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x ki 10. ua. 12, 13. 4, 15. 16. V7, 18. 19. Pa y { ' { ee eae HELE H \. Para ler a Fenomenologia do Espirito Paulo Menekes Vereda indgica do Grande Sertdo: Veredas Sonia M, V. Andrade Exeritos de Filosofia 1 Hensique C. de Lima Vaz Marx e a natureza em O Capital Rodrigo A. de P. Duarte Marzismo ¢ liberdade Luiz. Bicca Filosofia e Violéncia Marcelo Perine Cultura do simulacro Hygina B. de Melo Excritos de Filosofia It Henrique C. de Lima Vaz . Filosofia do mundo Filippo Selvaggi Conceito de religido em Hegel Marcelo F. de Aquino Filosofia e método no segundo Wittgenstein ‘Wemer Spaniol Filosofia Politica Eric Weil Caminbo Postico de Parménides Marcelo P. Marques Filosofia na crise da Modernidade Manfredo A. Oliveira “Antropologia Filoséfica T Henrique C. de Lima Vaz Religido e Histéria em Kant Francisco Javier Herrero Justiga de quem? Qual racionalidade? ‘Alasdair Macintyre (© grau zero do conbecimento Ivan Domingues Maquiavel Republicano Newton Bignotto NEWTON BIGNOTTO MAQUIAVEL REPUBLICANO (pass) Edicoes Loyola se. aad pante de uma “pratica” se exprimia assim a esse respeito: “Se vocés nao agem de tal maneira que as leis dominem, eu nio vejo nenhuma solu- 0... uma replica nfo pode existir ou durar sem a administragio da justica™, Qs Mlorentinos do comeco do “cinquccento”, assim como os humanistas do *quattrocento”, foram incapazes de transformar as idéias ‘correntes numa arma poderosa contra os males do tempo. Diante da luta desenfreada das facgdes, s6 Ihes ocorria culpar a “cattiveria umana” € fazer apelo & justiga, como se as reformas constitucionais nada tivessem a ver com as disputas panticulares que assolavam 0 Estado Florentino”. ‘A queda da Repiiblica em 1512 iria introduzir novos elementos ia pai- sagem teGrica da época. Os jovens aristocratas, descrentes das velhas formulas, descobririm que os novos tempos eram inteiramente domina- dos pela imagem da forga. Assim Paolo Vettori dirigia-se a0 futuro Papa Leio X: “Vossos antecessores, para manter este Estado, usaram muito mais da habilidade do que da forca, a Vos seri necessirio muito mais forga do que habilidade™*, Para essa geragdo, que havia vivido o fracasso de Soderini, a forga era a Gnica chave para o entendimento da histéria contemporinea. O exemplo eram homens como o Papa Jélio Il, que, sem contar com nenhuma habilidade politica, fora capaz de impor suas opinides pela forga”. ‘Como conseqbéncia, muitos jovens aristocratas abandonaram os velhos valores € passaram a pensar a politica x partir do “nimero de armas" disponiveis. Como resumiu muito bem Gilbert: “Na alegria de ter descoberto na forca a verdadeira chave para a compreensio da politica, 08 conceitos tradicionais foram arrogantemente postos de lado, ¢ © qua- dro da vida politica simplificado ao extremo"™, Mais uma vez & preciso cautela a0 analisar essas mudancas, para no estendermos a todos os homens politicos Morentinos o que era proprio de uma parcela da aristocracia. Seja como for, no entanto, a derrota de 1512 forgou todos os participantes da vida publica a buscar novas solu- ‘ses para problemas que a tradiglo parecia incapaz de solucionar. A crise da liberdade, acompanhada pela crise te6rica, encontrou em Maquiavel o seu mais brilhante intérprete. 74. idem, 105. 75, tbidem, 106. 176, Ctado por F. GILBERT, Macbiavellt « Gutcctardini, 115. 72. Kdem, 115. 8, Ibidem, 120 ™ Ul, A LIBERDADE NOS DISCORS! 4.4, Maquiave! Repubiicano Em nossa introdugio, fizemos alusio as diversas interpretagdes a ‘obra maquiaveliana e 20 fato de que uma leitura “tepublicana” de Maquiavel faz parte da tradigio interpretativa, Nossa intenglo, ao estudar a questio da liberdade, no € a de atacar a idéia tradicional do maquiavelismo para substitut-la por uma outra, em que o “deménio” cederia seu lugar a0 defensor puro dos mais altos valores da democra- cia”, Seguincdo algumas hipéteses avancadas por Cadoni™, segundo as quais, para se compreender 0 sentido da liberdade, € preciso entender ‘© sentido dla septblica, vamos perseguir no texto © movimento de cons- Aituigio dos conceitos, com a certeza de que, a cada definiclo, abre-se sempre um campo de questbes que no faz mais do que selangar nossas interrogagdes. Neste trajeto, seremos levados a confrontar nosso trabalho com um bom namero de intérpretes, embora a intengdo, vale reafirmar, no scja fazer a critica da tradigio, mas procurar na obra os signos de sua fecundidade, através da explorago paciente de seus carinhos". Comecemos, pois, pela dedicat6ria dos Discorsi. Maquiavel dedica sua obra a dois jovens republicanos que freqiientavam os “ort oricellai", conde, sob as sombras do jardim dos Rucellai, se reunia a elite literéria florentina para discutir politica ¢ literatura, Nao podemos deixar de pen- sar que, dedicando seu livro a pessoas to claramente identificadas com as idéias republicanas, nosso autor queira, de alguma maneira, mudar a imagem que a dedicat6ria do Principe podia ter ctiado, visto que a obra era oferecida aos Médicis. Nese esforgo, Maquiavel no hesita nem mesmo em dar um passo ousado, pois critica abertamente aqueles que Th oie aie do maqvan ver. PROCACH, Sua ula fora dt cra ao sry sno er 16 wee contempornes, 1965. FORT, aoe ee eC BENOIT Leechs As Hert Pon, 936 ist se GE pct eee act 90, FANCLN Ol ntatbetiet °C Snt, 198 & GAIQUE Leora machen ent inter eg XO sce Der TR MA,Te Eb ‘eer oft a Cogn apn, 501, Unvey a Tose Ps, om att G. CADONI, Macblavelle:regno di Francia ¢ principato civile, Buzoni, 1974, 169. Sasa amet aed do quan pop mac nas ste eae go mfr a nu rnd decode ms ‘ited ase uel har ect. 6 i i, dedicam suas obras aos principes, acrescentando um elogio exagerado is qualidades dos jovens discipulos. Este primeiro movimento da obra nos sugere que esse exagero deve ser entendlido como uma forma de sedugio. £ claro que nio é suficiente falar em seducdo para entender 0 significado do texto, Ao contritio, a evocagio dos dlesejas do autor nao faz mais do que complicar a leitura, medida que toma viva uma presenga que gostariamos talvez de afastar, para gozarmos do conforto do dislogo com uma “somat6ria de argumen- tos" Porém nossa suspeita € reforgada pelo fato de que varios intéxpretes chegaram a essa mesma conclusio, embora tenham tomado a idéia de seducdo num sentido absolutamente diverso do nosso. Esse é 0 caso de Leo Strauss, que acredita que Maquiavel langa mio de todos os artifi- cios possiveis para corromper seus leitores, particularmente quando jo- vens. Ori, se no pretendemos esclarecer 0 semido da sedug: ‘maquiaveliana apenas 4 luz da dedicatéria, & preciso lembrar que a juventude & qual se dirige nosso autor ndo eri republicana no mesmo sentido que fora durante todo 0 “quattrocento”, A derrota de Soderini € © prestigio crescente da idéia de forga como conceito da politica haviam. tornado 0s jovens sensiveis a idéia dos principados como solugio para ‘95 etemos conflitos da sociedade florentina, Maquiavel demonstra co- nhecer seus leitores e querer evitar as petigos «le uma confrontagio direta. Dirigindo-se a eles, nao fala mais aos “bons cidadios", como faziam os humanistas, mas sim Aqueles que por suas qualidades pode- iam vir a ser principes. Sua longa experiéncia como segundo secretario da Repiblica Florentina ji lhe ensinara, além de tudo, 0 quanto é dificil influenciar os homens, mesmo quando se goza de sua intcira confianga como ert 0 caso de Soderini®. A sedugio, que se anuncia, exige pois do intérprete ‘uma dupla atengdo. Em primeiro lugar, € preciso percomer a obra em todos os sentidas, relé-la com a esperanga dle surpreender o sentido de suas veredas, no se contentar com as definigdes ficeis que 0 autor por veres parece nos legar. Em segundo lugar, é preciso associar esse mo- 82. *Car, si les criminels efpugnent a ce genre intimit, Machisvel, lu, la recherche impatiemment, du: moins avec cerains de ses lecieurs, ceux quil appele les jeunes. Lz dlssimulation qu'il pique est un insirument subti de comuption ou de sediction” STRAUSS, op. Gi. 78 83. N_ RUBINSTEIN, “Machiavelli and the word of Florentine Polis” in MP. GILMORE (ed), Studies on Machlavell, G. C Sansoni, 1972. 