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UNIVERSIDADE

FEDERAL DO RIO
GRANDE DO SUL

Reitor
Carlos Alexandre NeUo
Vice-Reitor e Pró-Reitor
de Coordenação Acadêmica
Rui Vicente Oppermam1

EDITORA DA UFRGS
Diretora
Sara Viola Rodrigues
Conselho Editorial
Alexandre Ricardo dos Santos
Carlos Alberto Steil
lavinia Schiiler Facdni
Mara Cristina de Matos Rodrigues
Maria do Rodo Fontoura Teixeira
Rejane Maria Ribeiro Teixeira
Rosa Nivea Pedroso
Sergio Antonio Carlos
Sergio Sdmeider
Susana Cardoso
Valéria N. Oliveira MonareUo
Sara Viola Rodrigues, presidente
be . cogan
pozz1 esc

anatu das
estruturas sono s

Cristina Capparelli Gerling


fernando Rauber Gonçalves
Carolina Avellar de Muniagurria
© de Robert Cogan e Pozzi Escot
1 ªedição: 2013
Título original em inglês: Sonic Design - The nature of sound and music

Direitos reservados desta edição:


Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Cristiano Tarouca


Foto da Capa: Yusak Wijaya
Editoração: Michele Bandeira e Alice Hetzel
Editoração eletrônica complementar: Jaqueline Moura
Preparação dos originais: Lúcia Soldera
Revisão: Gabriela Carvalho Pinto

Tradução: Cristina Capparelli Gerling, Fernando Rauber Gonçalves e


Carolina Avellar de Muniagurria

Robert compositor, professor de composição e análise musical no New England Conservatory


de Boston, tem sido consistentemente aclamado por sua contribuição inovadora e pujante em Análise
Musical.

Poz:ú compositora atuante e co-autora deste livro, é também a editora responsável pela revista
Sonus, considerada uma das revistas mais significativas para a teoria musical na atualidade.

C676s Cogan, Robert


Som e música: a natureza das estruturas sonoras / Robert Cogan e Pozzi Escot; tradução de
Cristina Capparelli Gerling, Fernando Rauber Gonçalves e Carolina Avellar de Muniagurria . -
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2013
628 p. : il. ; 18,5x23,5cm

Inclui figuras e gráficos.

Inclui apêndices e referências.

1. Música. 2. Musicologia. 3. Etnomusicologia. 4. Acústica. 5. Psicoacústica. 6. Espaço musical.


7. Linguagem musical. 8. Sistemas musicais. 9. Sistema tonal. 10. Música - Tempo - Ritmo -
Dimensões -.Atividades. 11. Som Cor. I. Escot, Pozzi. II. Gerling, Cristina Capparelli (trad.). III.
Gonçalves, Fernando Rauber (trad.). IV Muniagurria, Carolina Avellar de (trad.). V Título.

CDU78
CIP-Brasil. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação.
(Jaqueline Trombin - Bibliotecária responsável CRBl0/979)
ISBN 978-85-386-0225-5
s

que apresentamos neste aprendemos com professores e estudantes,


colegas e amigos, e entre nós mesmos. Durante a do livro, nos sentimos
tanto receptores quando transmissores do pensamento e da criação proveniente
de diversas fontes culturais no transcorrer de milênios, fontes infalíveis de es-
timulação e interesse em um mundo de outra forma falível. Este livro como um
todo é uma tentativa de reconhecer estas fontes.
Um apoio financeiro conjunto da Music Educator's National Conference e da
Ford Foundation, através dos Institutos de Educação de Música Contemporânea,
tornou possível o início da escrita deste livro.
Somos pessoalmente gratos a Michael Hammond, Pró-Reitor de Música da
Purchase College, State University of New York, pela leitura de todo o manus-
crito e por oferecer numerosas sugestões ao mesmo tempo lúcidas e sábias. Sua
generosidade ao dedicar seu tempo e sua boa vontade poderiam servir de modelo
para todos os esforços artísticos e intelectuais. Por fim, gostaríamos de agradecer
calorosamente ao entusiasmo indispensável de Norwell Therien, Jamie Fuller e
de seus colegas da Frentice-Hall ao lidar com os desafios de produzir este livro.
Somos sinceramente gratos pelas permissões concedidas para reproduzir
numerosas citações e trechos musicais; agradecimentos específicos serão encon-
trados nas próprias citações.
s

~ •• ,_,~ À EDIÇÃO BRASILEIRA 15

PREFÁCIO 19

APRESENTAÇÃO 21

PRELÚDIO - FREDERIC CHOPIN: PRELÚDIO N. 20 EM Dó MENOR 32

CAPÍTULO 1 - Ü ESPAÇO MUSICAL 50

]OSQUIN DES PREZ: MISSA LHOMME ARMÉ, "BENEDICTUS" 53


O contorno geral 53
A movimentação de uma voz: linearidade 57
Elaboração linear 59
A coordenação das vozes 60

J. S. BACH: SUÍTE FRANCESA N. 4 EM Mn, "ALLEMANDE" 62


O contorno geral 62
Multilinearidade 65
Densidade 67
Continuidade da linha e densidade 67
A moldura das linhas externas 68
Detalhes no interior de uma textura complexa 70
Resumo 72

W. A. MOZART: VESPERAE SOLENNES DE CONFESSORE, K. 339,


"LAUDATE DOMINUM", INTRODUÇÃO 73
O contorno geral: a voz do soprano 73
As vozes internas 79
A voz do baixo 80

LUDWIG VAN BEETHOVEN: SONATA PARA PIANO EM MI/, MAIOR,


OP. 31, N. 3, PRIMEIRO MOVIMENTO, COMPASSOS 1-25 81
Equivalência de oitava: a hélice do espaço musical 82
Deslocamento de registro 85
Linha, registro e cor 87
ARNOLD SCHOENBERG: SEIS PEQUENAS PEÇAS PARA PIANO OP. N. 6 91
Registros e campos 94
Variantes espaciais de gestos 96
Ambigüidade de movimentação 98
A totalidade dos campos 100

ELLIOT CARTER: SEGUNDO QUARTETO DE CORDAS, "INTRODUÇÃO" 103


O contorno geral 103
Estase e movimentação no campo A 107
A movimentação no campo B 113
Estase e movimentação no campo C 114

CONSIDERAÇÕES CULTURAIS E HISTÓRICAS 115

CAPÍTULO 2 - LINGUAGEM MUSICAL 132

OBSERVAÇÕES INICIAIS 134

A LINGUAGEM DE UMA OBRA: CLAUDE DEBUSSY -


SYRINX PARA FLAUTA SOLO 140
Definição lingüística 141
Continuação e conclusão lingüística 144
Transformação lingüística 147

INTRODUÇÃO AOS SISTEMAS MUSICAIS 149

Os SISTEMAS MODAIS DA IDADE MÉDIA E DA RENASCENÇA 152


Dois cantos gregorianos: Veni creator spiritus e Kyrie Deus sempiterne 155
Resumo 164

LINGUAGEM DE VOZES COMBINADAS - GUILLAUME DE MACHAUT:


PLUS DURE QUE UN DYAMANT, VIRELAI 165
Funções dos intervalos predominantes 170
Intervalos subordinados 171
Sonoridade intervalar e a coleção modal 173
Derivações e extensões lingüísticas 175

