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Ônibus 174 e o clamor por visibilidade: Discursos e sentidos
Ana Paula Penkala
Doutoranda PPGCOM UFRGS
Resumo:
Este artigo propõe uma análise de Ônibus 174, documentário brasileiro de 2002 realizado por José
Padilha, considerando como premissa sua “proposta” de dar a ver mazelas e os excluídos de uma
sociedade. Assumindo tais coisas como um “dever social”, o filme parece construir dois sub
discursos: a) o de que a mídia não faz esse papel; e b) o de que as pessoas não enxergam esses
excluídos e essas mazelas. A partir disso, farei uma reflexão sobre as marcas discursivas que
constroem os sentidos de “clamor por visibilidade” que circulam no filme, como e onde elas se
constituem. Para tanto, uso um esquema metodológico da Análise de Discurso de linha francesa.
Palavraschave: Visibilidade; Documentário; Discurso.
1 Introdução
Existe um idéia que parece predominar na prática cinematográfica brasileira que diz respeito a um
certo "dever social" de dar a ver ao próprio brasileiro – e ao mundo – nossas mazelas sociais e
nossos excluídos e marginalizados, o que é notado pela grande quantidade de histórias de violência e
pobreza que circulam em nossa cinematografia. Como diria JeanClaude Bernardet (1985), “há
nesses filmes não só um interesse social por aqueles que são praticamente excluídos da sociedade e
vivem na miséria, mas há também uma ternura, uma emoção cheia de dignidade, uma compaixão
sincera e comovente” (p. 185). Quando assume esse "dever social", o filme parece construir dois
subdiscursos: a) o de que a mídia não faz esse papel (o da empatia para com os excluídos, ou ao
menos o interesse); e b) o de que as pessoas não enxergam esses excluídos. Por um outro lado, há
um fenômeno de midiatização que provoca uma hiperprodução de imagens (especialmente as que
podem ser colocadas sob o signo da bizarria e do inusitado) que lota o cotidiano daqueles que vivem
a experiência pósmoderna. Ônibus 174, documentário de José Padilha lançado em 2002, é um dos
recentes filmes brasileiros que funcionam dessa maneira: visibiliza realidades de exclusão, violência
e miséria e, em vários momentos, deixa que vejamos o processo de documentação imagética
alimentado por uma sociedade cada vez mais ávida por registros e que dá a muitos dos “invisíveis”
sociais a estranha – ainda que bem justificada – ilusão de que o reconhecimento passa pela
2
midiatização. Assim, reiterando o sentido de clamor por visibilidade que emerge desses excluídos,
Ônibus 174 acaba proporcionando uma problematização a respeito do olhar, e afirmando a natureza
primordial do cinema que é, simplesmente, dar a ver realidades (inventadas ou reais).
Neste artigo proponho uma reflexão sobre esses movimentos que o documentário de Padilha
opera e os sentidos que podem ser depreendidos do filme nesse processo, analisandoo a fim de
responder às seguintes questões: Quais são as marcas discursivas que constroem tais sentidos em
Ônibus 174? Como eles são construídos? Que efeitos eles têm? Para tanto, parto dessa premissa
básica, que é a de que o cinema brasileiro tradicionalmente procura visibilizar mazelas e excluídos;
e de outra premissa, a de que há um discurso maior percebível no filme, que é o do clamor por
visibilidade que emerge desses excluídos. Para amarrar minha problematização e análise, uso um
esquema metodológico da Análise de Discurso de linha francesa.
2 Ônibus 174, o caso e o filme
Quando o documentário Ônibus 174 foi lançado, dois anos já haviam se passado desde o evento que
lhe serve de referente real, ocorrido em junho de 2000, na cidade do Rio de Janeiro. Amplamente
documentado pela mídia televisiva e pelos meios impressos, o Caso do Ônibus 174 ficou
profundamente marcado pela exaustiva cobertura televisiva e pelo tratamento recebido pelo
“protagonista” desse drama, Sandro do Nascimento, o seqüestrador. Na época, Sandro ganhou
contornos de vilania quase folhetinesca por parte de jornais impressos e noticiosos televisivos, como
o noticiário Jornal Nacional (JN), que espetaculariza a vitimização das reféns e constrói Sandro
como drogado e “endemoniado”, assim como alguns jornais impressos (ROCHA, 2004). Segundo
Rocha (2004), omitese totalmente da cobertura feita pelo JN nos primeiros dias após o evento a
informação de que Sandro foi um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, em 1993, na qual
oito crianças de rua foram assassinadas por policiais.
No início da tarde de 12 de junho de 2000, Sandro do Nascimento, 21 anos, invadiu um
ônibus na avenida Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, com o objetivo de fazer um assalto.
Sem opções de fuga, resolveu fazer reféns para negociar sua vida. O seqüestro, findo às 18h50,
terminou com duas mortes. Pela cobertura jornalística da época, Sandro teria atingido a refém que
3
lhe servia de escudo, Geísa Gonçalves, com vários tiros, matandoa e, após ser levado pelos
Policiais Militares até o camburão, teria morrido por asfixia mecânica1. O documentário usa, além
de depoimentos de personagens envolvidos no caso e especialistas ou pessoas relacionadas ao
seqüestrador, imagens captadas por várias redes de televisão (TV Globo, Bandeirantes e Rede
Record) compradas pelo documentarista (ROCHA, 2004). Antes dos créditos finais, o documentário
expõe informações oficiais sobre o caso que referendam o ponto de vista que permanece durante as
quase duas horas de filme: a história não aconteceu exatamente como foi exposta à época. Isso
contribui para que se pense – e esse artigo é construído sobre essa premissa – que o documentário
Ônibus 174 vem para esclarecer aquilo que foi mal informado e, principalmente, dar a quem viu e
ouviu sobre o caso a versão daquele que não tem mais voz: Sandro.