6 vimento a0 conhecimento da época ¢ do piblico a0 qual a obra se destina. Nesse sentido, € preciso lembrar, por exemplo, que os freqiientadores dos “ort oricellari", embora fossem na maioria republica- nos, no eram no mesmo sentido, e misturavam-se com partidarios de ‘uma solugio aristocritica para a crise florentina. Além do mais, entre um. partidirio de Savonarola ¢ os partidarios de uma repGblica popular exis- tiam quase tantas diferencas quanto entre um republicano © um monar- quista. Maquiavel, escolhendo um caminho prudente para abrir os Discorsi, parece, a0 mesmo tempo, querer dar um significado politico a ‘seus escritos diferente daquele de toda obra de filosofia, pois ndo des- preza o fato de que a eficicia da sedugio esta em fazer crer a0 leitor que fala-se a linguagem dos homens de sua época. Se a prudéncia @ a marca da dedicat6ria, a audacia sert a do *progmio". Logo nas primeiras linhas, Maquiavel anuncia a intengao de se distanciar radicalmente da tradi¢ao, explorando vias desconhecidas pelos autores do passado: “Deliberei entrar por uma via, a qual nao foi por ninguém percorrida... E sua audicia vai ainda mais longe, pois ele no hesita em se comparar aos navegadores que em sua Epoca desco- briam © novo mundo, fazendo da teoria politica 0 correspondente das fabulosas viagens que mudavam a face da terra. A ousadia dessas pala- vras pode levarnos a acreditar que a hipotese da seduclo, que acaba- mos de aventar, nao seria nacla mais do que a fantasia de um intérprete desejoso de sotopor a obra de Maquiavel ao signo das teotias contem- porineas do descjo. Mas 0 proprio Maquiavel, que parecia querer sur- preender seus leitores, opera uma reviravolta no texto, comparando seu projefo de exploragio a imitagio da historia antiga e ao aprendizado da antiga virtude. Dizendo-se inovador, ele repete um gesto retérico abso- lutamente previsivel para um homem da Renascenca. Mas uma observac3o atenta do texto revela que aquilo que para os humanistas cra uma possibilidade — a imitagdo dos antigos —, consttul- -se para Maquiavel num problema. Os homens, apesar do fato de que a natureza no muda, sio incapazes de repetir 25 agdes do passado, con- tentando-se com a contemplacio de sta beleza, mas sem saber utilizar sua ligio na vida cotidiana’™. Maquiavel nos diz. ndo somente que tal uso €necessirio, mas que esse € 0 Gnico meio de se escapar a0 imobilismo dos politicos de sua época. Dando a impressio de permanecer fiel 20 universo ideoldgico de seu tempo, convida-nos a abandoné-lo, para 4, N. MACHIAVELL, “Discori sopra I prima decal di To Livio" in Opera, Ricardo Riccar 1954. A panied agora, todas a5 ctagbes de Maquiavel referem-se a essa edigdo. 85, C. LEFORT, op. cit, 462-463. ” compreendé-lo. A leitura do “proémio" deixa o leitor diante de uma dupla imagem. De um lado, a de um Maquiavel herdeiro da tradi¢io hhumanista e ligado a seus temas mais difundidos, como o da imitagio da historia, De outro, a de um Maquiavel inovador, que, apesar das palavras conciliadoras, se deixa trait no momento de concluir, quando diz dos homens de seu tempo: "Apesar disso, ao ordenar a8 repsblicas, a0 manter 5 Estados, a0 governar os reinos, a0 organizar a milicia ¢ administrar a ‘guerra, 20 julgar 0s stiditos, a0 expandir 0 império, ndo se encontra nem Principe, nem repablica, que recorra aos exemplos dos antigos™. £ com a surpresa ¢ a ambigididade dos primeiros movimentos do texto que nos preparamos para enfrentar © pensamento sinuoso de Maquiavel. 1.2. A liberdade: primetros sinals © primeiro capitulo dos Discors, inicianclo-se com a problematica da fundagio das repéblicas, tema tipico dos humanistas, volta a suscitar a hipétese de que 0 uso da linguagem da tradigio faz parte de uma estratégia de sedugio do leitor. Embora na segunda década do século XVI 0 recurso a problemitica do “comego” estivesse menos em voga ‘entre o$ intelectuais florentinos, 0 uso de uma argumentagao conhecida de todos dé ao texto um ar de clareza que um argumento inovador nio teria produrido”. Maquiavel comea falando da fundagio de Roma em aseociagio com a de Atenas € Venza. O ponto em comum entre todas, ‘essas cidades & que elas tiveram seu comeco livre da dominagio de ‘outros povos. Dessa coincidéncia inicial, passamos, no entanto, a uma ‘classificagio dos diversos tipos de fundagio livre. Uma cidade pode ser fundada pelos habitantes do pais ou por estrangeiros, ela pode se encon- rar num sitio aprazivel ou ndo e as causas do deslocamento das popu- lagdes nao podem scr reduzidas a uma 36. Essa classificagio das moda- lidades de fundagio nao tem, no entanto, de ser considerada um paradigma hist6rico. © caso romano prova que, quer consideremos como seu fundador Enéias, um estrangeiro, ou Romulo, um nativo, 0 efeito foi ‘9 mesmo e dependeu fundamentalmente do cariter livre da fundagio, € no da modalidade da mesma’, Florenga demonstrava, pelo pouco progresso de suas instituicoes, {que tivera set comeso ligado @ expansio de outro povo. O interessante, no entanto, nessa obscrvagio € que Maquiavel nio vé necessidade de recorrer @ hist6ria efetiva da cidade para provar sua tese. O simples exame das condigées atuais € suficiente para revelar o passado ¢ ilumi- nar 0 presente. O mecanismo gerador da poténcia, assim como a I6gica dos progressos das formas institucionais, mostra-se com toda clareza para o leitor. De um lado, temos todas as cidades livres, que, em con- seqiéncia da liberdade primeira, puderam se expandir € encontrar 0 caminho da poténcta; de outro lado, as cidades que, como Florenga, 40 nasceram livtes e so obrigadas a pagar um alto prego ao longo de sua histGria®. A liberdade é, portanto, a chave para a compreensio das vk t6rias de uma cidade, mas também a causa da fraqueza daquelas que nio ‘a possuem. Ela parece ser 0 conceito fundamental para toda teoria po- fitica que aborde o problema da grandeza ¢ da decadéncia dos povos. ‘Ao conferir tal valor 4s origens livres das cidades, Maquiavel esbo- cava uma interpretacio dos fracassos recentes de Florenga que no se baseava na critica aos homens de seu tempo, mas na anilise de seu passado. O confronto com a tradi¢ao humanista é, a essa altura lo texto, apenas aparente pois, longe de se negar 0 valor de suas teorias mais caras, afirma-se apenas que os humanistas no tinham um conhecimento cexato das origens de Florenga e que, assim, tendo-se enganado quanto 20 pasado, era fatal que se enganassem também quanto a0 presente. (© contraste mais importante desse primeiro capitulo no & no en- tanto, entre Maquiavel ¢ os humanistas, mas entre Roma ¢ Florenca, AO apelar para a diferenca das fundagdes, ¢ 20 fazer de Roma o modelo da repablica livre, nosso autor nos convida ndo s6 a compreender seu tem- po através do confronto com a Antigdidade, mas a compreender a po- Iitica através do estudo de suas formas mais perfeitas. ‘A forga ¢ a clareza de tal argumentagio eram facilmente capazes de “sedluzir” um leitor renascentista impregnado de cultura humanista; po- 6m, certos intérpretes contemporineos demonstram que seu poder de sedugio no se esgotou com o tempo. Esse € 0 caso do historiador inglés Quentin Skinner, que vé na auséncia de impedimentos no mo- mento da fundagio, tal como descreve Maquiavel a fundag4o romana, a definigao formal de kiberdade. Segundo Skinner, ser livre significaria, para 0 secretirio florentino, poder agir sem depender do concurso de outros agentes, poder tomar suas decisdes partindo