JOSQUIN DES PREZ: MISSA L'HOMME ARMÉ, "BENEDICTUS" 177


O conceito de um sistema de consonâncias e dissonâncias 181
Fluxo lingüístico e movimentação espacial 183
ROLAND DE LASSUS: BON JOUR, MON COUER, CHANSON 185
Sonoridade e a análise de coleções 196

Ü SISTEMA TONAL 199


Introdução 199
Tonalidade 201
A coleção tonal 201
Sonoridades em movimento: tríades em progressão 203
A estrutura da tonalidade: progressão por quintas 204

JOHANNES BRAHMS: WACHAUF, MEIN HORT,


DAS CANÇÕES FOLCLÓRICAS GERMÂNICAS 208
Fluxo tonal: progressão e linha 213
Função das vozes 216
Um momento especial 218
Movimentação tonal ampliada 219

FRANZ SCHUBERT: WEHMUT 221

FRANZ SCHUBERT: Du BIST DIE RUH 225


Um banquete musical 232

Ü SISTEMA TONAL: CONCLUSÃO 235

SISTEMAS DO SÉCULO XX: SIMETRIA E AMBIGÜIDADE ESTRUTURAL 238


Coleções simétricas 239
Béla Bartók: Mãos cruzadas, do Mikrokosmos, volume 4 242
Mais informações a respeito das coleções simétricas 248
A coleção de doze notas (dodecafônica) 249
Anton Webern: Três peças para cello e piano, op.11, n. 3 251
Serialismo: Anton Webern - Variações para piano, op. 27 256
O primeiro movimento 259
Amplificação celular 261
O segundo movimento 264
A série no espaço 268
O terceiro movimento 270
Ultrapassando os limites da série 272
Conclusão 283

CAPÍTULO 3 - TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE 292

DIMENSÕES TEMPORAIS: GUILLAUME DE MACHAUT -


PLUS DURE QUE UN DYAMANT, VIRELAI 294
Duração das frases 294
A seção: um nível rítmico mais elevado 296
O módulo: um nível rítmico inferior 299
Resumo: dimensões temporais 301

ATIVIDADE RÍTMICA: GUILLAUME DE MACHAUT - MISSA DE NOTRE DAME,


AMEN DO "CREDO" 302
Acentuação 304
Pulsos e impulsos 307
Padrões de atividade: modular e isorrítmico 310
Atividade das vozes individuais 313
Resumo 314

TRANSIÇÃO 316

TEMPO E SOM PSICOFÍSICO 317

EQUILÍBRIO DIMENSIONAL: CANTO GREGORIANO - VENI CREATOR SPIRITUS 321

DISTINGUINDO MÓDULOS, FRASES E SEÇÕES 327

EXECUTANDO MÓDULOS, FRASES E SEÇÕES 332

DIMENSÕES E ATIVIDADE (1): JOSQUIN DES PREZ -


MISSA L'HOMME ARMÉ, "BENEDICTUS" 335

DIMENSÕES E ATIVIDADE (II): J. S. BACH -


SUÍTE FRANCESA N. 4 EM MI bMAIOR, "ALLEMANDE" 339
Módulos e pulsações 340
Os módulos amplos 343

DIMENSÕES E ATIVIDADE (III): A VASTA ABRANGÊNCIA DA CHACONNE


E DAS VARIAÇÕES GOLDBERG DE BACH 343
A chaconne para violino solo, da Partita n. 2 em Ré menor 343

As VARIAÇÕES GOLDBERG 347


O segundo conjunto central de variações 350
O terceiro conjunto de variações 354
O primeiro conjunto de variações 356
Resumo 359
TRANSIÇÃO 360

TRANSFORMAÇÕES DE ATIVIDADE: STRAVINSKY -


TRÊS PEÇAS PARA QUARTETO DE CORDAS, SEGUNDO MOVIMENTO 361
A camada da pulsação MM 228 364
A camada da pulsação MM 152 366
Um caleidoscópio rítmico 367

NOVAS EXPLORAÇÕES DO TEMPO: OS COMPLEXOS RÍTMICOS 369


Modulação de tempo (ou métrica) 370
Serialismo de atividade e dimensões 376
Ilusões temporais verso-reverso (palíndromos) 379
Complexos estatísticos 383
Campos temporais abertos 389
Conclusão 393

INTERSEÇÃO - A DANÇA DO BÚFALO DOS POVOS INDÍGENAS ZUNI 400

LINGUAGEM MUSICAL 402

ESPAÇO MUSICAL 405

COORDENAÇÃO DO ESPAÇO E DA LINGUAGEM 410

TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE 411

LINGUAGEM, ESPAÇO E TEMPO 415

-CAPÍTULO 4 - A COR DO SOM 418

0 INÍCIO DE HELMHOLTZ 422

A COR SONORA DO PIANO 423

As CORES SONORAS DO ANTIGO INSTRUMENTO CHINÊS, O CH'IN 428

TRÊS VARIAÇÕES SOBRE PLUM BLOSSOM ("AMEIXEIRAS EM FLORAÇÃO")


PARA CH'IN 430
Cor e registro em Plum blossom 430
Qualidade de ataque 443
NOTAÇÃO EUROPÉIA E A ANÁLISE DA COR DO SOM 444

CARACTERÍSTICAS DA COR SONORA DOS INSTRUMENTOS DE SOPRO 447

CARACTERÍSTICAS DA COR SONORA DOS INSTRUMENTOS DE CORDAS 458

ESPECTROS DE COMBINAÇÕES INSTRUMENTAIS: INSTRUMENTOS DE SOPROS -


ARNOLD SCHOENBERG - CINCO PEÇAS PARA ORQUESTRA, OP. 16, CORES 465

ESPECTROS DAS COMBINAÇÕES INSTRUMENTAIS:


INSTRUMENTOS DE CORDAS - LUDWIG VAN BEETHOVEN -
CONCERTO PARA VIOLINO, SEGUNDO MOVIMENTO 469

FENÔMENOS DE INTERFERÊNCIA 472


Batimentos 472
Efeito coral 476
Mascaramento 478

DESIGN SÔNICO: CLAUDE DEBUSSY - NOTURNOS PARA ORQUESTRA, NUVENS 490


Conclusão 504

POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA 510

FORMA 511

ESTRUTURA 513

MOLDES TEMÁTICOS 515

COMPARAÇÃO DA FORMA COMO PROCESSOS NO ESPAÇO, LINGUAGEM, TEMPO


E COR SONORA COM A FORMA ENTENDIDA COMO MOLDES TEMÁTICOS 517

MOLDES TEMÁTICOS COMO PROCESSOS 518

A IMPORTÂNCIA DO PROCESSO 520

ARNOLD SCHOENBERG: CINCO PEÇAS PARA ORQUESTRA, OP. 16, CORES 524
Espaço e linguagem 524
Tempo 531
Cor sonora 535
CONCLUSÃO 540

APÊNDICES 544

APÊNDICE A - CLASSIFICAÇÃO DE REGISTROS E INTERVALOS 545


Registros 545
Intervalos 546

APÊNDICE B - A PSICOFÍSICA DO SOM 550


A onda sonora 551
Ondas sonoras compostas 553
Vibração em parciais 555
Ondas complexas ou ruído 557
A gama audível: o que efetivamente escutamos 560
Intensidade e volume sonoro 562
Correlações entre intensidade e volume sonoro 570
Sistemas de afinação 572
A teoria de consonâncias e dissonâncias segundo as razões intervalares 574
Cor sonora 577
Som eletrônico 582
Conclusão 587

