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© 2003 Casa do Psieslogo Livraria e Editora Ltda E proibida a reprodugio total ou parcial desta publicagiio, para qualquer finalidade, sem autorizagdo por escrito dos editores. 1" Edigio 2003 1* Reimpressiio 2004 2" Edigiio 2007 Editores Ingo Bernd Giintert e Silésia Delphine Tosi Produgio Grafica Renata Vieira Nunes Capa William Eduardo Nahe Editeragao Eletrénica Renata Vieira Nunes Revisio Grafica Adriane Schirmer Dados Internacionais de Catalogacéo na Publicagio (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Shine, Sidney A espada de Salomio: a psicologia e a disputa de guarda de filhos / Sidney Shine. — Sio Paulo: Casa do Psicdlogo®, 2003, — (Colegao psicologia juridica) Bibliografia. ISBN 85-7396-250-X 1, Avaliagdio. 2. Guarda de filhos 3. Guarda de filhos ~ Aspectos psicolgicos 4. Prova pericial 5. Psicologia forense 6. Testes psicolégicos 1. Titulo. II, Titulo: A psicologia e a disputa de filhos. IML. Série. 542 CDD- 155.4 Indices para catélogo sistemitico: 1. Guarda de filhos: Aspectos psicolégicos: Psicologia jurfdica 155.4 Impresso no Brasil Printed in Brazil Reservados todos os direitos de publicagZo em lingua portuguesa a Casa do Psicélogo® Livraria e Editora Ltda. Rua Simao Alvares, 1020 Vila Madalena 05417-020 Sado Paulo/SP Brasil 7 Tel: (11) 3034.3600 E-mail: casadopsicologo @casadopsicologo.com.br F site: www.casadopsicologo.com.br Sumario APTESEMACTO ...sseccrnesscnessrnseccrscssnnrersrsecsanersssssansscsnsersssssssasereee 7 1. A Abordagem do Problema .....ssrsersesssorscensenene 2.1 A primeira forma de se chegar a verdade: a prova 2.2 O Inquérito: a busca da verdade por meio de Interrogacées......... oe 3. Os Profissionais de Satide Mental que atuam em Avaliacao de Guarda de Criangas ‘S22. OF: PSIG hilt a, sis scrscacec us acessihagastilessiciedsiieomstalsvamoatva wees 4. O Psicdlogo em Avaliagio para Determinagao de 4.1 © enquadre do trabalho pericial 4.4.1 Quem demanda o servigo? ALLO Advogado os... 4.1.2 A quem se avalia? 4 | Auma das partes i 2 A ambas as partes ... A. 3 Ais) Crianga(s) 4.1.3 Contra quem se trabalha?.. 4.2 Quem é 0 perito, seu cliente e seu peri direitos autorais Sidney Shine MtOS TECNICOS .eosecsceneen 5.1 O encaminhamento 5.2 A leitura dos autos do processo judicial 5.3 A entrevista 5.3.1 O enfoque em equipe 5.3.2 O enfoque individual 5.4 A observagao lidica com crianga .. 5.6 Dilig&ncias .... 5.7 A redacao do laudo e dos quesitos... 5.7.1 Normas para redagao de documentos .. 5.8 A participagao na audiéncia . 5.9 A entrevista devolutiva 5.10 Como é feita a avaliaga 6. O Psicélogo e o uso de Testes em Avaliacio para Determinagéo de Guarda de Criancas em Vara de Familia ... .. 183 6.1 A Especificidade dos Instrumentos Psicolégicos nas Avaliagoes de Guarda .... . 187 6.2 Aspectos técnicos quanto ao uso de Testes Psicoldgicos 195 6.3 Fatores que condicionam o uso e o abuso dos Testes Psicolégicos e Questoes Eticas... 6.4 Normas e orientages no cenirio brasileir ~211 6.5 O que se procura avaliar’ .... 212 7. O Psicélogo e seus diferentes papéis no Enquadre Juridico . 217 wale 218 220 7.1 A Testemunha (Factual) 7.2 © Perito Parcial.. 7.3 O Perito “Pistoleiro” ..... XX A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos 7.4 O Perito Adversarial ........1..0 i ; diel 7.5 O Perito Imparcial .... 223 7.6 O Perito Independente 231 7.7 O Perito Parecerista 232 7.8 O Conflito entre Paps 234 8. As principais dificuldades no exercicio da Ativyidade ANEXO - Resolucdo CFP N.° 30/ 2001 ....ssccssssssseseseee 259 Manual de Elaboracao de documentos decorrentes de Avaliagdes Psicolgicas .......ssssssservees Referéncias Bibliograficas ..........0.0+ Obras consultadas .......ssssecssserssssesssesesesersssceasecssssscensessses SOL Apresentacao objetivo deste trabalho é examinar as propostas destinadas a realizagéo de avaliagdo psicoldgica em Vara de Familia para sub- sidiar processos judiciais de guarda de criangas. Serd apresentada uma sistematizagfio e uma anilise critica dos procedimentos sugeridos na literatura cientffica, explicitando qual é a posigiio assumida pelo psic6- logo em seu trabalho, quais as técnicas e os métodos preconizados. Este livro é decorrente de uma dissertagao de mestrado de natu- reza teérica, cuja meta é levantar o estado da arte. Este levantamento visa contribuir com elementos para a discriminacgao de uma fungao que extrapola os casos em Vara de Familia, cuja designagio é tipica do contexto juridico: a pericia psicolégica. Este trabalho pode ajudar em um melhor mapeamento de uma pratica e de um campo de atuagao cujos estudos académicos ainda sao incipientes e cuja realidade é pouco conhecida. Nao é 4 toa que o questionamento quanto 4 adequagao de tal pratica, ou da forma como ela é realizada, ainda é motivo de polémica (Keiline Bloom, 1986; Berry, 1989; Byme, 1991; Brito, 1993). Este livro nao tem a pretensio de re- solver tais polémicas, mas precisar os termos e as criticas em questao. Se muito, iremos contribuir para que certos temas que consideramos importantes superem outros em matéria de exigir polémica e novas pes- quisas e estudos. Analisaremos a pritica de avaliagdo psicolégica para determina- cdo de guarda de crianca em dois niveis: como modalidade de interven- Gio técnica e sua sustentagiio ética. O primeiro nivel diz respeito a0 campo de atuagio dos psicélogos nas questées relativas ao Direito, por- tanto dentro da area da Psicologia Juridica. Deve-se esclarecer que quan- do se trata de avaliagdes quanto & guarda de criangas, falamos de uma atividade dentro da drea juridica que nao € exclusiva dos psicdlogos. A mesma pergunta (Com quem deve ficar esta crianga?) pode ser dirigida ao assistente social (Pinto, 1993; Clulow e Vincent, 1987; Schindler, 1983) e ao médico psiquiatra (Rebougas, 1987; Fontana-Rosa, 1996; American Acadenty of Child and Adolescent Psychiatry, 1997; American Psychiatric Association, 1998). Sidney Shine stiria, ent&o, alguma especificidade na atuagio do psicélo- go? O seu trabalho em avali para determinagéo de guarda esta respaldado por uma competéncia reconhecida nestas quest6es? De que forma o psicélogo tem respondido a tais demandas? Sao ques- tdes que serao circunscritas nesta obra. Em um outro nivel, o questionamento que se dirige ao psicélo- go que realiza tais trabalhos é sobre a prépria legitimidade do que faz. Sera que a pratica do psicélogo neste tipo de atuagao esta de acordo com as exigéncias técnicas e éticas da profissaio? O seu traba- lho est4 comprometido com o sistema juridico em detrimento das pessoas a quem se atende? As recomendagées contidas em um laudo psicolégico podem se transformar na prépria “sentenca” do proces- so? Esta seria uma forma de atuacdo legitima em Psicologia? Enfim, quais os dilemas éticos presentes nesta atuagado dentro de um proces- so legal? Ao longo deste livro, vamos esclarecer nosso posicionamento frente as questdes técnicas e éticas que sero levantadas. O livro é dividido em nove capftulos e traz um documento em anexo. O Capitulo 1 expe a proposta da pesquisa e as ferramentas utilizadas. Os demais capitulos foram decorréncia das questées e pro- blematicas levantadas aqui. O Capitulo 2 traga o contexto histérico e social no qual se inse- re 0 nosso foco de interesse. Procuramos levantar a origem e a fun- go de certos personagens dentro da instituigio juridica. O Capitulo 3 aborda, de forma breve, a atuagiio de dois outros profissionais ligados a pratica de avaliagao pericial em disputa de guar- da: 0 assistente social e 0 psiquiatra. Discriminamos as refer€ncias liga- das a estas duas categorias profissionais, embora nao nos aprofundemos em sua andlise, uma vez que nao faz parte da proposta deste livro. O Capitulo 4 introduz a andlise especifica do lugar do psicélo- go no processo judicial de guarda de filhos. A partir da explicitagao dos elementos do enquadre de trabalho forense do psic6logo, esta- belecemos quem é 0 cliente (demandante de seus servigos), sobre quem recai sua intervengdo técnica (periciandos) e quais os distintos papéis que os psic6logos podem assumir neste contexto. O Capitulo 5 retoma o percurso logistico que o profissional percorre para realizar a sua incumbéncia judicial (perfcia). Ao lon- A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos go de tal percurso, apresentamos os recursos técnicos mobilizados para tal mister. O Capitulo 6 detém-se especificamente sobre 0 uso de testes psicolégicos dada a sua relevancia na atuagio enfocada. Levanta- mos nao s6 quais sao os testes utilizados, bem como as crfticas quan- to ao seu uso e abuso no Ambito técnico e ético. O Capitulo 7 propde uma terminologia para diferenciar as pos- sibilidades de atuagio do psic6logo como perito judicial. Tal categorizagao nao € excludente (isto é, um mesmo profissional pode ser encontrado desempenhando mais de um papel simultaneamente) nem exclusiva do psic6logo (envolve as outras categorias profissio- nais citadas no Capitulo 2). O Capitulo 8 retoma a anélise feita nos capitulos anteriores e demonstra a insuficiéncia do atual Cédigo de Etica Profissional do Psicélogo em contemplar as situagSes-problemas desta pratica. In- troduzimos a nogio de questées psicolegais como uma articulagao te6rica a orientar a pratica. O Capitulo 9 é uma conclusao geral a partir do que foi apresentado. Anexa colocamos integralmente a Resolugaio do Conselho Fe- deral de Psicologia de N.° 30/2001 que institui o Manual de Elabora- gao de Documentos produzidos pelos psicdlogos decorrentes de ava- liagdo psicolégica. O referido documento foi revisado pela Resolu- gao N.