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RESUMO: No filme Vous n’avez encore rien vu (2012), Alain Resnais volta-se para a literatura dramáti-
ca, transpondo as peças Cher Antoine ou l’Amour raté (1969) e Eurydice (1942), de Jean Anouilh, para
o universo cinematográfico. Neste sentido, o cineasta promove um diálogo intermediático entre a
linguagem cênica e a linguagem cinematográfica, teatralizando o cinema. Dentro deste âmbito, este
trabalho estuda a intermedialidade em Vous n’avez encore rien vu e a teatralidade no filme de Resnais.
PALAVRAS-CHAVE: intermedialidade, cinema, teatro, teatralidade.
tuma do dramaturgo no testamento: Antoine solicita aos seus antigos atores que
decidam pela concessão dos direitos de uma nova montagem de sua Eurydice, desta
vez encenada pela Compagnie de la Colombe. Para tanto, eles devem assistir a uma
filmagem com a versão proposta pela jovem companhia. A peça é exibida para uma
plateia constituída por atores, que naquele momento atuam como espectadores de
cinema.
Em Cher Antoine ou l’Amour raté, a mise en abyme ocorre com a inserção de uma
peça dentro da peça, o que resulta em um processo de espelhamento: “Há, da parte
de Anouilh, o efeito do reflexo em um espelho ou autorreflexão.” (Kowzan 2006: 81,
tradução nossa), efeito produzido porque “[...] a peça interior [de Antoine] reflete,
como em um espelho, a situação vivida pelas personagens da peça exterior [de Anou-
ilh]” (Kowzan 2006: 233, tradução nossa). Esse “jogo de espelhos” presente na peça
se dá porque no enredo de Cher Antoine ou l’Amour raté a montagem de Antoine leva
exatamente o mesmo título que a peça de Anouilh (Cher Antoine ou l’Amour raté), e
não o bastante sua trama em muito se assemelha a ela, sendo uma referência direta
ao texto dramático que se lê ou a encenação a que se assiste:
Apesar de Vous n’avez encore rien vu se constituir como cinema, a película traz
igualmente a sensação de o espectador assistir a um espetáculo de teatro, pois Res-
nais se apropria de elementos próprios do universo cênico e os leva para o cinema,
conferindo-lhe teatralidade. Assim, o cinema se transforma em palco de teatro, como
já é antecipado pelo cartaz de divulgação do filme, no qual consta uma cortina de tea-
tro fechada, em que um homem espiona por meio de uma pequena fresta na cortina.
A imagem do cartaz possibilita duas diferentes interpretações de leitura: podemos
interpretar este homem como público que se destaca e, do palco, olha para os bas-
tidores do teatro; ou ainda como alguém que está no palco e observa a plateia. Ao
considerarmos esta última leitura é preciso refletir sobre essa pessoa, pois seria este
homem um ator, o diretor, ou um dramaturgo? E o que ele estaria espionando?
Há de se ressaltar que uma leitura não anula a outra e essa dubiedade incita o
imaginário de quem vê o cartaz. Além disso, ao se somar os elementos presentes no
cartaz ao próprio título Vous n’avez encore rien vu, cuja tradução significa Vocês ainda
não viram nada, fica explícito o caráter provocativo que a obra de Resnais traz, além
de prenunciar sua relação intermediática com o universo teatral. Por conseguinte, a
cortina é um signo importante para um filme que busca ser teatro, visto que: “hoje
serve, muitas vezes, como marca de citação e ironia da teatralidade” (Pavis 2011: 76).
Sendo assim, Resnais já nos apresenta a teatralidade no próprio cartaz de divulgação.
Levemos em consideração ainda que a cortina: “[é] o signo material da separação
entre palco e plateia, a barreira entre o que é olhado e quem o olha, a fronteira entre
o que é semiotizável (pode tornar-se signo) e o que não o é (o público)” (Pavis 2011:
77). A cortina constitui-se numa barreira, sendo ela o único elemento que separa a
pessoa que espiona de todo o universo que permeia o teatro, seja este homem per-
tencente à plateia e que tenta espionar os bastidores do universo cênico, tentando
ver aquilo que existe para além da cortina; seja ele pertencente ao meio teatral e que
observa o público.