APÊNDICE e - Os SISTEMAS RÃGA DA ÍNDIA 590

APÊNDICE D - EXTENSÕES TONAIS 598


Acordes de sétima 598
Inversão de tríades 601
Elaboração local e linear de harmonias 607
Cromatismo - elaboração, tonicização e modulação 611
Harmonias lineares 617
PREFÁCIO

A edição brasileira de Som e música: a natureza das estruturas sonoras repre-


senta uma adição valiosíssima à bibliografia musical em língua portuguesa. Este
livro é fruto de um trabalho sério e profundo de um casal de compositores e te-
óricos e abre novas fronteiras para o pensamento e o fazer musical. De modo
absolutamente orgânico, o texto incorpora à análise e à teoria da música concei-
tos da acústica, da psicoacústica, da lingüística e da matemática, entre outros.
Cogan e Escot conseguiram trabalhar de modo inclusivo em que todos os esti-
los, sistemas, eras e tradições musicais ocidentais e não ocidentais são tratadas
não como manifestações exóticas, mas sim vistas sob os mesmos parâmetros
estruturantes. O enfoque abrangente e original dos autores coloca em xeque o
paradigma da supremacia da tradição ocidental em detrimento de milhares de
anos de diversas culturas sonoras espalhadas através do globo.
Apesar de sua patente originalidade e pioneirismo (parafraseando aqui
Elliott Carter), Som e música: a natureza das estruturas sonoras deve ser encarado
como uma iniciativa intimamente ligada a esforços e inquietações de diversas
gerações de músicos e pensadores que o precedem. É possível ouvir "ecos" de di-
ferentes direções, como das obras de Hermann von Helmholtz, Carl E. Seashore
e Neville Fletcher, da etnomusicologia de Béla Bártok, das inquietações estéticas
de Edgard Varese, Otto Luening, Henry Cowell e Ruth Crawford e, porque não,
dos trabalhos de Rameau, Fux e Schenker.
O tratamento da acústica e da psicoacústica me parece especialmente es-
timulante. Ao trazer para o pensar musical conceitos até então restritos a áreas
científicas específicas, os autores abriram uma nova frente de investigação e ra-
docínio. As informações são claras, sintéticas e focadas no músico e na sua apli-
cação prática. Acredito que Som e música: a natureza das estruturas sonoras difere
dos trabalhos de Helmholtz e Seashore pela proeminência da perspectiva musical
sobre a científica, evitando o excesso de informações físicas e matemáticas que
geralmente afugentam os músicos desse tipo de conteúdo.
No campo da etnomusicologia, perspectivas alternativas de análise permitem
enfoques inovadores. Características rítmicas, tímbricas e mesmo de organização
de alturas passam a ser tratadas com ferramentas específicas que possibilitam uma
enorme variedade de pontos de vista. É verdade que iniciativas anteriores, como
as de Seashore em seu livro Psycology of Music, já trataram o repertório não tradi-
cional, inclusive com o uso de recursos primitivos de espectrografia. Entretanto, o
ponto de vista abordado em Som e música: a natureza das estruturas sonoras assume
uma natureza estética, contrastando com o cientificismo de Seashore.
Grande parte da teoria analítica ocidental, derivada essencialmente dos tra-
balhos de Rameau e Fux, está centrada na organização e na hierarquia de alturas
(leia-se aqui fundamentais!). Mesmo os esforços de H. Schenker, que procurou
conciliar aparentes contradições nas teorias da harmonia e do contraponto, não
ultrapassam os limites estabelecidos ao longo de vários séculos de tradição musi-
cal, mais especificamente as fronteiras do sistema tonal. Aqui as idéias de Varêse
parecem ter inspirado os autores. Sua convicção de encarar o som como matéria-
-prima de suas composições e não escalas, acordes e sistemas é facilmente relacio-
nada ao pensamento analítico construído em Som e música: a natureza das estru-
turas sonoras. A perspectiva analítica aqui proposta incorpora novas ferramentas
que extrapolam a visão habitual, sem amarras de sistemas predeterminados e
excludentes, respondendo à enorme mudança ocorrida na estética musical nas
primeiras décadas do século XX. Parâmetros como timbre, dinâmica e ritmo assu-
miram um papel independente da organização de alturas. Além disso, o advento
da música eletrônica trouxe desafios de compreensão musical inacessíveis aos mé-
todos analíticos tradicionais. Técnicas que pudessem abordar esses aspectos em
sua função estrutural eram avidamente esperadas e necessárias há décadas.
A performance também pode se beneficiar das novas perspectivas trazidas
pelos autores, tanto pela construção de enfoques analíticos específicos como pela
incorporação de novos paradigmas para a compreensão e execução musical. Ape-
sar da existência de novos recursos tecnológicos e de vasta bibliografia dedicada à
acústica e à psicoacústica, ainda há uma enorme resistência por parte dos músicos
em seu uso. Outras áreas como a fonética, a engenharia e a medicina já incorpo-
ram tecnologias ligadas ao som há muito tempo. Por outro lado, o músico, que tem
no som um dos principais aspectos de sua atividade, ainda faz muito pouco uso
desse conhecimento, o que confirma a importância do trabalho de Cogan e Escot.
Som e música: a natureza das estruturas sonoras é uma obra emblemática e já
se encontra nas referências bibliográficas de importantes livros como Sound Colar
de Wayne Slawson e Music Since 1945 - Issues, Materials and Literature de Elliott
Schwartz e Daniel Godfrey, ainda não traduzidos para o português, de dezenas de
artigos científicos e dissertações de mestrado e doutorado. Os trabalhos mais re-
centes de Cogan e Escot, como Music Seen, Music Heard, New Images ofMusical Sound
e The Poetics of Simple Mathematics in Music, seguiram na mesma direção, amplian-
do o leque de aplicações analíticas e teóricas, especialmente no que tange à análise
espectrográfica. Os autores também desenvolvem trabalhos no campo da composi-
ção que não seriam possíveis sem uma nova abordagem em relação ao pensamento

16 PREFÁCIO
performance com novas tecnologias e
matemático como da espectral.
Apesar méritos já explicitados, a obra não deixa de ter seu lado polêmi-
co. Os autores, detentores de vários prêmios e enorme reconhecimento acadêmi-
co e artístico, ainda são tratados, esporadicamente, como excêntricos e incon-
sistentes. Esse tipo de reação é absolutamente comum ao longo da história. Sob
esse aspecto, Som e música: a natureza das estruturas sonoras se compara à obra
de Schenker, que só obteve o merecido reconhecimento nos anos 1980, apesar
da maior parte de seus trabalhos terem sido escritos no final do século XIX e no
começo do XX. Esse fato, entretanto, certamente não abala a convicção dos auto-
res. Certa vez, quando aluno de doutorado no New England Conservatory, levei
a Cogan minhas apreensões sobre alguns aspectos de minha tese por considerá-
-los inovadores e possivelmente polêmicos. Ele me respondeu que a quem escreve
compete somente a escrita. Se quem lê gosta do trabalho, ótimo. Se não gosta,
melhor ainda, pois o que foi passado ao leitor provocou reflexão e desconforto,
essenciais para a geração de novas idéias. Mas, de qualquer modo, veicular novas
idéias e paradigmas revolucionários requer coragem e determinação.
Essa mesma atitude, com certeza, esteve presente em Cristina Capparelli
Gerling, Fernando Rauber Gonçalves e Carolina Avellar Muniagurria, tradutores
de Som e música: a natureza das estruturas sonoras. Sem sombra de dúvida foi um
trabalho hercúleo. Eles se depararam com um sem número de novos termos que
ainda não tinham tradução para o português, nem tradição de uso em nossa aca-
demia. A começar pelo título! Pude compartilhar da ansiedade dos tradutores e
fico feliz que eles tenham abarcado essa árdua tarefa e conseguido executá-la de
forma exemplar. Que venham as críticas. E que elas possam gerar publicações e,
quem sabe, novas traduções de obras de igual calibre.