apenas de sua pré- pria vontade. Para o historiador ingles, a questo que se poe € a de saber se podemos tomar essas afirmagies por uma verdadeira definiglo do 9, Ibidem, 1 conceito de liberdade ou se se trata apenas de algumas consideragées preliminares. Ele parece convencido de que Maquiavel nos da a conhe- cer, j4 no primeiro capitulo, a esséncia de seu pensamento sobre a liber- dade e que o restante da obra se desenvolverd em tomo dessas primeiras consideragdes”. De nossa parte, acreditamos que buscar no comego do livro a definigao da liberdade serve muito mais para responder a certas exigéncias de uma hist6ria tradicional das idéias, do que part compre- ender 0 sentido da obra, Parece-nos que devemos tomar as primeiras afirmagies do texto muito mais como um convite a exploragdo de seus mistérios, do que como uma exposicdo sistematica de seus principais conceitos. © segundo capitulo retorna ao tema da fundagdo ¢ as distingdes que presenta nio nos parecem trazer apenas pequenits precisdes As defini- ges do primeiro capitulo. Maquiavel descara, de inicio, as cidades que tiveram seu comego sob a dominagio de um outro povo, para se concentrar apenas no ¢3- tudo daquelas que nasceram livres de toda serviddo Cfalarci daquelas ‘que tiveram seu comego distante de toda servidio externa"). Entre us ‘idades livres € preciso, no entanto, dlistinguir entre aquelas que pude- ram contar com um bom legislador desde 0 comeco e assim se manter na ordem e na paz por um longo tempo (Espara), € aquclas que, como Roma, foram constituindo-se através de caminhos dificeis ¢ por vezes obscuros. Sifo justamente as eidades do regundo tipo que nes levam a refletir sobre a importancia do legislador € sobre a instituticio das leis, pois, ndo podendo estabelecerem-se desde 0 inicio sobre bases s6lidas, clas mostram, através das varias etapas de sua formagio, as dificuldades que acompanham toda criaglo de um corpo politico. Por mais importante, no entanto, que possi ser © tema da lei ¢ de ‘sua criagio, no é ele que domina o capitulo ¢ que chama a atenclo do leitor. Com feito, depois de ter descartado no inicio do capitulo 0 estu- ‘90. What he clearly has in mind is thar they are fee in the sense of being unobructed in the pursuit of whatever ends they may choow to set themselves. As he put sn the ‘pening chapter of book I, 0 be a fee man iso be in a position to act ‘without depending, ‘on eshers(.) It is important to underline this point only because i contradicts two, Claims often advanced by commentators on the Discourses, One isthat Machiavel introduces the hey term liber into his dikcussion without “aking the trouble to define i so that the sense Of the word only emerges gradually in the course ofthe argument”. Q. SKINNER, “The Ide of Negative Liberty: Philosophical and Historical Perspectives” in Essays om the Hisortagrapby of Philosophy, Cambridge Univesity Press, 1984 ‘91. MACHIAVELL, Discos, 1,2. do das cidades que no nasceram livres, Maquiavel toma Florenga como (0 modelo das cidades que tentaram, 20 longo da hist6ria, mudar a forma defeituosa de sua constituigio. Qual é 0 lugar de um tal exemplo num texto que parecia destinado a analisar apenas as reptblicas bem consti- tuidas? Poderiamos supor que autor, voltando ao tema da fundacio, queria apenas iludir o leitor, invocando uma questio muito discutida na Epoca; mas a continuagio do capitulo nio nos autoriza a pensar assim. Depois de falar brevemente de Florenga, Maquiave! passa a descrever 0 ciclo de transformagées das constituigdes, ou, se preferiemos uma nogo moderna, a expor sua teoria da historia, Tal exposi¢ao era na verdade ‘uma reprodugio parcial das teorias desenvolvidas por Polibio em suas Histérias?, ¢ mostra que Maquiavel aderia a doutrina que fazia da repa- blica mista a melhor forma de governo. Deixando de lado, por agora, a discussio dessa teoria, podemos perceber que Maquiavel recomre & His {Gria como a fonte mais segura para se conhecer a politica. No momento, em que volta a falar de Roma, ele € capaz de expor ndo somente as razdes de sev processo de transformaci0, mas, principalmente, a corre- ‘¢1o de sua escolha por uma forma mista de governo. A primeira conclu- so a qual chegamos € que, para se conquistar a liberdade, € preciso adotar a forma mista de governo. Uma nuanga do texto ajuda-nos a compreender o sentido dessa afirmagdo. Se antes haviamos prestado atencdo apenas as instituigoes primeiras, ou a0 momento da fundacio, era na pressupasicio de que somente elas determinam a esséncia de uma repablica. O caso romano, porém, evidencia que os defeitos originais s40 também extremamente importantes. Ente as cidades existem aquelas que, mesmo desejando se transformar, sio incapazes de atingir a perfeiglo — *... ¢ essa é, além do mais, de tal forma distanciada que com suas instituigdes viciadas esti de todo fora do bom caminho que poderia conduzi-la a0 verdadciro ¢ peste fim..° —, mas existem também aquelas que, como Roma, tinham ins- tituigdes que, apesar de imperfeitas, puderam ser modificadas e a con- duziram a perfeiclo. Vemos, assim, que a repéblica mista, que parece ser a forma institucional da liberdade, ndo é fruto apenas de uma fundagao perfeita, mas pode resuliar de um processo feliz de ransformacao. Para ‘que tal transformagao seja possivel, é preciso o concusso de uma série de acidentes, entre os quais a existéncia de instituigoes nao muito distan- tes das ce uma verdadeira repablica: “Porque Romulo ¢ todos os outros 92. G. SASSO, op. ct, 442. 93. MACHIAVELLL, Dicom, , 2. aL | \ | \ Reis i ‘Alguns intérpretes acreditaram poder deduzir dat que a idéia de liberdade em Maquiavel nao é diferente da de monarquia®. Outros, como Cadoni", preferiram aguardar a continuaczo «lo texto para afirmar que a liberdade se identifica plenamente com a repiblica mista e apenas com ela. Nés preferimos acreditar que, da mesma forma que nos parecia prematuro deduzir do primeito capitulo um sentido para a liberdade, também a mera associagio da liberdade com a repGblica mista, embora sendo tuma indicagio fundamental, nao faz mais do que repetir um ali magio corrente na época, sem esclarecer seu significado. Dois novos pontos de partida para nossa pesquisa parecem, no entanto, surpir da leiuira do segundo capitulo. Em primeiro lugar, aprendemos que a liber= dade pode existir em “germe” em qualquer forma constitucional: 2 ‘monarquia romana € a demonstracdo. Em segundo lugar, aprendemos que Roma deve ser considerada modelo no porque tenha tido uma fundagdo perfeita, mas, a0 contririo, porque foi capaz de operar trans- formagdes que sabemos extremamente dificeis de serem levadas a bom termo. Um enigma permaneceu, entretanto, sem solugio: a evocagao de Florenga enire as repiblicas que poderiam s¢ transformar em uma ver dadeira forma livre de governo. Mesmo que Maquiavel nio nos dé cle- mentos para compreender as transformagdes pelas quais passava sua cidade natal, o capitulo nos indica que € pela evocagio do caso romano que podemos esperar compreender as dificuldades enfrentadas por t0- das as cidades que desejam mudar a forma de governo. O estudo de Roma ¢ a solucao do enigma de Florenga. tituiram muitas leis boas em conformidade com o ‘vivere libe- 1.3. A liberdade romana e os contlites socials A primeira afirmagio do terceiro capitulo surpreende, mesmo se levarmos em conta que os dois primeiros jé nos habituaram a0 uso que faz Maquiavel da tradigio. Ele fala ndo mais nos termos empregados pelos humanistas, mas apela a “tutti coloro che ragionano del vivere ‘ivile”, Recorrendo a todos os que se interessam pela quesido republica- na, nosso autor visa na verdade dar um cariter universal a seu discurso, 94. Kem, 1, 2. 95. M. COUISH, op. ct, 337. 