraqueza.
184 - A,ú, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

socr:ítico

Em 13 de janeiro de 1970, quando das Reuniões da École


freudie1111eonde foi adotada (não sem perturbações e ao preço
de uma cisão) a Proposipio de outubro de 1967sobre o ps1à-
1wlút;1 d1 Escoh, Lacan teve um mal-estar.
Aterrorizado, um de seus alunos grita:
- Lacan não está bem, certamente tem urna idéia na
cabeça.

Sylvia se mete

Estávamos no tempo da confrontação Lacan/Nacht, o padri-


nho, corno o chama Granoff. Sylvia, um dia, diz a este o se-
guinte:
- Oh! Sacha Nacht, ele até que conhece seu oficio, mas
não se deve dizer isso a Lacan, ele faria um drama.
Comentário atual de Granoff:
- Sim, ele conhecia seu oficio, mas, quanto ao estilo, é
outra coisa.

tclcvú.io

O realizador estava desesperado, a cada tomada para a emissão


de Televisão, Lacan respondia de modo diferente à pergunta,
imutável, que lhe era feita.

\
H1STÓIUA IXJ MOVIMl'iNTO l'SICANAÜrrc:n 185

televúâó (aind1)

O opúsculo publicado sob o título Televú/io de nenhuma for-


ma oferece uma versão fiel do que Lacan dizia quando da
emissão televisiva "transcrita". De modo que, para ter acesso
ao acontecimento desta televisão, só resta a todos usar, vu
cassete e vídeo, sua televisão.

topog1~1fi,1

Ele tem um encontro às 10 horas exatamente, em Guitrancourt,


para trabalhar com Lacan. Lacan desenhou para ele uma plan-
ta de seu trajeto, ele não pode se enganar no caminho.
É claro, ele se engana ... pela rodovia, chega às 10.30 h ..
Lacan, muito zangado, cortando de cara suas balbuciantes ex-
plicações, lhe diz:
- Mas eu tinha um plano* para você!
* Em francês, plan: planta e pbno, entre outras acepções. (NT)
IH<> -Ai.o. L\CAN? - É CLAIH> QUE NÃO.

tot:ilitin'o

Sobre seu psicanalista, diz que era um aluno muito afastado de


Lacan. Quanto a suas intervenções, à moda "comment V<?s-tu,
yau de poêle?k", elas pareciam muito pouco lhe pennitir se situar
a respeito da transferência - e sua analisante percebia isso.
Um dia, vai à sessão com os Escritos de Lacan, depois, ato
falho que nada deixa a desejar quanto à limpidez de seu dizer,
esquece o livro.
Observação do psicanalista na sessão seguinte:
- Então, para você Jacques Lacan sabe tudo?
Mas, mais curioso ainda, permanece o fato de que a analisante
não percebeu, então, que era seu psicanalista quem assim in-
troduzia a concepção segundo a qual os Efcátos conteri:1111 a
totalidade do saber.
De fato, ela só pôde responder-lhe:
- Sim.
* Jogo dl' palav1:1s i11traduzívl'L As intl"fVl'llÇÕl's hasl·adas nos sig11ifica11tcs do
pacicntl' eram criticadas como sendo lcvi:lllas e i11cticazcs. (NT)
H1s·1·,·m.1A 1)() M<WIMEN"J'() PSIC:ANI\J.i l'IC:() 187
·--·-----·------------------------

traduções

Em Zurique, em agosto de 1949, ocorre o XVIº congresso da


IPA. Lacan contata Melanie Klein e consegue particularmen-
te dela que lhe conceda traduzir em francês A psicanilúe de
c1ú11ç;1s. De tal forma que, quando, pouco depois, Françoise
Girard fez a Melanie Klein o mesmo pedido, esta informa que
a tarefa tinha sido confiada a um outro - mas sem dizer quem.
Fim do primeiro episódio.
O congresso de Amsterdã deu lugar a uma reviravolta. Melanie
Klein, de fato, devia aí ouvir da boca de René Diatkine (então
discípulo de Lacan) que este lhe havia passado a versão alemã
do texto kleinüno, pedindo-lhe então fazer a tradução. Fim
do episódio dois.
Terceiro episódio. Mebnie Klein ouve novamente de Françoise
Girard. Lacan lhe havia proposto, a ela e a seu marido, traduzir
A psican;í/i\"t' de cn:111ps, mas, desta vez, a partir da versão
inglesa deste texto.
Naquele momento, Lacan fazia um verdadeiro malabarismo:
sua própria tradução do alemão, depois a de Diatkine, depois,
para continuação do texto, aquela feita a partir do inglês (uma
tradução em inglês do texto alemão). A situação, convenha-
mos, não era das mais simples. Lacan se prontificava a publicar
a obra de M. Klein tendo traduzido a primeira parte do ale-
mão e a segunda do inglês?
De toda forma, Françoise Girard, em dezembro de 1951, diri-
ge-se a Lacan, pedindo-lhe a tradução a partir do alem:'ín. dt·
maneira a unificar o estilo, assim como o vocabuVirio. N 1111, .1
a obteve- a despeito de Lacan ter esquadrinhado t".1\.1 .!,·, .1111
po e apartamentos parisienses.
188 -AL<\ LACAN? - É (:1.AllO QUE NÁO.

Mas mais estranha ainda é a conclusão de Phyllis Grosskuth,


que reconstituiu toda esta história: "Lacan não revela e nunca
admite oficialmente que perdeu a tradução feita a partir do
alemão por Diatkine, que não guardou nenhuma cópia de seu
trabalho". De fato, por que inferir do fato de que Lacan não
tenha encontrado este texto (o que ele dizia) este outro fato,
de que o teria perdido?

tr,1dutorcs

Assim que desembarcado na França (de sua Argentina natal)


para seguir o ensino de Lacan, um belo dia se vê chamado por
este. Trata-se, lhe diz Lacan, de verificar a tradução dos EçcJi-
tos cm espanhol. Lacan está furioso. Intitulou-se isto de Lectur;1
estructumlút:1 de Freud O tradutor era um poeta mexicano.
- Você aceita se ocupar disso?
- Sim senhor, mas com três condições: primeiro, que cu
possa consultá-lo sobre os pontos difíceis tanto quanto for pre-
ciso; depois, que o senhor assine comigo esta revisão e, enfim,
que eu seja remunerado.
- Fechado!
Assim foi feito como previsto, até o dia em que o poeta, ba-
tendo os olhos em cerca de dez erros por página que ele teria
deixado passar, furioso, responde que não poderia assinar esta
nova tradução onde bem reconhecia a mão de um argentino.
Lacan telefona ao supracitado, comunicando-lhe a poética reação:
- O que você diz disso?
- Senhor, fiz este trabalho com muito cuidado, não te-
nho nenhuma palavra a mudar.