Maurício Freire
Universidade Federal de Minas Gerais

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 17


-

Os autores de Som e Música realizaram um esforço pioneiro no sentido de


examinar, em sua totalidade, o amplo campo da música no qual vivemos atual-
mente e de derivar conceitos e princípios gerais que possam descrever e explicar
os métodos de cada estilo, período e povos. O desenvolvimento de uma visão tão
abrangente é uma necessidade antiga. À medida que nos familiarizamos e nos
acostumamos com um horizonte de diferentes objetivos e práticas musicais, em
constante ampliação, torna-se cada vez mais nítido que as teorias de harmonia
e contraponto da antiga "prática comum" não podem mais ser revisadas e am-
pliadas. Elas têm que ser, necessariamente, substituídas por modos de descrição
e análise que tratem a "prática comum" da música ocidental, desde a segunda
metade do século XVII até o final do século XIX, como somente uma instância
de práticas e de métodos musicais muito mais amplos, de forma que tais modos
possam ser aplicados a toda música ocidental, de sua origem até o presente, assim
como à música de outras culturas.
Este livro, embora primordialmente didático em sua abordagem, estabelece
tantas relações e comparações entre obras de música de fontes tão variadas que
sua leitura se torna fascinante para qualquer pessoa interessada em música. O
amplo espectro de exemplos musicais, acompanhados de análises e discussões
penetrantes, encoraja o estudante e o leitor interessado a desenvolverem uma
compreensão amplamente diversificada da música, capaz de auxiliar e estimular,
de maneira extraordinária, suas imaginações, revelando-lhes novas experiências
musicais mesmo em relação ao que já é conhecido.

Elliott Carter
Ao instruir, verdadeiras obras de arte devem ser selecionadas a partir
de todos os estilos de composição, e devemos mostrar ao amador toda a
beleza, ousadia e inovações nelas contidas.
Carl Philipp Emanuel Bach 1

Desde a morte de Beethoven, já transcorreram quase dois séculos. Durante


este período, quatro tendências varreram as culturas musicais e alteraram não
somente estilo e costumes, mas também a própria natureza da vida musical:

1) ressurgimento da música do passado distante da Europa - calcado em


teorias, técnicas e ideais de som diferentes daqueles presentes na
música européia dos séculos XVIII e XIX e desafiadores de muitas
de suas premissas básicas;
2) mistura das músicas de diversas partes do planeta - com a descoberta
de numerosas tradições clássicas notavelmente distintas entre si,
assim como a formação de novas culturas musicais a partir de seus
encontros - por exemplo, a cultura afro-americana;
3) desenvolvimento do estudo científico do som e de sua percepção - com
descobertas marcantes a respeito da essência do som, e análise de
muitos aspectos dos processos de comunicação do ser humano, dos
quais a música constitui um sutil e fascinante exemplo;
4) criação de tecnologia eletrônica - a possibilidade de ultrapassar as
limitações anteriores de síntese, análise e transmissão do som, ex-
pandindo o mundo sonoro disponível até os limites da percepção e
facilitando a exploração de todos os fenômenos situados entre es-
tes limites.

Como conseqüência, as barreiras estabelecidas por cada cultura em relação


a instrumentos, tradição técnica, memória histórica e predisposição cultural sim-
plesmente ruíram. Estas mudanças na música foram paralelas a transformações
similares ocorridas na totalidade da vida do planeta. O com o qual a
sica se conecta não se alterou menos do que a muslCa.
si só, cada uma destas correntes seria revolucionária. O efeito destas
correntes tomadas em conjunto tem sido tanto cataclísmico quanto paradoxal.
Embora novas e férteis formações do material musical sido criadas, o
estilhaçamento dos moldes conceituais anteriores tornou a percepção e a com-
preensão cada vez mais rarefeitas e frágeis. Ao invés de nos enriquecerem, tanto
as invenções e expressões musicais mais novas quanto as mais antigas, tanto as
mais próximas quanto as mais distantes se mostram freqüentemente inacessí-
veis ou perturbadoras.
Não é de se surpreender que as velhas molduras para a compreensão mu-
sical tenham se tornado inadequadas. As molduras provenientes da Europa, por
exemplo, foram fabricadas durante o século XVIII, a partir de um ponto de vista
condizente com seu tempo. A maior parte da música européia anterior foi excluí-
da desta moldura, assim como não foram reconhecidas a existência e a legitimi-
dade de outras culturas musicais. Estas concepções precederam o estudo científi-
co do som e, obviamente, antecederam o surgimento da eletrônica.

FRAGMENTAÇÃO

Não é possível executar de uma grande obra sem primeiro classificar


suas principais tendências, seu sentido arquitetural e a relação entre os
diferentes elementos que compõem sua estrutura. Isso não significa que
a razão deve estar no comando, mas sim na base da inspiração, que se
torna, poderíamos dizer, uma espécie de exaltação do que foi inicialmen-
te ordenado e fixado pela inteligência.
Pablo Casals 2

Consideremos, por um momento, o modo de compreensão ainda em voga na


Europa e, por escolha, na América. A característica primária deste aprendizado
musical tem sido sua separação em compartimentos isolados:

- separação em técnicas musicais distintas - harmonia, contraponto


e forma;

22 APRESENTAÇÃO
século XX, contraponto do sé-
XVI e contraponto do século XVIII;
- separação por cultura - por exemplo, música asiática em distinção à
música européia;
- separação subseqüente em música popular, folclórica ou clássica.

As conseqüências desta fragmentação são imensas:

- muitos fragmentos são ignorados - qualquer pessoa familiarizada com


os livros e com o ensino atual percebe que a grande maioria dos frag-
mentos é, de fato, corriqueiramente omitida. O estudo técnico da
música, mesmo no que apresenta de melhor, lida somente com al-
guns aspectos - harmônicos, contrapontísticas, formais - da música
clássica de uns poucos países europeus desde o século XVI até o sé-
culo XIX. Os processos musicais de outros períodos e culturas, assim
como algumas das características primárias de toda a música, como
o tempo e os relacionamentos de cor sonora, são quase totalmente
ignorados.
- concentração em exercícios artificiais ao invés de análises baseadas em
obras existentes - embora esta declaração pareça extrema, uma refle-
xão pode nos mostrar como chegamos a este ponto. Assim como um
objeto visual, cada obra musical oferece várias facetas e dimensões.
A compreensão de uma obra musical requer, na frase de Casals, a
percepção da "relação entre os diferentes elementos que compõem
sua estrutura". Uma teoria que isola esses elementos e que chega de
fato a omitir alguns não pode lidar com a totalidade de uma obra
musical. O fato de muitos livros oferecerem, para exemplificar sua
conceituação teórica fragmentada, exercícios artificiais ao invés do
repertório musical existente não chega a surpreender.
- limitação com o intuito de evitar a confusão - considera-se que a educa-
ção ampla e consciente traz risco mais elevado de confusão do que
a educação limitada, já que o amplo conhecimento freqüentemente
traz à tona procedimentos composicionais e analíticos distintos e
contraditórios. O estudo que conduz à visão integrada das diversas
abordagens musicais tem sido, com otimismo, uma raridade e, mais
freqüentemente, uma impossibilidade.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 23


E

olhar e compreender é o mais belo presente natureza.