3 Contextos, discursos e sentidos
O trabalho de analisar o filme de José Padilha a partir do método da Análise de Discurso, e usando
seus conceitos, teve início em uma série de “primeiras observações” do documentário, das quais
foram surgindo, enfatizados ou sutilmente, vários sentidos centrais. Um desses sentidos é o óbvio
clamor por visibilidade social (para os excluídos), algo que se faz presente principalmente nos
depoimentos de Luis Eduardo Soares, sociólogo2. A partir dessa percepção, em um constante
movimento entre o filme e as problematizações, outros sentidos foram sendo observados e outras
marcas foram sendo pinçadas do discurso que é Ônibus 174. Um desses outros sentidos é a questão
própria da visibilidade, porém não social, no sentido de um chamado a enxergarmos os excluídos,
mas uma visibilidade midiática, que faz parte do tratamento do evento “seqüestro do ônibus 174”
como um espetáculo, no sentido primordial de espetáculo, ou seja, como aquilo que se presta à
exposição e ao espéculo do olhar humano. Assim, a partir desses dois eixos de significação,
proponho a observação e análise de Ônibus 174.
3.1 Um método para compreender Ônibus 174
Compreender Ônibus 174 em seus sentidos é compreender o filme enquanto discurso que produz e
1 Cf. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u64384.shtml>.
2 Não há identificação do sociólogo, nem de sua profissão, no filme. A identificação é minha.
4
faz circular tais sentidos, os quais serão aqui destacados, reconhecidos, organizados e entendidos
através da Análise de Discurso (AD). Essa afirmação não propõe que existam sentidos únicos os
quais emanam do texto fílmico, nem que alguém os tenha “plantado” no discurso analisado. “Não
há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o analista,
com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender.” (ORLANDI, 2001, p. 26) Para Orlandi (op.
cit.), o objetivo da AD é entender como um objeto produz sentidos e como os sujeitos produtores
desse discurso investem nesse objeto e depreendem dele sentidos, os quais, como afirma Bethânia
Mariani (1999), “[...] não estão presos ao texto nem emanam do sujeito que lê, ao contrário eles
resultam de um processo de interação texto/leitor” (p. 106).
Parto das primeiras abordagens do objeto geral de observação (o documentário de Padilha)
para, ao problematizálo, dar início ao gesto de interpretação que se constitui na ação analítica
proposta neste artigo. É pertinente lembrar, neste momento, que aquilo que irá submergir do
discurso que analiso é de minha responsabilidade e provocado unicamente por mim enquanto
termos, é preciso que o consideremos como um texto “[...] histórico e subordinado aos
histórico e de produção dado. O sistema de significação que afeta os discursos, segundo Benetti,
“[...] é formado pela língua, pela cultura, pela ideologia e pelo imaginário” (2007, p. 109).
3.2 Cultura, Ideologia e Imaginário: Um contexto para compreender Ônibus 174
O documentário de Padilha, enquanto parte de uma cultura, deve ser analisado como produto de uma
pobreza e a violência difundidas na sociedade brasileira, quase sempre dando aos excluídos a voz que
não lhes é dada nas mídias tradicionais e em seu próprio cotidiano. Ônibus 174 é parte de uma tradição
que inclui filmes ficcionais e documentais como os do Cinema Novo dos anos 60, do Cinema
Marginal dos anos 70 e dos recentes produtos da cinematografia brasileira, os quais evidenciam, por
suas temáticas e linguagem, uma proposta de “retratar” realidades sociais3 como a periferia e as
3 A esse respeito, ver PENKALA, 2006.
5
favelas nas grandes cidades, a criminalização da pobreza e a violência contra e dos excluídos.4
Tais movimentos cinematográficos, enquanto manifestações audiovisuais da cultura, tratam
de um universo de significados que nos constituem enquanto nação e povo. Um desses significados
diz respeito aos excluídos, sujeitos que, em nosso País, são marcados principalmente por dois
estigmas: o da pobreza e o da diferença de cor, ou de “raça”5, como é comumente dito. Sandro,
protagonista desse documentário, é negro, pobre, favelado, exmenino de rua e exdetento. Somase,
nesse indivíduo, toda a carga simbólica do indesejável social, daquele que não se quer enxergar, do
inefável, como dirá Bauman (2007).
Esses filmes fazem circular um imaginário próprio da cultura onde pobres e negros são
quase sempre marcados pela invisibilidade ou pela criminalização, quando não por estereótipos
ainda mais barbarizantes6. Há, como afirma o sociólogo francês Loïc Wacquant (2001a), uma
ditadura sobre os pobres (e sobre os negros) que atravessa a sociedade brasileira, muitas das vezes
materializada na realidade de que eles são maioria entre as vítimas do sistema prisional nacional e
suas mazelas: “É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de
concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais [...]”
(WACQUANT, 2001, p. 11, grifo do autor). Negros e pobres superlotando as cadeias e presídios
fazem parte da imagem que a nação faz de si própria. Como afirma Sodré (1992), “negros, de
preferência, são os escolhidos pelos policiais para as revistas periódicas em ônibus [...]” (p. 114). A
ideologia que vem por trás dessa cultura e imaginário e a ideologia que fundamenta essas produções
4 Prevaleceu, nos anos 60, o discurso sobre a fome e a tragédia social localizada no sertão nordestino, resumida em
filmes como Deus e o Diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos,
1963). No Cinema Marginal, a desigualdade e os restos de um processo de industrialização mal feito eram o
fundo de histórias sobre a perda de valores nas grandes cidades brasileiras. O lixo e a abjeção foram temas
dominantes nesse período, a exemplo de ícones como O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e
Hitler no Terceiro Mundo (José Agripino de Paula, 1970). Nos anos 90 e 2000, a miséria, a violência, a
criminalidade e a exclusão são temas de documentários – Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles
e Katia Lund, 1999), Ônibus 174 (José Padilha, 2002) e O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003)
– e filmes de ficção (ainda que baseados em fatos reais) – Carandiru (Hector Babenco, 2002), Cidade de Deus
(Fernando Meirelles, 2002) e Central do Brasil (Walter Salles, 1997). Sobre isso, cf. PENKALA, 2006.