\
f·IIS'JÚI\IA IX> MOVIMENTO PSICANAl.ínco 18()

- É sua última palavra?


- Sim, e devo pedir-lhe que retire meu nome se o texto
a ser publicado não trouxer as correções que estabelecemos.
- É sua última palavra?
Desta vez o tom é furioso. Lacan acrescenta, tenTunando:
- Farei como você quer.
Eles estavam furiosos.
Algum tempo depois, o texto é publicado com a maior parte
das correções efetuadas, o nome do revisor associado, como
previsto, ao de Lacan. Um cheque devia seguir pouco depois.

troc,1d1lho

No período que se seguiu à dissolução da École fi-eudie1111e de


P.1ris, teve a idéia de uma revista para a próxima escola. Sub-
meteu a Lacan uma redação de seu projeto, propondo como
título: C,111,1/
Lacan:
- Sou a favor.
Mal chegando à ma, ela realizou que o nome escolhido era o
anagrama do nome de Lacan. O que deteve o projeto.
190 -AIÚ. I.At:AN? - Ú t:t.A\U) l}Ut: NÃU.

uma emenda ;zo que kwú1 ... ,111tcs

Um interlocutor, quando de uma discussão pública:


- Você só repete o que dizia São João, que a linguagem
está na base do homem.
Lacan:
- Assim mesmo eu acrescentei algum:i coisa.
Interlocutor:
- São João começa seu Evangelho dizendo que no co-
meço era o Verbo.
Lacan:
- Sim. Estou de acordo com isso. Mas ANTES do co-
meço, onde é que ele estava?

wn :1 resposta?

Uma jornada de estudo da Écolc fi-eudiem1t'. O orador:


- A foraclusão é reversível?
Neste momento preciso Lacan se levanta e deixa a sala.

vcrdadciz~z verdade

Uma questão estava no centro dos debates que deviam culmi-


nar na cisão de 1953, a das "sessões curtas".
Para alguns de seus analisantes, Lacan fez notar:
- Veja como eu aumento o tempo das sessões, você
pode testemunhar isso.
Dizendo isso, persistia em praticar como no passado.

\
l·l1STÚR.JA !ltl M<lVl.'vlENl"C) l'Slt'.ANAI.ÍTlt:C) l'JI
-----·---·--·---·-·------

vÍd:1 dcjcsuím

- Meu caro, ... , venha então jantar comigo amanhã à


noite.
Um convite de Lacan não é pouco! O feliz beneficiário era
desta vez um jesuíta, um "jesa" como eram chamados, psica-
nalista na icole.
Durante o jantar, intimidado com tant1 honra, o "meu caro"
não sabia muito o que dizer, e o jantar se arrastava tanto que
Lacm, de cara no chão, não falava nada, deixava a convers:t
nll'rgulhar nas ban:i.lidades de praxe. Ele colocado à parte ( once
more time), todos fazi:tm esforços, e isso era percebido.
À sobremesa, como que emergindo das coisas que o habita-
valll, Lacan - enfim - se dirige a seu convidado:
- Então, meu caro ... , diga-me, o que você faz de sua v1*?
* escrita forn'.,ticJ [cm frJnci:s, n,c. "vida" e r·it, "pi:uis". (NT)I

vÍtúnc sccrct:1

Na sua residência de Guitrancourt, Lacan possuía unu vitrine


secreta. Eb abrigava uma coleção de estatuetas e1:,11pcias de época
de Tut Ankh Âmon. Só as mostrava a poucos privilegiados.
192 -Atú, LACAN? - É CLARO QUE NÃO.

volto ,1 úso logo (B. Vian)

Não muito contente com seu psicanalista, procura a secretária


da EFP. Com quem fazer análise? lhe pergunta.
A secretária lhe dá nomes: fulano, sicrano, este outro ...
Ela:
-E fulano?
(Trata-se de seu psicanalista, o que a secretária ignora.)
Resposta:
- Ah, ele não! Está lotado, não poderia ter lugar para
você!
Favas contadas: ela criou asas para retomar sua análise com seu
psicanalista.
Encontros
ENCON 1'11,0'.i 19.5

a ongem do mundo

Trata-se daquela pintura de Courbet - um sexo feminino -


que, reproduzida na capa de um livro, ainda provocava escân-
dalo em Clem1ont-Ferrand, em 1994.
Lacan tinha este quadro, na parede de um corredor de sua casa
de campo em Guitrancourt, o qual mandara cobrir con1 uma
pintura de André Masson, uma composição abstrata feita a
partir de fragmentos estilhaçados de L 'ongine du monde. Uma
corrediça permitia desvelar a obra para certos visitantes assim
privilegiados.
J.-Pontalis estava entre eles? Não é certo, se se julga isso, toda-
via, por sua própria dedaraç:io:
- Lacm me mostrou L 'origine du monde apenas uma
vez. Creio que não foi por meus belos olhos, mas porque eu
estava acompanhado por Marguerite Duras.
196 - Au'l, LA<.:AN? - É c1.,-..11..o QUE NÃO.

à su:z sem t*

Em 1959, L1 psyclwmzlyr;e, em seu número 5, subintitulado


"Ensaios críticos", traz um texto de Winnicot: "Objetos
transicionais e fenômenos transicionais". Smimoff traduziu este
artigo, não sem ter consultado o autor sobre um certo número
de problernas de tradução.
Depois de sua publicação, em 11 de fevereiro de l 960,
Winnicott escreve ao "caro doutor Lacan". Ele notou, lhe
diz, a que ponto alguém teve a maior atenção em relação aos
detalhes desta tradução, ... "e provavelmente foi o senhor".
Esta declaração é magnífica; mas também prepara o terreno
p:i.ra o comentário irônico que se segue.
- Que seja dito, de passagem, acrescenta de fato
Winnicott, meu nome termina com um duplo t (Winnicott),
mas este tipo de coisa ni'io me perturba.
* Em franc:í'-s, s:1ns r, "sem r"; s.wr,:, 1:m portu~uês, "s:mdaçõL•s". (NT)

apostrofado

1972, sala Liard. Cerimônia de defesa de tese de Claude Lefort.


Lacan, atrasado, faz uma entrada not:ida. Terminado o rito,
de se mistura aos membros do júri e apostrofa um deles:
- Você sabe muito bem, Granel, que Eu lfe] digo sem-
pre a Verdade.
Ainda que grafando "digo" no relato escrito que fez deste bon
mot, Granel não ignorava que deveria escrever "diz".