Albert Einstein 3

Estamos convictos que não somente os conteúdos detalhados, mas tam-


bém as categorias e procedimentos fundamentais do pensamento e do ensino
musical anterior devem ser reexaminados, no intuito de desenvolver modos de
compreensão para toda a arte do som, ou seja, para criar uma moldura na qual
qualquer obra musical e os conceitos que genuinamente a esclareçam sejam com-
binados. Leitores e estudantes, bem como cientistas do som e artistas em outros
campos de atuação que não a música, devem ser introduzidos às descobertas dos
compositores, teóricos e intérpretes de todos os períodos e culturas. expenen-
cia musical deve ser vinculada a toda percepção e sensibilidade que possam ser
derivadas destas diversas perspectivas.
Os detalhes desta abordagem constituem-se na substância deste livro. Rea-
lizamos um esforço no intuito de elucidar a compreensão das obras musicais,
a partir de quatro pontos de vista principais, isto é, de como a peça organiza
seu espaço musical, sua linguagem, seu tempo e sua cor sonora. Estes aspectos com-
posicionais, entretanto, se sobrepõem e se fundem o tempo inteiro. As forças
organizadoras estão sempre interagindo e se complementando e nunca podem
ser entendidas de maneira fragmentada ou dissociada. Nós tentamos, portan-
to, compreender a unidade destas obras musicais, permitindo que observações e
idéias, fornecidas pela análise feita através de um ponto de vista, esclareçam o
que de outra forma permaneceria escondido.
Entre estas idéias esclarecedoras, estão:

1) a consciência do contínuo desenvolvimento da exploração do espa-


ço musical e da maneira como diferentes concepções e delimitações
do espaço oferecem possibilidades distintas para os compositores e
para as culturas musicais;
2) o sentido mais nítido da importância da movimentação de longo al-
cance na música e a concepção do espaço organizado em registros e
campos, assim como em linhas mais próximas formadas por graus
conjuntos;
3) a compreensão dos relacionamentos entre a movimentação espa-
cial e a formação da linguagem e cor sonora;

24 APRESENTAÇÃO
vez, cor sonora
somente de sons individuais, mas
de uma obra completa, inaugurando, um novo
campo analítico essencial;
5) apreciação das contribuições decisivas a cor sonora
dades tais como as interferências acústicas e o ruído, considerados
anteriormente como musicalmente inexistentes, irrelevantes ou
indesejáveis;
6) reconhecimento das diferentes explicações que os cientistas do
som e os compositores e teoristas, conduzidos por suas intuições,
formularam sobre fenômenos paralelos;
7) a compreensão, em última instância, dos profundos inter-relacio-
namentos entre as várias músicas ao redor do planeta e dos laços
estreitos que vinculam a música com outras artes, ciências e com as
mais variadas expressões de vida humana.

PARA OS ESTUDANTES

Meu objetivo é ajudar os jovens que querem aprender.


Sei que muitos deles, apesar de seu especial talento e de sua
vontade de aprender, não encontram meios ou professores que
possam ajudá-los a realizarem suas ambições.
J. J. FUX4

Este livro foi escrito para os estudantes. Ele oferece um conjunto de idéias e
observações a respeito de diversas obras musicais e, mais importante, um reper-
tório de maneiras de compreender a música. Utilizamos anteriormente a palavra
moldura para designar este repertório de idéias. Essa moldura, quando preenchi-
da, deve ser suficiente para englobar toda uma vida de percepções musicais. Este
repertório de músicas e de idéias inclui e desenvolve:

- a música européia, do canto gregoriano e da música de Guillaume de


Machaut até compositores como Messiaen e Boulez;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 25


assim como vo1-ovo-n.n

e Tibete;
em seus
ângulos em
i"OV'Ont"OC'

neira que cada parâmetro


seu devido foco;
- os fundamentos e conceitos da teoria música na ciência do som e
de sua percepção, assim como em teorias mais de
ção e informação;
- a discussão, u~uu.v necessária, das relações entre idéias e estru-
turas musicais e a execução, assim como de idéias e estruturas em
outros campos da natureza e humana.

Dessa forma, visamos desenvolver modos de compreensão correspon-


dam à diversidade de imaginação musical presente ao redor do globo. Este
um desafio sem precedentes, pois, trabalhando sem modelos prévios, freqüen-
temente tivemos que inventar o caminho. Não possível tratar cada situação
e questão de maneira igual. Por pode ser argumentado que a música
européia ainda está representada de forma desproporcional; entretanto, a sele-
ção de música européia tornou-se historicamente tão abrangente que uma
diversidade de atitudes básicas em à música e esta variedade se relacio-
na diretamente com a atitude de outras culturas. disso, tomamos
cuidado para formular as idéias básicas aplicáveis a diversas situações
mesmo quando, neste livro, elas são (porém alguma ex-
clusiva) exemplificadas por música da Europa e dos Estados Unidos. Por ~···~~"''-'"J'
os processos de definição lingüística são examinados na música européia que em-
prega os sistemas modal, tonal e de doze notas, assim como nos sistemas râga da
Índia. Os diferentes sistemas europeus são considerados de maneira igualitária,
sem predileções - seja por avaliação ou por ênfase - que favoreçam um sistema
específico. Com esse pensamento, examinamos o sistema
Felizmente, manter este ponto de vista se tornou mais fácil
dos criadores dos últimos 75 anos. Schoenberg, Berg e Webern na Áustria; De-
bussy, Satie, Messiaen, Boulez e Xenakis na Busoni e Stockhausen na
Alemanha; Bartók e Ligeti da Hungria, Scriabin e Stravinsky Rússia; Ives, Va-
rese, Sessions, Carter, Cage e Babbitt dos Estados compositores

26 APRESENTAÇÃO
e com as novas e
Esses compositores abriram novos som
a percepção e o Atuando como teoristas, junto com outros teó-
como Schenker, refinaram maneiras anteriores de conceber a música. Mui-
tos intérpretes - Schnabel, Furtwangler, Casals, Landowska, Kirkpatrick, para
alguns - visões de inestimável valor a respeito da estrutura e da
LH•~·~~.~~ musical. Iniciando com Helmholtz na Europa, cientistas provaram
a inesperadamente rica e complexa do som. Nos Estados Unidos, psi-
cofísicos como Miller, Seashore, Stevens e Fletcher, dando continuidade a este
~~H••J· forneceram as bases para campos inteiramente novos de análise e cria-
ção musical. Músicos de variadas culturas, sejam intérpretes ou pesquisadores
(etnomusicólogos, por exemplo), direcionaram seus esforços ao som e ao sentido
de outras culturas musicais. Uma moldura com lugar para todos estes desenvolvi-
mentos, ainda freqüentemente inacessíveis aos estudantes e outros interessados
em música, faz-se necessária.