98. G. CADONI, 0p. city 106, ‘© que nao poderia ser alcangado pelo simples enunciado de algum tema tipico do humanismo. © tema da ‘maldade natural dos homens” parece propicio para o efeito desejado. Tratado tanto por autores latinos como por autores cristos como Santo Agostinho”, ele ndo fora, no entanto, Constante nos escritores florentinos do “quattrocento”. Bruni fazia refe- réncia em seu De Militia a certas teorias medievais, mas no podemos dizer que ocupassem um lugar importante em seu pensamento politico. No tempo de Maquiavel, porém, a importincia dessa idéia era maior Principalmente devido & influéncia de Savonarola, que responsabilizava 4 natureza humana pelos seguidos fracassos dlos florentinos em restaurar 4 paz civil. Os debates sobre a melhor forma de governo, exigindo cada ‘vex mais uma forte dose de realismo, podiam ser saciados pela evocacio de leis humanas absolutamente implacaveis e pelo exame rigoroso mes- mo dos tempos mais felizes da repablica romana. Assim, Maquiavel evoca 0 periodo subseqiiente a expulsio dos Tarquinios de Roma, para mostrar que, mesmo nas situagdes mais felizes, os homens ndo deixam de se comportar sob o jugo da necessidade. E quando descreve 0 comporta- mento dos nobres em relagio a0 povo, é também nesse sentido que ele se exprime: *...que demonstra o que dissemos acima: que os homens jamais fazem 0 bem, sendo pressionados pela necessidade™. ‘Apesar da forca dos argumentos empregados, a solucto apresentada por Maquiavel sugere que sua intengo nao era reafirmar a validade das teses medievais. Depois de ter dito que os homens so maus por natu- *No entanto, diz-se que a fome ¢ 2 pobreza fazem os lustriosos, ¢ ar leis o¢ fazem bons". Ora, se a malade dos homens é um dado universal da condicio humana, como podemos es- perar que as leis, produto do espirito de seres defeituosos, possam cor rigit os defeitos da natureza, a ponto de fazer, do mal, bem? Em Santo Agostinho, por exemplo, elas pocm um frei a violéncia natural dos homens, mas efetivam-se apenas depols que a graga os liberou de sua condigio de pecadores. Além do mais, as verdadeiras leis no slo as da ‘cidade terrestre, mas aquelas que atingimos pela contemplagio. Mesmo considerando que possam trazer conseqiiéncias priticas para a aglo, elas permanecem ligadas & sua concepcio da verdade, que nada tem a ver ‘com a positividade das leis de Roma", 97. Ver a esse respite: O'CONNELL, St. Augustine's Barly Theory of Man, Belknap Press of Harvanl University Press, 1968. ‘98. MACHIAVELLS, Discort, 1.3. 99. idem, 1,3. 100. Vera esse respete: E. GILSON, Introduction @érude de Sant Augustin, J. Via, 1969, 168. 8 Em Maquiavel, a0 contririo, as leis ocupam o lugar que os Tarquinios ‘ocupavam enquanto vivos: o lugar do medo original da morte que faz com que os homens desejem algo além de seus interesses pessoais. O ‘caso florentino mostra, no entanto, que a simples existéncia de leis no a garantia da vit6ria do bem comum sobre os interesses individuals que caracteriza as grandes repablicas, Florenga tivera nos Médicis seus "Tarquinios, mas fora incapaz de encontrar seu Brutus. A cidade perma- neceu prisioneira dos interesses dos grupos, sem atingir a forma maior da organizagio humana que € a repUblica. Sua evocago no capitulo anterior, que tanto nos surpreendera, parece, pois, destinada a demons- trar a importincia de se tomar Ronta como paradigma para 0 estudo da liberdade, uma vez que ela foi capaz de transformar o medo da morte, 0 egofsmo natural dos homens, na melhor forma de organizagio, Depois de falar da natureza humana sem atacar de forma frontal a tradigio crista, © de mostrar a importincia paradigmitiea de Roma, Maquiavel comeca © quarto cipitulo de mancira quase provocativa. Ji no titulo anuncia: “A desunido da plebe ¢ do senado Romano tornou aquela repGblica livre ¢ potente”. A simples evocagio do cariter positive dos conflitos internos de uma cidade era uma provocagio pars um cidade que se acostumara a considerar os conflitos como a causa de sua desgraga'"', Maquiavel ndo recua do desafio. Em primeito lugar, aqueles que acreditavam ser a forga romana 0 resultado apenas de uma bua fortuna ¢ de uma boa disciplina militan *Nio posse negar que a fortuna e 2 milicia contribuiram para a criagi0 do império romano; mas me parece que se esquece que onde existe uma boa milicia, existem também boas leis (ordine), ¢ raras vezes nao se encontra também uma boa fortuna”. Essa afirmagio nao contradiz apenas a interpretagio tradi- ional da origem da forga romana, ela a destr6i completamente. Maquiavel no hesita em concluit: “Mas retornemos aos aspectos particulares da- quela cidade. Digo que aqueles que condenam os tumultos entre os nobres € a plebe condenam a causa primeira da liberdade romana, le- vando em conta mais os rumores € Os gritos que nasciam desses tumul- tos do que os bons efeitos que cles produziam™™ Nio é dificil medi a verdadeira revolugio operuda por essa afirma- ‘clo. Em primeiro lugar, € preciso lembrar que a condenagio dos confli- {0s intemos era um dos raros pontos em tomo do qual todos os florentinos 101. Q. SKINNER, The Foundations af Modern Poltcal Thouget, Cambridge Universy Press, 1980, 182. 102, MACHIAVELLI, Discort, 1. 4 84 tinham a mesma opiniao™, De Dante aos humanistas", todos se apres- savam em demonstrar seu papel negativo na vida politica da cidade. Para ilustrar esse acordo, basta considerar a bela passagem do Defensor da Paz de Marsilio de Padua, que prova que 0 6dio aos confit se estendia muito além das fronteiras florentinas: “Mas como 0s contrarios engen- dram os contritios, é da discOrdia, contrésio da trangGilidade, que pro~ vém, para toda sociedade civil ou reino, as piores conseqiéncias ¢ in- convenientes, como o demonstra — 0 que nio € segredo para ninguém — 0 exemplo do reino da {tlia"™, Maquiavel contradiz explicitamente toda a tradigao italiana do “trecento” ¢ do “quattrocento” para descortinar ‘uma perspectiva absolutamente original. A questdo da liberdade, que até aqui (ratiramos como aquela da instituigio primitiva de insttuigdes re publicanas, é totalmente transformada pelo capitulo em questio. Final- mente, estamos diante das novas terras que 0 explorador Maquiavel nos havia prometido no comego dos Discorsi Deixando de lado a questio tradicional das origens das instituigdes, ‘que parecia ser 0 melhor caminho para a compreensio do tema que nos interessa, nosso autor nos mostra no somente que 4 liberdade deve ser pensada 2 partir dos conilitas intemos de uma cidade, mas também que éias sobre a criagio das instituigoes politicas devem ser revista. Wo adorada pelos florentinos, mas tio pouco realizada, € 0 produto de forcas em luta, 0 resultado de um processo que nio pode ser fextinto com o tempo. Os conflitos s40 0s produtores da melhor das instivuigbes, € no o clemento incongruente de um periodo infeliz na historia de um povo. Maquiavel resume seu pensamento numa frase apidat: *..e deve-se considerar como existem em toda reptblica dois humores diversos: 0 do povo e o dos grandes, ¢ toda lei que se faz. em favor da liberdade nasce da desunio entre eles"™®, Para passar da idéia de uma sociedade ideal inteiramente voltada para a paz a0 elogio da sociedade tumultuaria, foi preciso um enorme esforco de elaboracio. Para fortalecer a criagio de um novo continente, Maquiavel langou mao do fato de que nenhuma sociedade viveu até hoje 103. G. SASSO, OP. eX, 456. 104, interesante ver como ante considera a Monarguia Univeral como wm sokt- «co para os problemas causados pela exiténcia de confitos na cidade. DANTE, Gonviot, WV_4, Gallimard, 1965. Ver, H. BONADEO, Carmuption, Confit and Power in the Works land Time of N. Macbiavel, Univeesty of Calfomia Pres, 1973, 35. 