A cortina atua ainda no papel de uma moldura, considerando que segundo Au-
mont (2002: 144) a moldura é como se fosse uma borda da imagem cinematográfica,
aquilo que circunda a imagem. Por conseguinte, no contexto do cinema, a moldura:
“Aparece mais ou menos como uma abertura que dá acesso ao mundo imaginário”
(Aumont 2002: 147). A cortina, aqui, emoldura as peças que constituem a película, é
como se o próprio cineasta espionasse o mundo imaginário de Anouilh e o resultado
fosse sua película.
A mescla entre teatro e cinema é mais evidente com as encenações de Eurydice,
que é representada quase que na íntegra em Vous n’avez encore rien vu. A peça de
Anouilh traz o intertexto com o mito grego de Orfeu e ganha roupagem moderna,
embora “a ação se desenrole sobre o modelo da tragédia grega: em vinte e quatro
horas as personagens se encontram, se amam, são separadas pela morte, têm uma
nova chance e se perdem para sempre” (Visdei 2010: 93 – 94, tradução nossa). Na re-
leitura de Anouilh, Orphée e Eurydice se conhecem, se apaixonam e largam tudo por
amor, porém, o músico se enciúma dos antigos relacionamentos da heroína. Eurydice
percebe que não poderá esconder seu passado de Orphée, então foge e morre em
um acidente.
M. Henri faz o papel de Hades, deus grego responsável pelos mortos, e permite
que Eurydice volte à vida, mas Orphée não deverá olhar para a heroína até o dia se-
guinte. Tomado pelo ciúme, o músico olha para ela, pois só olhando em seus olhos
saberia da verdade sobre seu caráter, com isso ela assume sua verdadeira índole.
Eurydice tem de partir, ele se arrepende e pede para que M. Henri o leve para junto
dela, pois somente no reino dos mortos é possível permanecerem juntos.
l’Amour raté, no qual: “Antoine se suicidou porque ele não podia se lembrar, ele que
tinha tecido mil intrigas imaginárias, da realidade de uma jovem menina apaixonada.”
(Visdei 2010: 167, tradução nossa).
É recuperando o discurso do outro (Bakhtin 1997: 320) que o cineasta capta a es-
sência de sua obra e utiliza-a em seu filme. A expressão verbal de Anouilh é prioridade
na construção de Vous n’avez encore rien vu; a película não está voltada apenas para
si, mas também para o discurso do outro, pois é por meio dele que Resnais concebe
seu filme em toda sua plenitude. É com a intermedialidade que o cineasta se volta
para as peças de Anouilh e obtém, com êxito, um trabalho completamente novo.
Considerações finais
Obras citadas
ANOUILH, Jean. Cher Antoine ou l’amour raté. In: ______. Pièces baroques. 6. ed. Pa-
ris: La Table Ronde, 2008a. p.8-126.
______. Eurydice. In: ______. Pièces noires. 6. ed. Paris: La Table Ronde, 2008b. p.
324-445
AUMONT, Jacques. A imagem. 7. ed. Campinas: Papirus, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
DÄLLENBACH, Lucien. Le récit spéculaire - essai sur la mise en abyme. Paris: Seuil, 1977.
JOURNOT, Marie Thérèse. Le vocabulaire du cinema. Paris: Armand Colin, 2006.
ABSTRACT: In the film Vous n’avez encore rien vu (2012), Alain Resnais turns to the dramatic literature,
transposing Jean Anouilh’s plays Cher Antoine ou l’Amour raté (1969) and Eurydice (1942) to the cine-
matographic universe. In such context, this work studies the intermediality in Vous n’avez encore rien
vu through the analysis of Anouilh’s scenery in Resnai’s film.
KEYWORDS: intermediatic relations; film; theater; theatricality.