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Ônibus 174 e o clamor por visibilidade: Discursos e sentidos

Ana Paula Penkala
Doutoranda PPGCOM UFRGS

Resumo:
Este artigo propõe uma análise de Ônibus 174, documentário brasileiro de 2002 realizado por José 
Padilha, considerando como premissa sua “proposta” de dar a ver mazelas e os excluídos de uma 
sociedade.   Assumindo  tais  coisas  como  um  “dever  social”,  o   filme  parece  construir  dois  sub­
discursos: a) o de que a mídia não faz esse papel; e b) o de que as pessoas não enxergam esses 
excluídos  e  essas  mazelas.  A  partir  disso,  farei  uma  reflexão  sobre  as  marcas  discursivas  que 
constroem os sentidos de “clamor por visibilidade” que circulam no filme, como e onde elas se 
constituem. Para tanto, uso um esquema metodológico da Análise de Discurso de linha francesa.
Palavras­chave: Visibilidade; Documentário; Discurso.

1 Introdução

Existe um idéia que parece predominar na prática cinematográfica brasileira que diz respeito a um 

certo "dever social" de dar a ver ao próprio brasileiro – e ao mundo – nossas mazelas sociais e 

nossos excluídos e marginalizados, o que é notado pela grande quantidade de histórias de violência e 

pobreza que circulam em nossa cinematografia. Como diria Jean­Claude Bernardet (1985), “há 

nesses filmes não só um interesse social por aqueles que são praticamente excluídos da sociedade e 

vivem na miséria, mas há também uma ternura, uma emoção cheia de dignidade, uma compaixão 

sincera e comovente” (p. 185). Quando assume esse "dever social", o filme parece construir dois 

sub­discursos: a) o de que a mídia não faz esse papel (o da empatia para com os excluídos, ou ao 

menos o interesse); e b) o de que as pessoas não enxergam esses excluídos. Por um outro lado, há 

um fenômeno de midiatização que provoca uma hiperprodução de imagens (especialmente as que 

podem ser colocadas sob o signo da bizarria e do inusitado) que lota o cotidiano daqueles que vivem 

a experiência pós­moderna. Ônibus 174, documentário de José Padilha lançado em 2002, é um dos 

recentes filmes brasileiros que funcionam dessa maneira: visibiliza realidades de exclusão, violência 

e   miséria  e,   em  vários  momentos,  deixa  que  vejamos  o   processo  de  documentação  imagética 

alimentado por uma sociedade cada vez mais ávida por registros e que dá a muitos dos “invisíveis” 

sociais  a   estranha  –   ainda   que  bem  justificada  –   ilusão  de   que  o   reconhecimento  passa  pela 
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midiatização. Assim, reiterando o sentido de clamor por visibilidade que emerge desses excluídos, 

Ônibus 174 acaba proporcionando uma problematização a respeito do olhar, e afirmando a natureza 

primordial do cinema que é, simplesmente, dar a ver realidades (inventadas ou reais).

Neste artigo proponho uma reflexão sobre esses movimentos que o documentário de Padilha 

opera e os sentidos que podem ser depreendidos do filme nesse processo, analisando­o a fim de 

responder às seguintes questões: Quais são as marcas discursivas que constroem tais sentidos em 

Ônibus 174? Como eles são construídos? Que efeitos eles têm? Para tanto, parto dessa premissa 

básica, que é a de que o cinema brasileiro tradicionalmente procura visibilizar mazelas e excluídos; 

e de outra premissa, a de que há um discurso maior percebível no filme, que é o do clamor por 

visibilidade que emerge desses excluídos. Para amarrar minha problematização e análise, uso um 

esquema metodológico da Análise de Discurso de linha francesa.

2 Ônibus 174, o caso e o filme

Quando o documentário Ônibus 174 foi lançado, dois anos já haviam se passado desde o evento que 

lhe serve de referente real, ocorrido em junho de 2000, na cidade do Rio de Janeiro. Amplamente 

documentado   pela   mídia   televisiva   e   pelos   meios   impressos,   o   Caso   do   Ônibus   174   ficou 

profundamente  marcado   pela   exaustiva   cobertura   televisiva   e   pelo   tratamento   recebido   pelo 

“protagonista”   desse  drama,  Sandro  do  Nascimento,  o   seqüestrador.   Na  época,  Sandro  ganhou 

contornos de vilania quase folhetinesca por parte de jornais impressos e noticiosos televisivos, como 

o noticiário Jornal Nacional (JN), que espetaculariza a vitimização das reféns e constrói Sandro 

como drogado e “endemoniado”, assim como alguns jornais impressos (ROCHA, 2004). Segundo 

Rocha (2004), omite­se totalmente da cobertura feita pelo JN nos primeiros dias após o evento a 

informação de que Sandro foi um dos sobreviventes da Chacina da Candelária, em 1993, na qual 

oito crianças de rua foram assassinadas por policiais.

No início da tarde de 12 de junho de 2000, Sandro do Nascimento, 21 anos, invadiu um 

ônibus na avenida Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, com o objetivo de fazer um assalto. 

Sem opções de fuga, resolveu fazer reféns para negociar sua vida. O seqüestro, findo às 18h50, 

terminou com duas mortes. Pela cobertura jornalística da época, Sandro teria atingido a refém que 
3

lhe  servia  de   escudo,  Geísa  Gonçalves,  com  vários  tiros,  matando­a  e,   após  ser   levado  pelos 

Policiais Militares até o camburão, teria morrido por asfixia mecânica1. O documentário usa, além 

de  depoimentos  de  personagens  envolvidos  no  caso  e  especialistas  ou  pessoas  relacionadas  ao 

seqüestrador,   imagens  captadas  por  várias  redes   de  televisão  (TV  Globo,   Bandeirantes  e  Rede 

Record) compradas pelo documentarista (ROCHA, 2004). Antes dos créditos finais, o documentário 

expõe informações oficiais sobre o caso que referendam o ponto de vista que permanece durante as 

quase duas horas de filme: a história não aconteceu exatamente como foi exposta à época. Isso 

contribui para que se pense – e esse artigo é construído sobre essa premissa – que o documentário 

Ônibus 174 vem para esclarecer aquilo que foi mal informado e, principalmente, dar a quem viu e 

ouviu sobre o caso a versão daquele que não tem mais voz: Sandro.