PRESENTE E FUTURO

As impossibilidades de hoje são as possibilidades de amanhã.


Charles Ives 5

A criação musical segue de maneira incessante. A música eletrônica, a mis-


tura de culturas, o advento de novos modos de comunicação e a relação do som
com outros meios tornaram possível novas abordagens composicionais. A cria-
ção na música não consiste somente do trabalho de compositores, mas também
da execução, análise e compreensão sensível e imaginativa. Intérpretes, teóricos,
pesquisadores e cientistas que revelam aspectos anteriormente não percebidos
das obras musicais e das potencialidades musicais podem ser considerados cria-
dores tanto quanto os próprios compositores. Desenvolver e manter a compreen-
são criativa requer o mesmo grau de prática que o desenvolvimento da técnica
composicional e instrumental. Assim como na técnica instrumental, ainda exis-
tem aí problemas a serem resolvidos e possibilidades não percebidas ou domina-
das. Os assuntos desenvolvidos neste livro permanecem em aberto: os processos
da criação e compreensão musical levantam questões e revelam possibilidades

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 27


="'''-'-ª não Sua contemplação e
""~"''""'-'"''"L"- o sobre o escreveu.
Seguimos este caminho menos trilhado sem excesso de confiança. Respon-
dendo à questão "você é o famoso Schoenberg?", o e teórico
austríaco dito: "alguém tinha que sê-lo e, como o quisesse ser, eu
resolvi esse encargo". Superamos nossas próprias hesitações através de
revelações e percepções que surgiram inesperadamente a cada momento e pela
resposta de nossos alunos, que mostraram vontade e até mesmo ímpeto de assu-
mir as obrigações de aprender, analisar e criar muito do esperado. Estamos
conscientes que, na tentativa de elaborar uma visão panorâmica, tivemos que
nos intrometer no território de especialistas, portanto esperamos as correções
inevitáveis. Igualmente nos damos conta que as limitações de espaço (ou nossas
próprias limitações) nos forçaram a discorrer com excessiva brevidade ou até a
omitir certos assuntos vitais, relevantes ou simplesmente interessantes. Por isso,
com expectativa aguardamos outras abordagens da mesma tarefa sob pontos
vista diversos. Tais tentativas contribuirão, de fato, para um mesmo objetivo fun-
damental: revelar aos interessados a abrangência e a variedade extraordinária
dos fenômenos sônicos e musicais, assim como os significados que eles assumem.

ÜBSERVAÇÕES A RESPEITO DA UTILIZAÇÃO DESTE LIVRO

leitura deste livro pressupõe conhecimento prévio da notação musical e


da terminologia musical mais fundamental: intervalos, escalas maiores e meno-
res e tríades tonais. Este livro pode ser utilizado de diversas maneiras:

- no início de um estudo musical intensivo, como introdução a uma


moldura que inclui a maior diversidade possível de maneiras de con-
ceber e compreender a música;
- em estágios mais avançados, como moldura que unifique idéias teó-
ricas anteriormente apreendidas de forma fragmentada;
- para efeito de reciclagem, propiciando atualização de conceitos teó-
ricos contemporâneos que possam alterar a visão da música do pas-
sado e ampliar a visão da música do presente.

Não consideramos este livro necessariamente como avançado, ou seja,


dependente de conhecimento ou prática prévia. Empreendemos todo o esforço

28 APRESENTAÇÃO
informações e as neces-
é que muitos dos assuntos
são reservados atualmente para estudos avançados ou então são
omitidos no musical (psicofísica do som, espa-
análise de coleções, análise da cor sonora, música de culturas não-européias,
lH~'"'"-~ recente, entre outros).
Existem reais dificuldades para se lidar com esta complexidade. Entretanto,
toda a compreensão artística pode ser difícil e não há como fugir disso. Estamos
convencidos que essas omissões resultam não da maior dificuldade intrínseca,
mas sim da comodidade. Assim como a teoria dos números e dos conjuntos na
matemática passou do curso de graduação para a escola elementar, também as
idéias musicais podem se tornar disponíveis nos estágios iniciais de aprendizado,
nos quais se fazem necessárias por sua importância fundamental.
Este texto pretende introduzir modos frutíferos de pensamento e percep-
ção e não apresentar verdades absolutas. Ele apresenta, de forma subjacente, in-
formações (do passado e do presente) que justificam tal pensamento. Essas infor-
mações estão sujeitas a processos permanentes de crítica e aperfeiçoamento, sem
o intuito de resolver, em última análise, todas as questões propostas, mas sim de
suprir um estágio necessário de evolução contínua.
No desenrolar do livro, questões aparecem em itálico no início das seções. O
leitor que examinar essas questões poderá trazer suas próprias idéias relaciona-
das ao texto, o qual oferece maneiras de responder às questões suscitadas. Deve-
ria ser óbvio, porém sentimos necessidade de enfatizar que os exemplos musicais
devem ser escutados e executados, quando possível. A separação entre composi-
ção, execução, análise e apreciação não encontra respaldo aqui.
Os conceitos e possibilidades levantados por este texto permanecem em
aberto. Em quase todos os assuntos, ainda há o que ser pensado. Em muitos ca-
sos, evitamos conscientemente algumas sutilezas que teriam desviado a atenção
do leitor do foco principal. Cada capítulo do texto é finalizado com uma listagem
de livros e artigos relacionados. O leitor que desejar pesquisar um assunto com
mais profundidade pode fazê-lo utilizando este material, ao invés de seguir ime-
diatamente para o próximo capítulo.
Este livro será seguido por um livro de exercícios,* que fornecerá oportuni-
dades para o uso sistemático dos conceitos e técnicas apresentados neste volume.
Este livro de atividades proporá muitos problemas analíticos e composicionais que
demandam o uso imaginativo e perspicaz das possibilidades reveladas neste texto.

* N. T. O livro de exercícios e o índice não foram traduzidos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 29


uLu1,cct1 o presente como
vestigação e explore
estilos, técnicas e culturas musicais. A duração estimada
dois anos. Este pode ser utilizado de diversas "'e'"'-"
uma rápida passagem por todo o seguida um estudo
minucioso e de questões específicas. Dessa a elucidação dos
conteúdos relacionados às várias partes pode ser aplicada a cada
disso, qualquer parâmetro desejado ou técnica podem ser então explorados em
profundidade, sem perder de vista seu lugar no todo.
Os capítulos deste livro são de especial relevância para cursos de acústica
musical, análise, composição, música medieval e renascentista, música de outras
culturas, música contemporânea e orquestração. As técnicas análise da corso-
nora delineadas no do Capítulo 4 fornecem uma nova base analítica para o
estudo da orquestração. Essa base pode oferecer também uma sustentação teóri-
ca até o momento inexistente para o campo em pleno desenvolvimento da música
eletrônica.
Robert Cogan
Pozzi Escot

NOTAS

1. Transcrito de uma carta datada de 15 de outubro de 1777, contida no Essay on the True Art of Playing
Keyboard Instruments, editado e traduzido para a língua inglesa por W. J. Mitchell (New York: Nor-
ton, 1949, p. 441).
2. J. Corredor em Conversations with Casais, traduzido por A. Mangeot (New York: Dutton, 1956, p.
188-89). Copirraite (1956) E. P. Dutton & Co. Translation. Copirraite (1957) E. P. Button & Co. Inc.
e reimpresso com sua permissão.
3. Albert Einstein em Ideas and opinions (New York: Crown, 1956, p. 28).
4. J. J. Fux em The Study of Counterpoint, editado e traduzido por A. Mann (New York: Norton, 1956,
p. 17).
5. Referido em H. Cowell e S. Cowell, Charles Ives and His Music (New York: Oxford University Press,
1955, p. 180).