\
ENC('IN"lºR(.)S 1<)7

:1s 111/ios sujas

Quando da cisão que devia culminar na criação da APF en-


quanto grupo que se separava de Lacm, um dos mestres do
novo grupo confia a Jean Laplanche:
- Nada de ilusão e idealismo, meus jovens; é claro que
todo analista didata influencia seus analisados.
O que Laplanche entendeu perfeitamente: "Todo mundo tem
as mãos sttjas, concluía ele, Lacan errou ao mostrar-lhes".

bcbG~ cboriio

Este bebê chorão, ou melhor, seu estatuto, real, imaginário ou


simbólico, foi o traço decisivo no rompimento de Granoff e
Lacan. Granoffintroduzira na França a obra de Ferenczi. Quan-
do de uma discussão sobre este importante trabalho, Lacan
intervém para lhe dizer:
- Enfim, assim mesmo, nunca se viu, numa sessão, a
bem da verdade, um bebê chorar no divã!

caro livro

Com a morte de Alexandre Kojeve, Lacan quis comprar o


exemplar de A frnome110/ogfr1 do espírito anotado pela 111:ío
daquele de quem havia recebido um ensinamento.
198 - Au), LAC:AN? - É t:LARo c...:>ui-: NÃO.

cartcs1~mo ... até este ponto?

Lacan, nos diz François Cheng, gostava muito especialmente


do verbo "cogitar".

católicos nSo-romanos?

Lacan tinha escrito: "A simulação da igreja católica, que se


reproduz cada vez que a verdade como causa vem do social, é
particulam1ente grotesca numa certa Internacional psicanalíti-
c1 ... ". Frase que G. Granel tinha esquecido, em todo caso até
que teve que refornmlá-b ?t sua maneira:
- Não há, dizia ele então, somente católicos da religião,
há também católicos da ciência, e certamente católicos da psi-
cmális e .

chato

François Wahl era responsável, nas edições Seuil, do setor fi-


losofia-ciências humanas. Ele teve a audácia de publicar Lacan.
Quando discutia com Roland Barthes escritos deste último,
não parava de lhe sugerir que levasse em conta tal ou tal outro
ponto da doutrina lacaniana.
Barthes, por si, pensava, e até mummrava (de maneira a ser
ouvido, principalmente por quem nos conta este bon mot):
- Que chato!
ENCONTllOS 199

compreender

Diálogo Lacan/Dolto, à saída de um seminário de Lacan:


- Então, o que você pensa sobre isso?

- Você não tem necessidade de compreender porque, o


que eu digo, você faz.

confi-onto evitado?

D. V asse, vice-presidente da École freudienne (sempre dirigida


por Lacan), foi participar de um colóquio organizado pelo
grupo Confront,1tion, dirigido por R. Major. Por n1.eio de
que foi solicitado a Vasse pedir demissão de seu posto.
No dia seguinte, telefonema de Lacan a R. Major:
- Não se incomode, meu caro. Continue. Trata-se uni-
camente de problemas de política interna.
200 - A1ú, L:\CAN? - É CI.AU.O QUE NÃO.

dcsm1úific.1do

Lacan está sentado a uma mesa ... , esperando ... Rom:m Polanski,
com efeito, que o havia convidado, está atrasado, e este atraso
se prolonga ...
Depois, de toda forma, num certo momento, o cineasta che-
gou. Rapazinho (por seu talhe), ei-lo oferecido à visão de
todos e ;1 de Lacan, cercado por duas soberbas mulheres que
são maiores que ele mais que um palmo. Aqui, nosso scnj,t
anota: movimentos diversos na platéia.
Os três se instalam à mesa, silêncio, sobre o fundo do qual vai
ressoar um suspiro muito profi.mdo de Lacan, não menos no-
tado que a entrada de Polanski. Lacan, então, se levanta, dei-
xando definitiv:1111ente o restaurante, deixando o caro R.oman
plantado lá, com suas duas mulheres.

Dur:.1s cont;J

Lc i-:1v1sst•111t·11t de Lo!. V Stein acabava de ser publicado.


Marguerite Duras conia, com este texto que marcava a deci-
siva mudança de seu estilo, o risco de não ter mais leitor.
Nesta solidão assumida mas dificil, recebeu uma chamada te-
leffinica de Lacan. Ele lhe propunha, neste dia mesmo e numa
hora tardia, um encontro num bistrô.
Ela aceita e chega primeiro. Logo depois, vê Lacan entre as
mesas, caminhando em sua direção. Muito caloroso, agora
muito próximo a ela, ele lhe diz:
- Você não sabe o que diz!
ENCON Jfü)S 201
----··------ ----------------------------

encontro com Gocbbcls


Ocorreu em Marienbad, em 1936. Contando que se o fez
tomar o pulso de Goebbels, Lacan acrescenta:
- Eu estava certo de que este tipo tinha sido analisado.

cvidéncia

Estamos cm 1988. Green conta que Lacan, confidencialmen-


te, lhe teria dito:
- Tudo o que sei da psicanálise recebi de Nacht.
E Grccn, não sem uma boa dose de maldade, acrescenta:
- O que é evidente*.
* I:,'ndc·nt = refer~ncia ;10 verbo c:1'ida, "c:svaziJr". (NT)

H cidL~f!/[Cr psiq u Í:I tra

Heidegger acaba de receber os Escritos de Lacan. Tendo cons-


tatado que não podia ler este texto manifestamente "barroco",
conclui:
- Parece-me que o psiquiatra tem necessidade de um
psiquiatra.
202 -A1ú, L!\CAN? - É CI.ARD QUE NÃO.

inc01po1~?Çé10 rcé1f de um objeto simbólico

Ocorria às vezes, quando trabalhavam juntos, que Lacan e


François Cheng, depois de ter queimado a mufa, ficassem blo-
queados por uma questão. Uma destas vezes, Lacan diz a Cheng:
- Peguemos um pouco de chocolate [chocol:itl ! Você
gosta de chocolates?
- ... Não muito ...
- Goste deles. É muito bom; são da Bélgica.
Depois, após o gosto requintado do ped:..ço eleito ter :.1legr:.1do
a cara de seu parceiro:
- Não é?
Lacan teria conseguido dar um choque [clwc] no tom da dis-
cussão?

j:.w t:z r 111 u n d:111 o

Lacan tinha forçado a barra com Françoise Giroud. Com Lévi-


Strauss, ele ia encontrar, na casa dela, quando deste jantar,
Pierre Mendes-France. Certamente a anfitriã estava avisada de
que Lévi-Strauss nlo era muito falante. Entretanto, naquela
noite, as coisas foram piores do que tudo que se poderia ima-
ginar: durante toda a refeição, inclusive durante o café, hem
Lévi-Strauss nem Lacan abriu a boca.
Foi preciso muita coragem a François Giroud e a Mendes-
France para sin1tilar urna conversa.
Pergunta de Mendes-France, tendo os dois partido calados, a
uma Françoise Giroud encabulada:
- Seus amigos são assim?
ENC:ONlltOS 20.1

lá Kant?
Daniel Lagache, depois de Lacan ter tem1inado seu seminário
sobre A ética d1 psicw,ilise, lhe teria dito:
- Então? Quando você vai fazer sua estética?