105, MAISILE DE PADOUE. Le defenseur de la pate, J. Vii, 1968. Para as relagdes centre Naquiavel e Marcio, ver, A. TOSCANO, Marslo as Padova e N. Machiavell, Longo, 19a 106, MACHIAVELL, Disco, 5,4 sem conflitos. Se isso nfo prova que eles tiveram um papel positive na historia, demonstra, pelo menos, que uma sociedade totalmente imersa na paz é talvez a ficglo de mentes bondosas, mas nio 0 espelho da condicdo humana. A novidade, portanto, ndo € a afirmagio da maldade dos homens, mas a de que essa maldade nio impede a criagio de ins- tituigdes boas. Mais radicalmente ainda, potlemos dizer que € da propen- so 20 conflito que nasce a possibilidade da liberdade. A liberdade é, portanto, 0 resultado dos conflitos, uma solugio possivel de uma luta que nio pode ser extinta por nenhuma ctia¢ao humana, De uma proble- mitica antropologica passamos a conceber a politica como uma forma da guerra, Mas a guerra nio significa aqui a pura negatividade, ela apon- ta para 0 verdadeiro ponto de partida de toxla reflexao sobre x politica, que é a existéncia de desejos opostos na “polis” ‘Voltando, assim, ao tema dos «lesejos opostos que povoam as cida- des, aprendemos com a seqiiéncia do texto que 0 desejo do povo que estd mais proximo da liberdade, pois, nao sendo um desejo de poder, mostra uma face importante da liberdade: a niio-opressdo. “E os descjos dos povos livres raras vezes so pemiciosos a liberdade, porque nascem ou da opressio que eles sofrem, ou da suspeigio de que poderdo sofré- 1", Das duas forgas principais que dividem a cidade, ndo podemos dizer que elas sejam o inverso simétrico uma da outra. O povo, no visando a mesma coisa que os grandes, nao pode ser compreendido pela imagem do inimigo organizado num campo de batalha. Dai resulta que a liberdade Ado € um meio temo extitico que satisfaz 09 deacjos dos dois opo- nentes, Tal fim é absolutamente impossivel de ser alcangado por dois adversérios que no tém o mesmo objetivo. A liberdade, mais do que ‘uma solugdo permanente para as lutas intemas de uma cidade, € o signo de sua capacidade de acother forgas que, nio podendo ser satisfeitas, nao deixam de buscar meios de se exprimir, A riqueza do capitulo nos convida a nos determos mais longamente na interpretagio de scus argumentos. A propria natureza dos conflitos no é facil de ser elucidada. Pocock, por exemplo, chega a conclustio de que, se a unio é fruto da desunio, sua fonte deve ser uma agio irra- ional, © no um produto da razdo, Para operar ¢ssa aco irracional, ndo Ihe parece existir outro agente capaz sendo a “fortuna, Sua interpretagdo tem o mérito de nos lembrar que nossa questio 86 pode ser pensada 4 partir daquela mais geral ca ago humana, mas nio 107. Wem, t 4 108. J. G. A. POCOCK, op. ci, 194. 86 nos parece que o intérprete tenha sido sensivel a verdadeira sevolugio provocada pelo capitulo em questio. De fato, Maquiavel fala da “fortu- nna" no segundo capitulo como um dos agentes da construcdo de Roma; porém a existéncia dos conflitos na origem de suas instituigdes mostra exatamente a insuficiéncia de se pensar sua ctiacdo simplesmente levan- do-se em consideragdo as obras do acaso. As leis que visam regular os confitos, longe de se contentarem em aprisionar a irracionalidade dos desejos humanos em uma camisa de forca que impeditia sua manifesta- 40, criam 0 espago no qual eles adquirem uma nova forma de racionalidade. Como nos mostra Claude Lefort, as leis “nascem da desmesura do desejo de liberdade, o qual esté relacionado com o apetite ‘dos oprimiddos — que procuram um desaguadouro para sua ambigao—, mas que nio podem ser reduzidos a ele, pois, rigorosamente falando, cle rnd tem objeto, € pura negatividade, recusa da opressio"™. Se considerarmos ainda 0 conjunto da obra maquiaveliana, veremos que 0 quarto capitulo dos Discorsi encontra ecos em quase todos 0s seus cescritos sobre a liberdade. Para tomarmos apenas um exemplo, basta lembrar 0 elogio que Maquiavel faz das cidades alemas em seu Ritratto delle cose della Magna. Nesse texto, aprendemos que a idéia de conflito nao deve ser enten- dida como uma espécic de lei matematica, que opera sempre do mesmo jeito, Na Suiga, os conflitos também originaram a liberdade, mas, pela situago especial desse pais e pela histéria desse povo, fizeram das pequenas repéblicas um conjunto vulnerivel aos ataques das grandes poténcias™, Fazendo 0 elogio da “libera liberta", Maquiavel no deixa de observar que a desunio de tipo feudal era capaz de fazer surgir um povo livre, mas néo uma repiblica potente. Dizer, portanto, que os confitos esto na origem da liberdade romana no significa que possa- mos reduzios a uma espécie de entidade metafisica, que tomaria 0 lugar da idéia de origem empregada pelos humanistas. Os tumultos ro- manos nao sio tumultos abstratos, uma simples categoria analitica, mas © retrato vivo da hist6ria da constituigto de uma sociedade livre. O trigésimo sétimo capitulo, nuangando as conclustes do quarto capitulo, nos mostra que os mesmos conflitos quc fizeram de Roma uma cidade livre a fizeram perder a liberdade, Maquiavel analisa ento as lutas que se seguiram & promulgagio da lei agréria, De um lado, os nobres ndo aceitaram a perda de suas propriedades; de outro, 0 povo insist em seu direito de posse dos novos territ6rios, O esquema segui- 309. €. LEFORT, op. ct, 477 M0. G. SASSO, op. cit, 269-273, a7 H do por nosso autor ¢ o mesmo dos textos anteriores: descreve-se a for- mulagio de uma nova lei. O que falha, no entanto, nesse Processo, que pra~ rece seguir exatamente os mesmos passos da instituigo das leis que fizeram de Roma uma poténcia? Maquiavel insiste em dizer que no basta criar leis, € preciso que elas sejam capazes de esconjurar os édios que se formam em toda disputa politica. No caso romano, ox desejos ‘opostos dos nobres € do povo haviam provocado uma tal ruptura no corpo social, que a vitGria dos nobres nas disputas legislativas %6 podia significar a perda da liberdade. Uma sociedacle que nao € mais capaz. da canalizar seus conflitos por seus mecanismos legais, no € mais uma sociedade livre. Percebendo, entretanto, que essa conclusdo poderia conduzir 0 lei- tora identificar uma contradigao em seu pensamento, Maquiavel declara: “Tal foi, pois, o principio e o fim da lei agriria. mostrado em outro lugar como em Roma a inimizade entre © a plebe a mantiveram livre, por nascer dessa inimizade Icis em favor da liberdade, © por isso parega estranha a conclusdo de nossa anilise sobre a lei agedria, nfo mudo minha opinido: porque a ambigao dos grandes @ sem fim, ¢ se por varias vias e modos ela no € controlada, em pouco tempo arruina a cidade” ‘A compreensio plena dessa proposi¢do exige 0 estudo da decadén- cia romana, que seri o tema de nosso quarto capitulo. Mas, por si 36, ela aponta para toda a complexidade da questio que estamos analisando. ‘Agora, Roma nio € mais vista como a repdblica modelo, mas como uma Cidade destrutd pelas lutas dos grupos rivais. Mostrando a fragilidade da “melhor cidade”, Maquiavel contribui para que 0 estudo do caso florentino possa ser feito a partir dos mesmos parimetros que © guiam em sua andlise do caso romano, As misérias provocadas pela existéncia da luta de facgdes podem ser nocivas a todas as cidadles ¢ isso demonstra, para © leitor que tivesse tido a pretensio de fazer de Roma uma cidade ideal, ‘quie estudar sua historia € estudar a hist6ria dos tempos presentes". Nao existe, pois, em Maquiavel um elogio cego dos conflitos, mas a busca da verdadeira origem da liberdade. Porém, dizer que 0s conflitos si a origem da liberdade nao nos dispensa de refletir sobre a rela das leis, das formas consticucionais, nem sobre a natureza das instituigdes repu- blicanas. Uma ruptura essencial com a tradigio acaba, no entanto, de se operar. Rejeitando a idéia de que a paz ¢ a estabilidade so os objetivos de toda agio politica, Maquiavel introduz ndo somente uma nova manei- 11, MACHIAVELLL, Discon I, 112. C. LEFORT, of. cit, 514 88 