° 17/2002. Optamos por manter o documento na sua versio original pelo seu valor hist6rico e pelo uso que dele fizemos em nos- sa propria andlise a luz de nossa pesquisa. A dissertagado que deu origem a esta obra se impés dentro da convergéncia do meu interesse no mundo académico e do exercicio da profissio de psicélogo judicidrio trabalhando ha dezesseis anos em casos de Vara de Familia no Férum Central do Tribunal de Justi- ga de Sado Paulo. Quando iniciei meu trabalho no Forum, a demanda por pericias em Vara de Familia era uma realidade ja instalada. Pen- SO que isto nado exime nenhum psicélogo de se questionar sobre aquilo que faz. Mas, naquela época, nao tao distante, a exigiiidade do co- nhecimento da drea era quase que absoluta' . Fui aprendendo com os 1. Para um historico do psi Berardi, 1999 ‘logo no Tribunal de Justiga do Estado de Séo Paulo. ver Sidney Shine primeiros colegas que trabalharam nesta instituigio a como respon- der a esta demanda suficientemente “bem”. Isto se definia operacionalmente por satisfazer as expectativas do solicitante prin- cipal de nosso trabalho: o juiz da Vara de Familia. Aos poucos, fo- mos percebendo que as expectativas dos jufzes nao eram uniformes, variando extremamente de acordo com cada individuo. Como diz o dito popular: “Cada cabega, uma sentenga”. Por exemplo, enquanto alguns queriam que o psic6logo se manifestasse claramente com quem deveria ficar a crianga em disputa, outros achavam que o profissio- nal nao deveria fazer tal afirmagao, nao extrapolando a apresentacdo objetiva dos dados que obteve em sua avaliagio. Em fungdo de nossa maturidade na instituigdo, fomos perce- bendo que nao poderiamos ficar 4 mercé do que outros profissionais pensavam que os psicdlogos deveriam fazer, juizes ou nao, mesmo sendo eles nossos superiores hierarquicos. Comegamos a buscar uma “normatizagio”, uma uniformidade nos procedimentos técnicos por meio de reunides com os profissionais dos diversos foros. Inicial- mente, isto foi feito de maneira espontanea e nado reconhecida pela instituigio, até 0 momento que conseguimos a criagio de um grupo técnico formado por psicdlogos e assistentes sociais no Departamento Pessoal do Tribunal de Justiga (Bernardi, 1999), Uma das primeiras € mais importantes iniciativas orquestradas por este grupo foi plane- jar, organizar e ministrar um treinamento especifico para atuagdo nos foros aos profissionais recém-admitidos a partir de 1991. O que re- sultou na publicagio do Manual do Curso de Iniciagaéo Funcional Para Assistentes Sociais e Psic6logos Judicidrios do Tribunal de Jus- tiga do Estado de Sao Paulo em 1993. Dei minha contribuigao ao projeto produzindo trabalhos para este Manual e atuando como pro- fessor dos Cursos de Iniciagzio, bem como realizando assessoria téc- nica pelas comarcas do interior. A interlocugao para alimentar a reflex4o sobre o trabalho fui bus- car nos grupos de pertinéncia, fora da instituigéo judicidria. Foi no Curso de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae que encontrei os primeiros colegas que me ajudaram. A minha primeira monografia do curso se intitulava “Reflexes Sobre O Trabalho Nas Varas Da Fami- lia” (1988) e foi apresentada no II Encontro de Assistentes Sociais e Psiclogos do Tribunal de Justiga em novembro de 1988. Procurava, 4 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos entio, as primeiras articulag6es entre a teoria e técnica psicanalitica e 0 dia-a-dia com as familias e os profissionais do forum. Percebo que a pratica institucional e a formacio analitica foram se dando ao mesmo tempo, 0 que muito me influenciou na forma como trabalho com indi- viduos ou familias, seja no contexto da instituigao juridica ou fora dela, no consultério. Em 1994, tive a possibilidade de tirar um ano sabiitico e me dedicar ao aperfeigoamento do estudo, além de efetuar atendimentos de casais e famflias na Clinica de Tavistock (Londres). Tive 0 privilégio de participar de avaliagdes forenses compondo a equi- pe multiprofissional da Tavistock (Bichard e Shine, 1995). A partir da minha estada nesta instituigao, conheci o trabalho de Clulow e Vincent (1987) que pretendo analisar neste livro. Cabe registrar ainda que sempre me interessei pela docéncia, tendo exercido tal atividade em disciplinas de graduagao, especiali- zacdo e supervisdo em varias instituigdes. Felizmente, o mundo aca- démico me deu a chance de estudar sistematicamente este assunto e poder dar a minha contribuigao para que dtividas e questionamentos semelhantes de outros colegas possam encontrar neste trabalho um outro ponto de referéncia. Um outro diferencial desta pesquisa é que ela se vale muito da minha propria experiéncia na drea realizando estas avaliag6es psicoldgicas. Portanto, nao fui e nem pretendi ser um pesquisador “neutro”. O que me moveu na busca das fontes que ora analiso foi a necessidade prdatica de divisar alternativas e sair de certos impasses e diividas decorrentes do exercicio dessa atividade. Se isto ndo se tratar de um mérito, pelo menos é, reconhecidamente, um viés a se considerar na selegao e no desenvolvimento do tema. |. A Abordagem do Problema 'm fendmeno social que tem mobilizado a ateng&o de psicdlogos, assistentes sociais, socidlogos, juristas e religiosos das mais diferentes orientagdes é 0 alto indice de casamentos desfeitos nos tltimos tempos. A crise desta instituigéio coloca em xeque a prépria estrutura da familia contemporanea. Os corolarios da separagao conju- gal nao atingem apenas os ex-cOnjuges, mas repercutem diretamente na vida dos eventuais filhos. Aos problemas juridicos se somam os problemas socioeconémicos e os psicolégicos. Nos Estados Unidos, 0 ntimero de divércios nos anos 1980 do- brou em relagao aos anos 1960 e triplicou em relagao aos anos 1950 (Jablonski, 1998). Enquanto o nimero de casamentos desfeitos au- menta, a opgiio pelo casamento diminui. Segundo o jornal O Globo (apud Jablonski, 1998), na Franca, o numero de casamentos caiu 6% de 1992 para 1993 (o maior indice da Europa Ocidental). Na Bélgi- ca, a queda da taxa de casamento foi de 5,7% no mesmo periodo. Também na Espanha, o ntimero de casamentos diminuiu em contras- te com o aumento das separagdes e divércios. Na capital argentina, o declinio foi de 40% nos tltimos 50 anos. Na Suécia, considerada paradigma da sociedade ocidental moderna e avancada, temos a me- nor taxa de casamentos do mundo industrializado. E neste pais onde as pessoas mais demoram a se casar, cuja idade média do primeiro casamento é de 30 anos para o homeme 27 para as mulheres (Journal of Marriage and the Family, 1987 apud Jablonski, 1998). De acordo com uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE), divulgada em matéria da Revista /sto E de fevereiro de 2002, o brasileiro também estd se casando menos e se separando mais. O estudo revela que, de 1991 a 1998, o ntimero de divércios e separa- ges judiciais? cresceu 32%, enquanto o de casamentos caiu 6%. Em matéria da Revista Veja de marco de 1999, divulgou-se que o ntimero de divércios quase dobrou no Brasil em apenas dez anos 2. A diferenga entre (0 judicial é que, no primeiro se casar novamente. O termo (0 judicial entrou em vigor a pa Lei n.° 6.515, de 26 de dezembro de 1977, que substituiu o termo desquite. . a pessoa pode romulgagiio da Sidney Shine (considerando de 1986 a 1995), chegando a 200.000 por ano. Um em cada quatro casamentos termina em separagiio. Sendo que de cada cinco criangas nascendo em 1999, uma iria viver em familia de pais separados antes de atingir a idade madura. Ainda neste ano, para 65% de familias nucleares compostas por pai, mae e filhos do pri- meiro casamento, havia 35% de familias de novas configuragées for- madas a partir de unides ap6s separagGes judiciais e divércios. Se persistir esta taxa, o nimero de familias nucleares se igualara as con- figuracdes resultantes de novas unides em 2020, ultrapassando em 2022. As novas configuragées familiares formam o que se tem cha- mado de “familia mosaico”, apontado como tendéncia mundial (Garbar e Theodore, 2000), Neste cendrio, o que niio se vé é a crise familiar eclodindo em uma verdadeira “guerra” travada nos tribunais de familia, pois ela ocorre em sigilo de justiga*. Fica-se sabendo dos casos mais rumorosos que cercam personalidades da midia como o de Woody Allen que teve seu primeiro filho, Satchel, com Mia Farrow com quem nfo era casado. Ela o proibiu de vé-lo, acusando-o de abusar sexualmente de seu outro filho, este adotivo, de quem Woody Allen assumiu a paternidade. Sem contar que ao romper com Mia Farrow, Woody Allen trouxe a ptiblico seu romance com a filha adotiva dela, Soon-Yi. Sem chegar a estes extremos, hd casos como 0 protagonizado por Vera Fischer e Felipe Camargo. Em 1997, a atriz perdeu a guarda do filho para o pai e continua lutando para reavé-lo. Em matéria do Jornal Folha de S. Paulo de 12 de agosto de 2001, Dr. Guilherme Gongalves Strenger, entao juiz assessor da Corregedoria Geral da Justiga do Estado de Sio Paulo, afirmava que os pais vém lutando mais e conseguindo mais a guarda de filhos. Mais da metade (53%) dos pedidos de guarda de criangas distribui- dos no primeiro semestre de 2001 nas Varas de Familia de Sao Paulo foram requeridos pelos pais. Em 2000, houve um total de 942 pedi- dos de guarda na Justiga da capital, destes 460 (48,8%) foram feitos pelos pais. Os pedidos de modificag&o da guarda — de um responsé- vel para outro — tiveram também um aumento de 2000 para 2001. De um total de 340 processos de modificagao de guarda entre janeiro e 3. Osdados do processo sio acessiveis somente aos advogados e as prdprias partes. 8 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos julho de 2001 na capital paulista, 233 (76%) foram movidos por ho- mens. No ano anterior, este indice foi de 69%. Uma vez que existe um contingente cada vez maior de homens querendo exercer uma paternidade, adjetivada de ativa por uma colega (Marques da Silva, 1999), e um contexto social complexo a ser considerado, os tribu- nais de familia em todo o mundo estiio sendo cada vez mais exigi- dos. Este livro procura analisar uma das “armas” utilizadas pelas familias nesta guerra particular — a avaliagdo psicolégica para de- terminagGo de guarda de criangas. Ao mesmo tempo que ela é uma arma, do ponto de vista dos casais em litigio, para os juizes é um recurso para 0 exercicio de sua fungao de dirimir conflitos e restabe- lecer a harmonia social. Para nés, psicdlogos, constitui-se uma das mais desafiantes modalidades de avaliagao psicolégica, realizada em um contexto muito complexo e ainda pouco conhecido — nos tribu- nais de familia. Por meio de uma revisao bibliografica selecionamos trabalhos (artigos, textos, livros e teses) que abordam a avaliagiio para deter- minagdo de guarda de crianga em contexto judici . Nesta revisao, em inglés, os termos utilizados para a pesquisa foram child custody evaluation, expert witness e consultant. Delimitamos a produgio no periodo de 1980 a 2002, pois assim teria acesso ao que de mais re- cente poderia haver na matéria. Selecionamos os trabalhos que focalizam a questo que, tradi- cionalmente, se denominaria de técnica, ou seja, que discriminam o procedimento de intervengio. Esta opgao permitiu estudar com mais precisio a questao do procedimento de avaliagdo, das condi¢des do enquadre em que se da tal trabalho, enfim do método, Para a pesqui- sa isto € importante, uma vez que procuramos contextualizar 0 cam- po em que tais intervengées se realizam e verificar se existem mode- los ou parametros especfficos. A andlise sobre as obras escolhidas foi feita por meio de algu- mas interrogagGes que configuram cinco grupos temiaticos. 