3 Contextos, discursos e sentidos

O trabalho de analisar o filme de José Padilha a partir do método da Análise de Discurso, e usando 

seus conceitos, teve início em uma série de “primeiras observações” do documentário, das quais 

foram surgindo, enfatizados ou sutilmente, vários sentidos centrais. Um desses sentidos é o óbvio 

clamor por visibilidade  social (para os excluídos), algo que se faz presente principalmente nos 

depoimentos  de   Luis  Eduardo  Soares,   sociólogo2.   A  partir  dessa  percepção,  em   um  constante 

movimento entre o filme e as problematizações, outros sentidos foram sendo observados e outras 

marcas foram sendo pinçadas do discurso que é Ônibus 174. Um desses outros sentidos é a questão 

própria da visibilidade, porém não social, no sentido de um chamado a enxergarmos os excluídos, 

mas uma visibilidade midiática, que faz parte do tratamento do evento “seqüestro do ônibus 174” 

como um espetáculo, no sentido primordial de espetáculo, ou seja, como aquilo que se presta à 

exposição  e   ao   espéculo   do   olhar  humano.   Assim,  a   partir   desses  dois  eixos   de  significação, 

proponho a observação e análise de Ônibus 174.

3.1 Um método para compreender Ônibus 174

Compreender Ônibus 174 em seus sentidos é compreender o filme enquanto discurso que produz e 
1 Cf. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u64384.shtml>.
2 Não há identificação do sociólogo, nem de sua profissão, no filme. A identificação é minha.
4

faz circular tais sentidos, os quais serão aqui destacados, reconhecidos, organizados e entendidos 

através da Análise de Discurso (AD). Essa afirmação não propõe que existam sentidos únicos os 

quais emanam do texto fílmico, nem que alguém os tenha “plantado” no discurso analisado. “Não 

há uma verdade oculta atrás do texto. Há gestos de interpretação que o constituem e que o analista, 

com seu dispositivo, deve ser capaz de compreender.” (ORLANDI, 2001, p. 26) Para Orlandi (op. 

cit.), o objetivo da AD é entender como um objeto produz sentidos e como os sujeitos produtores 

desse discurso investem nesse objeto e depreendem dele sentidos, os quais, como afirma Bethânia 

Mariani (1999), “[...] não estão presos ao texto nem emanam do sujeito que lê, ao contrário eles 

resultam de um processo de inter­ação texto/leitor” (p. 106).

Parto das primeiras abordagens do objeto geral de observação (o documentário de Padilha) 

para, ao problematizá­lo, dar início ao gesto de interpretação que se constitui na ação analítica 

proposta   neste   artigo.   É   pertinente   lembrar,   neste   momento,  que   aquilo  que   irá   submergir   do 

discurso  que  analiso   é   de   minha  responsabilidade  e   provocado   unicamente  por  mim   enquanto 

pesquisadora, como bem afirma Orlandi (2001). Para que  Ônibus 174  seja compreendido, nesses 

termos,   é   preciso   que   o   consideremos   como   um   texto   “[...]     histórico   e   subordinado  aos 

enquadramentos  sociais  e   culturais”  (BENETTI,   2007,   p.   108),  isto   é,   dentro  de   um   contexto 

histórico e de produção dado. O sistema de significação que afeta os discursos, segundo Benetti, 

“[...] é formado pela língua, pela cultura, pela ideologia e pelo imaginário” (2007, p. 109).

3.2 Cultura, Ideologia e Imaginário: Um contexto para compreender Ônibus 174

O documentário de Padilha, enquanto parte de uma cultura, deve ser analisado como produto de uma 

produção cinematográfica nacional  que  tradicionalmente dá a ver  e faz  circular sentidos sobre a 

pobreza e a violência difundidas na sociedade brasileira, quase sempre dando aos excluídos a voz que 

não lhes é dada nas mídias tradicionais e em seu próprio cotidiano. Ônibus 174 é parte de uma tradição 

que  inclui   filmes  ficcionais  e   documentais  como  os  do  Cinema  Novo   dos  anos  60,  do  Cinema 

Marginal dos anos 70 e dos recentes produtos da cinematografia brasileira, os quais evidenciam, por 

suas temáticas e linguagem, uma proposta de “retratar” realidades sociais3  como a periferia e as 

3 A esse respeito, ver PENKALA, 2006.
5

favelas nas grandes cidades, a criminalização da pobreza e a violência contra e dos excluídos.4

Tais movimentos cinematográficos, enquanto manifestações audiovisuais da cultura, tratam 

de um universo de significados que nos constituem enquanto nação e povo. Um desses significados 

diz  respeito  aos  excluídos,  sujeitos  que,  em  nosso  País,  são  marcados  principalmente  por  dois 

estigmas: o da pobreza e o da diferença de cor, ou de “raça”5, como é comumente dito. Sandro, 

protagonista desse documentário, é negro, pobre, favelado, ex­menino de rua e ex­detento. Soma­se, 

nesse indivíduo, toda a carga simbólica do indesejável social, daquele que não se quer enxergar, do 

inefável, como dirá Bauman (2007).

Esses filmes fazem circular um imaginário próprio da cultura onde pobres e negros são 

quase sempre marcados pela invisibilidade ou pela criminalização, quando não por estereótipos 

ainda  mais  barbarizantes6.   Há,  como  afirma  o  sociólogo   francês  Loïc  Wacquant  (2001a),  uma 

ditadura sobre os pobres (e sobre os negros) que atravessa a sociedade brasileira, muitas das vezes 

materializada na realidade de que eles são maioria entre as vítimas do sistema prisional nacional e 

suas mazelas: “É o estado apavorante das prisões do país, que se parecem mais com campos de  

concentração para pobres, ou com empresas públicas de depósito industrial dos dejetos sociais [...]” 

(WACQUANT, 2001, p. 11, grifo do autor). Negros e pobres superlotando as cadeias e presídios 

fazem parte da imagem que a nação faz de si própria. Como afirma Sodré (1992), “negros, de 

preferência, são os escolhidos pelos policiais para as revistas periódicas em ônibus [...]” (p. 114). A 

ideologia que vem por trás dessa cultura e imaginário e a ideologia que fundamenta essas produções 