5 Uso aqui “raça”, “racismo” e outros derivados entre aspas pois compreendo, como diz Stuart Hall, essa
categoria como algo sem cientificidade. O conceito de “raça”, para o autor, é “[...] uma construção política e
social. É uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de
exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (2003, p. 69).
6 A esse respeito, ver RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
6
cinematográficas também passa por essas questões. No cerne desse discurso que criminaliza pobres
e negros, e do discurso que denuncia essas desumanidades, está a questão da luta de classes e da
política de exclusão de estranhos de que fala Bauman (2005; 2007). De um lado, a construção de um
imaginário que criminaliza negros e pobres, de outro, um discurso cinematográfico que se propõe a
entender esse outro, a mostrálo, a reconhecêlo.
3.3 Formações discursivas: os sentidos nucleares em Ônibus 174
O texto (aqui, fílmico), onde se materializa um discurso, possui duas camadas – a camada
discursiva, mais evidente, e a ideológica, que emerge quando se aplica sobre ela o método da AD
(BENETTI, 2007). Essa segunda camada é a da motivação externa ao texto, que diz respeito à
ideologia que funda o discurso e também, como observa Benetti (Idem), ao imaginário que lhe é
anterior. Para analisar o discurso do texto Ônibus 174, identifico no filme duas formações
discursivas principais que podem responder à pergunta de pesquisa já estabelecida e que dizem
respeito ao sentido geral sobre a visibilidade. Essas regiões de sentidos que são as formações
discursivas (FDs) devem ser limitadas a um sentido nuclear, formado por significados que o
consolidam e constroem (BENETTI, 2007).
Organizo minha análise, portanto, sobre dois núcleos de sentido: FD1) Visibilidade Social e
FD2) Visibilização Midiática. Essas FDs foram organizadas a partir das primeiras observações do
filme e das premissas gerais apresentadas aqui anteriormente, as quais provocaram uma exposição
dos sentidos mais lapidados que são as FDs com as quais irei trabalhar daqui para frente. Dentro de
cada FD estarão relacionadas as seqüências discursivas (SDs) selecionadas do filme e que expõem,
de alguma forma, marcas discursivas relacionadas ao sentido nuclear da FD correspondente. As
SDs, numeradas, indicarão o tempo do filme em que foram encontradas e uma breve exposição ou
descrição dessa seqüência7. Os trechos de falas ou escritas provenientes do filme serão apresentados
entre aspas. Para melhor organização do trabalho de análise, cada fala foi identificada como
pertencendo a um locutor, que é o indivíduo que a profere. Considerando que o filme não identifica
7 O tempo será indicado aproximadamente, já que pode mudar conforme o suporte ou aparelho em que é
visualizado o filme. É recomendável que a marcação das SDs sirva de guia para que cada leitor deste artigo
as visualize no filme, uma vez que a tradução de um filme ou seqüência de não é a mesma coisa que o
próprio filme, ainda que este seja o único recurso aqui disponível.
7
seus entrevistados, os locutores foram identificados conforme indicações em suas próprias falas
(como, por exemplo, “Locutora Refém 1”) ou, ainda, apresentados como não identificados. Depois
da exposição das SDs é que será feita a análise de sentidos de cada seqüência e formação, com base
em autores que formam a base ideológica a partir da faço minha análise.
4 Os sentidos em Ônibus 174
4.1 Observação
FD 1 – Visibilidade Social
SD1 – 10s – Panorâmica aérea sobre o mar do Rio de Janeiro. Quando chega à terra, mostra uma grande
favela. Música de fundo dramática.
SD2 – 1min59s – Panorâmica aérea. Atrás de uma montanha, uma favela maior ainda.
SD3 – 2min7s – Começase a ouvir falas em off8. Depoimentos que falam de como é a miserabilidade da
própria vida enquanto a panorâmica9 aérea vai adentrando a cidade, passando por bairros de classe
média.
SD4 – 6min35s – Imagens do local do seqüestro, onde um policial do Bope10 conversa com o seqüestrador
que está dentro do ônibus. Locutor Policial 1, em off: “... eu designei um nome pra ele. Falei: 'Seu nome
vai ser Sérgio, tá ok, Sérgio?', aí ele: 'Tudo bem. Então tá, meu nome é Sérgio. Pode me chamar de
Sérgio' ...”. Corta para Locutor Policial 1 em estúdio: “... Até aquele momento eu não sabia, ninguém
sabia, que ele era o Sandro”.
SD5 – 6min46s Corta para panorâmica aérea da cidade. Aproximase de uma favela pequena enquanto uma
mulher, Locutora Assistente Social Yvonne (em off) conta uma história sobre Sandro – a infância dele.
Corta: enquadramento de Yvonne: “... então esse menino ficou sozinho”. Corta para panorâmica aérea
da favela, que chega até a orla de Copacabana, enquanto Yvonne diz que Sandro foi para a rua, na Zona
Sul, onde os meninos passam menos fome, pois lá há mais turistas.
SD6 – 13min5s – Vemos Sandro enrolando o rosto com um pano através da janela do ônibus, Locutora
Refém 1, em off, fala sobre como ele escondia o rosto, com a toalha ou o casaco dela.
SD7 – 17min57s – Dois meninos de rua com camisetas no rosto. Locutor “Especialista”, em off: “Esse
Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que eventualmente emergem e tomam a cena...”. Corta pra
rosto do locutor: “...e nos confrontam com a sua violência, que é um grito desesperado, um grito
impotente”. Corta para uma avenida, onde três meninos fazem malabarismo para motoristas parados no
sinal fechado (repete música dramática do início).
SD8 – 18min28s – Locutor “Especialista”, em off: “A nossa incapacidade de lidar com os nossos dramas,
com a exclusão social, com o racismo, com as estigmatizações todas (...). Nós convivemos (...)
tranqüilamente com os Sandros, com as tragédias, com os filhos das tragédias, com as extensões das
tragédias. Isso se converteu em parte do nosso cotidiano”. Nesse momento os malabaristas passam entre
os carros de janelas fechadas, onde os motoristas viram o rosto. Corta para novos malabarismos, o Pão
de Açúcar ao fundo.