1) Quem € 0 psicélogo que realiza a avaliagdo para de- terminacao da guarda? Ele é funciondrio da instituigao ju- diciéria? Ou entio, ele presta servicos ao juiz vindo da prati- ca privada ou dos recursos da comunidade? Interrogo esses Sidney Shine trabalhos para saber se a vinculagiio do profissional impée diferengas sobre o seu enfoque e procedimento. Isto condicionaria o seu trabalho de alguma maneira? Como? Com que vantagens ou desvantagens? Aqui se coloca a questiio de quem € 0 cliente do psic6logo quando este realiza a avalia- go para determinagdo de guarda. 2) A avaliag&o incide sobre qual objeto? Quem é consi- derado objeto da intervengdo do psicdlogo? A crianga que se disputa? Um genitor ou outro em fungao de alguma carac- teristica psicoldgica que se quer determinar? A familia é to- mada como objeto de investigagao? E os operadores do Di- reito (juiz, promotor de familia, advogado) siio também ob- jetos de alguma atengio por parte do psicélogo quando reali- Za suas avaliagd 3) Como é feita a avaliagao? Em que local? Com que duragdo? Utilizam-se quais técnicas de avaliagdo? Quais si0 os testes psicoldgicos utilizados? Buscar discriminar e anali- sar os recursos técnicos que se langam mao a partir da defini- ¢40 do objeto da avaliagdo. Quais s4o os pressupostos de tais método: 4) Oquese procura avaliar, analisar ou descobrir? Qual € 0 objetivo operacional da avaliacao psicolégica para deter- minacio de guarda? Avaliar habilidades, estabelecer fungdes, descobrir motivagées, discriminar caracteristicas psicoldgi- cas, levantar tragos de personalidade, etc.? 5) Quais sao as principais dificuldades consideradas? Quais sao os limites reconhecidos desta pratica e suas pers- pectivas futuras? Quais sao as implicagées éticas? Passaremos, antes de adentrar as questées especfficas da andli- se do material selecionado, a dar um panorama histérico e institucional dentro do qual se instala nossa problemitica no Capitulo 2. Para tal, ‘aremos, principalmente, de Michel Foucault (1999, 1977)* como guia condutor. A escolha deste autor francés nao € aleatéria. Foucault € um fildsofo de formagao, um psicdlogo licenciado e foi um intelec- 4. Aprimeira data re de 1974 a segunda o original publicada nos Cadernos da PUC-Rio. n 16 ata é a da edigdo da obra utilizada. 10 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos tual altamente envolvido com questées politicas. Sua obra, de uma gama e uma complexidade enormes, virou referéncia ao estudo criti- co de certas instituigdes e saberes, tais como: 0 hospital psiquiatrico, a loucura, a prisdo, a medicina e a psicologia. Neste sentido, sua escolha obedece a certa “tradi¢io” nos trabalhos com os quais me alinho (Alves, 2002; Brito, 1993; Saunier, 1999). Mas nao é sé isso. Utilizamo-nos da obra de Foucault de forma “estratégica”, pois o seu referencial em torno de conceitos, histérica e socialmente deter- minados, na questao do poder e da verdade nos permitem introduzir varios “personagens” que farao parte do cendrio no qual ocorrem as avaliagées psicoldgicas de guarda. Para além disso, a articulagao do discurso judicidrio ligado A génese da verdade no seio de seus pré- prios mecanismos é 0 chéo comum em que se da a possibilidade da intervengao do psicélogo. Portanto, este autor € rico em produzir reflexes sobre o contexto, a justificativa e a propria natureza da atividade que se demanda & Psicologia. Estamos aceitando as duas teses foucaultianas que sero expostas a seguir. Primeiro, nao existe discurso judicidrio que nao esteja referida a algo como a verdade; segundo, que estas verdades nao sao exterio- res, mas estabelecidas segundo suas préprias regras e as formas que seriam interiores ao proprio discurso judicidrio. Em relagao & segunda tese, a obra de Alves (2002) é uma sufi- ciente demonstragiio qual remetemos o leitor. Nossa inteng4o nao é fazer uma critica do uso dos conhecimentos psicolégicos para os efeitos de disciplinarizagio e normalizagao, como também nao nos deteremos a rebater tais criticas. Admitimos que elas existem e colo- cam em xeque todo o aparato tedrico-conceitual da Psicologia em todas as suas atividades, nao somente no Judicidrio, onde talvez, a tenso seja maior em fungdo dos prdéprios objetivos institucionais. Nés almejamos dar um panorama das praticas psicolégicas em ava- liagfo de guarda, admitindo a pertinéncia da andlise foucaultiana quanto & apropriagio do recurso psicolégico em sua maquina institucional para justificar sua atuagao sobre os individuos basea- dos numa “verdade” cientificamente legitimada. 2. Contexto Historico-Institucional ostuma-se distribuir a obra de Foucault segundo trés énfases metodoldgicas chamadas Arqueologia, Genealogia e Etica (Fon- seca, 2002). A obra que vamos utilizar de Foucault est4 localizada nesta segunda énfase metodolégica discriminada acima. Se a Arqueo- logia se liga ao projeto de pesquisa de estabelecer a constituigéo dos saberes privilegiando as inter-relagGes discursivas e sua articulagao com as instituigdes, ou seja, como os saberes apareciam e se trans- formavam, a Genealogia teria como ponto de partida a questaio do porqué (Machado, 1979). Nas palavras de Machado: E essa andlise do porqué dos saberes, que pretende explicar sua existéncia e suas transformagGes situando-o como pega de rela- ges de poder ou incluindo-o em um dispositive politico, que em uma terminologia nietzscheana Foucault chamara genealogia (Introdugio, p. 12). Portanto, interessa-nos esta introdugao na anilise histérica da questo do poder como um instrumento de andlise capaz de explicar a produgio de saberes. Foucault empreendeu esta série de pesquisas quando era professor no Collége de France. As obras desta fase com- preenderiam A ordem do discurso’, os cursos de 1971 a 1976 (cujos temas e abordagens aparecerio em Vigiar e Punir e A vontade de saber’) e os cursos de 1978 a 1980 (Fonseca, 2002). A verdade e as formas juridicas (1999) é um livro composto a partir de uma série de conferéncias proferidas por Foucault na Pontificia Universidade Catélica (PUC) do Rio de Janeiro em 1973. Nestas conferéncias, Foucault demonstra como praticas sociais vao engendrando novos dominios do saber, fazendo aparecer novos ob- jetos, novos conceitos, novas técnicas e, também, novos sujeitos do conhecimento. Como o préprio titulo da obra deixa claro, Foucault 5. Foucault, M. A ordem do discurso. S30 Paulo, Loyola, 1996. 6. Foucault, M. A vontade de saber. In: Foucault, M. Historia da sexualidade. Rio de Janeiro, Graal, 1997, v. | Sidney Shine vai se debrugar na questio da busca da verdade mediante determina- dos procedimentos que podem ser denominados juridicos. Aqui, Foucault usa indistintamente juridico e judicidrio. Definindo o que considera como praticas judicidrias, ele escreve que é: .. a maneira pela qual, entre os homens, se arbitram os danos e as responsabilidades, 0 modo pelo qual, na hist6ria do Ociden- te, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados em fungio dos erros que haviam cometido, a ma- neira como se impés a determinados individuos a reparagao de algumas de suas agGes e a punicao de outras, todas essas regras ou, se quiserem, todas essas praticas regulares, é claro, mas tam- bém modificada sem cessar através da hist6ria (p. 11). Portanto, Foucault est interessado em investigar as formas pelas _quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber © relag6es entre o homem e a verdade. Esta obra é de preciosa contribuigio para a pesquisa, pois situa historicamente a questao particular que aborda- mos, remontando as origens dos personagens juridicos que sao, ao mes- mo tempo, construidos pelo processo judicial e sancionados por ele. 2.1 A primeira forma de se chegar a verdade: a prova Foucault vai buscar na //fada “o primeiro testemunho que te- mos da pesquisa da verdade no procedimento judic grego” (1992, p.31). De acordo com este texto, Antiloco e Menelau disputavam uma corrida de carros durante os jogos que se realizaram na ocasiao da morte de Patroclo. Esta corrida se dava em um circuito de ida e volta, passando por um marco que deveria ser contornado o mais préximo possivel. Neste lugar ficava alguém que deveria ser 0 res- ponsavel pela regularidade da corrida, que Homero nomeia por tes- temunha* (aquele que esta 4 para ver). 0 do itilico para realgar os termos que fario parte de nossa andlise posteriormente, Mantivemos sua wilizago nos termos derivados de outras lingua, como de praxe. 14 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos Antiloco chega primeiro e Menelau contesta. Menelau acusa Antiloco de ter cometido uma irregularidade. A partir da contesta- ¢do estabelece-se 0 /itigio. Qual é a forma de resolugéo? Como esta- belecer a verdade e determinar o fim do litigio? A forma como este conflito é resolvido configuraria, segundo Foucault, uma das caracteristicas da sociedade grega arcaica. Menelau langa um desafio: “P6e a tua mao direita na testa do teu cavalo; segu- ra com a mao esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que nao cometeste irregularidade” (p.32). Este desafio constitui-se numa prova (épreuve), numa espécie de jogo no qual a responsabilidade da des- coberta final da verdade, caso ela seja aceita, fica a cargo dos deuses. Observa-se aqui, j4, a idéia de fitfgio, aquilo que é discutivel, transformavel em pleito judicial. O nosso objeto de pesquisa, a ava- liagéo psicolégica, entra como um recurso dentro do processo de resolucdo do litigio. A contestacdo & feita opondo-se duas pessoas cujos interesses sio mutuamente exclusivos no que diz respeito a posse e guarda de uma crianga, convenciona-se chamar aquele que inicia a agio de requerente e ao outro que a ele se opde de reguerido. Ambos sao as partes do processo. Parece-me oportuno esclarecer que denominamos guarda de criangas em vez de “guarda de filhos”, uma vez que, embora menos comum, a contestag&o pode ser dada nao somente entre os pais de uma crianga. Os avés de uma criancga podem pleitear em juizo a guarda de seu neto, por exemplo (Lima, 1997), Na Idade Média, a resolugio do litigio pelo meio da prova rea- parece no Direito Germanico, Quando um individuo apresentava uma reivindicagdo ou uma contestagao, acusando alguém de ter matado ou roubado, o litigio entre os dois era resolvido por uma série de provas a que os dois eram submetidos. Esse sistema transformava a prova em uma forma de liquidagao judicidria por meio da forca, da importéncia do individuo ou de sua riqueza. Havia as provas sociais, provas do tipo verbal, provas mdgico- religiosas e provas corporais ou fisicas. Veremos, a seguir, um exem- plo de cada tipo de prova apresentada por Foucault. Esta citagéo é importante, pois possibilita uma distingo entre o que se chamava de prova, nesta época, em contraste com o entendimento que hoje em dia se tem dela. O interesse justifica-se uma vez que 0 nosso objeto 15 Sidney Shine de estudo, a avaliagao psicolégica dentro de um processo de guarda, € considerado uma prova dentro do processo judicial. a) prova social: No direito da Borgonha do século XI, 0 réu acusado de assassinato podia juntar um grupo de doze pesso- as que tivessem relagdes sociais de parentesco, a fim de que elas jurassem a sua inocéncia, ou seja, que ele nio teria sido © autor do ato. Hoje em dia, causa espanto tal procedimento uma vez que a sensibilidade atual profbe a ligacdo da teste- munha com o acusado para que seu depoimento tenha vali- dade. E 0 que se coloca como impedimento’. b) prova verbal: Quando o individuo era acusado de alguma coisa, ele devia responder a esta acusag4o com um certo nti- mero de férmulas, garantindo que néo havia cometido o que Ihe era imputado. O sucesso ou 0 fracasso dependiam da cor- rec&o e preciséo com que se enunciasse tal formula. Em caso de ser menor, mulher ou padre, 0 acusado podia indicar uma outra pessoa. Segundo Foucault, essa outra pessoa mais tarde se tornaria na histéria do direito 0 advogado. Nos processos de Vara de Familia, as partes sé podem se manifestar por inter- médio de um advogado. A tinica excegiio é quando a parte (requerente ou requerido) é advogado e atua em causa propria. ¢) provas magico-religiosas: O acusado tinha de prestar um juramento, caso recusasse ou hesitasse, perdia o processo. O exemplo de Menelau e Antiloco cabe aqui. d) provas fisicas ou ordalios: No Império Carolingio (entre 742 e 814) em certas regides do norte da Franga, aquele que era acusado de assassinato devia andar sobre ferro em brasa e, dois dias depois, se tivesse cicatrizes, perdia 0 processo. Foucault destaca que a pratica judicidria no velho Direito Germinico é uma continuagao ritualizada da guerra. A prova feudal néo tem uma fungao apofantica de designar o verdadeiro, mas é um operador que permite a passagem da forga ao direito. Constitui-se em uma espécie de jogo de estrutura bindria: o indivfduo aceita ou 7, Testemunha impedida — “testemunha cujo depoimento néio pode ser tomado em virtude de alguma circunstincia prevista no Direito positivo. Por exemplo: entre nds, em regra. no pode ser ouvido como testemunhas 0 parente até o terceiro grau ou o amigo intimo de alguma das partes" (Magalhies ¢ Malta, 1990). 16 A Espada de Salomdo: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos recusa a prova. Se renuncia, perde 0 processo; se aceita, ou ganha ou perde. Quem ganha é aquele que tem mais forga; nao se trata de ter razio ou ter dito a verdade. Em contraposi¢ao 4 prova hd uma outra forma de mecanismo de determinagao da verdade que obedece a uma lei chamada “lei das metades” na Antiga Grécia. O autor identifica este mecanismo em sua forma retérica, religiosa e politica, ao qual os gregos denomina- vam de simbolo, que consistia em um instrumento de poder que per- mitia a alguém, que detém um segredo ou um poder, quebrar em duas partes um objeto e confiar a outra a alguém que deveria levar a mensagem ou atestar sua autenticidade. Para ilustrar este mecanis- mo, Foucault recorre A tragédia de Séfocles “Edipo Rei”. Apenas para relembrar, a tragédia de S6focles tem inicio com o povo rogando a Edipo que livre Tebas da praga que se abatera sobre ela. Edipo manda consultar o deus de Delfos, o rei Apolo. A resposta de Apolo é dada em duas partes: a primeira, ““O pais esta atingido por uma conspurcagao”; a segunda, “O que causou a conspurcagao foi um assassinato”. Pergunta-se a Apolo: “Quem foi assassinado?” A resposta €: “Laio, o antigo rei”. Mas quem o assassinou? Falta a segunda metade. Para saber 0 nome do assassino apela-se para 0 duplo humano de Apolo: o adivinho Tirésias. Enquanto Apolo é o deus da luz, Tirésias € sua contraparte humana, um cego mergulhado na noite. E Tirésias responde a Edipo: “Prometeste banir aquele que tivesse matado Laio. Ordeno que cumpras teu voto e expulses a ti mesmo”. A verdade enunciada na forma do futuro, em termos de uma prescrigdo se junta a verdade na sua dimensio temporal (passado e presente). Também aquilo que falta no testemunho de quem presen- ciou é dado da mesma forma: em metades. Na segunda metade, 0 acoplamento dos testemunhos para elucidar quem matou Laio é dado em dois niveis. No primeiro nivel, por meio de um dado espontaneamente for- necido por Jocasta: “Vés bem que nao foste tu, Edipo, quem matou Laio, contrariamente ao que diz o adivinho. A melhor prova disto € que Laio foi morto por varios homens no entroncamento de trés caminhos”. A esta fala de Jocasta correspondera a inquietude de Edipo: “Matar um homem no entroncamento de trés caminhos é 17 Sidney Shine exatamente o que eu fiz; eu me lembro que ao chegar a Tebas matei alguém no entroncamento de trés caminhos”. Pela jungdo destas duas lembrangas estd quase completamente revelada a verdade so- bre o assassinato de Laio. Resta ainda a outra metade da hist6ria de Edipo, pois ele nao foi apenas quem matou Laio, mas, e daf o ceme da pega, aquele que matou o préprio pai e casou com a prépria mae. Esta segunda meta- de serd dada pelo acoplamento de dois testemunhos distintos. O primeiro sera a do escravo que vem de Corinto anunciar a Edipo que Polfbio morrera. Este escravo é quem revela que Polibio nao era pai de Edipo, como este pensava. O tiltimo escravo, o pastor de ovelhas que havia se escondido no fundo do Citerao, confirma que dera aquele mensageiro de Corinto uma crianga que vinha do palicio e, suposta- mente, filho de Jocasta. O jogo das metades que se ajustam perpassa trés niveis: o nivel dos deuses (Apolo e Tirésias), dos reis (Jocasta e Edipo) e dos escra- vos (de Corinto e de Citerao). Ao olhar eterno e poderoso do deus Sol se contrapéde o olhar de pessoas que viram e se lembram de ter visto com seus olhos humanos. E 0 olhar do testemunho. Aquele testemunho ao qual Homero faz referéncia na Ilfada e que nao foi chamado a resolver a contestag4o quanto & corrida, aqui, assume um papel essencial. O autor demonstra que a tragédia pode ser vista como uma his- téria em que pessoas (0 soberano e o povo), ignorando uma certa verdade (quem assassinou 0 antigo Rei Laio), conseguem desvendé- la por meio de uma série de técnicas. Foucault faz a sua andlise enfocando a questiio do poder e como, pela justaposigiio de metades (o sfmbolo), ocorre uma transformagio no sistema de produgao da verdade na Grécia arcaica para a classica (século VI a.C.). Contra- pondo-se a “verdade arcaica”, vé-se ressaltar uma “verdade cla: ca” confirmada pelo testemunho. Na peca de Séfocles, a testemunha pode, sozinha, vencer os mais poderosos por meio do jogo da verdade que ela viu e enuncia. Foucault considera Edipo-Rei uma espécie de resumo da histéria do direito grego (p. 54). Portanto, a grande conquista da democracia grega seria o direito de testemunhar, de opor a verdade ao poder. Este processo que nasceu e se instaurou em Atenas, ao longo do 18 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine Este novo personagem, inexistente no Direito Romano, que vai surgir na Europa por volta do século XII € 0 procurador. Ele se apre- sentard como 0 representante do soberano, do rei ou do senhor. Como escreve Foucault: Havendo crime, delito ou contestagio entre os individuos, ele se apresenta como representante de um poder lesado pelo tinico fato de ter havido um delito ou um crime. O procurador vai dublar a vitima, vai estar por tras daquele que deveria dar a queixa, dizendo: “Se é verdade que este homem lesou um outro, eu, representante do soberano, posso afirmar, que 0 soberano, seu poder, a ordem que ele faz reinar, a lei que ele estabeleceu foram igualmente lesados por esse individuo. Assim, eu tam- bém me coloco contra ele’ (1999, p. 65-66). Vemos, entio, que da mesma forma que o advogado “dubla” os ‘interesses de seu “cliente”, 0 procurador o faz em relagao a vitima. Este novo fenémeno vai permitir, segundo Foucault, ao poder politi- co apossar-se dos procedimentos judiciarios. Vamos aproveitar a introdugao da figura do procurador para localizé-lo no cendrio de nossa pesquisa. Na seqiiéncia, focalizare- mos os dois novos conceitos expostos por Foucault: a nogio de in- Jragao e de reparagao. O procurador ou membro do Ministério Ptiblico, também cha- mado de Curador de Familia, tem uma fungao especffica que bem deriva de sua origem historica. O Curador de Familia, pertencendo ao Ministério Puiblico, faz parte do Poder Executivo em fungiio emi- nentemente fiscalizadora sendo “6rgio de lei e fiscal de sua execu- go". Portanto, além de fiscalizar o bom andamento processual do 8. como fiscal da Tei que o Curador de Familia tem a sua atuagio mais constante, mais varinda e complexa, zelando pela aplicagao da lei e pela integridade dos principios da ordem publica. Nao se limitaa opinar. Influi na causa, com elementos introduzidos por sua iniciativa, sobre a decisdio a ser proferida “em questoes das mais tormentosas, pela delicadeza do assunto, que em Direcito de Familia se submetem ao conheeimento do juiz, constrangido, em regra, a resolver essas pendéncias fundado exclusivamente no bom senso" José David Filho, C.PC., vol. 111, p. 416). Daf todo género de pericias, desde a pesquisa social, & psicolégica (grifo nosso), A médica, e provas pelas quais deve se esforgar 0 Curador de Familia a constituigao de uma sentenga justa.” (Prats; Bruno Neto; Cury, 1982, p. 15). 20 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos rito pertinente também influi no direcionamento daquilo que sera apreciado, sugerindo provas periciais especificas, dentre as quais a avaliacao psicolégica. Em nossa pritica, a sugesto de avaliacao psi- coldgica partindo do membro do Ministério Ptiblico € bem comum. Da mesma forma que, ao indicar a pericia psicolégica, 0 curador também pode oferecer quesitos que séo perguntas que se formulam aos peritos e pelas quais se delimita 0 campo da pericia. Sio pergun- tas escritas, relativas aos fatos, objeto da pericia”. Voltaremos a abor- dar os quesitos neste trabalho no Capitulo 5, item 5.7. O surgimento desta figura do procurador no século XII esta ligado a duas novas nogées ou invengdes, como coloca Foucault. De um lado é a nog&o absolutamente nova da infragdo. No Direito Germinico, 0 litigio entre dois individuos, vitima e acusado, girava em torno da nogdo de dano que um agressor causava a vitima. Por- tanto, a resolugdo do drama judicidrio se resumia em saber se houve dano e quem tinha razio. Mas, com a entrada do procurador que, representando o soberano, diz “Também fui lesado”, amplia-se a nogio de ofensa ao individuo para abarcar uma lesio 4 ordem, ao Estado, a lei, 4 sociedade, 4 soberania e ao soberano. E desta forma, afirma Foucault, que o poder estatal nascente vai confiscar todo 0 procedimento judicidrio, coibindo a liquidacio interindividual dos litigios. Vale a pena também tecer algumas consideragées sobre a ques- tao da infracdo que remete 4 nogao de culpa. A hipétese prevista na atual Lei do Divércio em vigor no Brasil, no Art. 5°, admite a culpa atribufvel a um ou ambos os cénjuges na chamada separa- gdo-sangao. Em caso de culpa na modalidade de conduta desonrosa'® ou grave infragdo dos deveres conjugais'’ aplicam-se sangdes ao 9. Tivemios a oportunidade de abordar exemplo de quesitos oferecidos pela Curadoria em outro trabalho (Shine, 1991). 