4 Prevaleceu, nos anos 60, o discurso sobre a fome e a tragédia social localizada no sertão nordestino, resumida em 
filmes como Deus e o Diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 
1963). No Cinema Marginal, a desigualdade e os restos de um processo de industrialização mal feito eram o 
fundo de histórias sobre a perda de valores nas grandes cidades brasileiras. O lixo e a abjeção foram temas 
dominantes nesse período, a exemplo de ícones como O Bandido da Luz Vermelha (Rogério Sganzerla, 1968) e 
Hitler  no   Terceiro   Mundo  (José   Agripino   de   Paula,   1970).   Nos   anos   90   e   2000,   a   miséria,   a   violência,   a 
criminalidade e a exclusão são temas de documentários – Notícias de uma guerra particular (João Moreira Salles 
e Katia Lund, 1999), Ônibus 174 (José Padilha, 2002) e O prisioneiro da grade de ferro (Paulo Sacramento, 2003) 
– e filmes de ficção (ainda que baseados em fatos reais) – Carandiru (Hector Babenco, 2002), Cidade de Deus 
(Fernando Meirelles, 2002) e Central do Brasil (Walter Salles, 1997). Sobre isso, cf. PENKALA, 2006.
5 Uso aqui “raça”, “racismo” e outros derivados entre aspas pois compreendo, como diz Stuart Hall, essa 
categoria como algo sem cientificidade. O conceito de “raça”, para o autor, é “[...] uma construção política e 
social. É uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de 
exploração e exclusão – ou seja, o racismo” (2003, p. 69).
6 A esse respeito, ver RODRIGUES, João Carlos. O negro brasileiro e o cinema. Rio de Janeiro: Pallas, 2001.
6

cinematográficas também passa por essas questões. No cerne desse discurso que criminaliza pobres 

e negros, e do discurso que denuncia essas desumanidades, está a questão da luta de classes e da 

política de exclusão de estranhos de que fala Bauman (2005; 2007). De um lado, a construção de um 

imaginário que criminaliza negros e pobres, de outro, um discurso cinematográfico que se propõe a 

entender esse outro, a mostrá­lo, a reconhecê­lo. 

3.3 Formações discursivas: os sentidos nucleares em Ônibus 174

O   texto   (aqui,   fílmico),   onde   se   materializa  um   discurso,   possui   duas   camadas  –   a   camada 

discursiva, mais evidente, e a ideológica, que emerge quando se aplica sobre ela o método da AD 

(BENETTI, 2007). Essa segunda camada é a da motivação externa ao texto, que diz respeito à 

ideologia que funda o discurso e também, como observa Benetti (Idem), ao imaginário que lhe é 

anterior.   Para   analisar   o   discurso  do   texto  Ônibus   174,   identifico   no   filme   duas   formações 

discursivas principais que podem responder à pergunta de pesquisa já estabelecida e que dizem 

respeito  ao  sentido  geral  sobre  a  visibilidade.  Essas  regiões  de  sentidos  que  são  as   formações 

discursivas   (FDs)   devem   ser   limitadas  a   um   sentido   nuclear,   formado  por   significados  que  o 

consolidam e constroem (BENETTI, 2007).

Organizo minha análise, portanto, sobre dois núcleos de sentido: FD1) Visibilidade Social e 

FD2) Visibilização Midiática. Essas FDs foram organizadas a partir das primeiras observações do 

filme e das premissas gerais apresentadas aqui anteriormente, as quais provocaram uma exposição 

dos sentidos mais lapidados que são as FDs com as quais irei trabalhar daqui para frente. Dentro de 

cada FD estarão relacionadas as seqüências discursivas (SDs) selecionadas do filme e que expõem, 

de alguma forma, marcas discursivas relacionadas ao sentido nuclear da FD correspondente. As 

SDs, numeradas, indicarão o tempo do filme em que foram encontradas e uma breve exposição ou 

descrição dessa seqüência7. Os trechos de falas ou escritas provenientes do filme serão apresentados 

entre   aspas.  Para   melhor   organização  do   trabalho   de   análise,   cada  fala  foi   identificada  como 

pertencendo a um locutor, que é o indivíduo que a profere. Considerando que o filme não identifica 

7 O tempo será indicado aproximadamente, já que pode mudar conforme o suporte ou aparelho em que é 
visualizado o filme. É recomendável que a marcação das SDs sirva de guia para que cada leitor deste artigo 
as visualize no filme, uma vez que a tradução de um filme ou seqüência de não é a mesma coisa que o 
próprio filme, ainda que este seja o único recurso aqui disponível.
7

seus entrevistados, os locutores foram identificados conforme indicações em suas próprias falas 

(como, por exemplo, “Locutora Refém 1”) ou, ainda, apresentados como não identificados. Depois 

da exposição das SDs é que será feita a análise de sentidos de cada seqüência e formação, com base 

em autores que formam a base ideológica a partir da faço minha análise.

4 Os sentidos em Ônibus 174

4.1 Observação
FD 1 – Visibilidade Social
SD1 – 10s – Panorâmica aérea sobre o mar do Rio de Janeiro. Quando chega à terra, mostra uma grande 
favela. Música de fundo dramática.
SD2 – 1min59s – Panorâmica aérea. Atrás de uma montanha, uma favela maior ainda. 
SD3 – 2min7s – Começa­se a ouvir falas em off8. Depoimentos que falam de como é a miserabilidade da 
própria vida enquanto a panorâmica9  aérea vai adentrando a cidade, passando por bairros de classe 
média.
SD4 – 6min35s – Imagens do local do seqüestro, onde um policial do Bope10 conversa com o seqüestrador 
que está dentro do ônibus. Locutor Policial 1, em off: “... eu designei um nome pra ele. Falei: 'Seu nome 
vai ser Sérgio, tá ok, Sérgio?', aí ele: 'Tudo bem. Então tá, meu nome é Sérgio. Pode me chamar de 
Sérgio' ...”. Corta para Locutor Policial 1 em estúdio: “... Até aquele momento eu não sabia, ninguém 
sabia, que ele era o Sandro”.
SD5 – 6min46s ­ Corta para panorâmica aérea da cidade. Aproxima­se de uma favela pequena enquanto uma 
mulher, Locutora Assistente Social Yvonne (em off) conta uma história sobre Sandro – a infância dele. 
Corta: enquadramento de Yvonne: “... então esse menino ficou sozinho”. Corta para panorâmica aérea 
da favela, que chega até a orla de Copacabana, enquanto Yvonne diz que Sandro foi para a rua, na Zona 
Sul, onde os meninos passam menos fome, pois lá há mais turistas.
SD6 – 13min5s – Vemos Sandro enrolando o rosto com um pano através da janela do ônibus, Locutora 
Refém 1, em off, fala sobre como ele escondia o rosto, com a toalha ou o casaco dela.
SD7 – 17min57s – Dois meninos de rua com camisetas no rosto. Locutor “Especialista”, em  off: “Esse 
Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que eventualmente emergem e tomam a cena...”. Corta pra 
rosto do locutor: “...e nos confrontam com a sua violência, que é um grito desesperado, um grito 
impotente”. Corta para uma avenida, onde três meninos fazem malabarismo para motoristas parados no 
sinal fechado (repete música dramática do início).
SD8 – 18min28s – Locutor “Especialista”, em off: “A nossa incapacidade de lidar com os nossos dramas, 
com   a   exclusão   social,   com   o   racismo,   com   as   estigmatizações   todas   (...).   Nós   convivemos   (...) 
tranqüilamente com os Sandros, com as tragédias, com os filhos das tragédias, com as extensões das 
tragédias. Isso se converteu em parte do nosso cotidiano”. Nesse momento os malabaristas passam entre 
os carros de janelas fechadas, onde os motoristas viram o rosto. Corta para novos malabarismos, o Pão 
de Açúcar ao fundo.
8 O som em off é aquele que tem origem fora de campo, ou seja, em algo ou alguém que não está enquadrado.
9 Movimento de câmera sobre seu eixo. Pode ser vertical ou horizontal. Normalmente tem função descritiva.
10 Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar.
8