J.i onde os c,1Jos ,1pert,1111


Lévi-Strauss, a um jornalista que excepcionalmente aceitou
receber, j{t que recomendado por Lacan:
- Se eu fosse analista, ganharia muito dinheiro.
A frase atinge quem de direito, pelo viés do go-between.
Este nota que Lac:111, a dar ouvidos a ele, "encaixa" sem
bronquear.

lapsos i11tc1prctativos?

Em 1975, Soury e Thomé são interlocutores de Lacan, parti-


culan11ente no estudo das cadeias borromeanas. Acontece-lhe
mesmo de publicamente assinalar que chegaram, discutindo en-
tre si, a resolver certos problemas que o deixavam imobilizado.
No envelope de um dos muitos bilhetes que lhes envia, pode-·
se ler: "Ao Senhor Soury onde* o Senhor Thorne".
* Oú, "onde", ou, "ou"; note-se tambéin :t mudança de acento l'l11 "ff,, ,,,,,: :\
frase cm francês ~: ;i Monsit:ur Somy oú Momic·11r /'/1, •111, · 1J 1 1 1
2D"t - A1ú, L:\C;\N? - É (~1.AJl..ll l.,?UE NÀO.

leviano?

Maurice de Gandilbc conta ter sido um dia contatado por


Lacan:
- Disponho de uma semana, diga-me o que devo ler
para conhecer Santo Agostinho.
Chocado, o filósofo pensa, para si: "Mas ele debocha do mun-
do! Que leviandade pretender assim aceder a Santo Agostinho
cm alguns dias!".
Entretanto - muito estranhamente - Gandilbc remete a Lacan
as indicações de leitura pedidas.

------··-------
min/1:1 111u/lu:1~ JJ!:wdwt e cu

Sua mais recente leitura de l 'écriturc du dés:1stn' o mergu-


lhou num tal estado que nfo podia fazer outra coisa que falar
a Lacan de sua perturbação.
Ele não ignora, certamente, a proximidade, tanto amiga quanto
teórica, de Lacan e Blanchot.
Resposta de Lacan, completamente inesperada:
- Ele conhece melhor minha mulher que eu.
Depois, percebendo o equívoco gramatical:
- Quero dizer ... ele conhece melhor minha mulher que
não me conhece.
ENc:nN m.l">S 21)5

- po d"1c111e10
n,10 - sc1 ber.'

20 de janeiro de 1976, um dia de seminário. Lacan deu a


palavra a Jacques Aubert, especialista em Joyce. Num certo
momento de sua exposição,Jacques Aubert menciona a epifania
Joyceana.
Lacan:
- É um termo de Joyce?
Aubert (surpreso):
- Epifania? Sim!

11,1ZJS/1JO

1959. Um jantar reúne Lacan, sua filha Judith, Maurice de


Gandillac, o heideggeriano e ex-analisante de Lacan Jean
Beaufret e a Senhora Dreyfuss, mulher de Lévi-Strauss. Co-
meça uma viva discussfo sobre o nazismo de Heidegger. Lacan,
por sua parte, acaricia os cabelos de sua filha, depois tenta fàlar
de outra coisa.
20(i - Atú, L/\t '.t\N? - É L:l.t\lU) \.)UI-: N:\(),

o grande segredo da cloqiiê11ci:1

Uma muito ilustre assembléia se reúne naquele dia para cele-


brar o octogésimo aniversário de Ludwig Binswanger. Estamos
na Suíça.
Como Lacan apareceu de surpresa, pediu-se ;l ele que partici-
passe do silllpósio.
- É evidente, responde ele, que não tenho nada a dizer.
Por meio de que, tendo cada um falado exatamente 10 minu-
tos, ele continua sua fala até o ponto em que, depois de três
quartos de hora de discurso, observa:
- ... Pois bem, enfim, havia muito pouca coisa a dizer.
É entfo que Binswanger, que presidia ;l sessão, corta-lhe a
palavra dizendo:
- Acabo de :iprcndcr algo muito importante: o fato de
nada ter a dizer é o gr:mde segredo (b eloqüência.
L:1cm ficou muito entusiasmado com esta observaçi10. Imedi-
atamente a escreveu cm letras garrafais numa folha da dimen-
são de um cartaz. Pediu a Binswanger, e obteve dele, uma
assin:ttur:t d:t declanção. Depois desapareceu com seu troféu.
ENl:t>N-rROS 2()7

o instante de bem ver que é tempo de concluir


sem nada compreender

Um ano antes de publicar seu Deuxieme sexe, Simone de


Beauvoir telefona a Lacan, pedindo-lhe que a aconselhasse.
Lacan lhe diz que seriam necessários cinco ou seis meses para
desembaraçar a coisa. Tratando-se da sexualidade feminina, a
proposta era ridícula.
Mas Simone barganha como um vendedor de tapetes: encara-
ria não mais que quatro entrevistas. Recusa de Lacan.

os Escritos e a col-i

Os Escâtos, uma obra de cerca de novecentas páginas, vão em


breve ser publicados na Seuil. Lacan, encontrando Derrida,
lhe fala de sua inquietação a este respeito:
Evocando a encadernação do volume, ele lhe diz:
- Você vai ver, isto não vai se sustentar.

otú11ismo

Em setembro de 1960, a SFP organiza um encontro interna-


cional sobre a sexualidade feminina. Dele participa Franz
Alexander, cujas teses Lacan criticou vivamente. Vendo o
rapazinho (el~ tem 80 anos), Lacan, diante de Granoff, declara:
- Quando se está iluminado por uma verdadeira chama,
não se envelhece jamais.
208 - Ali\ LACAN? - J: u.ARt) qui--. NÀ( L

pa1~1 malandro, 111,1b11dro e meio

Salvador Dali tinha aceitado receber Lacan. Na hora em que


esperava seu visitante, não percebeu que mantinha, colado no
nariz, o pedaço de papel branco de três centímetros quadrados
que tinha como função tornar visível o desenho em cobre que
realizava (a menos que sua verdadeira função fosse aquela que
se indica no que vem a seguir).
Durante toda a entrevista, Lacan não fez nenhuma observa-
ção, contentando-se, às vezes, em olhar seu interlocutor de
uma maneira que este sentia como inquietante.
Dali não se deu conta do ridículo deste nariz, cravado no cen-
tro de L1111a conversa transcendental, a não ser quando Lacan
partiu, quando lavava as mãos. Ele então recebeu esta revela-
ção não de Lacan, mas de ... seu espelho.

por que ser simples...