10. Caracterizada pelo comportamento imoral, ilicito ou anti-social. Incluem-se os casos de alcoolismo, toxicomania, namoro do cénjuge com terceiros, praticas de crime, contaminagio com doenga venérea, sevicia ou maus-tratos, etc. (Gongalves, 1997). 11. Seria o adultério que infringe o dever de fidetidade reciproca, 0 abandono do lar conjugal que destespeita 0 dever de vida em comum no domicitio conjugal (coabitagdo) de onde se deriva também a recusa ao pagamento do debitum conjugale (negar-se & prética do ato sexual); sevicia (agressao fisica, paneada) quando se dé a infrago ao dever de miirua assisténcia, O quarto dever é 0 de sustento, guarda € educagdo dos filhos (Gongalves, 1997). Sidney Shine culpado que pode ser o de perda da guarda dos filhos. Criticando essa nogio de culpa e a conseqiiéncia que acarreta, Peluzo (2000) diz que a valoragéo da culpa como fundamento de sangdes tem sentido dentro de uma concepgio contratualista do matriménio na qual a familia é vista como entidade natural e atemporal, de perfil jusnaturalista, que atenderia a superiores interesses do Estado. Logo, quem descumpre culposamente obrigagGes contratuais (os deveres conjugais) responderia pela dissolugdo do pacto matrimonial, pe- las conseqiiéncias, por perdas e danos. Nesta visdo, privilegiar-se- ia a manutengao da familia entendida como a célula mater da soci- edade. Quem atenta contra a continuagao daquela atenta contra os interesses desta, sendo discriminado como culpado. Cabe ainda explicitar que se ambos forem culpados, os filhos menores ficardo em poder da mde, salvo se 0 juiz verificar que de tal solugio pode advir prejuizo de ordem moral para as criangas (Art. 10, § 1°). Estabelecer culpa e determinar perda da guarda nao deixa de ser uma diretriz clara para o magistrado. E claro que se tal diretriz fosse a tinica aplicada nos tribunais nao se colocaria a necessidade de uma avaliacio psicolégica para determinagiio da guarda. Bastaria determinar a culpa e o cénjuge culpado para atribuir a guarda dos “inocentes” ao cénjuge “inocente”. Mas nao é simples assim. Até mesmo a atribuigao da guarda 8 mae em caso de culpa comum é questionavel. A jurisprudéncia tem se pautado por razGes culturais e nao necessariamente biolégicas, admitindo que nem sempre é a mie a mais adequada para cuidar dos filhos, podendo o pai ser mais bem dotado das aptidées necessdrias para a guarda, desmistificando a pre- suncio da guarda materna, muito embora seja ela a escolhida na maior parte dos casos (Malheiros, 1994). E a partir das novas condiges sociais e culturais que permitem questionar a opgéo materna como a Unica para a guarda que o recurso da avaliagao psicoldgica vai assu- mindo maior importancia para o deslinde do processo. O entendimento de que a mie nao é, necessariamente, a melhor opgdo para a crianga é uma construgio histérica tanto quanto o seu oposto. Basta lembrar que a preferéncia pela guarda materna, com a aquisi¢ao por parte da mulher de novos direitos civis é recente no mundo ocidental. O direito do pai era superior ao da mie ao longo de 8 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine sar alguém e obter sua condenagao: era o flagrante delito. As pessoas que surpreendiam um individuo cometendo um crime tinham o di- reito de aprisiond-lo, leva-lo ao soberano, ao detentor de um poder politico e declarar que vendo-o cometer crime, exigir punigao e re- paragio. Entretanto, este modelo no poderia ser utilizado quando 0 crime nao era surpreendido na sua atualidade. Situagao esta mais fregiiente que a anterior. Portanto, o modelo extra-juridico representou a op¢ao mais co- mum ao modelo belicoso. Este € 0 modelo que Foucault denomina inquérito, que, por sua vez, tem uma dupla origem. O modelo do inquérito j tinha existido no Império Carolingio. Os representantes do soberano quando tinham de solucionar um problema de direito procediam a um ritual regular: chamavam as pessoas consideradas capazes de conhecer os costumes, 0 Direito ou os titulos de proprie- dade. Reuniam estas pessoas, faziam-nas jurar dizer a verdade (0 que conheciam, o que tinham visto ou o que sabiam por ter ouvido dizer), e eram deixadas a sds para que deliberassem. Ao final, pedia- se a solugao do problema. Este era um método de gest3o administra- tiva aplicada regularmente por funciondrios do Império Carolingio”. A pratica do inquérito caiu em esquecimento durante os sécu- los X e XI na Europa feudal. Ela foi resgatada pela Igreja Catélica que a utilizou na gestao de seus bens. Segundo Foucault (1999), a Igreja ja teria usado o método do inquérito antes do Império Carolingio com objetivos mais espirituais que administrativos. A pratica em ques- tio se chamava visitatio, que consistia na visita que o bispo fazia & sua diocese. Chegando a um determinado lugar, o bispo institufa a inquisitio generalis — inquisigdo geral — que consistia em uma con- sulta aos notdveis (aos mais idosos, aos mais sdbios, aos mais virtu- Osos) para saber 0 que teria acontecido durante sua auséncia. Se nes- 12. A titulo de curiosidade, Foucault cita: “Ele foi ainda empregado, depois de sua dissolucio, por Guilherme 0 Conquistador, na Inglaterra, Em 1096, os conquistadores normandos ocuparam a Inglaterra, se apoderaram dos bens anglo-saxdes ¢ entraramem litigio coma populagdo autoctone e entre si visando & posse desses bens. Guilherme o Conquistador, para pér tudo em ordem, para integrar a nova populagao normanda a antiga populagao anglo- saxénica, fez um enorme inquérito sobre o estado das propriedades, os estados dos impostos, o sistema de foro, etc. Trata-se do famoso Domesday, inico exemplo global que possuimos desses inquéritos que eram uma velha prética administrativa de imperadores carolingios.” (Foucault, 1999, p, 69) 26 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine co atualizando sua loucura, etc. Na torre central havia um vigi- lante. Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante podia atravessar toda a cela; nio havia nela nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o que fazia o individuo estava exposto ao olhar de um vigi- lante que observava através de venezianas, de postigos semicerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao contrario pudesse vé-lo (1999, p. 87). Para Foucault, o Panopticon € a utopia de uma sociedade e de um tipo de poder que se realizou. Por isso que, segundo ele, vive- mos em uma Sociedade disciplinar. Assim, a modificagao que ocorre na teoria e na legislagao penal do século XIX passa a enfatizar o controle, nio mais sobre se o que fizeram os individuos estava ou nao de acordo com a lei, mas em termos do que podem fazer, de sua virtualidade. E neste contexto que se pode entender a nogiio de periculosidade para a criminologia. “A nogao de periculosidade significa que o in- dividuo deve ser considerado pela sociedade ao nivel de suas virtualidades e nao ao nivel de seus atos; nao ao nivel das infragdes efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamento que elas representam” (1999, p. 85). Ao defender esta idéia, do controle penal punitivo dos indivi- duos em termos de suas virtualidades, Foucault contesta a separagao atribuida a Montesquieu do poder judicidrio como discriminado do executivo e do legislativo. A justiga ndo deteria a prerrogativa do controle do individuo. Tal controle se daria por uma série de outros poderes laterais, como a policia, as instituigdes psicolégicas, psi- quiatricas, criminoldgicas, médicas e pedagégicas'*. E por isso que ao classificar a sociedade contemporanea de disciplinar, Foucault se refere 4 entrada na idade da ortopedia social. Os individuos viram “casos” que sdo descritos, mensurados, medidos e comparados a 15. “Nestas instituigdes ndo apenas se dao ordens, se tomam decisdes, no somente se garantem fungies como a produgio, a aprendizagem, etc., mas também se tem o direito de punir e recompensar, se tem o poder de fazer comparecer diante de instincias de julgamento. Este micropoder que funciona no interior destas instituigdes € a0 mesmo tempo um poder judicidrio” (Foucault, 1999, p, 120). Voltaremos a esta questo quando abordarmos os limites, de competéncia entre 0 perito ¢ 0 juiz (perito adversarial ou imparcial). 30 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine lia (Children and Family Court Advisory Service). A medida vem para diminuir os procedimentos litigiosos que resultam em conside- tavel gasto de tempo e recurso aos tribunais. Segundo esta mesma fonte, os tribunais examinam anualmente cerca de 110 mil pedidos de residéncia (residence), em vez de guarda (custody) e contato (contact), em vez de visita (access) (Driscoll, 2002). Segundo Schindler (1983), em Israel, quando a questao de guar- da de criangas é levada ao tribunal, a familia é encaminhada para uma das instituigdes ptiblicas especializadas para ser avaliada por um assistente social. Este profissional tem a fungao de verificar o melhor interesse da crianca e remeter suas conclusées ao tribunal. Na realidade brasileira, o Cédigo de Processo Civil aborda a questao da pericia em relagdo a uma competéncia técnica especffica, atrelando-o até mesmo a sua pertinéncia ao 6rgao representative de sua classe. No texto do Cédigo: § 1 do Art. 145 — Os peritos serao escolhidos entre os profissio- nais de nivel universitario, devidamente inscritos no érgio de classe competente, respeitando o disposto no Cap. V1, Secdo VII deste Cddigo (Cédigo do Processo Civil, 1999). Mas o que determina a entrada do psicélogo, do psiquiatra ou do assistente social na pericia em avaliagao de guarda? Geralmente, a proposigao da pericia é feita pela parte. O pedido de pericia pode ser formulado na inicial, na contesta- ¢4o ou na reconvengdo, bem como na réplica do autor a respos- ta do réu. O juiz o apreciaré no despacho saneador, oportunidade em que, se deferir a pericia, nomeard, desde logo, 0 perito ¢ determinara a intimagao das partes para que, em cinco dias, indiquem seus as- sistentes técnicos e apresentem os quesitos a serem respondidos pelos louvados (Art. 421, n.