8 O som em off é aquele que tem origem fora de campo, ou seja, em algo ou alguém que não está enquadrado.
9 Movimento de câmera sobre seu eixo. Pode ser vertical ou horizontal. Normalmente tem função descritiva.
10 Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar.
8
SD9 – 18min55s – Meninos malabaristas, Locutor “Especialista”, voz em off: “A grande luta desses meninos
é contra a invisibilidade. Nós não somos ninguém e nada se alguém não nos olha, não reconhece o
nosso valor, não preza a nossa existência (...). Não devolve a nós a nossa imagem ungida de algum
brilho, de alguma vitalidade, algum reconhecimento...”. Meninos passam pelos carros e ninguém os
olha, o rosto deles está desfocado. “... esses meninos estão famintos de existência social, famintos de
reconhecimento.” Menino, rosto desfocado, se aproxima da câmera.
SD10 – 19min30s – Menino com a camiseta no rosto, Locutor “Especialista”, em off: “O menino negro,
pobre, qualquer menino, nas grandes cidades brasileiras transita pelas ruas invisível...”. Corta para
imagem de menina negra, rosto desfocado. “... há duas maneiras de produzir a invisibilidade. Esse
menino é invisível porque nós não vemos, nós negligenciamos a sua presença, nós o desdenhamos...”.
Corta para imagem de menino tapando a metade do rosto com uma camiseta. “... Ou porque projetamos
sobre ele um estigma, uma caricatura, um preconceito...”. Corta para imagem de outro menino que
esconde todo o rosto. “... Nós só vemos o que nós projetamos, a caricatura que nós com nossos
preconceitos projetamos”. Vários meninos com o rosto tapado ou desfocado.
SD11 – 20min – Locutora Moradora de Rua 1, em off: “Eles tão vendo a gente como marginal, mas aqui não
tem marginal não. A gente corre atrás de nossa sobrevivência, mano...”. Corta para policiais. Corta para
Sandro com o rosto tapado.
SD12 – 20min20s – Moradora de Rua com o rosto desfocado diz: “A sociedade que enxerga a gente com
outro rosto, porque se eles enxergassem a gente com o rosto que eles mesmos bota a imagem na gente, a
gente não vai a lugar nenhum”.
SD13 – 24min – Panorâmica aérea, morro com antenas de rádiotelevisão, Locutora Refém 2, em off: “Eu
acho que a televisão permitiu que ele se sentisse poderoso, na medida em que ele sabia que ele estava
sendo filmado e queria ser filmado”. Ainda panorâmica aérea, Locutora Yvonne, em off: “Ele jogou e
jogou muito bem jogado. Mas ele sabia o que que ia acontecer se ele fosse pego, então ela a maneira de
ele também se proteger”. Ainda panorâmica, Locutor Policial 2, em off: “A mídia é algo que traz
confiança ao seqüestrador. É a certeza que eu não vou ser executado, morto”. Mesma panorâmica,
Locutora Refém 2, em off: “O prolongamento daquela situação também servia como um espaço de
significar alguma coisa para alguém, como um espaço de mostrar que ele tinha poder, de mostrar que
ele existia, enfim. E isso era uma coisa tão fundamental quanto resolver a situação e sair dali vivo.
Então, nesse sentido, as câmeras de televisão importavam para ele”. Ainda panorâmica, Locutor
“Especialista”, em off: “Ali o Sandro nos despertou a todos nós em todas as nossas salas de visita...”.
Corta para enquadramento do Locutor “Especialista”: “... Ele impôs a sua visibilidade, ele era
personagem de uma outra narrativa, ele redefiniu de alguma maneira o relato social, um relato que dava
a ele sempre uma posição subalterna, de repente é convertido numa narrativa na qual ele é o
protagonista”.
SD14 – 25min40s – Refém 3 escreve uma mensagem na janela frontal do ônibus. Locutor “Especialista”, em
off: “Esse menino com essa arma pode produzir em nós, em um outro qualquer, um sentimento, que é o
sentimento do medo. Um sentimento negativo, mas um sentimento. Através do qual ele recupera a
visibilidade, reconquista a presença, reafirma a sua existência social e a sua existência humana...”. Corta
para Refém 3 escrevendo em outra janela, Locutor “Especialista”, em off: “... Há um processo aí, de
autoconstituição, uma estética da autoinvenção que se dá pela mediação da violência, da arma, de um
modo perverso, uma espécie de pacto fáustico*, em que um menino troca o seu futuro, a sua vida, a sua
alma, por assim dizer, por esse momento efêmero, fugaz, de glória, a pequena glória de poder ser
reconhecido, de ter algum valor, de poder prezar sua autoestima...”. (*) Enquanto a Refém 3 escreve na
janela: “Ele tem pacto com o diabo”.
9
SD15 – 35min57s – Sandro na janela do ônibus: “Pode me filmar legal, Brasil. Se liga só: tava lá na
Candelária, o bagulho é sério, mataram os irmãozinho na maior judiaria (...) quero que me filme da
forma que cê tá filmando aí”.
SD16 – 41min10s – Sandro dentro do ônibus, Locutor “Especialista”, em off: “Se nós acrescentarmos à
invisibilidade o drama natural da adolescência, nós compreenderemos o quão difícil é esse trânsito, essa
trajetória desse menino, um Sandro qualquer da vida pela cidade, esse ser invisível”.
SD17 – 1h8min52s – Locutora Mãe “Adotiva”: “Ele sempre falava: 'Eu tenho que ser alguma coisa na vida.
Eu tenho que ser um artista, eu tenho que ser alguma coisa na vida'”.