Outono de 1966. Com alguns intelectuais franceses, Lacan vai


a Baltimore, onde se vai discutir um "estruturalismo" famoso,
no entanto pt·rfeitm1ente desconhecido dos :1111ericmos. Tí-
tulo da conferência de Lacan: 01-Structurc as ,111 lnmfring o[
.w Othcrncss Pn:rcquisite to any SuNect Whatever.
Antony Wilden, chamado em auxílio ao defeituoso inglês fa-
lado de Lacan, qualificava a si mesmo de "infeliz tradutor".
END)NIR.OS 209

presidcmúsioniúo

Ern 1969, quando das Reuniões da .École fi-eudienne sobre o


passe, Lacan dizia:
- Nomeiem Perrier presidente da École, e vocês verão
no que isso vai dar!
Neste dia mesmo Perrier pediu demissão.

qu:wdo Rom,m jakobson encontra Jesus

Durante urna de suas férias em Paris, R.oman Jakobson está


fora de si: há - diz ele a quem quiser ouvir - um louco na casa
de campo de Lacm.
De fato, acabara de telefonar para Guitrancourt:
- Lacan está?
- Não, responde uma voz desconhecida.
- Quem fàla? pergunta o iminente lingüista.
- É Jesus.

um móvel

Lacan, idoso, ia, acompanhado por Philippe Sollers, fazer urna


visita de amigo a Benveniste. Sabe-se que o eminente lingüis-
ta se tornoü afüsico em seus últimos momentos.
Saindo do hospital, Lacan diz a Sollers:
- Quando se envelhece, não se é mais que um móvel
para a fanúlia.
21 O - A,i>, LACAN' - É CLARO QUE NÃO.

verbo ou adjetivo

Louis Althusser acaba de publicar seu primeiro elogio da teo-


ria lacaniana. Lacan convidou-o para jantar. No restaurante,
vendo-o chegar, na boca seu curioso Culebra, Althusser mur-
n1ura:
- Você o entortou.
Prefácio
à primeira edição
- 1988 1 -

/J;1n1 () psic:111;1/i1·t;1 ;/ lei<: difc'l"t'lltC (do "dê :1 Cés:1r O


que é de Cés:1r e a !Jcm o que ,; de Deus "f; cl.7 é: de'
:i verdade o q11c é d, vcrd,dc e :i fobaquicc o que t:
d, b.1b;iquicc.
l'oú bem, úso 1úo é 60 simples! Porque cbs se reco-
brem e, se !d llJJJ;I dúnc>ns.io pFL'.\"CJJtc que e.\ núso,
própria ;i psic:w:ílise, 11:io l: t:111to ;i vcn/;1de da
b;ibaquice. nus ;i b;1b;,quicc eh vcrd:ulc.

Jacques Lacm, Se111i11á1io de 22 de novembro de l 967

Este livro atesta a prática analítica de Jacques Lacan, mas


indissociável do trilhamento de sua doutrina. Nesta tensão de
uma prática e um ensino, ocon-e que a prática ultrapasse o
contexto do privado onde, no entanto, se situa amplamente, e
ela mesma faz ensino. Na École, mrnores circulam a seu res-
peito, "falatóiios", se se quer, até "mexericos", mas que se
ouvem. Eles suscitam o interesse de todos, não redutível a
uma complacência inadequada.

I Foram feitas algumas modificações e núnirnas corn:çõ<:s no t<:xto.


212 -Ai.ó, LAD\N? -ú Cl.r\ll() QUh NÃO.

Entretanto, não se tratará certamente de toda uma práti-


ca, e não simplesmente porque uma boa parte do que a cons-
titui não se diz abertamente a não ser ali onde ela se exerce.
Também porque a exigência totalizante de uma exaustividade
não é nosso negócio, na medida em que os testemunhos reu-
nidos aqui foram escolhidos exclusivamente por uma certa veia,
a do ban mot.
O que entender por" bon mof.'? Fora de certos campos
onde a verdade só intervém contida, reduzida, por exemplo, a
ser somente um valor oposto ao falso, ei-la dando todas as
provas de uma singular deficiência. A coisa não pode ser mais
clara quando se trata da verdade do sexual; aqui, mais manifes-
tamente que alhures, aquilo de que ela sofre a incidência é
suscetível de ser designado por seu 110111e de babaquice ... , de
que Lacan fr.,z um conceito. Babaquice e verdade se reco-
brem, isso é constante, quando um st~jeito, dito. "homem" ou
"mulher", aborda a relação sexual. Ele figura para si fazê-la
gozar: babaquice, que pode até chegar até a fazê-lo cair na
impotência; ela imagina poder valer por todas as mulheres:
babaquice que a promove, um belo dia, a musa inspiradora de
um don juan de subúrbio.
A dificuldade, para o analista, fica sendo a de isolar, de
distinguir a verdade de cada uma destas babaquices singulares,
tanto mais que não é por ter sido tocado com o dedo que se
pode obter a garantia de que esta verdade doravante se apresente
como "não tão babaca". Mas, qLulquer que seja a conclusão,
parece exatamente que o analista não tem escolha, e Lacan for-
mula a lei de sua intervenção sob a forma de um "a cada um
seu devido": à verdade sua estrutura de ficção, à babaquice sua
função de des-conhecimento. Ora, como operar esta partilha?
Eis o que se segue ao texto aqui escolhido como exergo:
Para sugerir-lhes o que está em questão, tomarei um
exemplo. Um dia, recolhi, da boca de um cham1oso
rapaz que com toda justiça seria chamado de um babaca,
o sef,'llinte bon mot. aconteceu-lhe uma desventura; ti-
nha um encontro com uma moça que lhe deu um fora.
- Compreendi - me diz ele - que, mais uma vez, era
uma mulher* de não-receber.
Ele chamava isso assim.
O que é esta charmosa babaquice (pois ele o dizia as-
sim, com toda a sinceridade)? Tinha ouvido sucede-
rem-se três palavras; ele as aplicava. Mas suponha que
o tenha feito de propósito, isto seria um chiste. Na
verdade, o simples fato de que eu a conte, de que a
leve para o campo do Outro, faz dela um chiste.
Efetivamente, é muito divertido para todo mundo, salvo
para ele e para quem o recebe, frente a frente com ele.
Mas, desde que se conte, é extrem;nnente divertido;
de modo que se estaria e1Tado em pensar que o babaca
falta em espírito - mesmo se é com uma referência ao
Outro que esta dimensão se acrescenta.
Chamaremos bon mot uma seqüência discursiva encer-
rada à maneira do chiste, mas com a qual, além deste encerra-
mento, a partição entre verdade e babaquice fica parcialmente
não-efetuada. Isto situa o bon mot entre dois limites: o Wi"tz
freudiano e a fulta de qualquer "espírito".
O bon mot não é exatamente o Witz, que se situa no
limite superior. O exemplo acima (a "mulher de não-rece-
ber") é suscetível de atingir este limite. Há uma virada para o
chiste daquilo que não é, no tempo de sua enunciação, um
chiste para aquele que o profere, nem para quem o recebe

* Fin, "fim" e ti·mn1c, "mulher". Em francês, fi,mme dt: non-rcccvoir. Fin d,·
non-recevoir é tcn110 jurídico que significa uma resposta absolut:imL'lltL' llll',al i
vn n um pedido, indicando que este não ser:í sequer considerado. (NT)
214 -Ar.e'), LM:AN? - É (:1.Alln QUl~ NA1,.