° Te Hl) (Theodoro Jr., 2002, p. 431). Entenda-se que a parte que inicia 0 litfgio (requerente) pode solicitar a pericia, bem como a parte que se op6e (requerida) quando contestaa ago. Ou ainda, o requerente solicita a prova pericial quando a4 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos faz a réplica 4 contestagdo da parte requerida. Cabe explicar também que, embora sejam as partes aqueles que requeiram 0 tipo de pericia para respaldar suas alegag6es, na verdade, sao os operadores do Di- reito que orientario a escolha, sua admissibilidade e, por fim, sua determinagao. Comentei anteriormente que o Curador de Familia tam- bém pode requerer a perfcia (vide Capitulo 2.2) Mas 0 que se entende por pericia? De acordo com 0 texto de Theodoro Jr. (2002): Como ensina Amaral Santos, a perfcia pode consistir “numa declaragio de ciéncia ou na afirmagio de um jufzo, ou, mais comumente, naquilo e nisto”. E declaragdo de ciéncia, “quan- do relata as percepgses colhidas, quando se apresenta como prova representativa de fatos verificados ou constatados”, como, v.g., nO caso em que sdo descritos os danos sofridos pelo vefculo acidentado, bem como os sinais materiais encon- trados na via publica onde se deu a colisio. E afirmagdo de um juézo “quando constitui parecer que auxilie 0 juiz na inter- pretaciio ou apreciacgo dos fatos da causa”, como, v.g., a0 dar sua explicagao de como ocorreu 0 choque dos vefculos e qual foi a causa dele'* (p. 428) Se hd uma hipotese de que um genitor possa ter uma doen¢ga mental que impega 0 exercicio da guarda, o psiquiatra é chama- do. Quando se tem dtividas das condigdes socioeconémicas de um dos pais para fazer frente 4s necessidades do menor, recorre- se ao assistente social e @ sua diligéncia. Mas se as dificuldades so percebidas no estado emocional/afetivo dos envolvidos ou na impossibilidade de se questionar diretamente a crianga, muito pro- vavelmente seré acionado o psicélogo para “dublar” as necessi- dades e desejos da crianga frente ao contexto de uma dindmica conturbada dos pais. 18. Santos, A. Comenidrios ao Cédigo de Processo Civil. V. IN, n° 245, p. 334, 1976. 35 Sidney Shine 3.1 O Assistente Social A inserg4o do assistente social no Tribunal de Justica de Sio Paulo é anterior 4 do psicdlogo (Bernardi, 1999; Davidovich, 1993). Pinto (1993) diz que o assistente social em pericia social nas Varas da Familia do Tribunal de Justiga do Estado de Sao Paulo “entra em contato direto com os ambientes sociais das partes, cria{ndo] o que chamamos de ‘interacgio em situagio’ e uma proximidade de relagdo profissional sistema — cliente” (p. 131). Questionando o sentido de “aspecto social”, a autora pre- tende que este conceito nio englobe somente o “fisico e exter- no”. Em suas palavras, “o assistente social analisa individuos “em situagao’, “em interagdo’ e o ser humano tem, em sua pr6- pria constituigado, emogées e sentimentos a embasar seus relaci- onamentos” (p. 132), Ao discriminar os elementos basicos a se- rem analisados, Pinto relaciona: - Identificagio e caracterizagaio da constelagao familiar de origem e a vigente. - Relacionamentos: entre os diversos membros da unida- de familiar, com outros grupos interpessoais. - Aspectos da histéria de vida do Requerente, Reque- rido e, no que for pertinente, dos filhos com enfoque para a criagao, nfvel de escolaridade, qualificagao profissio- nal, situagdo econémica e financeira, padrées de vida, situagio conjugal e encargos decorrentes dos compro- missos havidos, problemas ocorridos da vida em comum e formas adotadas para a sua minimizacao, envolvimentos e superacé - Condigdes de vida das partes 4 6poca da realizagao da pericia social, em termos de: situagdo conjugal, habilitagao, atividades laborais, manutengao, satide, educagao, lazer, pa- drdes culturais, “srarus” familiar, valores, religiaio, expecta- tivas, planos de vida, interesses. — Constatagao da forma como esta sendo vivenciada a si- tuaciio-problema pelas partes envolvidas, especialmente no que diz respeito 4 crianga e ao adolescente. 36 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine Castel (1978) mostra muito bem as disputas sendo travadas entre 0 médico psiquiatra e o operador do direito no trato com os loucos. Castel vai mais além ao afirmar que o médico psiquiatra é 0 profissional que sintetiza a figura do perito. Exibindo os sinais exteriores de cientificidade e cultivando uma técnica esotérica, os médicos aumentaram a distancia em rela- ao aos saberes praticos vulgares e, com isso, impdem a legiti- midade como exclusiva, no somente com relagéo ao tratamen- to técnico das questGes que supostamente sdo do Ambito de sua competéncia, como também quanto a maneira como elas de- vem ser colocadas: “Seu mandato consiste em definir se um problema existe ou nao, qual é sua “verdadeira” natureza, e como deve ser tratado” (Freidson'®, 1970, p.205). Assim, os peritos definem para a realidade global e, particularmente, para aque- les que vivem, na carne, suas contradigdes. O psiquiatra realiza essa operagéo de maneira exemplar: a partir do momento em que seu diagndéstico define 0 doente mental no seu status com- pleto, pode, como diz Th. Szasz, “transformar seu julgamento em realidade social” [Szasz”’ , 1970, p. 75] (1978, p. 144). A integridade do contrato social democratico-burgués nao per- mitiria infringir uma punigao ao louco, aquele que rompe o contrato social com sua conduts insana. A figura do psiquiatra vem proporci- onar um dispositivo pelo qual o individuo se vé desresponsabilizado (inimputdvel) e colocado sob a tutela psiquidtrica. Machado et al. (1978) vao demonstrar como a psiquiatria brasi- leira nasce no seio da medicina social que se impGe como instancia de controle social dos individuos e das populagdes. O processo de patologizagiio do louco e de sua medicalizagiio teve inicio, segundo Machado, em 1830 com a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro que langou uma nova palayra de ordem: “aos loucos o hospi- cio”. O hospfcio torna-se 0 principal instrumento terapéutico do Esta- do e da Psiquiatria alicergado em uma critica higiénica e disciplinar. 19. Freidson, E. Profession of medicine: a study in the applied sociology of knowledge. New York, 1970, 20. Szasz, T. Ideology of insanity, New York, 1970. 38 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. A Espada de Salomdo: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos forense e suas implicag6es para o trabalho do psicdlogo. Nao é por acaso que 0 primeiro analisa a questo da pratica forense a partir da reviséo que a Associagao Psicolégica Americana fez do Cédigo de Etica em 1992, incluindo uma se¢do especffica ligada a atividades forenses (American Psychological Association, 1992). A questio téc- nica é pensada a partir do balizamento de alguns princfpios éticos. O primeiro autor, Gary Perrin, € especialista em psicologia forense, atuando em clinica particular em Tucson (Arizona). O segundo, Bruce Sales, é professor da Universidade do Arizona. O estudo de Perrin e Sales (1994) vai se debrugar exatamente sobre os itens referidos acima das “Atividades Forenses” do Cédigo de Etica (Ethical Principles of Psychologists and Code of Conduct) da Associacaio Psicolégica Americana (itens 7.01 a 7.06). Como jus- tificativa do estudo, os autores colocam: Quando servicos psicolégicos sao requisitados, os psicdlogos devem averiguar a natureza especffica dos servicos solicitados, determinar a quem eles se dirigem (beneficidrios), avaliar sua competéncia em prover tais servigos e estabelecer os honorari- os para realizagio do trabalho. Embora este processo seja o mesmo para todos os psicGlogos, existem varias peculiaridades que sao especificas 4 realizado de servigos psicolégicos foren- ses. Uma vez que muitos clientes (p. ex. partes, advogados, es- pecialistas em justica criminal) nao estao familiarizados em tra- balhar com psicdlogos forenses nao é raro que a demanda ini al se confunda em relacao a varios papéis, varias quest6es psicolegais” ou varios servigos. Os profissionais da 4rea foren- s conflitos en- se devem estar cénscios e atentos para potenci: tre os papéis profissionais de psicoterapeuta e assistente técni- co; entre os papéis de advogado do cliente ¢ advogado da opi- nido profissional (p. 377). (Os autores usam o termo “questdes psicolegais” (psycholegal issues) para se referirem. a0 imbricamento da questo psicoldgica (p. ex. avaliagdo psicoldgica) com a questio legal. “Por exemplo, um advogado pode requisitar que 0 seu cliente seja avaliado ¢ 0 Laudo usado para uma ago de disputa de guarda c, também, em uma ago distinta em que a competéneia deste cliente de fazer um testamento & questionada. Quando as questdes legais diferem, as (p. 377). avaliagdes psicoldgicas ou servigos provavelmente serdo diferente: 43 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. A Espada de Salomdo: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos Os autores falam de uma forma geral sem discriminar especifi- camente os casos de Vara de Familia. Faremos este recorte, ao mes- mo tempo que assinalaremos o que é€ pertinente desta discussio a realidade brasileira. O segundo estudo é de Allen Hess (1998), pesquisador e pro- fessor da Universidade de Auburn em Montgomery (EUA), que bus- ca orientar os psicdlogos quanto a aceitagdo de casos forenses, ana- lisando “algumas quest6es criticas” presentes nestes encaminhamen- tos. Hess (1998) desenvolve sua argumentagao a partir de varias per- guntas da seguinte forma: Quem chama o psicélogo? Quem encaminhou o caso para o psicdlogo? Quem é 0 advogado? Quem sao as varias partes envolvidas no caso? Quais sao os fatos do caso? O psicdlogo tem o conhecimento especializado para esclarecer e desenvolver as questées técnicas em jogo? O que se espera do psicélogo & que ele desempenhe um papel de perito ou de assistente técnico? Quem paga o psicdlogo? Como os honordrios sio definidos? Que registros dos casos devem ser mantidos? (p. 109) Nao vamos seguir 0 autor em todas as respostas a estas pergun- tas. Selecionaremos aquilo que diz respeito ao foco de nossa pesqui- sa. Ora, se o interesse € identificar 0 profissional na atividade de avaliagéio de guarda (Quem € 0 psicélogo que realiza a avaliagio?), como também quem € 0 seu cliente e quem é€ 0 objeto da interven- gao do psicélogo, alguns indicativos de Hess (1998) sero valiosos. Em particular, a discussio sobre quem chama o psicélogo, quem o indica, quais as partes envolvidas em seu trabalho e quem paga seus honordrios. A discussio sobre seus conhecimentos especializados para as questdes técnicas do caso e a expectativa quanto ao seu papel nos serao titeis quanto ao interesse em como é¢ feita a avaliagitio, que sera tratada mais especificamente no Capftulo 3. 