SD9 – 18min55s – Meninos malabaristas, Locutor “Especialista”, voz em off: “A grande luta desses meninos 
é contra a invisibilidade. Nós não somos ninguém e nada se alguém não nos olha, não reconhece o 
nosso valor, não preza a nossa existência (...). Não devolve a nós a nossa imagem ungida de algum 
brilho, de alguma vitalidade, algum reconhecimento...”. Meninos passam pelos carros e ninguém os 
olha, o rosto deles está desfocado. “... esses meninos estão famintos de existência social, famintos de 
reconhecimento.” Menino, rosto desfocado, se aproxima da câmera.
SD10 – 19min30s – Menino com a camiseta no rosto, Locutor “Especialista”, em  off: “O menino negro, 
pobre, qualquer menino, nas grandes cidades brasileiras transita pelas ruas invisível...”. Corta para 
imagem de menina negra, rosto desfocado. “... há duas maneiras de produzir a invisibilidade. Esse 
menino é invisível porque nós não vemos, nós negligenciamos a sua presença, nós o desdenhamos...”. 
Corta para imagem de menino tapando a metade do rosto com uma camiseta. “... Ou porque projetamos 
sobre ele um estigma, uma caricatura, um preconceito...”. Corta para imagem de outro menino que 
esconde  todo o  rosto. “...  Nós só  vemos  o que nós  projetamos,  a  caricatura  que nós  com nossos 
preconceitos projetamos”. Vários meninos com o rosto tapado ou desfocado.
SD11 – 20min – Locutora Moradora de Rua 1, em off: “Eles tão vendo a gente como marginal, mas aqui não 
tem marginal não. A gente corre atrás de nossa sobrevivência, mano...”. Corta para policiais. Corta para 
Sandro com o rosto tapado.
SD12 – 20min20s – Moradora de Rua com o rosto desfocado diz: “A sociedade que enxerga a gente com 
outro rosto, porque se eles enxergassem a gente com o rosto que eles mesmos bota a imagem na gente, a 
gente não vai a lugar nenhum”.
SD13 – 24min – Panorâmica aérea, morro com antenas de rádio­televisão, Locutora Refém 2, em off: “Eu 
acho que a televisão permitiu que ele se sentisse poderoso, na medida em que ele sabia que ele estava 
sendo filmado e queria ser filmado”. Ainda panorâmica aérea, Locutora Yvonne, em off: “Ele jogou e 
jogou muito bem jogado. Mas ele sabia o que que ia acontecer se ele fosse pego, então ela a maneira de 
ele também se proteger”. Ainda panorâmica, Locutor Policial 2, em  off: “A mídia é algo que traz 
confiança ao seqüestrador. É a certeza que eu não vou ser executado, morto”. Mesma panorâmica, 
Locutora Refém 2, em  off: “O prolongamento daquela situação também servia como um espaço de 
significar alguma coisa para alguém, como um espaço de mostrar que ele tinha poder, de mostrar que 
ele existia, enfim. E isso era uma coisa tão fundamental quanto resolver a situação e sair dali vivo. 
Então,   nesse   sentido,   as   câmeras   de   televisão   importavam   para   ele”.   Ainda   panorâmica,   Locutor 
“Especialista”, em off: “Ali o Sandro nos despertou a todos nós em todas as nossas salas de visita...”. 
Corta   para   enquadramento   do   Locutor   “Especialista”:   “...   Ele   impôs   a   sua   visibilidade,   ele   era 
personagem de uma outra narrativa, ele redefiniu de alguma maneira o relato social, um relato que dava 
a   ele   sempre   uma   posição   subalterna,   de   repente   é   convertido   numa   narrativa   na   qual   ele   é   o 
protagonista”.
SD14 – 25min40s – Refém 3 escreve uma mensagem na janela frontal do ônibus. Locutor “Especialista”, em 
off: “Esse menino com essa arma pode produzir em nós, em um outro qualquer, um sentimento, que é o 
sentimento do medo. Um sentimento negativo, mas um sentimento. Através do qual ele recupera a 
visibilidade, reconquista a presença, reafirma a sua existência social e a sua existência humana...”. Corta 
para Refém 3 escrevendo em outra janela, Locutor “Especialista”, em off: “... Há um processo aí, de 
auto­constituição, uma estética da auto­invenção que se dá pela mediação da violência, da arma, de um 
modo perverso, uma espécie de pacto fáustico*, em que um menino troca o seu futuro, a sua vida, a sua 
alma, por assim dizer, por esse momento efêmero, fugaz, de glória, a pequena glória de poder ser 
reconhecido, de ter algum valor, de poder prezar sua auto­estima...”.  (*) Enquanto a Refém 3 escreve na 
janela: “Ele tem pacto com o diabo”. 
9