"frente a frente". Esta literalizaçfo de um litoraF se liga ao fato


de que o tal qual de uma certa seqüência discursiva se vê pro-
duzido. Resta que uma tal muda não é possível para cada bon
mot, mesmo quando algo na estrutur:i do bon mot, :issim como
na do chiste, leve alguém que o escute a contá-lo, por sua vez.
Um outro caso, também trazido por Lac:m, é suscetível
de esclarecer o que dá ao bon mot seu limite inferior. Ele é
aqui ainda mais bem-vindo na medida em que se trata do "dê
a César o que é de César e a Deus o que é de Deus", modelo
lac:miano p:ira a partição verdade/babaquice. Sete anos antes
de a fórmula servir de molde para a explicita<i-·ão da lei que
discrimin:i verdade e babaquicc, Lacan dá um comentário dela,
qualificando-a de "formidávdjokc". Umjokc? N c:zlly? É cla-
ro que para toda u111a parte da popula('io que se nutre desta
fórmula, que a promove como uma regra de vida, não se tra-
taria de acolhê-la como um chiste, menos ainda como uma
gracinha. Nem mesmo como um tra~·o de humor: não s~ fala
de corda na casa do enforcado, não se comenta que a corda é
o sustentáculo do enforcado. É preciso todo um coment1rio
como o de Lacan, é preciso toda uma inscrição prévia na pro-
blemática que ele está trilhando para dar ou voltar a dar l
fórmula crística seu alcance de joke. É preciso também,
notemo-lo ainda mais cuidadosamente porque há aí um pon-
to de ancoragem da transferência, que ela seja dita como tal
por alguém. Assim Joyce designa a seu leitor tal história que
ele conta como sendo uma epifani:t. E esta nomeação pode
mudar a leitura, como nos afim1a de imediato sua incidência
mais imediata; sem ela, de fato, não est:í. excluído que o leitor
não consiga entender nada.

2 Jacques Lacan, "Lituratcrn:", in Littér.1t11rc, n.., '.\, Paiis, Laroussc, outubro de


1971.
l'RHÂCIO À l'IUMEIRA El>IÇÀO 215

Notar como necessária ao bon motuma inscrição prévia


daquele a quem se o conta numa certa problemática é levar
pura e simplesmente em. conta o que já Freud transcrevia ao
observar que todo chiste só o é para um certo público? Sim,
mas não exatan1ente.
Dizer, como Freud, que cada chiste tem "seu público"
implica em reconhecer que não há chiste universal. Disso se
segue que a diferença entre chiste e bon motnão é de nature-
za, mas de acento. Um e outro põem em jogo os mesmos
elementos, mas estes elementos não são acentuados da mesma
fonna. A homofonia fin/fêm, no primeiro exemplo mencio-
nado, faz com que ele seja adnútido como chiste (na medida
em que a historieta seja contada para um certo público). O
bo11 mot, na medida em que habitualmente não se beneficia
de um jogo propriamente simbólico, exige de seu público não
simplesmente que esteja "por dentro" (o público do chiste
igualmente está, partilhando a mesma inibição que habita seu
inventor), mas que tenha participado de uma certa problemá-
tica onde o primado não é necessariamente do simbólico, mas,
num certo caso, do imaginário, em outro, do real.
Como se tem a prova de que Jesus Cristo era judeu?
Esta prova é dada por quatro elementos: l) Começou a traba-
lhar com seu pai. 2) Deixou muito tarde o domicílio fàmiliar.
3) Pensava que sua mãe era virgem. 4) Sua mãe acreditava que
ele era Deus. Esta seqüência discursiva é um bon mot, mas
somente para os que estão advertidos por um certo número de
detemúnações imaginárias e reais do judaísmo. Assim também
com esta pergunta, feita por uma menininha judia a sua mãe,
que se contava, em Viena, no tempo de Freud e que alguns
poderiam receber como uma pura babaquice: "Dig:1, 11w11.i1·.
os gentios também fazem uma árvore, na cas:1 cklcs, 1111 N.11.il····

***
21(, -Alú, l..AC:AN? - É C:I.Alt.O QUI: NÃO.

Que ordens de discurso dão mais particularmente lugar


ao bon mot? Nós nos contentaremos com uma resposta parci-
al, notando a muito singular propensão do bon mota ocorrer
ali onde se produz um verdadeiro ensinamento. Um tal ensi-
namento - ele fàz escola - abre uma problemática inédita,
criando assim um certo furo à borda do qual florescem, mal
dissociadas, verdade e babaquice. Ali especialmente ocorrem,
não tanto chistes, mas bons mot~·.
Ora, é historicamente atestado que tais bons mot~· têm
uma função de transmissão do ensino que escavou seu lugar.
Hoje nos interessamos pelo estatuto da doença da alma na
Antigüidade-'; só temos que retomar, para discutir novamente
(os estóicos, entre outros, comentaram-nos mil vezes), um certo
número de bons mot~ que foram transmitidos a partir da mais
alta Antigüidade. Assim Cícero nos conta que
muna reunião, Zópiro, que se vangloriava de perceber
a natureza de cada um por sua fisionomia, como. atri-
buíra muitos vícios a Sócrates, fez rir toda a platéia que
de forma alguma via vícios nele; mas foi salvo do ridí-
culo pelo próprio Sócrates, que lhe diz que havia mui-
tos vícios inatos nele, mas que se libertara deles pel:i
razão.
Há bon motno que a intervenção de Sócrates fez b:iscubr
a babaquice para aqueles que riam (seus "discípulos" ou, em
todo caso, os que gostavam dele), enquanto era considerad:i
como estando, no início, naquele de quem se ria (o estraga-
prazeres, o herético), vendo-se o discurso deste último, de
repente, conduzido à parcialidade, mas também ao partidarismo