SD18 – 1h9min34s – Sandro na janela do ônibus, Locutora Yvonne, em off: “Ele disse pra mim: 'Olha, tia
Yvonne, eu tô cansado dessa vida, não agüento mais...'”. Corta para Yvonne: “'... Eu queria trabalhar,
mas quem é que vai me dar um emprego? A senhora olhe pra mim e vê se alguém vai me dar um
emprego. (...) eu vou fazer o quê da minha vida a não ser isso que eu faço? Quem é que vai me dar uma
chance? Ninguém. Ninguém nunca deu!'”.
SD19 – 1h9min50s – Primeiro plano11 da TV desligada na casa da Locutora Mãe “Adotiva”, que diz, em off:
“Ele falava que eu ainda ia ver ele na televisão...”. Corta para enquadramento da Locutora Mãe
“Adotiva”: “... Fazendo sucesso. (...) Eu falei pra ele: 'Eu espero que eu quero ver você fazendo sucesso
e você também vendo. E ele: 'A senhora vai ver. Mas se eu não ver, a senhora vai ver'”.
SD20 – 1h23min20s – As portas de uma cadeia são abertas, a câmera passeia pela cadeia, Locutores Presos,
em off: “O espaço de três aqui tem onze”. Câmera mostra Locutor Preso: “No Brasil nada funciona. A
realidade é muito triste, amigo. O que cês tão vendo aqui não é nem um terço da realidade”.
SD21 – 1h34min20s – Foto de infância da família de Sandro.
SD22 – 1h45min20s – Câmera hiperlenta do momento em que um atirador do Bope se aproxima para atirar
em Sandro. Mostra que o tiro do policial faz levantar os cabelos de Geísa. Corta para outro ângulo da
mesma cena com o tiro atingindo Geísa. Vêse a mão de Sandro abaixo da linha do tiro que atingiu
Geísa. O tiro do policial do Bope é repetido de vários ângulos.
SD23 – 1h50min55s – Policiais do Bope levam Sandro para o camburão. Uma câmera mostra, através da
janela da viatura, o momento em que os policiais sufocam Sandro. Locutor ExDetento (conhecido de
Sandro), com o rosto coberto por uma meia, em off: “O cara morreu aqui no Jardim Botânico na cara de
todo mundo. Milhares de pessoas viram. O Brasil inteiro viu ele morrendo”.
SD24 – 1h51min – Policiais sufocam Sandro, de outro ângulo.
SD25 – 1h54min15s – Plongée12 de ônibus sendo escoltado pela avenida, Locutor “Especialista”, em off: “À
polícia cabe o trabalho sujo que a sociedade não quer ver mas que em algum lugar obscuro do seu
espírito deseja que se realize. Que se anulem os Sandros, que os Sandros desapareçam das nossas vistas.
Nós não queremos ver essa realidade, não podemos suportar essa realidade. Então a invisibilidade é,
afinal, reconquistada, pela produção policial da invisibilidade. Através da anulação que a morte gera”.
SD26 – 1h57min15s – Letreiro: “Segundo o relatório oficial, Geísa levou quatro tiros: um no rosto, disparado
pelo policial, e três nas costas, disparados por Sandro. Os policiais que levaram Sandro para o camburão
foram acusados de homicídio e absolvidos por júri popular. Eles continuam na ativa na polícia do Rio”.
FD 2 – Visibilização Midiática
11 Enquadramento dos ombros ao topo da cabeça. Pode ser usado também para objetos e animais próximos à
câmera.
12 Enquadra ação, objeto ou personagem do alto para baixo. O contrário é chamado de contreplongée.
10
SD1 – 5min6s – Tomada aérea de um ônibus parado, ao lado de uma viatura da polícia, Locutor Jornalista 1,
em off, diz que a televisão havia começado a transmitir imagens do seqüestro de um ônibus na avenida
Jardim Botânico. Corta para Locutor Jornalista 1: “Imediatamente o jornal mandou... quase toda a
equipe foi deslocada pra lá”.
SD2 – 5min46s – Imagem da avenida, textura de transmissão televisiva (com marcação de tempo, data,
local). No canto superior esquerdo está escrito “VIVO”. Esse tipo de imagem aparece em várias outras
ocasiões durante o filme.
SD3 – 10min53s – Locutor Jornalista 2, começa com voz em off e termina de falar enquadrado, dizendo que
estava na rua quando viu um comboio do Bope e saiu atrás deste com o carro da reportagem.
SD4 – 13min47s – Sandro, através da janela frontal do ônibus, ameaça as câmeras com a arma apontada.
Locutora Refém 1, em off: “[ele dizia] 'tirem aquele cara dali'”. Ele não queria fotógrafos ou câmeras,
diz ela.
SD5 – 14min30s – Repórter, com microfone na mão, preparase para falar para as câmeras. Locutor não
identificado, em off, diz que existiam pessoas da imprensa chegando cada vez mais perto para obterem
melhores informações e imagens. Corte para curiosos em torno do ônibus.
SD6 – 15min10s – Sandro atira para a frente do ônibus sem querer. Locutor Jornalista 2 entra em off e depois
aparece em campo: “Risco de vida ali era meu e das dezenas de pessoas que estavam ali do meu lado.
Se ele tivesse dado outro tiro pra frente do ônibus a bala viria em nossa direção”.
SD7 – 15min29s – Policial Militar tapa a lente da câmera com uma mão.
SD8 – 23min50s – Janela frontal do ônibus com a frase “Ele vai matar geral às 6h” escrita com batom,
Locutora Refém 3, em off: “Eu tive a sensação de que o mundo estaria vendo aquilo...”. Corta para
panorâmica aérea de morro carioca com antenas de transmissão de sinais de televisão, com o Cristo
Redentor ao fundo. “... Seria retransmitido”.
SD9 – 27min3s – Sandro coloca o rosto na janela do ônibus e diz: “(...) o bagulho vai ficar sério mesmo,
pode olhar pra minha cara mesmo, marcar a minha cara mesmo (...) pode filmar, todo o Brasil olhar
mesmo, eu vou botar a chapa prá esquentar nessa porra! (...)”.