SD15 – 35min57s – Sandro na janela do ônibus: “Pode me filmar legal, Brasil. Se liga só: tava lá na 
Candelária, o bagulho é sério, mataram os irmãozinho na maior judiaria (...) quero que me filme da 
forma que cê tá filmando aí”.
SD16 – 41min10s – Sandro dentro do ônibus, Locutor “Especialista”, em  off: “Se nós acrescentarmos à 
invisibilidade o drama natural da adolescência, nós compreenderemos o quão difícil é esse trânsito, essa 
trajetória desse menino, um Sandro qualquer da vida pela cidade, esse ser invisível”.
SD17 – 1h8min52s – Locutora Mãe “Adotiva”: “Ele sempre falava: 'Eu tenho que ser alguma coisa na vida. 
Eu tenho que ser um artista, eu tenho que ser alguma coisa na vida'”.
SD18 – 1h9min34s – Sandro na janela do ônibus, Locutora Yvonne, em off: “Ele disse pra mim: 'Olha, tia 
Yvonne, eu tô cansado dessa vida, não agüento mais...'”. Corta para Yvonne: “'... Eu queria trabalhar, 
mas quem é que vai me dar um emprego? A senhora olhe pra mim e vê se alguém vai me dar um 
emprego. (...) eu vou fazer o quê da minha vida a não ser isso que eu faço? Quem é que vai me dar uma 
chance? Ninguém. Ninguém nunca deu!'”.
SD19 – 1h9min50s – Primeiro plano11 da TV desligada na casa da Locutora Mãe “Adotiva”, que diz, em off: 
“Ele   falava   que   eu   ainda   ia   ver   ele   na   televisão...”.   Corta   para   enquadramento   da   Locutora   Mãe 
“Adotiva”: “... Fazendo sucesso. (...) Eu falei pra ele: 'Eu espero que eu quero ver você fazendo sucesso 
e você também vendo. E ele: 'A senhora vai ver. Mas se eu não ver, a senhora vai ver'”.
SD20 – 1h23min20s – As portas de uma cadeia são abertas, a câmera passeia pela cadeia, Locutores Presos, 
em off: “O espaço de três aqui tem onze”. Câmera mostra Locutor Preso: “No Brasil nada funciona. A 
realidade é muito triste, amigo. O que cês tão vendo aqui não é nem um terço da realidade”.
SD21 – 1h34min20s – Foto de infância da família de Sandro. 
SD22 – 1h45min20s – Câmera hiperlenta do momento em que um atirador do Bope se aproxima para atirar 
em Sandro. Mostra que o tiro do policial faz levantar os cabelos de Geísa. Corta para outro ângulo da 
mesma cena com o tiro atingindo Geísa. Vê­se a mão de Sandro abaixo da linha do tiro que atingiu 
Geísa. O tiro do policial do Bope é repetido de vários ângulos.
SD23 – 1h50min55s – Policiais do Bope levam Sandro para o camburão. Uma câmera mostra, através da 
janela da viatura, o momento em que os policiais sufocam Sandro. Locutor Ex­Detento (conhecido de 
Sandro), com o rosto coberto por uma meia, em off: “O cara morreu aqui no Jardim Botânico na cara de 
todo mundo. Milhares de pessoas viram. O Brasil inteiro viu ele morrendo”.
SD24 – 1h51min – Policiais sufocam Sandro, de outro ângulo.
SD25 – 1h54min15s – Plongée12 de ônibus sendo escoltado pela avenida, Locutor “Especialista”, em off: “À 
polícia cabe o trabalho sujo que a sociedade não quer ver mas que em algum lugar obscuro do seu 
espírito deseja que se realize. Que se anulem os Sandros, que os Sandros desapareçam das nossas vistas. 
Nós não queremos ver essa realidade, não podemos suportar essa realidade. Então a invisibilidade é, 
afinal, reconquistada, pela produção policial da invisibilidade. Através da anulação que a morte gera”.
SD26 – 1h57min15s – Letreiro: “Segundo o relatório oficial, Geísa levou quatro tiros: um no rosto, disparado 
pelo policial, e três nas costas, disparados por Sandro. Os policiais que levaram Sandro para o camburão 
foram acusados de homicídio e absolvidos por júri popular. Eles continuam na ativa na polícia do Rio”.

FD 2 – Visibilização Midiática

11 Enquadramento dos ombros ao topo da cabeça. Pode ser usado também para objetos e animais próximos à 
câmera.
12 Enquadra ação, objeto ou personagem do alto para baixo. O contrário é chamado de contre­plongée.
10

SD1 – 5min6s – Tomada aérea de um ônibus parado, ao lado de uma viatura da polícia, Locutor Jornalista 1, 
em off, diz que a televisão havia começado a transmitir imagens do seqüestro de um ônibus na avenida 
Jardim Botânico. Corta para Locutor Jornalista 1: “Imediatamente o jornal mandou... quase toda a 
equipe foi deslocada pra lá”.
SD2 – 5min46s – Imagem da avenida, textura de transmissão televisiva (com marcação de tempo, data, 
local). No canto superior esquerdo está escrito “VIVO”. Esse tipo de imagem aparece em várias outras 
ocasiões durante o filme.
SD3 – 10min53s – Locutor Jornalista 2, começa com voz em off e termina de falar enquadrado, dizendo que 
estava na rua quando viu um comboio do Bope e saiu atrás deste com o carro da reportagem.
SD4 – 13min47s – Sandro, através da janela frontal do ônibus, ameaça as câmeras com a arma apontada. 
Locutora Refém 1, em off: “[ele dizia] 'tirem aquele cara dali'”. Ele não queria fotógrafos ou câmeras, 
diz ela.
SD5 – 14min30s – Repórter, com microfone na mão, prepara­se para falar para as câmeras. Locutor não 
identificado, em off, diz que existiam pessoas da imprensa chegando cada vez mais perto para obterem 
melhores informações e imagens. Corte para curiosos em torno do ônibus.
SD6 – 15min10s – Sandro atira para a frente do ônibus sem querer. Locutor Jornalista 2 entra em off e depois 
aparece em campo: “Risco de vida ali era meu e das dezenas de pessoas que estavam ali do meu lado. 
Se ele tivesse dado outro tiro pra frente do ônibus a bala viria em nossa direção”.
SD7 – 15min29s – Policial Militar tapa a lente da câmera com uma mão.
SD8 – 23min50s – Janela frontal do ônibus com a frase “Ele vai matar geral às 6h” escrita com batom, 
Locutora Refém 3, em off: “Eu tive a sensação de que o mundo estaria vendo aquilo...”. Corta para 
panorâmica aérea de morro carioca com antenas de transmissão de sinais de televisão, com o Cristo 
Redentor ao fundo. “... Seria retransmitido”.
SD9 – 27min3s – Sandro coloca o rosto na janela do ônibus e diz: “(...) o bagulho vai ficar sério mesmo, 
pode olhar pra minha cara mesmo, marcar a minha cara mesmo (...) pode filmar, todo o Brasil olhar 
mesmo, eu vou botar a chapa prá esquentar nessa porra! (...)”.
SD10 – 28min – Sandro coloca o rosto por outra janela do ônibus e diz: “Isso aqui não é filme de ação não, hein? 
Aqui o bagulho é sério, mermão! (...) Não botaram a chapa prá esquentar lá em Vigário? (...) Não mataram 
os irmãozinho da Candelária? Eu tava lá, não tava lá não?”. Depois disso há uma seqüência em que se fala 
do que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, de que Sandro fora sobrevivente, em 1993.
SD11 – 54min48s – Sandro está com a cabeça para fora da janela do ônibus, Locutor Policial 2, em off, diz 
que um tiro de sniper seria a solução ideal. Locutor Policial 2 enquadrado: “Logicamente, ao vivo, pra 
todo o Brasil, iria resultar talvez ali em meio quilo de massa encefálica sendo projetada nos vidros do 
ônibus. Eu não gostaria de ver isso...”. Corta para imagem do ônibus. “... Meus parentes em casa 
também não gostariam de ver uma cena dessas (...)”.
SD12 – 1h8min52s – ver FD1, SD17.
SD13 – 1h09min50s – ver FD1, SD19.
SD14 – 1h43min – Sandro sai do ônibus com Refém 4, Geísa, como escudo. Imagens em câmera muito lenta, 
vistas por vários ângulos. Flashs de câmeras fotográficas iluminam a cena.
SD15 – 1h43min50s – Imagens da saída de Sandro e Geísa do ônibus, Locutor Não­identificado, em off: 
“(...) na frente de todas as câmeras. Quem ia matá­lo ali na frente de todas as câmeras de televisão? Na 
cabeça dele? Ninguém.”. Corta para câmera hiperlenta do momento em que o policial do Bope faz uma 
aproximação para atirar em Sandro. Ver FD1, SD22.
11