:i Cf Jackie l'cgcaud, L1 mal.ulic de J:1111e, Paris, Uelles Lettres, 1981, pp. 279-
280.
PU..EFÁC:10 A PIUMEJRA i-:rnc,:Ãn 217

de sua verdade - enquanto Sócrates, mais uma vez, sai-se muito


bem desta enrascada. Mas que se saia bem desta enrascada não
implica que sua resposta não seja reconhecida como tendo tm1
alcance de ensinamento. Ela foi, ela é ainda dois mil anos depois.
O que se saberia do ensino de um Zenon se Diógenes
Laércio não nos tivesse trazido os bons mots do fundador do
Pórtico? Poderia deixar de fazê-lo? Justamente não. Na medi-
da em que o ensino de Zenon era importante p:ira ele, uma tal
"negligência" estava excluída: é importante que um bo11 mot
seja levado ao campo do Outro.
Tal como o champignon da musse, o bon mot emerge
ali onde o ensinamento fàz escola. Qualquer que seja a impor-
tância dos textos "oficiais", os que são referência para este
ensinamento, nunca deixam de acompanhá-los relatos de bons
mots. Tudo se passa como se os bons mot, trouxessem um
esclarecimento que somente eles podem validar. Assim a es-
cola filosófica de Tübingen 4 suscitou debates muito vivos sus-
tentando a tese segundo a qual, o ensino de Platão sendo es-
sencialmente oral (aliás, como todos os das escolas antigas), o
"diz-se" dos bons mot,de Platão deveria ser reconhecido como
a via privilegiada para qualquer um que desejasse ter acesso a
ele, enquanto os DH!ogos deveriam ser lidos não mais como
representantes do platonismo, mas como textos de uso exter-
no à escola, dirigidos aos não-iniciados, para os quais o essen-
cial do que era ensinado não podia ser dito. Tratando-se do
ensinamento de Lacan e dos bons mots a que sua prática deu
lugar, estamos aqui longe de sustentar uma tese tão radical,
limitando-nos a constatar esta ocorrência de bons mot\·, o c;1

·• Cf. M. D. Richard, L 'cnsc~tsncmcnt oral de Pl:rt,m. l'a, i,. ( ·,·1 I. l ":li.


218 - l\1.c\ LAC:AN? - É CLARO QUE NÃO.

ráter inédito e insubstituível do esclarecimento marcante que


eles trazem a um ensino que não está inteiramente lá onde é
oficializado, aliás não sem esta distância dada pela ironia (mui-
tos traços de Lacan a manifestam, a começar por sua palavra
"publixação" fpoubellic:1tio11l). Esta incidência de bons mots
a respeito do ensino não é própria do Ocidente: o confucio-
nismo, o legalismo chinês nunca negligenciaram os bons 1110ts
para sua transmissão.
A escola de Freud não foi exceção e Lacan se apoiou em
pontos nodais de sua leitura de Freud. Ele mesmo se fez o
cont::idor do célebre "Eles não sabem que nós lhes trazemos a
peste", que teria sido dito por Freud a Jung, a caminho da
"conquista" dos Estados Unidos (como não há outra compro-
vação deste fato, as "más" línguas se apressaram a sugerir que
Lacan pura e simplesmente o inventou. Passemos no momen-
to sobre este problema da atribuiç:io para destacar que o cui-
dado de uma exata transcrição do bon 111ot, de sua literalictade,
verifica-se como urna incidência essencial, já que é de seu
texto mesmo que depende sua interpretação, a que foi dada
por Lacan: "eles não sabem"? Pois bem ... sim, eles não sabem,
eles sempre não sabem! Tal é o efeito crasso da ignorância).
Às vezes o circuito do "diz-se" permanece mais misteri-
oso. Assim com o famoso W:zs w1ll das Weib? que Jones teria
recolhido da boca de Freud. O notável é que uma tal sentença
seja comentada até a exaustão enquanto o fato de que Freud a
tenha proferido não seja praticamente colocado em questão.
O que é que por vezes - e até na maior parte dos casos - torna
evidente, para todos que estão "por dentro", a atribuição do
bon mot? O que faz crer a todos que, se Freud 1~ão o disse,
pois bem, de qualquer fomu poderia (se não deveria) dizê-lo
(!), que portanto trata-se realmente de uma asserção freudiana
i'IU.FÁCIO À PIUMEIII.A El>IC,:ÀO 219

e que não se deve levar a pesquisa mais longe 5 , bancando o


policial ali onde se é questionado por Freud e, talvez, como
analista? O próprio Freud atribui a um bon mot ouvido de
Breuer, Charcot e Chrobak sua descoberta de que "não eram
quaisquer moções afetivas que operavam atrás dos fenômenos
da neurose''". Não é tanto no ensino oficial destas autoridades
que ele esbarra na importância da sexualidade, mas no que, de
través, tem o estatuto de um bo11 mot. Doses repetidas de
pênis normal não dão, certamente, enquanto tal, um fim aos
sintomas histéricos; neste sentido o bon moté uma babaquice.
Também seria preciso levar a sério a verdade desta babaquice,
o que Freud pôde fazer mesmo quando nos diz, das autorida-
des que a colocaram em circulação, que elas "não estavam
, 11 a., ,,7 .
aptas a sustenta-

***
Este livro recolhe cento e trinta e dois 8 (1, 2 e 3, mas
não na "boa" ordem, o 2 só sendo atingido depois do 3) bons
mots, não necessariamente de Jacques Lacan, mas com Jacques

5 Eis um caso exemplar da pouca impordncia da efetividade histórica do bon mot


com respeito a sua circub\'.ào. Durante dezenas de anos, contou-se, nos meios
musicais, que o filho de Stravinsky, Soulima, reria dito a Igor Markevitch, um
dos intérpretes mais famosos de seu pai: "Peço-lhe cham:í-lo lgor, quando esti-
ver com meu pai", ao que Igor Markevitch teria respondido: "Creio que pede
mesmo é que eu o chame de Stravinsky". Em suas Memórias (Être ct ,11,01r àé,
Gallimani, Paris, ·1980), Markt:vitch testemunha: esta conversa nunca ocorreu.
1Júp,1son, setembro de l 99ú, p. 38.
" Sigmund I'rel1d, Sigmund Freud préscnté p,1r lui-m<:mc, Paris, Galimard, 1984,
p. 41.
7 Idem, p. 41.

" Na realidade, 134: fez-se medidJ grande (346, ainda medida g1~md,· na 1'""""111,·
edição).
220 -Aiú. LACAN? - É CLAH.O ()UI: NÀO.

Lacan: cada um o implica de uma certa forma, situa-o num


certo lugar, forma e lugar que não temos razão para supor que
seriam os mesmos para todos.
De fato, no tempo do trilhamento do ensino de Lacan,
o bon motcircula, particularmente na escola. Assim a publica-
ção destes 132 bons mol5 ambiciona desempenhar um papel,
limitado, mas em nossa opinião não nr·gligenciável, na consi-
deração, hoje, do trilhamento de Lacan. É claro que a comu-
nidade analítica (se tal entidade existe) se vê concernida em
primeiro lugar. E como esta comunid:ide foi, desde seu início,
já implicada neste trilhamento, não nos surpreenderemos que
se trate aqui, não de um Lacan solitário como se estabeleceu
querê-lo (um di:i se did. com que interesse?), mas da diferença
potencial produzida entre um ensinamento cm elaboração e
um::i. prática efetiva e contínu::i. não absolut::i.mentc idêntica a si
mesma no correr dos anos.