ra de pensar a liberdade, mas uma nova forma de analisar a politica. De ‘um pensamento incapaz de criticar as indecisbes dos homens pablicos e que se contentava em afirmar a importincia da concérdia, somos con- duzidos a um universo em constante mutacdo, de tal forma que a ima- ‘gem de uma sociedade calma prudente, to cara aos humanistas, se evapora ‘Antes de prosseguir em nossas andlises de alguns capftulos dos Discorsi, vamos analisar a hipdtese que alguns intérpretes avangaram € {que retém dos conflitos apenas seus aspectos negatives. L. Berlin, por cexemplo, considera que para Maquiavel a sociedade € 0 palco das lutas ‘entre grupos que s6 podem ser controladas pelo uso da forca ¢ da persuasio", Tal intepretagio visa, em primciro lugar, aproximar Maquiavel de Hobbes e deixa de Indo 0 fato de que para 0 autor florentino 11 propria persuasio é fruto do conflito de classes. A utilizagio da forga, ‘além disso, mio é para ele mais que uma possibilidade entre outras € & impotente para suprimir os desejos opastos que povoam as cidades. Se © paralelo com Hobbes & em muitos pontos evidente, e jf foi explorado por muitos estudiasos do periodo, no nos parece que ele seja a melhor maneira de se compreender 0 quarto capitulo dos Discorsi. Para Hobbes, 1 problematica dos conflitos € insepardvel daquela da origem da socia- bilidade dos homens; para Maquiavel, a questo da origem da sociabi- de & secundiria, ainda que muitas de suas conclusdes estejam de acordo com as de Hobbes. ‘Antes de terminar, uma Gktima observacio se impée. Analisando a dedicat6ria, haviamos evocado 2 estrategia empreyacla por Maquiavel para conquistar os Ieitores de seu tempo, Um dos artificios ¢ 0 de falar a linguagem da tradicao, hipbtese que parece ser desmentida pelo elogio que ele faz dos conflitos internos. Para compreender o impacto de suas teorias sobre a juventude florentina € necessério, no entanto, lembrar {que a anilise das “pratiche” demonstra que 0s jovens estavam mais do que propensos a receber novos ensinamentos, depois da frustracio provocada pela queda da repiblica em 1512. O pensamento de Maquiavel, apesar de radical, conserva lagos com a tradica0, Se a novidade do ca- pitulo destrdi a Iogica da sedugio baseada unicamente na conservasio, cla nos mostra um pensamento que, mesmo em seus momentos de 113.1 RERLIN, “The oiginaly of Machiaveli in M.P. GUMORE, Studies on Machfavell, GC, Sanson, 1972, 165 114. Pera uma comparacio interessante entre Maqulavel ¢ Hobos, ver: R ESPOSITO, Ondine ¢ conflto, Macbiavel ela letteratura poliica del Rinascimento laliano, Lignos, 1984, cap. 5 89 extrema audicia, é capaz de manter seus leitores ligados a tradigo. A critica da idéia de estabilidade deixou intacta a crenga na forga da liber- dade romana ¢ na possibilidade de compreendé-la através do estudo da hist6ria, Maquiavel desenraiza 0 leitor por operagdes que nunca revelam todo seu sentido. A surpresa provocadat pelo escdndalo incita a continuar a leitura, a sedugao continua a trabalhar no interior da ruptura com a tradigdo. Da mesma forma que a obra dissimula seu sentido, nao desvela completamente sua estratégia de sedugio. 1.4, A liberdade e as formas constitucionais (© quinto capitulo retoma a questo da liberdade 3 luz de sua andlise constitucional. Desde 0 comeso aprendemos que: “..aqueles que com prudéncia constituiram uma repiblica ordenaram entre as coisas mais necessirias uma guarda para a liberdade™. Essa primeira afirmagio nos incita a esquecer © papel que tiveram os tumultos em Roma, para abor- dar 0 problema da melhor garantia para a liberdade no quadro classic da anilise das instituigées. De fato, depois de ter mostrado a importincia dos conflitos na génese da liberdade, Maquiavel s¢ contenta em falar daqueles que fundaram as repiiblicas: 0s legisladores. Esse procedimen- to se esclarece quando percebemos que 0 que esti em jogo nio é a histéria romana, mas a historia das repGblicas em geral. ‘Trata-se de operar a escolha entre dois modelos: o das repiblicas aristocriticas — Esparta e Veneza —, que confiam a guarda da liberdade 3 nobreza, ou o das reptiblicas democréticas — Roma —, que a confiam 40 povo. No fogo crurado dos argumentos, Maquiavel conduz a resposta ‘2. um ponto de equilibrio. De um lado, 0 exemplo romano prova que © povo é o melhor guardido da liberdade, uma vez que ele nao tem ne- nhuma razio de querer perdé-la; de outro lado, 0 exemplo de Esparta prova que a duracio de uma constituiglo depende da estabilidade da ‘camada dominante e que a nobreza se comporta melhor quando ela ndo se sente ameacada pelo povo. (© equilibrio da posigao maquiaveliana é aparente, mas essencial para 0 desenvolvimento do argumento. E necessirio no se esquecer que os trés Estados analisados eram considerados repablicas mistas!™, e, dentre eles, Veneza ocupava um lugar privilegiado no imagindrio dos homens politicos de seu tempo", Se 0 objetivo de Maquiavel era mos- 115, MACHIAVELL, Discont, t, 5. 116. G. CADOM jf observou « difculdade dessa passagem. op. cit, 12. 117, Paraa disaissdo sobre a importing de Veneza na vida politica forentina ver: F. DATTAGLIA, “La dotrina dello Stato miso nei polit foretini del Rinsscimento" in Rita lnemazionale di Plosyfia de Dit, Vi, 1927. 0 trar as diferencas existentes entre Roma e Veneza, ele insiste, entretanto, sobre a importincia da forma mista de governo, a qual ele mesmo havia aderido no comego dos Discorsi. Assim, nesse momento do texto, © ponto em comum entre as diversas constituigdes se reduz a idéia de que ‘em todos 0s casos 0 governo se divide entre 0 povo e os nobres. Porém, o capitulo introduz nuances que nos obrigam a pOr a ques- Wo da verdadeira escolha de Maquiavel. Inicialmente, somos levados a pensar que a divisio é entre as repiblicas que querem conquistar € aquelas que querem conservat. Mas o proprio autor ndo parece satisfeito com essa divisio, pois, logo depois, ele volta a tratar da questdo em termos das repiblicas que querem conquistar e aquelas que temem perder 0 id conquistado!, Usando 0 exempio romano de dois plebeus — Marcus “Menenius e Marcus Fulvius — que, depois dc terem sido eleitos ditador e mestre da cavalaria, foram conduzidos a renunciat para provar sua inocéncia, Maquiavel chega dessa vez.a uma posigo inequivoca: 0 povo, apesar de causar perturhacdes na cidade, tem umn cesejo mais verdadeiro de salvaguardar @ liberdade do que os nobres que desejam sempre con- quistar novas posigdes na “polis"™, O longo caminho percorrido serve finalmente para o secretério florentino manifestar sua preferéncia no ‘quadro das reptiblicas mistas, pela forma mais democratica. ‘Como ji observou Claude Lefort™, é a tese aristocritica que desmo- rona. Uma tepiblica como Veneza podia resistir aos ataques do tempo, mas no podia ser livre no mesmo sentido que Roma havia sido. Os nobres jamais tém 0 simples desejo de conservar o que jé possuem. Desejando sempre mais, poem a liberdade em risco. & repiblica mista que, no segundo capitulo, parecia ser um modelo nico, multiplica-se agora em suas diversas manifestagdes. A divisto do poder pode se fazer tanto numa ética democrética, como numa 6tica aristocritica. Se 0 quinto capitulo nos permite saber que 2 opgdo de Maquiavel € pelo modelo romano, como te6rico ele nao pode deixar de lado as repGblicas aristo- criticas, que tanta influéncia tinham sobre a mentalidade dos homens paliticas florentinos. Ao longo de todo o livro, continua 0 didlogo com 0s dois modelos de repGblicas mista. No sexto capitulo, Maquiavel volta a tratar o tema dos conflitos sociais. O leitor pode estranhar que, depois de anunciar uma tese tho radical, ele tenha deixado de lado a discusso de aspectos importantes que tinham ficado obscuros, para discutir um tema tradicional do pensamento poltti- IR, MACHIAVELLI, Discont, 1,5 