SD16 – 1h48min58s – Imagens da correria das pessoas em direção ao local onde estava Sandro e os policiais, 
Locutor Jornalista 2, em  off: “Foi só o tempo de eu tirar a câmera do tripé e sair correndo que a 
multidão passou por cima pra tentar linchar o Sandro”.
SD17 – 1h50m27s – Imagem com “VIVO” no canto superior esquerdo mostra um cinegrafista segurando seu 
equipamento. Em 1h51min55s, sem “VIVO”, cinegrafistas e fotógrafos vão atrás do camburão onde 
está Sandro para mostrar tudo.
SD18 – 1h52min59s – Ônibus em plongée, Locutor Não­identificado, em off: “O pessoal que tava ali tava 
querendo ver um espetáculo, e o espetáculo dizia o seguinte, que o final é a morte do bandido. Isso é 
coisa comum na nossa sociedade”.
SD19 – 1h53min58s – Ônibus, em plongée, é escoltado por viaturas pela avenida. Locutor Ex­Detento, com 
a meia cobrindo o rosto, em off: “Como na maioria das vez tem gente olhando, eles não mata”.

4.2 Interpretação: compreendendo os sentidos de Ônibus 174

FD 1 – Visibilidade Social

No início de Ônibus 174, as panorâmicas sobre a cidade do Rio de Janeiro já denunciam um estado de 

coisas: as muitas e grandes favelas dividem o espaço de cartão postal com bairros de classe média repletos 

de enormes piscinas. Como se pode observar nas SDs 1, 2, 3 e 5, o filme já inicia visibilizando a grande 

desigualdade social que se expressa na própria geografia dessa cidade, que é o cenário do drama (um 

drama sugerido já no  tom da música de abertura)  protagonizado  por Sandro  do Nascimento. Usar a 

paisagem   de   cartão   postal   do   Rio  de   Janeiro   é   uma   forma   de   dizer  que   a   tão   visibilizada  cidade 

maravilhosa é também aquela das favelas que ninguém quer ver (mas que estão aí, proliferam­se, ganham 

vulto). As favelas, como diz Wacquant (2001b) são como depósitos espaciais para exilar categorias sociais 

indesejáveis. Quando, na SD5, a Locutora Yvonne fala que Sandro vai para Copacabana, onde passa menos 

fome, o que vemos é o cenário de novela que povoa o imaginário brasileiro, a praia símbolo da classe 

média carioca. Lá, quem dá comida aos meninos de rua são os turistas. Esses enxergam a pobreza das 

crianças do Rio de Janeiro, mas talvez apenas como interesse pelo exótico, como o diria Glauber Rocha 

em seu Manifesto da Estética da Fome (ROCHA, 1981) ou Susan Sontag (2003), ao falar das atrocidades 

que vemos e que são sempre “dos outros”. Nesses termos, Sandro era apenas mais um dos estranhos fora 

de lugar da sociedade que almeja a limpeza: “Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa 

cognitivo,   moral  ou  estético  do  mundo  [...]”,   diz   Bauman  (1998,  p.   27),   então  todas  as   sociedades 

produzem esses estranhos.

Em   certos   momentos,   ao   contrário   de   visibilizarem­se,   ou   clamarem   por   isso,   os 


12

criminalizados negam sua visibilidade como forma de proteção. No início do seqüestro, Sandro 

tentava, de todas as maneiras, esconder seu rosto, como se vê nas SDs 6 e 11. Quem esconde o rosto 

está ciente de que sua visibilidade, em determinado contexto, é perigosa, a não ser pelas identidades 

protegidas, como os desfoques destacados nas SDs 9, 10 e 12. Menores de rua escondem seu rosto 

com suas roupas (SDs 7 e 10), em um auto­reconhecimento como criminosos, como criminalizáveis. 

Quando o Locutor “Especialista” diz (SD9) que não somos ninguém se não nos é devolvida a 

própria   imagem   ungida   de   brilho,   está   também   fazendo   referência   à   imagem   que   esses 

marginalizados, ainda que não exatamente criminosos, fazem de si, que é a imagem que projetamos 

sobre eles. Na SD11 a fala da Locutora Moradora de Rua exemplifica isso (ela também com o rosto 

desfocado), negando­se a aceitar a criminalidade que lhe é imposta por uma projeção do imaginário 

social. É a criminalização da pobreza de que fala Wacquant (2001a) sobre as prisões no Brasil.