***
Reunir alguns bom mots vindos do fato desta tensão
coloca dois problemas interligados, primeiramente o da deter-
minação do que é bon mote d.o que não o é, depois o de sua
autenticidade.
Sabe-se que Freud, para seu trabalho O chúte e su:1s
relaç-ões com o i11co11scie11tt·, definiu seu c01pus de uma ma-
neira cuja elegância pode ser admirada; é chiste, dizia ele, o
que cu considero como tal. Tratando-se aqui não exclusiva-
mente de chistes, mas de bons mot5, um tal critério não pode-
ria ser exclusivamente mantido. Então, escolheu-se, o campo
do bon mot indo do chiste à epifania, só admitir como bon
moto que circula como tal. Esta condição, então, foi conside-
rada como necessária e suficiente: que se tenha contado o que
aqui se conta.
P1:.HAc1n A 1•R1r1:1r.1RA 1-.1>1<,:Àn 221

Este critério, operatório para as partes I (prática analíti-


ca, 57 bons motl), III (prática da supervisão, 15 bons mots),
IV (história do movimento psicanalítico, 32 bons mots) e V
(encontros, 8 bons mot5J, não o é para a parte II, consagrada às
apresentações de doentes (22 bons 111ot1· 1º). Aqui, o coletor
intervém, freqüentemente em primeiro plano, fazendo valer
tal seqüência discursiva como sendo, de seu ponto de vista,
um bon mot. Estas seqüências não deram ainda a prova de sua
potencialidade ao serem levadas, como bon mot, ao campo do
Outro. Ficaremos surpresos tratando-se, como é o caso muito
freqüentemente, de psicose?
A bastardia do bem mot, sua exigência de um público
que esteja "por dentro", impôs que a publicação de alguns
deles fosse acompanhada de notas, não explicativas, mas que
fornecessem algum h1liza.mento de forma a que o leitor pouco
ou mesmo mal avisado pudesse encontrar a incidência a partir
da qual a historieta se mostrava como sendo um bem mot. Já o
nome dado à apresentação de cada um dos bons mot1· tem,
muita.s vezes, este sentido de baliz:unento. Os outros leitores
poderão negligenciar estas discretas "explicações", até ter o
prazer de contcstí-las 11 •
O bon moté como a anamorfose; o que é figurado só é
observável se o sLtjeito pode aceita.r, sem se sentir muito per-
seguido, situar-se no ponto exato que lhe é designado como
sendo o ponto de onde o quadro deve ser visto. Esta analogia
tomará compreensível que se tenha optado por uma diferen-

'1 Estas cifü1s e as seguintes cr:im, cvidcntcmcncc, as da primeira edição. Nesta, elas
devem ser rnbstituídas, respectivamente, pelas cifras 132, 31. ·1 rn e 35.
'" Hoje: 30,
11 Este pará!:,rrafo poderia hoje ser classificado como um belo l'xc11q1I,, ,I,·, ,, 1,,11,
lização que mascara 1.1111 problema (cf. o Prefãcio d:1 rnn·i1.1 ,·,h,.. ,.. 1
222 - AL(\ LACAN? - É C:LAltO (JUE NÃO.

ciação marcante entre as notas e o relato do bon mot, este


depurado, tanto quanto possível, de todo elemento explicativo 12 •
O problema da autenticidade de cada um dos bons mots,
fora o caso II, se deixa :facilmente resolver uma vez estabeleci-
do o de sua seleção. Ele terá sido contado como um bon mot
com Lacan, logo, está ;mtentificado, posto que reconhecido
como tal pela cadeia daqueles mesmos que se fazem dele os
sucessivos cont;H.iores.
***
Uma pab.vra, urna palavra não particularmente bondosa,
para quem se reconhecer como protagonista de um determi-
nado bon mot. Saiba que aqui não se ri de você, mas com
você, que este riso é a fórma mais séria de admitir que é com
razão que você lan~~ou este bon motno N:1virc-11ight(como o
chama Margucritc Duras) do "diz-se" cm nosso campo. Se se
trata de receber uma lic;ão - e se trata também disso, a partir de
frcud, com o próprio riso-, ela será, mais que qualquer outra,
o fato/ft'ito Ihiitl do hon mot.

***
O que é o bem motquando são nomeadas as três dimen-
sões, real, simbólico, imaginário do ser falante? A exposição
deste temário por Lacan modifica, como já o tinha feito a
epifania joyceana, nossa apreensão do que faz - ou não faz -
bon mot? Para esta última pergunta a presente coleção será -
digamos, antes, "seria", pois isto depende do leitor-uma respos-
ta festiva.

12 Um foliz contr:iponto, assim mesmo, do antepenúltimo parágrafo.


Jean Allouch publicou

Lettre pour lettre


Transcrire, traduire, translitérer
Toulouse, Ércs, 1984, 334 p., 9 ilustr.
l'ublic:ido no Brasil sob o título Letra a letra; transcrever, traduzir,
trar1sliterar (Companhia de Freud Editor:1).

La "solution" du passage à l'acte


Le double cri111e des soeurs Papin
Je:m A1.1.ouc:1 ,, Eiik Prni..c;E, Mayettc V11.TAJUJ
Livro assinado com o heterônimo Fr:mcis Du1•1ü:.
Toulouse, Éres, 1984, 270 p., 12 ilustr.

132 bons nwts avec Jacques Laca11


Toulouse, Ércs, 1988, 176 p., (, ilustr.

Louis Altlwsser récit diva11


Paris, E.l'.E.L., 1992, 64 p.

Freud, et puis Lacan


Paris, E.1'.E.L., 1993, 144 p.

Marguerite, ou l' Ai111ée de Lacan


l'osfàcio dl' Didier ANZIEU
Paris, E.P.E.L, 1·' ediç:io 1990, 568 p
2" cdiç~o revista e aumentada 1994, 776 p.
Publicado no Brasil sob o título Marguerite ou a "Ai111éc" de Laca11
(Companhia de Freud Editora).

Érotique du deuil au te111ps de la 111ort secbe


Paris, E.P.E.L. 1997, 384 p.

L 'étl1ificatio11 de la psycbanalyse. Cala111ité


C:ihier de L'Unebévue, l'a1is, E.P.E.L, 1997, 140 p.
Publicado no Br:isil sob o título A etificaFão da psica11álise
(Comp:inhia de Freud Editora).

Você também pode gostar