45 Sidney Shine O uso da palavra “enquadre” para se referir as especificidades do fazer psicolégico em termos de contrato e de técnica nao é aleaté- ria. Ela revela a nossa pertinéncia e filiagdo com um modo especifi- co de exercer a pratica que é a psicandlise. A obra de Ocampo (1990), como uma referéncia em nossa formagao, direcionou estas questdes, no que dizia respeito a tarefa psicodiagnéstica. Esta psicéloga ar- gentina de formagao psicanalitica faz uma critica da pratica do psicodiagnéstico feita sob demanda de outrem (psiquiatra, psicana- lista, pediatra, neurologista, etc.), redundando em uma posi¢ao que colocava 0 paciente apenas como um meio para se chegar as respos- tas frente a um estimulo (testes). A adogao do modelo psicanalitico teria, segundo a autora, enriquecido a compreensio dinamica do caso, mas tendo o efeito de desvalorizar os instrumentos que nao eram utilizados pelo psicanalista, marcadamente os testes psicolégicos. Pode-se afirmar que a importancia de sua obra foi, principalmente, no sentido de resgatar a especificidade da pratica psicodiagnéstica frente a realidade da tarefa, diagnéstica, que difere de uma andlise propriamente dita. Assim, a autora destaca a necessidade de definir 0 enquadre ou enquadramento, pois permite manter constantes certas varidveis que intervém no processo. E quais sao estas constantes? Em suas palavras: - Esclarecimento dos papéis respectivos (natureza e li- mite da fungao que cada parte integrante do contrato desem- penha). — Lugares onde se realizarao as entrevistas. - Hordrio e duragdo do processo (em termos aproxima- dos, tendo o cuidado de nao estabelecer uma duragio nem muito curta nem muito longa). - Honorarios (caso se trate de uma consulta particular ou de uma instituigdo paga) (p. 18) (itdlicos nossos). O esclarecimento dos papéis do psicélogo-perito e do(s) periciando(s) define o objetivo da intervengao e delimita quem é ou 0 que é 0 objeto desta intervengéo. A questo dos honordrios vai precisar a relagao cliente-prestador de servigo. Outro autor que exerceu grande influéncia tanto no meio aca- démico quanto psicanalitico, se nao no Brasil, pelo menos em Sio 46 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos Paulo, foi o argentino José Bleger. Este autor trabalha a questio do enquadre, propondo o entendimento deste como integrante da situa- ¢Go psicanalitica, em contraposigio com 0 processo (andlises e in- terpretag6es). O enquadre seria 0 “‘ndo-processo”, que exatamente por fixar as constantes de um fenédmeno, de um método ou de uma técnica, permite uma melhor investigagao do processo em si que es- taria ligado ao conjunto das varidveis das personalidades do analista e do(s) paciente(s) (Bleger, 1977). A utilizagao do enguadre, ou seja, de como ele se estabelece nfo tem como objetivo estudar 0 processo. E tao somente verificar as modalidades de enquadre possiveis para justificarmos a posigio de que, a partir de tais varidveis, necessariamente 0 processo investigado sera de natureza diversa a de outro enquadre estabelecido. A contribuigdo de Bleger (1984) para esta pesquisa vem ainda de outra proposta de trabalho defendida por ele que é a de atuagdo como psicélogo institucional. O autor propde uma atuagao do psicé- logo fora do consultério na lida com a satide mental, ou como ele define, com a psico-higiene nos grupos e atividades da vida diaria. Sua proposta € a utilizagdo da psicandlise e do método clinico, mas para realizar uma iniervengdo institucional. A proposta da psico- higiene para o psic6logo, neste sentido, seria diferente da atuagio do psiquiatra ou do psicanalista que tem um cunho mais terapéutico. Bleger (1984) entende que o psicdlogo investiga a conduta hu- mana que sempre acontece em relacgaéo, pressupondo, entio, a intersubjetividade; desta forma ele nega o parametro das ciéncias naturais que pressupde um distanciamento entre o cientista/pesqui- sador e seu objeto. O psicélogo como cientista s6 poderia empreen- der sua investigagao incluindo-se nela, admitindo que o conhecimento psicolégico que produz € sempre uma realidade intersubjetiva. Em linhas gerais, pode-se dizer que Bleger (1984) pensa a atua- ¢ao do psicélogo enfocando “as tarefas didrias e ordindrias” e seu ob- jetivo seria “promover o bem-estar”. A sua atengiio seria sobre os pre- conceitos, os habitos e as atitudes de pessoas e grupos em situagGes de mudanca ou periodos criticos (doenga, acidente, morte, etc.), além de situagdes cotidianas comuns. A sua proposta qualifica 0 psicélogo como um assessor ou consultor que deveria ser alguém de fora da institui- 47 aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos - Por qué? Conhecer as justificativas e as razes pelas quais se solicita o trabalho. - Para qué? Saber qual € a finalidade pretendida com o trabalho. Os itens citados remetem-nos ao contrato de trabalho e ao es- clarecimento daquelas indagagdes dos autores que chamamos para nos ajudar em nossa anélise, a saber: Hess (1998) e Perrin e Sales (1994). Perseguir as diferentes variagOes de contrato de trabalho e de entendimento da tarefa permitira visualizarmos, em primeiro lugar, quem € 0 psicélogo que realiza avaliacao psicolégica de guarda. O esclarecimento dos papéis entre 0 demandante dos servigos, do provedor deles e sobre quem tais servigos envolvem nos permitira definir com clareza, primeiro, quem é o cliente do psicdlogo que realiza avaliagao psicoldgica de guarda e, a seguir, quem é ou quem SHo as pessoas avaliadas no processo. Por decorréncia ldgica, sabe- remos 0 que é avaliado. A partir do que levantarmos destas interrogagGes, os itens arrola- dos abaixo conduzem as condigées que os profissionais estabelecem para a execugéao das tarefas. Aponta, por conseguinte, para o como é feita a avaliag&o (Pergunta n.° 3), Esta ¢ a parte especifica da técnica que nos interessa ao fazermos uma descrigdo e andlise das propostas recolhidas pela nossa pesquisa sobre os procedimentos em avaliagao psicolégica para determinagéio de guarda em Vara de Familia. - Como? Esclarecer o que se pretende fazer para atingir tal objetivo (procedimento). - Quando? Ter claro qual é o limite de tempo para reali- zar 0 trabalho e como ele sera distribuido neste tempo. -— Onde? Informar o local em que se realizaré tal atividade. - Quanto? Saber qual sera a retribuigdo financeira. Em fungdo da utilizagdo de autores estrangeiros para o balizamento daquilo que chamamos de tarefa pericial, poder-se-ia levantar a objegao de que a realidade nacional nio contemplaria os mesmos problemas e situagGes. E necessdrio reconhecer que a gama de material pesquisado vai além da fronteira nacional encampando diferentes configuragdes de trabalho e realidades sociais e institucionais. Mas, entendemos que existem caracteristicas e pro- 51 Sidney Shine blemdticas comuns que permitem pensar, exatamente em um enqua- dre designado de juridico, por manter constantes certas varidveis, apesar das diferengas técnicas e de contextos de trabalho. Apenas para exemplificar, lembremos que no cendrio paulista ha um grande ntimero de queixas que chegam ao Consetho Regional de Psicologia — Regiaio 06 (CRP/06) relacionados aos laudos emitidos durante pro- cessos de disputa de guarda. Este ntimero € de 70% segundo o Psi- Jornal de Psicologia do CRP SP, n.° 131. Liebesny, Alvim, Leonardi e Aoki (2000), integrantes da Comissio de Etica do CRP 06, apre- sentaram um trabalho no III Congresso Ibero-americano de Psicolo- gia Juridica abordando esta quest4o. Eles relatam que as dentincias ligadas ao Setor Judicidrio se concretizam de duas maneiras comple- mentares. A primeira liga-se as expectativas nao satisfeitas por parte do usudrio. A segunda estaria ligada & prépria pratica do psic6logo: .. 0 usuario s6 poderia construir devidamente suas expectativas a partir de praticas consolidadas, de contratos claros de servi- Gos a serem prestados: e esbarramos, entéo, com o desconheci- mento dos préprios profissionais quanto a suas possibilidades de atuagdo, a fungiio de cada um na conformagio juridica, o nao-discernimento quanto & adequagao de instrumentos de pes- quisa ¢ relato dos fatos psicolégicos referentes & questo em litfgio (sao exemplos dessa demanda: desconhecimento das fun- gGes do psicdlozo-perito; uso inadequado de instrumentos; des- conhecimento da forma de elaboragdo de laudos, pareceres ou atestados...). E, afinal, a propria formagdo profissional que tem levado a pra- tica a se concretizar de forma inadequada. E auséncia das perguntas: por qué? para qué? para quem? E 0 desconhecimento de: * por que eu, psicdlogo, estou nesta fungio? * para que fazer estou aqui? * para quem se direciona minha ago? que leva o profissional a nado desempenhar adequadamente suas fungGes, a ndo se fazer reconhecer pelos usuarios, a nao ter es- tabelecido claramente seu campo e limite de atuagiio (Liebesny, Alvim, Leonardi e Aoki, 2000, p. 64). A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos Os autores acima apontam este “desconhecimento” ou “falta de preparo” dos profissionais para bem desempenhar suas fungdes no contexto juridico e estd em sintonia com as precaugées e alertas dos autores americanos que utilizamos na nossa andlise. Esclarecer os elementos do enquadre a partir dos dados da amostra de trabalhos pesquisada permitird apreender as especificidades da atuagao do psi- c6logo no enguadre juridico. Uma vez que nao se trata simplesmen- te de fazer um ‘psicodiagnéstico’, nos moldes clinicos, e chamé-lo de ‘pericia psicolégica para determinagiio da guarda’. Pretendemos destacar as peculiaridades do enquadre do psicdlogo no trabalho de avaliagao de guarda, demonstrando que o objetivo do laudo pericial na Vara de Familia nao é “conseguir uma descrigao e compreensio, © mais profunda e completa possfvel, da personalidade total do paci- ente ou do grupo familiar” (Ocampo, 1999, p. 17), ou pelo menos, nao € somente isso. Em fungdo de tal especificidade ha autores que propéem outras denominagées tais como ‘avaliagao psicoldgica fo- rense’” (Grisso, 1987) ou ‘avaliagdo psicolegal’* (Elwork, 1984; Perrin e Sales, 1994), defendendo a idéia de desenvolvimento de um corpo especializado de conhecimento. Cube esclarecer que ndo estamos propondo que os profissio- nais que trabalham nas variadas instituigdes de satide ou de ensino se especializem em Psicologia Juridica. Militar na area, para utili- zar uma expressdo muito comum entre os advogados, pode nao ser do interesse deste profissional, mas para bem cumprir uma incum- béncia eventual seria necessdria a familiarizagao com caracteristi- cas particulares do contexto juridico no qual este trabalho vai se realizar. Esta preocupagdo se encontra assinalada por Jurema Cu- nha (2000). Peco licenga ao leitor para reproduzir uma citagéo um tanto longa. Por se tratar de uma autoridade na drea a abordar tao diretamente do que tratamos, pareceu-nos pertinente a reprodugao dos trés pardgrafos a seguir. Em termos de Brasil, embora cada vez mais se encontrem pro- fissionais da psicologia trabalhando nesses ambientes, especi- forensic psychological assessment, 23. psycholegal assessment. 