SD10 – 28min – Sandro coloca o rosto por outra janela do ônibus e diz: “Isso aqui não é filme de ação não, hein?
Aqui o bagulho é sério, mermão! (...) Não botaram a chapa prá esquentar lá em Vigário? (...) Não mataram
os irmãozinho da Candelária? Eu tava lá, não tava lá não?”. Depois disso há uma seqüência em que se fala
do que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, de que Sandro fora sobrevivente, em 1993.
SD11 – 54min48s – Sandro está com a cabeça para fora da janela do ônibus, Locutor Policial 2, em off, diz
que um tiro de sniper seria a solução ideal. Locutor Policial 2 enquadrado: “Logicamente, ao vivo, pra
todo o Brasil, iria resultar talvez ali em meio quilo de massa encefálica sendo projetada nos vidros do
ônibus. Eu não gostaria de ver isso...”. Corta para imagem do ônibus. “... Meus parentes em casa
também não gostariam de ver uma cena dessas (...)”.
SD12 – 1h8min52s – ver FD1, SD17.
SD13 – 1h09min50s – ver FD1, SD19.
SD14 – 1h43min – Sandro sai do ônibus com Refém 4, Geísa, como escudo. Imagens em câmera muito lenta,
vistas por vários ângulos. Flashs de câmeras fotográficas iluminam a cena.
SD15 – 1h43min50s – Imagens da saída de Sandro e Geísa do ônibus, Locutor Nãoidentificado, em off:
“(...) na frente de todas as câmeras. Quem ia matálo ali na frente de todas as câmeras de televisão? Na
cabeça dele? Ninguém.”. Corta para câmera hiperlenta do momento em que o policial do Bope faz uma
aproximação para atirar em Sandro. Ver FD1, SD22.
11
SD16 – 1h48min58s – Imagens da correria das pessoas em direção ao local onde estava Sandro e os policiais,
Locutor Jornalista 2, em off: “Foi só o tempo de eu tirar a câmera do tripé e sair correndo que a
multidão passou por cima pra tentar linchar o Sandro”.
SD17 – 1h50m27s – Imagem com “VIVO” no canto superior esquerdo mostra um cinegrafista segurando seu
equipamento. Em 1h51min55s, sem “VIVO”, cinegrafistas e fotógrafos vão atrás do camburão onde
está Sandro para mostrar tudo.
SD18 – 1h52min59s – Ônibus em plongée, Locutor Nãoidentificado, em off: “O pessoal que tava ali tava
querendo ver um espetáculo, e o espetáculo dizia o seguinte, que o final é a morte do bandido. Isso é
coisa comum na nossa sociedade”.
SD19 – 1h53min58s – Ônibus, em plongée, é escoltado por viaturas pela avenida. Locutor ExDetento, com
a meia cobrindo o rosto, em off: “Como na maioria das vez tem gente olhando, eles não mata”.
4.2 Interpretação: compreendendo os sentidos de Ônibus 174
FD 1 – Visibilidade Social
No início de Ônibus 174, as panorâmicas sobre a cidade do Rio de Janeiro já denunciam um estado de
coisas: as muitas e grandes favelas dividem o espaço de cartão postal com bairros de classe média repletos
de enormes piscinas. Como se pode observar nas SDs 1, 2, 3 e 5, o filme já inicia visibilizando a grande
desigualdade social que se expressa na própria geografia dessa cidade, que é o cenário do drama (um
paisagem de cartão postal do Rio de Janeiro é uma forma de dizer que a tão visibilizada cidade
maravilhosa é também aquela das favelas que ninguém quer ver (mas que estão aí, proliferamse, ganham
vulto). As favelas, como diz Wacquant (2001b) são como depósitos espaciais para exilar categorias sociais
indesejáveis. Quando, na SD5, a Locutora Yvonne fala que Sandro vai para Copacabana, onde passa menos
fome, o que vemos é o cenário de novela que povoa o imaginário brasileiro, a praia símbolo da classe
média carioca. Lá, quem dá comida aos meninos de rua são os turistas. Esses enxergam a pobreza das
crianças do Rio de Janeiro, mas talvez apenas como interesse pelo exótico, como o diria Glauber Rocha
em seu Manifesto da Estética da Fome (ROCHA, 1981) ou Susan Sontag (2003), ao falar das atrocidades
que vemos e que são sempre “dos outros”. Nesses termos, Sandro era apenas mais um dos estranhos fora
de lugar da sociedade que almeja a limpeza: “Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa
cognitivo, moral ou estético do mundo [...]”, diz Bauman (1998, p. 27), então todas as sociedades
produzem esses estranhos.
criminalizados negam sua visibilidade como forma de proteção. No início do seqüestro, Sandro
tentava, de todas as maneiras, esconder seu rosto, como se vê nas SDs 6 e 11. Quem esconde o rosto
está ciente de que sua visibilidade, em determinado contexto, é perigosa, a não ser pelas identidades
protegidas, como os desfoques destacados nas SDs 9, 10 e 12. Menores de rua escondem seu rosto
com suas roupas (SDs 7 e 10), em um autoreconhecimento como criminosos, como criminalizáveis.
Quando o Locutor “Especialista” diz (SD9) que não somos ninguém se não nos é devolvida a
própria imagem ungida de brilho, está também fazendo referência à imagem que esses
marginalizados, ainda que não exatamente criminosos, fazem de si, que é a imagem que projetamos
sobre eles. Na SD11 a fala da Locutora Moradora de Rua exemplifica isso (ela também com o rosto
desfocado), negandose a aceitar a criminalidade que lhe é imposta por uma projeção do imaginário
social. É a criminalização da pobreza de que fala Wacquant (2001a) sobre as prisões no Brasil.