A criminalização que o documentário de Padilha tematiza não é exatamente a de Sandro 

enquanto assaltante e seqüestrador, mas a criminalização de uma massa de Sandros que, como ele, 

já são estigmatizados desde muito pequenos. O estigma é uma marca, é uma mancha que se projeta 

sobre alguém, para distinguir, mas também para condenar, para transformar em rótulo aquilo que 

nem sempre é a verdade. O estigma é um conceito abstrato, mas que evoca a imagem. O Locutor 

“Especialista” discorre sobre isso sempre que fala nos meninos de rua (SDs 8 e 10). Sandro é um ex­

menino de rua, e como tal, marcado entre os marginais e os perigosos, as ameaças. Yvonne, a 

Locutora  Assistente   Social,   menciona   que   Sandro   queria   trabalhar,   mas   não   tinha   esperanças 

(SD19): “olhe pra mim e vê se alguém vai me dar emprego”, ele diz, pedindo que ela meça o nível 

de estigmatização que decai sobre sua figura, a de um jovem negro e pobre. Aqui, o clamor de 

Sandro por visibilidade é uma ironia que diz da imagem auto­imputada, uma imagem projetada 

pelos outros e aceita. A única visibilidade é a da medida do estigma. No filme, a foto de infância de 

Sandro (SD21) funciona como um oposto contundente dessa infância que tapa o rosto e dá a esse 

personagem estereotípico (o bandido, o perigoso) a dimensão de igualdade com todos aqueles que 

um dia tiveram uma foto de infância, símbolo de um tempo feliz, na grande maioria das vezes. 

Sandro, portanto, não é um monstro. Ele foi uma criança um dia.

Na maioria das vezes, no entanto, o estigma é grande o suficiente para não querer ser visto, e 
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produz a invisibilidade, sentido que é talvez maior que todos em Ônibus 174. Luis Eduardo Soares, o 

Locutor “Especialista”, enfatiza isso em seu depoimento (SDs 7, 8, 9, 10, 14, 16 e 25). Esses 

invisíveis,   inefáveis,   são   os   que   tomam   para   si   a   cena   social  conforme   lhes   é   dada   alguma 

oportunidade: ou por meio da violência, ou por meio da espetacularização de sua própria condição 

marginal.  Enquanto  fala,  a   partir   do   exemplo  de   Sandro,  daquele  menino   que   emerge   para  a 

visibilidade através da violência, as imagens mostram o triste teatro dos malabaristas descalços e 

descamisados, fenômeno cada vez mais comum nas grandes cidades. A violência, assim como o 

malabarismo nos sinais de trânsito, é a alternativa desesperada à dependência da proteção do Estado 

ou da esmola. Enquanto Luis Eduardo Soares fala, o filme mostra que quando o espetáculo dos 

malabarismos termina, a invisibilidade se produz novamente, pois passando entre os carros, pedindo 

um valor qualquer pelo espetáculo, os meninos dão­se com janelas fechadas e, mais que isso, com o 

rosto virado daqueles para quem se expõem (SDs 7 e 8). No virar de rosto, há mais que um desejo 

que não ver, há um gesto de anulação (SD25), de aniquilação, algo que de fato acontece no final do 

seqüestro. Mais que um indicativo do grande terror que as sociedades urbanas pós­modernas vivem 

hoje, as janelas fechadas (e o virar de rosto) são o maior símbolo da sociedade privilegiada que se 

encerra em seu conforto espacialmente delimitado (JAMESON, 1996) e, principalmente, de uma 

sociedade privilegiada que se nega a enxergar o Outro.

A caricatura que se projeta sobre esses meninos de rua (SD11) é talvez a raiz do que sugere 

Sandro quando, na desmedida violência que quer fazer acontecer mas não consegue, assume mais 

que uma carranca, mas a própria idéia de demonização (SD14). Como diz Luis Eduardo Soares, ele 

faz um pacto, ele sacrifica, assim, sua alma em troca daquilo que mais deseja: o reconhecimento. 

Suas  dores  não   foram   reconhecidas  quando  foi   testemunha   do   assassinato  da   mãe   ou   quando 

sobreviveu a uma cruel chacina, mas agora será. Por isso Sandro aceita prontamente o nome que lhe 

dá o Locutor Policial 1 (SD4). Designar um nome para o “bandido”, naquele momento, é um gesto 

de reconhecimento, ainda que em condições provisórias. Dar nome é reconhecer. Pressupondo que 

Sandro   não  se  identificaria,  o   policial  do  Bope  acaba  reconhecendo­o  como  alguém,  em  uma 

tentativa de ter no “Sérgio” que ele cria um Outro que lhe sirva de sujeito e não simplesmente um 

“marginal”, categoria abstrata que os jornais e televisão da época imprimem em “bandido”:
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Nos   meios   de   comunicação   de   massa,   [...]   os   cidadãos   “discrimináveis”   são 


geralmente apresentados [...] como vilões ou cidadãos de segunda classe [...]. A 
abstração   violenta   [...]   da   montagem   industrial   dos   meios   de   comunicação 
contribui para o reforço de papéis e estereótipos presentes na memória coletiva da 
sociedade tradicional. (SODRÉ, 1992, p. 114)

As câmeras que Sandro primeiro vê como ameaças (SDs 6 e 11) são as mesmas que lhe 

dariam a visibilidade almejada, imaginada em um futuro artístico (SDs 17 e 19). Para esse ser 

invisível, a fama era o efeito colateral e ao mesmo tempo a causa que ele perseguia enquanto corria 

atrás da própria visibilidade. Antevendo a impossibilidade de ser visto pela arte, ainda garante que a 

mulher que lhe acolheu como a um filho (SD 19) veria aquele reconhecimento. É esse o sentido que 

o filme apreende quando mostra as antenas de rádio­televisão enquanto alguns dos depoimentos 

falam (SD13) em poder pela visibilidade (Refém 2), proteção pela visibilidade (Yvonne e Policial 2), 

existência e significação pela visibilidade (Refém 2) e no protagonismo desse personagem com 

nome fictício (Sérgio), um personagem que toma a cena e reescreve a narrativa social de seu ponto 

de vista (fala do “Especialista”) – que é o ponto de vista que o filme toma e divulga. Na sala de 

visitas da sociedade privilegiada, o personagem agora era Sandro. Ou, ainda, Sérgio. E ele encena 

um drama urbano e dá voz a outros (SD15), como quando pede que seja filmado, afinal, e dá seu 

recado: ouçam, vejam, eu estive na (Chacina da) Candelária. Vejam, ele diria, estou aqui, sobrevivi.

O próprio filme segue o método de Sandro quando dá voz aos que a sociedade esquece nos 

espaços   fechados   dos   presídios   (SD20).   Mostrando   a   precariedade   de   uma   cadeia,   suas 

desumanidades, o filme brinca com seu estatuto de “discurso da verdade” enquanto documentário 

quando dá ao preso a chance de dizer que o que vemos ali não é um terço da realidade.