33 Sidney Shine almente em instituigdes de cuidados com a satide, é muito co- mum que 0 psicodiagnéstico se realize em clinicas ou em con- sultérios psicolégicos, em que ele recebe encaminhamento prin- cipalmente de médicos psiquiatras ou de outra especialidade (pediatras, neurologistas, etc.), da comunidade escolar, de juizes ou de advogados, ou atende casos que procuram espontanea- mente um exame, ou so recomendados a fazé-lo por algum familiar ou amigo. A questo basica com que se defronta o psicdlogo é que, embora um encaminhamento seja feito, porque a pessoa necessita de sub- sidios para basear uma decisao para resolver um problema, mui- tas vezes ela nao sabe claramente que perguntas levantar ou, por razoes de sigilo profissional, faz um encaminhamento vago para uma “avaliagdo psicolégica”. Em conseqiiéncia, uma das falhas comuns do psicdlogo € a aceitagao tacita de tal encaminhamento, com a realizagio de um psicodiagnéstico, cujos resultados niéo sio pertinentes ds necessidades da fonte de solicitagio. E, pois, responsabilidade do clinico manter canais de comunica- cio com os diferentes tipos de contextos profissionais para os quais trabalha, familiarizando-se com a variabilidade de proble- mas com que se defrontam e conhecendo as diversas decisGes que eles pressupGem. Mais do que isso: deve determinar e escla- recer 0 que dele se espera, no caso individual. Esta € uma estraté- gia de aproximagao, que lhe permitird adequar seus dados ds ne- cessidades das fontes de encaminhamento (grifo nosso), de for- ma que seus resultados tenham o impacto que merecem e o psicodiagnéstico receba o crédito a que faz jus (p.25-26). Cabe notar com o nosso grifo que a autora utiliza-se de uma terminologia que sera distinta da que adotamos no presente trabalho. Ela fala de “fonte do encaminhamento” para designar referal setting (original em inglés). Em nosso trabalho, utilizamos 0 termo cliente para especificar a quem o produto final do trabalho do psicdlogo tem como destinatario, aquele que o demanda (aquele que faz o referal). Parece-nos que esta autora, que se dirige aos psicdlogos clinicos, faz © mesmo alerta para que ndo cometam o erro de “fornecer uma gran- de quantidade de informagées intiteis para quem encaminhou 0 caso 54 A Espada de Salomdo: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos para avaliagéo” por desconhecimento do vocabuldrio, do modelo conceitual, da dinémica e das expectativas do solicitante. Melton et al. (apud Rovinski, 2000) propéem seis aspectos em que a avaliacao forense difere do trabalho do psicélogo na drea clinica. Estas discriminag6es vao nos ajudar a perceber como a tare- fa do psicdlogo, que esta ligada ao objetivo da instituigdo judicidria (determinar a guarda), é diferente do colega em uma situagao de aten- dimento no enquadre clinico. Serao abordados seis aspectos distin- tos. Sao eles: a) — Escopo: No enquadre clinico os aspectos primarios sio 0 diagnéstico, o funcionamento da personalidade e o trata- mento para a mudanga de comportamento; na avaliagao em enquadre jurfdico ou forense, a énfase “dirige-se a even- tos definidos de forma mais estreita ou a interagdes de natureza nio-clinica, sempre relacionados a um foco de- terminado pelo sistema legal” (p. 184). Retomando os itens colocados anteriormente sobre 0 enguadre, 0 escopo define 0 objetivo da intervengao, ou seja, remete 2 pergunta de para qué sao solicitados os servigos do psicdlogo. Responder para qué nos reporta, por sua vez, a todo 0 contexto juridico do litigio, da necessidade de determinar fatos (no caso qualida- de do relacionamento pais-filhos) e da utilizagao da avalia- g&o como prova para a decisfo judicial: a escolha de um guardiao responsdvel em detrimento de outro e sua justifica- tiva. Portanto, nao nos interessa ter um diagnéstico de perso- nalidade dos candidatos a guarda e do(s) menor(es) se isto nao puder ser, de certa forma, ligado 4 questio legal (neces- sidade de definig&o de um guardiao em fung&o das necessi- dades da crianga ou das criangas). b) Perspectiva do cliente: No enquadre clinico privile- gia-se a visio do cliente sobre o problema que motivou o atendimento. A avaliagdo forense nao se restringe ao exa- minando, uma vez que deve responder sobre fatos que extrapolam sua subjetividade. Melton et al. nao conside- 24. Melton, G.; Petrila, J.; Polythress, N.; Slobogin, C. Psychological evaluations for the court 2. ed. New York, Guilford, 1997 55 56 Sidney Shine ram 0 examinando como a tinica fonte de informagao, su- gerindo que o profissional deve recorrer a todas as fontes relevantes. Veremos que, neste sentido, a pratica de buscar dados adicionais com membros familiares mais préximos e profissionais de referéncia da familia (médico, professor, psicoterapeuta, etc.) vai variar dependendo da compreen- sao do profissional sobre 0 seu trabalho. No caso de se par- tir de uma concepgio que o trabalho psicoldgico deve ficar inteiramente voltado a realidade psiquica dos membros da familia, tal saida para o circulo social mais amplo nao fara sentido. Pode ser até entendido como desvio ou viés que confundiré a percepgio dos elementos intrapsfquicos. Para além da concepgao do trabalho relevante, estaremos abor- dando como as informagGes que levam ao laudo psicoldgi- co serao levantadas. Mais uma vez, este é o cerne da ques- tio técnica deste livro. c) Voluntariedade e autonomia: A busca pelo psico- diagnéstico geralmente é espontanea. A avaliagao forense é feita sob demanda do juiz ou do advogado. Ha maior probabilidade de resisténcia que néo é de natureza incons- ciente (Psicandlise). As razGes podem ser por temor quanto ao resultado e/ou ressentimento pela intromissdo em sua vida. O psicdlogo sera encarado como um aliado ou um inimigo da “causa”. d) Riscos @ validade: Por se tratar de procedimento co- ercitivo, dentro de um sistema de ataque e defesa, os cli- entes so incentivados a distorcer a verdade. Esta ca- racteristica € extensiva também aos terceiros chamados para informar sobre o cliente (parentes, amigos, profis- sionais, etc.). e) Dindmica do relacionamento: No enquadre juridico, 0 profissional é visto de forma mais distanciada, pois ele nao é um aliado em busca de um benefficio (tratamento psicoterapéutico). Como mencionado no item ¢), 0 psicdlo- go pode até ser percebido como aliado ou inimigo se ele “ad- vogar” a “causa” de um dos lados. aa You have either reached a page that is unavailable for viewing or reached your viewing limit for this book. Sidney Shine c) Emrelagdo ao alcance social: O laudo, subsidiando uma sentenga judicial, influencia mudangas sociais. Pode criar ju- risprudéncia e modificar as leis de um pais. d) Técnicas empregadas: O perito tem liberdade de escolha emrelaciio a linha teérica e as técnicas projetivas a partir da qual terd uma visdo de funcionamento mental e psicopatologia. Em fungdo da existéncia de outros peritos e da possibilidade de po- lémica, os testes psicol6gicos so recomendados como material concreto ao qual perito e assistentes técnicos podem se reportar. Vamos para as diversas respostas possiveis aos elementos do enquadre e como os psicélogos que realizam avaliagéo para determi- nagdo de guarda propdem em seus trabalhos. .4.1.1Quem demanda o servico? A segiio que se desenvolve a seguir esta subdividida em trés partes. Na primeira subdivisao, veremos os quatro potenciais clientes do psic6- logo e analisaremos a especificidade de cada um deles, levando em con- ta seu papel institucional dentro do processo judicial em Vara de Fami- lia. Esta primeira parte pretende dar conta de esclarecer Quem solicita os servicos do psicéloge para o processo de guarda? Ao mesmo tem- po, vamos explicar quem sao as partes integrantes do trabalho psicol6- gico, esclarecendo os papéis de cada uma delas (natureza e limite da fungéio de cada um) (Ocampo, 1999). A fim de deixar claras as diferen- ¢as do trabalho nos contextos clinico e juridico, utilizaremos 0 verbo “atender” quando nos referirmos ao contexto clinico, reservando 0 ter- mo “avaliar” para a tarefa em contexto pericial. Neste sentido, utilizare- mos os termos “periciandos” ou “examinandos” para diferenciar as pes- soas que sao submetidas a avaliagio psicolégica na drea da psicologia juridica, das que demandam este trabalho na drea clinica, estas identifi- caremos como “clientes”, “solicitantes” ou “demandantes”. Ao analisar 0 contrato de trabalho, explicito e implfcito, no enquadre do relaciona- mento profissional adentraremos o primeiro bloco de interrogagdes do Capitulo 1 (Quem é 0 psicélogo que realiza a avaliacio). 58 A Espada de Salomao: A Psicologia e a Disputa de Guarda de Filhos 4.1.1.1 O Advogado Byrne (1991), psicdlogo clinico e forense australiano que atua em clinica particular, comega o seu texto falando de um contato tipi- co em casos forenses. Vamos acompanhar como ele descreve este contato inicial: Alguns meses atras, eu recebi um telefonema de um experiente advogado de Familia, pedindo que eu avaliasse a sua cliente, mae de duas criangas, que estava com um novo companheiro. O ex-marido estava entrando com uma queixa na justic¢a de que ela era inadequada como mie e, portanto, um litigio pela guar- da estava sendo montado. Ele também me pediu que eu exami- nasse © novo companheiro de sua cliente. Ele fez questio de afirmar que nao havia problemas de dinheiro para o pagamento de honordrios. Eu respondi perguntando se o pai das criangas seria convidado a participar da avaliagio. O advogado respondeu que nao queria © pai avaliado por mim. Apés algumas ponderagGes, ele admi- tiu a possibilidade de convidar o pai, mas somente apés eu ter visto a sua cliente e seu companheiro (p. 8). Consideramos que o didlogo acima transcrito possa ser exem- plar de um primeiro contato para 0 trabalho neste enquadre, que cha- mei de juridico. Reitero que, em fungao da minha posigao dentro do Judiciario, nenhum advogado iria me contatar para realizar um tra- balho, a nfvel particular, que eu jd realizo como servidor ptiblico. Portanto, utilizamos do exemplo acima para ilustrar 0 que possa ser um contato comum entre 0 advogado de familia e 0 psic6logo que oferece seus servigos na clinica particular. Hess (1998), o psicdlogo de Montgomery (EUA) que tece con- sideragdes sobre o encaminhamento de casos forenses, alerta 0 psi- c6logo para levar em conta a importancia do primeiro contato com o advogado. Em grande parte, o trabalho do psicélogo estard na de- pendéncia da habilidade e do uso que 0 advogado e sua equipe farao dos conhecimentos psicolégicos e suas descobertas. Este autor suge- te ao profissional psi que se utilize das primeiras impress6es que lhe causam 0 contato inicial com o advogado, tal qual ele o fariaem uma 59

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