A criminalização que o documentário de Padilha tematiza não é exatamente a de Sandro
enquanto assaltante e seqüestrador, mas a criminalização de uma massa de Sandros que, como ele,
já são estigmatizados desde muito pequenos. O estigma é uma marca, é uma mancha que se projeta
sobre alguém, para distinguir, mas também para condenar, para transformar em rótulo aquilo que
nem sempre é a verdade. O estigma é um conceito abstrato, mas que evoca a imagem. O Locutor
“Especialista” discorre sobre isso sempre que fala nos meninos de rua (SDs 8 e 10). Sandro é um ex
menino de rua, e como tal, marcado entre os marginais e os perigosos, as ameaças. Yvonne, a
Locutora Assistente Social, menciona que Sandro queria trabalhar, mas não tinha esperanças
(SD19): “olhe pra mim e vê se alguém vai me dar emprego”, ele diz, pedindo que ela meça o nível
de estigmatização que decai sobre sua figura, a de um jovem negro e pobre. Aqui, o clamor de
Sandro por visibilidade é uma ironia que diz da imagem autoimputada, uma imagem projetada
pelos outros e aceita. A única visibilidade é a da medida do estigma. No filme, a foto de infância de
Sandro (SD21) funciona como um oposto contundente dessa infância que tapa o rosto e dá a esse
personagem estereotípico (o bandido, o perigoso) a dimensão de igualdade com todos aqueles que
um dia tiveram uma foto de infância, símbolo de um tempo feliz, na grande maioria das vezes.
Sandro, portanto, não é um monstro. Ele foi uma criança um dia.
Na maioria das vezes, no entanto, o estigma é grande o suficiente para não querer ser visto, e
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produz a invisibilidade, sentido que é talvez maior que todos em Ônibus 174. Luis Eduardo Soares, o
Locutor “Especialista”, enfatiza isso em seu depoimento (SDs 7, 8, 9, 10, 14, 16 e 25). Esses
invisíveis, inefáveis, são os que tomam para si a cena social conforme lhes é dada alguma
oportunidade: ou por meio da violência, ou por meio da espetacularização de sua própria condição
marginal. Enquanto fala, a partir do exemplo de Sandro, daquele menino que emerge para a
visibilidade através da violência, as imagens mostram o triste teatro dos malabaristas descalços e
descamisados, fenômeno cada vez mais comum nas grandes cidades. A violência, assim como o
malabarismo nos sinais de trânsito, é a alternativa desesperada à dependência da proteção do Estado
ou da esmola. Enquanto Luis Eduardo Soares fala, o filme mostra que quando o espetáculo dos
malabarismos termina, a invisibilidade se produz novamente, pois passando entre os carros, pedindo
um valor qualquer pelo espetáculo, os meninos dãose com janelas fechadas e, mais que isso, com o
rosto virado daqueles para quem se expõem (SDs 7 e 8). No virar de rosto, há mais que um desejo
que não ver, há um gesto de anulação (SD25), de aniquilação, algo que de fato acontece no final do
seqüestro. Mais que um indicativo do grande terror que as sociedades urbanas pósmodernas vivem
hoje, as janelas fechadas (e o virar de rosto) são o maior símbolo da sociedade privilegiada que se
encerra em seu conforto espacialmente delimitado (JAMESON, 1996) e, principalmente, de uma
sociedade privilegiada que se nega a enxergar o Outro.
A caricatura que se projeta sobre esses meninos de rua (SD11) é talvez a raiz do que sugere
Sandro quando, na desmedida violência que quer fazer acontecer mas não consegue, assume mais
que uma carranca, mas a própria idéia de demonização (SD14). Como diz Luis Eduardo Soares, ele
faz um pacto, ele sacrifica, assim, sua alma em troca daquilo que mais deseja: o reconhecimento.
Suas dores não foram reconhecidas quando foi testemunha do assassinato da mãe ou quando
sobreviveu a uma cruel chacina, mas agora será. Por isso Sandro aceita prontamente o nome que lhe
dá o Locutor Policial 1 (SD4). Designar um nome para o “bandido”, naquele momento, é um gesto
de reconhecimento, ainda que em condições provisórias. Dar nome é reconhecer. Pressupondo que
Sandro não se identificaria, o policial do Bope acaba reconhecendoo como alguém, em uma
tentativa de ter no “Sérgio” que ele cria um Outro que lhe sirva de sujeito e não simplesmente um
“marginal”, categoria abstrata que os jornais e televisão da época imprimem em “bandido”:
14
As câmeras que Sandro primeiro vê como ameaças (SDs 6 e 11) são as mesmas que lhe
dariam a visibilidade almejada, imaginada em um futuro artístico (SDs 17 e 19). Para esse ser
invisível, a fama era o efeito colateral e ao mesmo tempo a causa que ele perseguia enquanto corria
atrás da própria visibilidade. Antevendo a impossibilidade de ser visto pela arte, ainda garante que a
mulher que lhe acolheu como a um filho (SD 19) veria aquele reconhecimento. É esse o sentido que
o filme apreende quando mostra as antenas de rádiotelevisão enquanto alguns dos depoimentos
falam (SD13) em poder pela visibilidade (Refém 2), proteção pela visibilidade (Yvonne e Policial 2),
existência e significação pela visibilidade (Refém 2) e no protagonismo desse personagem com
nome fictício (Sérgio), um personagem que toma a cena e reescreve a narrativa social de seu ponto
de vista (fala do “Especialista”) – que é o ponto de vista que o filme toma e divulga. Na sala de
visitas da sociedade privilegiada, o personagem agora era Sandro. Ou, ainda, Sérgio. E ele encena
um drama urbano e dá voz a outros (SD15), como quando pede que seja filmado, afinal, e dá seu
recado: ouçam, vejam, eu estive na (Chacina da) Candelária. Vejam, ele diria, estou aqui, sobrevivi.
O próprio filme segue o método de Sandro quando dá voz aos que a sociedade esquece nos
espaços fechados dos presídios (SD20). Mostrando a precariedade de uma cadeia, suas
desumanidades, o filme brinca com seu estatuto de “discurso da verdade” enquanto documentário
quando dá ao preso a chance de dizer que o que vemos ali não é um terço da realidade.