119. Idem, 1,5 120, C. LEFORT, op. it, 478 on co.da época. Na verdade, a volta ao tema das repGblicas mistas tina por ‘objetivo confrontar a radicalidade das teses do quarto capitulo com aquelas tradicionais, que faziam da estabilidade o parimeto maior para o julga- mento das formas de governo. Depois de ter chocado 0 leitor por meio de proposigdes revolucionirias, Maquiavel efetua um movimento surpre- endente, questionando suas proprias proposig&es: “Ora, tendo aqueles tumultos durado até 0 tempo dos Gracos, eles foram a razio da ruina do ‘vivere libero’. Alguns poderiam desejar que Roma tivesse feito os mesmos progrestos, sem que nela tivessem exis- tido tantas inimizades. Pareceu-me, portanto, que era uma coisa digna de consideragio ver se Roma poderia ter-se ordenado de forma a no deixar espago para as controvérsias"™", ‘A importincia do confronto entre o exemplo romano € 0 das outras repiblicas pode ser explicado se lembrarmos que 0 leitor ao qual se dirige Maquiavel vivia, desde a época de Savonarola, sob 0 impacto do mito de Veneza. Assim, & a essa repdblica que ele dirige seus primeiros alaques, mostrando que seu sucesso é 0 resultado de uma posiglo geo- grifica tinica e do fato de que sua nobreza foi constituida por todos os scus primeiros habitantes, nio havendo motivos para que 0s conflitos entre 0s grupos marcassem desde 0 inicio sua hist6ria, “Il caso pid che la prudenza”, diz Maquiavel, contribuiu para a longa duragdo de Veneza. Quanto a Esparta, assegurando a igualdade das fortunas ¢ impedindo a entrada de estrangeiros, ela pode se manter igual a si mesma por muitos séculos. Nos dois casos, foram as dimensdes reduzidas do Estado que garanticam uma solugio durivel para 0 conflito de classes. Para fazer de Roma uma repiblica pacifica, era preciso ou bem nao usar 0 povo no exército, ou bem evitar a entrada dos esirangeiros. Maquiavel observa com ironia: “De modo que, querendo acabar com a razo dos tumultos, acabava-se a0 mesino tempo com a razio de seu império"™, Chegamos assim a uma conclusio fundamental: a identidade entre a liberdade e a poténcia"®. Essa nova conclusdo completa a ruptura radical com 2 tradigao que se anunciava no quarto capitulo. Os humanistas haviam salientado os lacos existentes entre a liberdade e a riqueza de Florenga, mas jamais foram capazes de elucidar 0 mistério da forga 10- 121. MACHIAVELL, Discon, 1, 6. 122. Idem, 1, 6. 123, “E non'si cede percio al guso delle formule, se si dice che, in ultima analis contenuto della ‘ibera & per Machiavelli a ‘potenza’, che la liberth simola ed innalza" G. SASSO, op. cit, 475. 2 ‘mana, Para eles, a liberdade podia ser compreendida pelo recurso a teoria das origens © pela escotha da forma adequada de governo, mas nessa escolha nio Ihes parecia que dois modelos se opusessem. Maquiavel, a0 contrisio, insiste na diferenca entre os regimes capa- zes de expandir ¢ aqueles destinados apenas a conservagio™. Sob a cobertura ca descrigio fria de uma repablica estavel, ele revela a fraque- za dos humanistas, que aunca foram capazes de pensar o Estado partin- do de suas contradigdes. Descrevendo as relagoes intemas, assim como as externas, como elementos estiticos, eles no compreenderam que a liberdade em relagdo aos outros Estados era, em grande medida, o resul- tado da resolugio dos conflitos de classes. O verdadeiro desafio ndo é, pois, o da estabilidade, mas o da poténci Depois de sugerir que uma “ciéncia” pode nos ajudar a construir ‘uma forma politica estavel, Maquiavel nos confronta com a idéia de um universo instivel, em que as Ieis clo bom senso ¢ da prudéncia se reve lam impotentes para dominar as gigantescas forcas em luta: “Mas, estan- do todas as coisas dos homens em movimento, ¢ no padendo se esta~ bilizar, € necessério ou que subam ou que descam, Muitas coisas que a razio nao te induz a fazer, a necessidade 0 faz". Roma s¢ imps ndo porque tivesse cumprido todas as exigencias de um modelo abstrato, mas porque foi capaz de affontar as ameagas do tempo durante mais de 300 anos ¢ ainda assim manter viva sua energia criadora. Falar de liberdade no @, pois, falar de uma forma politica estivel, mas da criagio continua das condigdes da potencia. Veneza € Esparta, que pareciam produto de uma prudéncia superior, revelam-se como fruto privilegiado do acaso. & verdade que elas permaneceram livres por um longo perfodo, que seus habitantes podiam se exprimir no scio das instituigdes, mas elas foram sempre prisioneiras de sua escolha aristocritica, O sucesso que conheceram foi sempre o resultado de uma combinagio feliz ¢ rara de fendmenos. Roma, 20 contritio, afrontou as provas mais duras do destino ¢ construit sua liberdade apesar de todos 65 limites de sua condiglo. $6 ela pode nos revelar 0 segredo da potén- cia das reptblicas. Desenvolvendo sua teoria da liberdade, Maquiavel desacreditava, 20 mesmo tempo, 0 modelo veneziano 20s olhos de seus contempordneos. Se todos tinham horror aos conflitos, era justamente porque toda a histo 124, MACHIAVELLI, Discont 1, 6. 125. Kdem, 1, 6, 3 ria de Florenga fora atravessada por Iutas intemas, desde 0 “duecento”. Nese caso, como transformar Veneza no modelo a ser seguiddo, se 0 passado florentino jé destinara a cidade a outros caminhos™? Roma, sim, podia inspirar seus concidadiios, pois somente ela vivera 0 desafio da contingéncia e fizera das disputas intestinas 0 motor de seu progresso em diregdo a0 império. ‘Apesar do que acabamos de ver, alguns autores acharam que Maquiavel defendia as repiblicas apenas como uma forma arcaica de sustentar 2 teoria do regime misto'®. A esses intérpretes escapou n30 somente a naturcza da adesio maquiaveliana 2 dita teoria, mas, sobre- tudo, que ele veio justamente romper com a idéia de modelo ideal em politica, Maquiavel abre o pensamento politico para a critica do regime ideal, rompendo nio apenas com a tradigio cristi, mas também com a ‘grega. Pensar 0 politico no ambito da contingéncia foi um desafio que Arist6tcles accitou. Pensar a contingéncia sem 0 socorro da forma ideal reguladora & 0 paso definitive de Maquiavel para a modemidade. Esse paso deixou marcas em todo 0 percurso te6rico do autor lorentino, obrigando-nos, a cada vez que nos defrontamos com um tema tradicional, a lembrar que do mais dispomos do conforto de um ideal regulador que, mesmo distante das formas reais de poder, servia para nos guiar nas dificeis veredas da politica, Assim, no sétimo capitulo, quando Maquiavel trata a questio da justiga, ndo hd a menor sombra de uma idéia reguladora de justiga a guiar suas quesides. Tratando da possibilidade de acusar os adversisios por meios legais, nosso autor nao faz apelo a categortas da @tica tradicional. 126, Sobre Maquiavel € Veneza ver: F. GILDENT, “Machiavelli e Venezia" in Machtavell € Af suo tempo, 319; 1. CERVELL, Macbiavell ¢ la crist dello Sito Veneziano, Guida Edtore, 1974; P. AMIQUET, Lage Zor de la diplomatic. Macbiavel of les Venetlens, A. Michel, 1963. 127. A. RENAUDET, Machlavel, Gallimard, 1942, 144. Depois de examinar a questo do ‘govemo miso, conclu “Mais i appara bien qu'un tel programme est la mesure de ‘Ck antique ou de la commune médiévale, enon pas du grand Etat modeme, dnt pourtant ‘Machiavel e0t souhaké la nassance en Ialle. Para uma critica detalhada de seu trabalho ver: C. LEFOKT, op, cit, 178. 128, Opomo-nos, aul tese de Skinner que afirma: “Machiavelli thinks possible, a leas in theory, fora Community to enjoy fe way under 2 monarchical form of government. Forthere is no reason in principle why 2 King should not organize the laws of this kingdom. in sucha way that they eeflect the general wil". Q. SKINNER, The idea of Negative Liberty, 1. 