A câmera que lhe dá visibilidade é a que acaba garantindo a denúncia contra a anulação que 

o Estado deixa a cargo de seus poderes, como destaca o Locutor Ex­Detento (SD23), ele mesmo um 

locutor com o rosto tapado pelo medo de ser reconhecido (um paradoxo que o filme sugere como 

algo que nunca poderá ser resolvido). O Brasil inteiro assiste à morte anunciada de Sandro, como a 

um   espetáculo   macabro  justificado.   O   filme,  no   entanto,  procura  deixar   que  essa   justificativa 

(Sandro fez reféns, Sandro matou Geísa) cair por terra quando, exercendo sua vocação documental 

para dar a ver e fazer circular verdades e usando de seu poder enquanto linguagem (NICHOLS, 
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1997), mostra o desfecho do seqüestro de vários ângulos e em câmera hiperlenta (SDs 22 e 24) ou 

afirma, oficialmente e com objetividade (SD 26) que a) o tiro que causou a morte de Geísa foi o que 

atingiu sua cabeça, ou seja, o disparado pelo policial; e b) sua morte foi um ato de vingança e abuso 

de poder dos policiais. Sandro é o homo sacer que Giorgio Agamben (2004) expõe, uma figura do 

direito criminal romano que é sacralizada justamente porque não serve como oferenda (a morte 

ritual), mas sua vida é tão insignificante que qualquer um pode tirá­la impunemente. São as vidas 

indignas de serem vividas, a desses homo sacer (BAUMAN, 2005).

O   documentário   dá,   portanto,   a   visibilidade   almejada   por   Sandro.   E   fala   sobre   as 

invisibilidades outras. Não dá a Sandro a visibilidade que ele, por fim, provoca, como demonizado, 

perigoso e violento, mas como vítima (uma delas). O filme dá a Sandro o reconhecimento tardio de 

um personagem que “sai da vida para entrar para a História”, ainda que esta história não seja nem 

um terço da realidade.

FD 2 – Visibilização Midiática

O olhar da câmera ou, mais que isso, dos mídia, é problematizado também nesse filme, e ganha o 

sentido da necessidade da visibilização midiática que os eventos (principalmente os violentos) têm 

em nossa sociedade hoje e das conseqüências disso. De início, no documentário, esse sentido é dado 

quando os jornalistas dizem (SDs 1, 3 e 5), cada um de uma forma, da urgência de cobertura 

demandada por um evento como o protagonizado por Sandro. Essa é uma urgência que se revela em 

atos que beiram um tipo de heroísmo estranho, que faz com que os cinegrafistas e fotógrafos corram 

riscos para conseguir “as melhores imagens” (SD5) ou, no exercício de sua busca por ângulos mais 

próximos, estejam na mira dos tiros do “bandido” (SD6).

Na contra­mão desse movimento curioso dos mídia, os envolvidos na batalha real em função 

de resolver o problema que se apresenta (os policiais e Sandro) negam a visibilidade como se 

negassem a própria existência desse evento (SDs 4 e 7). Logo depois de negar sua imagem aos 

fotógrafos   e   cinegrafistas,   no   entanto,   Sandro  vê   na   transmissão  de   sua   tentativa   suicida   de 

reconhecimento  a   possibilidade  do   próprio   reconhecimento  (como  quando   dizia  para  sua  mãe 

“adotiva”  que  seria  artista  e  visto  por  ela).  A  sensação  dos  que  fazem  parte  desse  espetáculo 

dramático também é a de um evento de proporções televisivas e, por meio das imagens, planetário 
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(SD8). Apesar de espetacularizado exaustivamente, a própria transmissão do seqüestro, “ao vivo 

para todo o Brasil”, propõe uma problematização que o filme, por fim, traz à tona: matar Sandro 

para salvar os reféns, em frente às câmeras, seria ultrapassar os limites do gosto (SD11), ainda que 

não os limites morais, que o definem como executável, como anulável (o homo sacer). O problema 

da polícia é que as pessoas vejam a morte, o tiro, o sangue e o meio quilo de massa encefálica nos 

vidros  do   ônibus,   não   exatamente  matar   Sandro.  O   problema  de   quem  estava   assistindo   esse 

espetáculo em casa passa a ser o de anular Sandro, mas não ter que ver sua morte ao vivo.

Isso, de certa forma, é o que protege Sandro durante o tempo em que fica no ônibus. O “ao 

vivo” que as câmeras imprimem à situação é a garantia de realidade (FECHINE, 2006; JOST, 2006) 

que as pessoas querem ter até certo ponto. Certas realidades não devem ser vistas, principalmente se 

forem graficamente explícitas, porque a morte é um tabu (SOBCHACK, 2004)  para  o qual se 

costuma virar os olhos, assim como para a pobreza. Não se mata (impunemente) em frente às 

câmeras, e isso é algo reconhecido pelo Ex­Detento (SD19), enquanto o filme mostra que isso, como 

diz esse locutor, é o que acontece na maioria das vezes. O desfecho dessa história foi diferente. 

Sandro representava  a sujeira que punha em  risco  a ordem (BAUMAN, 1998), e, portanto, foi 

eliminado. A sociedade, como dirá Bauman (2007) estará melhor sem ele.

Esse “VIVO”, essa referência à transmissão televisiva aparecem em vários momentos ao 

longo do documentário de Padilha, como que para lembrar­nos que esse evento já adentrou nossas 

salas de visita pelos olhos das câmeras de tevê (SDs 2 e 17). Essa referência também nos garante o 

estatuto de realidade que o jornalismo imprimiu nessa transmissão, a realidade que foi captada como 

flagrante, os fatos acontecendo no imediatismo da transmissão televisiva em tempo real. Sandro 

acaba referendando essa idéia de realismo que o documentário reafirma a todo momento quando diz 

que aquilo ali não é um filme de ação (SD10). Fosse um filme de ação, não existiria um “bandido” 

tomando a cena e fazendo­nos relembrar das matanças de Vigário Geral13  e da Candelária. Esse 

Sandro é invisível, mas é testemunha dessa realidade  que  a mídia  não mostra  com freqüência. 

Ocorre   que  a   cena  protagonizada  por   Sandro  era  um  tipo  de  filme  de   ação  e,   como  tal,   um 

espetáculo de onde a sociedade, no final, sai aliviada. O cinegrafista corre para mostrar o desfecho 

13 Cf. <http://www1.folha.uol.com.br/folha/especial/2005/chacinanabaixadafluminense/vigario_geral.shtml>.
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sangrento (pois é preciso mostrar, ou ao menos registrar), ao mesmo tempo que os curiosos correm 

em direção a Sandro para linchá­lo (SD16). Como diz o Locutor Não­identificado na SD18, no final 

dos espetáculos o que se quer é ver a morte do bandido.

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Filme:
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