A câmera que lhe dá visibilidade é a que acaba garantindo a denúncia contra a anulação que
o Estado deixa a cargo de seus poderes, como destaca o Locutor ExDetento (SD23), ele mesmo um
locutor com o rosto tapado pelo medo de ser reconhecido (um paradoxo que o filme sugere como
algo que nunca poderá ser resolvido). O Brasil inteiro assiste à morte anunciada de Sandro, como a
um espetáculo macabro justificado. O filme, no entanto, procura deixar que essa justificativa
(Sandro fez reféns, Sandro matou Geísa) cair por terra quando, exercendo sua vocação documental
para dar a ver e fazer circular verdades e usando de seu poder enquanto linguagem (NICHOLS,
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1997), mostra o desfecho do seqüestro de vários ângulos e em câmera hiperlenta (SDs 22 e 24) ou
afirma, oficialmente e com objetividade (SD 26) que a) o tiro que causou a morte de Geísa foi o que
atingiu sua cabeça, ou seja, o disparado pelo policial; e b) sua morte foi um ato de vingança e abuso
de poder dos policiais. Sandro é o homo sacer que Giorgio Agamben (2004) expõe, uma figura do
direito criminal romano que é sacralizada justamente porque não serve como oferenda (a morte
ritual), mas sua vida é tão insignificante que qualquer um pode tirála impunemente. São as vidas
indignas de serem vividas, a desses homo sacer (BAUMAN, 2005).
O documentário dá, portanto, a visibilidade almejada por Sandro. E fala sobre as
invisibilidades outras. Não dá a Sandro a visibilidade que ele, por fim, provoca, como demonizado,
perigoso e violento, mas como vítima (uma delas). O filme dá a Sandro o reconhecimento tardio de
um personagem que “sai da vida para entrar para a História”, ainda que esta história não seja nem
um terço da realidade.
FD 2 – Visibilização Midiática
O olhar da câmera ou, mais que isso, dos mídia, é problematizado também nesse filme, e ganha o
sentido da necessidade da visibilização midiática que os eventos (principalmente os violentos) têm
em nossa sociedade hoje e das conseqüências disso. De início, no documentário, esse sentido é dado
quando os jornalistas dizem (SDs 1, 3 e 5), cada um de uma forma, da urgência de cobertura
demandada por um evento como o protagonizado por Sandro. Essa é uma urgência que se revela em
atos que beiram um tipo de heroísmo estranho, que faz com que os cinegrafistas e fotógrafos corram
riscos para conseguir “as melhores imagens” (SD5) ou, no exercício de sua busca por ângulos mais
próximos, estejam na mira dos tiros do “bandido” (SD6).
Na contramão desse movimento curioso dos mídia, os envolvidos na batalha real em função
de resolver o problema que se apresenta (os policiais e Sandro) negam a visibilidade como se
negassem a própria existência desse evento (SDs 4 e 7). Logo depois de negar sua imagem aos
reconhecimento a possibilidade do próprio reconhecimento (como quando dizia para sua mãe
“adotiva” que seria artista e visto por ela). A sensação dos que fazem parte desse espetáculo
dramático também é a de um evento de proporções televisivas e, por meio das imagens, planetário
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(SD8). Apesar de espetacularizado exaustivamente, a própria transmissão do seqüestro, “ao vivo
para todo o Brasil”, propõe uma problematização que o filme, por fim, traz à tona: matar Sandro
para salvar os reféns, em frente às câmeras, seria ultrapassar os limites do gosto (SD11), ainda que
não os limites morais, que o definem como executável, como anulável (o homo sacer). O problema
da polícia é que as pessoas vejam a morte, o tiro, o sangue e o meio quilo de massa encefálica nos
vidros do ônibus, não exatamente matar Sandro. O problema de quem estava assistindo esse
espetáculo em casa passa a ser o de anular Sandro, mas não ter que ver sua morte ao vivo.
Isso, de certa forma, é o que protege Sandro durante o tempo em que fica no ônibus. O “ao
vivo” que as câmeras imprimem à situação é a garantia de realidade (FECHINE, 2006; JOST, 2006)
que as pessoas querem ter até certo ponto. Certas realidades não devem ser vistas, principalmente se
costuma virar os olhos, assim como para a pobreza. Não se mata (impunemente) em frente às
câmeras, e isso é algo reconhecido pelo ExDetento (SD19), enquanto o filme mostra que isso, como
diz esse locutor, é o que acontece na maioria das vezes. O desfecho dessa história foi diferente.
eliminado. A sociedade, como dirá Bauman (2007) estará melhor sem ele.
Esse “VIVO”, essa referência à transmissão televisiva aparecem em vários momentos ao
longo do documentário de Padilha, como que para lembrarnos que esse evento já adentrou nossas
salas de visita pelos olhos das câmeras de tevê (SDs 2 e 17). Essa referência também nos garante o
estatuto de realidade que o jornalismo imprimiu nessa transmissão, a realidade que foi captada como
flagrante, os fatos acontecendo no imediatismo da transmissão televisiva em tempo real. Sandro
acaba referendando essa idéia de realismo que o documentário reafirma a todo momento quando diz
que aquilo ali não é um filme de ação (SD10). Fosse um filme de ação, não existiria um “bandido”
tomando a cena e fazendonos relembrar das matanças de Vigário Geral13 e da Candelária. Esse
Ocorre que a cena protagonizada por Sandro era um tipo de filme de ação e, como tal, um
espetáculo de onde a sociedade, no final, sai aliviada. O cinegrafista corre para mostrar o desfecho
13 Cf. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2005/chacinanabaixadafluminense/vigario_geral.shtml>.
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sangrento (pois é preciso mostrar, ou ao menos registrar), ao mesmo tempo que os curiosos correm
em direção a Sandro para linchálo (SD16). Como diz o Locutor Nãoidentificado na SD18, no final
dos espetáculos o que se quer é ver a morte do bandido.
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http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2005/chacinanabaixadafluminense/vigario_geral.shtml
Filme:
ÔNIBUS 174, dir. José Padilha, Brasil, 2002.