207. Be pare de uma concepcio formal da liberdade Clibeny is only a possibilty for members ofa self goveming communities in which the will of Ure body politic determines its own action), para rar conclusdes que ndo levam em consileraglo @ movimento de consituigio do pensamento maqulaveliano 4 ‘© que the intercssa, em primeiro lugar, € estudar a regulago das relagdes do individuo e do Estado e revelar de mancita clara aos leitores ‘a origem das leis e a inevitavel ruptura do corpo social: *.. essas inst- tuigGes produzem dois efeitos Gteis na repGblica, O primeiro & que os cidadaos, por medo de serem acusados, nada tentam contra 0 Estado, €, ‘s¢ 0 fazem, so rapidamente punidos. © outro € que se criam os canais para a expresso dos humores que nascem nas cidades, de algum modo, ‘contra alguns cidadaos"™. ‘Maquiavel abandona a idéia da justiga como aplicagto na cidade dos ‘principios éticos etemos", para concebé-la como uma expressio possi: vel do contflito de classes. Nao € tanto contra a ética tradicional que ele Janga seus ataques, mas contra a idéia de que uma regulagio do conflito poderia anulé-lo completamente. Para ele, os conflitos devem expressar- “s¢ através dos mecanismos legais, sob a pena de destruirem 0 tecido social. , pois, em um regime de leis que pensa Maquiavel quando nos fala das repdblicas, e mio em uma constituicto ideal abstrata, incapaz de ‘mostrar suas proprias contradigées!™. A sociedade “justa" €, portanto, a dos conflitos, mas é, sobretudo, a que em scus excessos € capaz de encontrar uma solugio piblica para o conflito de seus cidadaos™. ‘A perdigio de uma cidade € o produto da opacidade de suas leis. Nenhuma cidade provou melhor a verdade dessa afirmago do que Flo- renga. A constituigio de 1494 previu a participagio do povo nos negé- ios piblicos, mas no conseguiu dar expresso a seus antagonismos. Se ‘um regime livre pressupde a participagao, no pode se resumir a 6rgios ‘como 0 “Consiglio Maggiore". & preciso que ele escape 3 tentagdo dos ‘modelos ideais e que abandone a fico da total transparéncia de seus ‘elementos, para se por diante da possibilidade sempre presente da morte. ‘A Florenca de Savonarola e de Soderini procurava vivamente a estabili- dade, sem se dar conta de que para isso era preciso enfrentar o profundo dilaceramento de seu corpo social, O papel do Estado ndo é, entdo, nem 0 do mediador neutro, nem o do juiz impessoal, mas o de se opor, pela forga das leis, a ago destruidora dos desejos particularistas. ‘Maquiavel pensa que o Estado tem um papel universal, que, no entanto, nao tem nada a ver com a universalidade da monarquia de Dante. Também nele trata-se de evitar a explosto das paixdes na cidade, ‘mas nao através de um regulador universal, ¢ sim pela transformacio do 129, MACHIAVELLL, Discos, 1,7. 130. C. LEFORT, op. cit, 477. 131, MACHIAVELLI, Discont, 1,7. 132, A este respeio, A. ANZILOTTI, op. cl, 28. 95 dominio privado em dominio publico.” As leis positivas so fruto da Yontade humana, porém podem exprimir 0 universal, a medida que do contesido racional 20s desejos mais disparatados dos cidadaos, transfor- mando-os em energia criativa para a cidade. "A conversio dos desejos particulares em agdo, visando ao bem piblico, sugere a Maquiavel, no oitavo capitulo, uma dupla critica & teoria da maldade natural dos homens, que ele mesmo havia avangado ro terceiro capitulo™. No capitulo que estamos analisando, Maquiavel converte a problemitica abstrata da natureza humana no questionamento sobre a natureza dos desejos humanos, dando assim um tom realista 20 que se anunciara como uma questio classica da origem metafisica do mal. Os desejos tém sua terra natal na oposigdo entre 0 “povo” ¢ os sprandes", mas a anilise do efeito politico das calGnias nos faz recusar a idéia que poderia ter sido suscitada pela problematica da conservacio dda liberade: a de uma bondade natural dos desejas Jo povo. O que Maquiavel procura demonstrar & que na analise dos desejos que povoam as cidades nio ha lugar para consideragdes de ordem moral, © povo nto € 0 depositirio do bom desejo, oposto a0 desejo perverso dos nobres. (0 jogo politico, desenrolando-se essencialmente no terreno indeterminado das ages humanas, ndo nos permite falar do bom e do mau desejo, mas ‘apenas das agdes que s40 nocivas ¢ das que colaboram para a manuten- {Glo da liberdade. A natureza humana tende, @ certo, para o mal, mas ‘esse pendor nio impede que os homens desejem o bem ¢ o fagam tfetivamente, ainda que movidos apenas pelo desejo de salvar a propria Vida, A liberdade tem sua origem nessa dessemellianga dos descjos, © & © resultado da solugio, sempre temporiria, que os diversos povos <0 A luta de classes. Portanto, o que diferencia Maquiavel dos humanistas civicos nao é 0 fato de ter descoberto o papel ¢ a importincia das leis, mas 0 de saber ‘compreender que as leis sio fruto do conflito infinito de desejos opostos. Isso explica por que Maquiavel nunca acreditou numa solugdo definitiva do conllito social. Os desejos, sendo no somente contradit6rios, mas de naturezas diversas, nio podem ser anulados por uma solugao constitu- cional, nem mesmo pela mais perfeita a seus olhos: a repGblica. ‘A anilise dos oito primeiros capitulos dos Discorsi abarca quase todos 0s elementos teéricos que marcaram a ruptura de Maquiavel com 133, DANTE, Afonarcbie, 1, 14, 5. 134. C LEFORT, op. cit, 486. 96 ‘© humanismo civico, no que diz. respeito a questio da liberdade, Vemos aparecer nesses capitulos a consideragao da importincia dos conflitos, a associagio da liberdade e da poténcia, a critica da ilusto constitucional, a anilise das leis que transformam a violéncia privada em justica pGblica ‘Tantos elementos que nos lembram 0 humanismo cfvico ¢ que demons- tram, a0 mesmo tempo, a amplitude da ruptura instaurada com a tradi- ‘glo. Seria ingénuo de nossa parte pensar que apenas em oito capftulos ‘Maquiavel teria concentrado todo 0 segredo de sua obra. O fato, no centanto, € que nenhuma das idéias avangadas nesses primeios capftulos foi deixada de lado no restante da obra, ainda que os capitulos subse- qientes desenvolvam temas absolutamente novos ¢ que pela propria natureza modificam sensivelmente algumas consideragdes do inicio da obra. ILS. As lels em uma republica Depois de ter mostrado a importincia das acusagdes em uma cidade livre © 0 papel das instituigfes que permitem 20 povo exprimir seus 6dios, Maquiavel volta, no nono capitulo, a0 tema tradicional da funda~ lo de Roma, insistindo na unidade que se forja sob a mao habil dos fundadores!. © *primeiro ato” adquire assim um estatuto particular, pois dele parece depender todo 0 destino da cidade, Os fundadores ‘merecem todos os elogios, mas € preciso notar que sua obra, desenvol- vendo-se na tempo, refletindo-se na historia de um povo, pode ser julgada pelos critérios mais objetivos: a grandeza € a riqueza da cidade. A opa- ‘cidade na qual se desenrola a criagdo € compensada pela transparéncia dos efeitos que sao experimentados ao longo da vida de todos os cida- dios de sucessivas geracdes. Essa possibilidade suscitou a Maquiavel uma dificuldade suplemen- tar, no momento em que se dedicou a andlise dos atos de Rémulo, Como ‘explicar, com efcito, que ele tenha fundado uma monarquia, € 40 uma epublica? Maquiavel encontra a safda para o dilema no qual se meteu Jembrando que na monarquia as leis eram to boas que permitiram aos romanos adquitic a liberdade logo apés a queda dos Tarquinios™ 135, C. Lefont observou o carter “clissico” desse capitulo: op. cit 491 136."li che si vide poi quando Homa divenne libera per lacacciata de Tarquin, dove ‘de! Romani non fu innorato aleun odin dello antico, se non che in tuogo duno Re pempetuo fossero due Conca annual I che testifies wut gt ordin! primi di quella cits tssere stat pid conform # uno vivere civle € libero che ad uno assoluto « tirannico” MACHIAVELLI, Discomst 1,9. ”

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