30 APRESENTAÇÃO
tantas
Evitar o som tornou-se, hoje em dia, uma tarefa impossível. Paradoxalmen-
ainda que a música esteja presente em todos os lugares, sua natureza fun-
damental permanece bastante desconhecida. O som organizado como música
- vibrações de ar que se propagam no invisível - é algo bastante misterioso. Di-
ficilmente encontraremos em outro campo de conhecimento maior abismo entre
os ignorantes de suas particularidades e exigências e os já iniciados em seu es-
tudo. Temos aqui por objetivos propiciar o desenvolvimento da compreensão do
som e elucidar sua formatação em obras musicais.
Por enquanto, dedicaremos um pouco de nosso tempo à outra arte, já que a
música talvez encerre algo de misterioso.

Full fathom fzve thy father lies;

Este é o início de uma canção famosa da última peça de Shakespeare, A tem-


pestade. Nunca uma morte corriqueira mereceu tal anúncio. Na prosa dos tempos
de Shakespeare, este acontecimento provavelmente teria sido anunciado da se-
guinte forma:

Thy father lies fzve full fathoms deep.

Ou então, ainda de modo menos conciso:

Thy father lies drowned in fzve fathoms of water.

Ou seja, em uma linguagem coloquial prolixa e maçante. Todas as três ver-


sões expressam o mesmo significado. Entretanto, a fruição da arte não depende
somente de seu sentido literal, mas especialmente de seu meio.
o éa o som sua

com a desordem prosaica


i
') I 1 l..J
fa-ther lies nn>w11Prl five

Em seu os evocam as do mar, ao passo que


os evocam sua pulsação métrica e
A linguagem da frase de Shakespeare é singular, não necessariamente
seus mas combinação destes. sílaba três

- significado;
-som;

é uma frase estranha -


sa reação à linguagem é tão
linguagem estende-se ao seu
nem mesmo uma morte
A arte age através de seu meio. A
ordenação de sons e Esses sons e ritmos
verbal. Esta é certamente a e mensagem arte: sua
ação ocorre através da ,_,~u""·~~ dos elementos seu meio. O mesmo se com
a música, seu meio é o som. a nós som: como
os percebemos e, mais importante, sua
No restante discussão
concisa e

34 PRELÚDIO
deste

'-'"''-'-'-'~seu som no espaço e no tempo?


u.~.u ... ~ sua linguagem musical?
- estabelece seu ritmo, dimensões e proporções?
- apresenta o espectro de suas cores?
- como os processos desses diferentes campos se inter-relacionam?

Respondendo essas questões, esperamos lentamente desvelar os elementos vitais


do som e da música.
Para ilustrá-las, examinaremos o Prelúdio n. 20 em Dó menor* de Frederic
(1839), Exemplo P.1. Diversas razões ditaram esta escolha. Além dessa
obra ser breve, pode ser executada por qualquer pessoa com alguma experiência
em instrumentos de teclado e seu estilo e caráter são, provavelmente, ao menos
superficialmente familiares a muitos leitores. Antes de continuarmos esta dis-
cussão, pedimos ao leitor que se familiarize com esta peça, seja através sua
execução, seja pela escuta ou pensap.do sobre ela.

Quais são estes sons? O que é esta música? Como um evento é ligado ao outro? Durante
sua audição, o que cria sentido e impacto? Se, de fato, a audição desta música evoca sen-
tido e poder expressivo? Que eventos (se algum) sobressaem e por quê?

O prelúdio é composto para piano, ou seja, esta obra utiliza os recursos deste
instrumento para formar seus sons e sua movimentação. Ao invés de cobrir toda
a extensão do piano, Láº-Dó 8 , a peça utiliza somente o espaço compreendido en-
tre Dó1 até Mi~5 - apenas metade da extensão do instrumento e menos da metade
da gama audível de dez oitavas do ser humano. 3 Uma obra musical trabalha com a
exploração e elaboração de regiões seletas da gama audível. A importância desta
escolha não pode ser subestimada, apesar de ser freqüentemente ignorada. Se o
leitor experimentasse tocar este prelúdio duas oitavas acima, tal leitura tornaria
a obra absurda, embora esta localização não esteja completamente fora da exten-
são de outras obras para piano de Chopin. A maioria dos sistemas analíticos não
leva em consideração a diferença produzida por esta transposição. A localização

* N. T. Foi feita uma adaptação da notação alfabética usada nos países anglo-saxônicos para a notação
italiana usada no Brasil, incluindo-se os sustenidos e bemóis.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 35


específica de uma obra gama de en-
tre outros a cor de seu som. Nesta
da metade da extensão piano e na parte da gama de freqüên-
cias audíveis. Discutiremos, outras características que ajudam a
a cor desta obra.

Reproduzido com a permissão da Salabert Editions.

36 PRELÚDIO
UH~i~ os a
'--V'·ª~~~· Faremos uso de gráficos, pictóricos e
a movimentação espacial e como uma ª"'°'""'"""
desta Os músicos se acostumaram tanto com a no-
musical européia dos séculos XVIII e XIX que já não percebem mais como
afeta sua visão das obras musicais. Examine a notação das notas Mi~ suces-
na direita no último tempo do compasso 7 e no primeiro tempo do
compasso 8. Por causa da mudança de clave, a notação sugere um grande salto
mesmo ocorre no compasso 4 e entre os compassos 8 e 9, 11 e 12 e 12 e 13).
representação gráfica do fluxo efetivo da música através da gama audível é conti-
nuamente obscurecida pela mudança de claves. A notação não fornece um mapa
visual preciso desta movimentação.
A notação também disfarça o fluxo da música através do tempo. A no ter-
tempo do compasso 1 dura três vezes mais do que a . Na impressão, esta
visualização não é respeitada visualmente. A r;;i conclusiva dura quatro vezes
J
mais do que a precedente e, mesmo assim, ambas ocupam quase o mesmo espa-
ço na impressão. É de se estranha~ portanto, que os músicos achem a execução
ritmicamente precisa tão difícil? Que, confusos pela aparência da notação, fre-
qüentemente careçam de uma idéia dara a respeito das dimensões temporais e da
movimentação espacial de uma obra musical? Apesar dos gráficos também pos-
suírem limitações inerentes, eles atenuam essas distorções da notação, expres-
sando, de modo vívido, a movimentação através do espaço e do tempo musicais. 4
A movimentação espacial de uma obra (que será discutida em detalhes no
Capítulo 1) é um assunto complexo. Somente alguns dos princípios subjacentes à
movimentação do prelúdio podem ser sugeridos neste momento. O limite espa-
cial superior (que freqüentemente é a "melodia" de uma obra) é percebido como
uma linha nesta peça, uma rede de pontos adjacentes. Esta linha inicia nos compas-
sos 1 e 2 com a linha descendente de Sol4 até Dó 4 e no seu decorrer incorpora dois
breves giros, demarcados pelas ligaduras (Exemplo P.2a). Algumas das notas des-
sa linha são especialmente importantes, porque conduzem à linha descendente
de um ponto para o outro:

Sol ----t Fá---. Mi~---. Ré~---. Dó

As outras notas, Lá~ no compasso 1 e Fá no compasso 2, elaboram (ou ador-


nam) as notas responsáveis pela direção linear. Essas notas elaboradoras são

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 37


Seu
as notas tornar-se

- cada uma retorna à nota precedente,


uma é vizinha espacial

P.2 - Movimentação linear nos compassos 1-4

N ~ nota vizinha

Nenhum dos movimentos ascendentes para Lá[, e Fá origina uma movi-


mentação ascendente posterior, tampouco cria continuidade. A linha contínua
é formada pela nota Sol, descendo para Fá, após sua elaboração por Lá[,, e Mi[,
descendo para Ré[, (e depois Dó).
Nos compassos 3-4, a direção da movimentação linear é revertida - torna-
-se ascendente - iniciando um retorno à nota Sol4 inicial (Exemplo P.2b). Este
segmento é mais complexo. Algumas das notas lineares apresentam não somente
uma, mas diversas notas ou mesmo grupo de notas elaboradoras.
Os primeiro quatros compassos da linha superior definem a base para a
movimentação espacial da peça: uma linha de pontos adjacentes, cujo impulso
primordial é descendente, preenchendo os espaços entre Sol4 e Dó 4 .

38 PRELÚDIO
ser

segmento,
segmento, compasso

a derivação das principais movimentações espa-


apresentada nos compassos 1-4. Nos compassos
""'H~Cv descendentes são P.3a):

b5 -Sol4 limite superior;


- Dó 4 -Mib3 o
compasso 7).

ui.c~uAi~
e finais destes segmentos lineares - Sol, Mib e Dó -
os segmentos inicial. Mib5 - Sol4 e Dó 4 - Mib3 , entretanto,
agora nos pontos finais dos segmentos lineares, abrangendo sex-
tas ao invés de terças; portanto, o espaço linear bastante a
de oitava no Apêndice A). O mesmo acontece com o uso
registros: nos primeiros compassos, a movimentação concen-
trava-se no registro 4 (parcialmente dobrado por oitava no 3) e agora se
estende através dos registros 2-5. O florescimento do espaço linear - produzindo
imaginativos e estimulantes da original - foi atingido através
características básicas da linha original.
estas ampliadas se desenvolvem, a nota Sol4 (que no compas-
superior) é mantida constantemente em foco durante os com-
inserida na sonoridade total (Exemplo P.3b).
(compassos 1-4) é mantido agora em torno

observar aqui a criação de suspense e tensão musical.


4 6
a nota Sol é enfatizada com discreta insistência atividade acumu-
dúvidas sobre o significado desta nota:

~u"~··~~ enfatizada?
do que as acima e
como nos compassos 1-4?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 39


- Linhas descendentes nos compassos 5-8, derivadas dos compassos 1-4

--~===~== .~

b)

40 PRELÚDIO
7

As novas linhas externas também desempenham um papel na criação deste

- neste momento, estas linhas são primordiais?


- quais serão seus objetivos?
- como estas se relacionam com a primeira da peça, entre si e
com o Sol4 reiterado?

Nos compassos 7-8, estas questões são respondidas. As tensões e incertezas


levantadas anteriormente são gradualmente resolvidas. Após mais dois compas-
sos de insistência, a nota Sol4 inicia uma reapresentação da linha original até Dó 4
(Exemplo P.3b). A movimentação linear original - Sol4 -Dó 4 - não foi esquecida.
contrário, após tornar-se a base para a exploração de novas áreas de espaço
e criar suspense, as tensões são resolvidas através desta linha descendente. A
nova linha superior dos compassos 5-6 agora se vincula à representação da li-
nha Sol4 -Dó 4 , formando uma nova entidade - uma linha mais extensa que
5 4
abrange uma décima, de Mii, até Dó (Exemplo P.3c). O impulso a um novo regis-
tro no compasso 5 é completado por esta longa linha que se relaciona diretamen-
te ao gesto original. Os compassos 9-13 repetem essencialmente este segundo
grupo de quatro compassos.
Estudamos as derivações das linhas principais de todos os treze compassos
obra, partindo da linha descendente inicial. A partir deste segmento embriô-
descendente, composto por cinco notas, são criadas extensões que perpas-
sam diversos registros. resultado é uma estrutura linear com características de
expansão, tensão e resolução.
Constatamos anteriormente que a cor deriva, inicialmente, seleção de
instrumentação e registro. O Prelúdio de Chopin também outro ele-
mento de cor: os dobramentos de oitava. Se a peça fosse recomposta como no
P.4, sua cor quase tão se fosse

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 41


- Compassos 1-2 e 5-6 sem os dobramentos de oitava

Entre as artes, a precisão seu atra-


vés

ao

42 PRELÚDIO
e da organização de
existe ainda um outro aspecto
coalescem em os tempos de um compasso
CLU•~~·~ se unem em áreas extensas de tempo. Cortot discorreu
compassos cujos três planos sucessivos resultam em uma
expressiva de surpreendente simplicidade e poder emocional". 8 Os gru-
compassos são definidos três níveis de ff, p e pp. Es-
dimensões de entretanto, não são caracterizadas somente por
'~"'u~~~. No início de cada grupo de quatro compassos, por exemplo, uma
nova linear inicia-se em Sol4 , além já mencionada mudança de
registro que ocorre no compasso 5 (e novamente no compasso 9). A movimenta-
da linha e dos registros, as mudanças de dinâmicas e o fluxo temporal estão,
em um especialmente poderoso das dimensões
quatro compassos.
Os três grandes blocos da peça, bem como suas unidades menores (tempos
e compassos), têm aproximadamerfte a mesma duração. Em uma obra musical,
ª"'"""u como em uma estrutura arquitetônica, o equilíbrio e as proporções das
dimensões mais amplas constituem-se em requisitos básicos para a coerência da
em sua totalidade. No Prelúdio, também percebemos como a simetria sub-
ª'-'-"'-'- às partes pode ser sutilmente variada. Assim como o ritenuto dos com-
passos 8 e 12 causa alongamento da duração dos tempos e dos compassos,
também o compasso extra último grupo de quatro compassos causa amplia-
ção da unidade básica. Em nenhum dos casos, a identidade da unidade básica é

Descobrimos uma obra musical, mesmo uma miniatura como este pre-
lúdio, constitui-se em uma estrutura multifacetada com dimensões de tempo e
espaço, direção e velocidade características de movimentação, e registros e cores
sonoras distintas. Vimos também como um aspecto é reforçado e esclarecido pelo
que está ocorrendo, ao mesmo tempo, em outros parâmetros:

- o módulo rítmico mantém o foco da linha espacial principal (o con-


torno melódico);
- os inícios das linhas espaciais, registros e níveis de dinâmicas traba-
lham conjuntamente para demarcar as amplas dimensões de tempo;
- a movimentação linear básica e a cor básica dos dobramentos de
tava refletem-se mutuamente.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 43


convincentemente expressadas.
acrescentaremos à discussão espaço HHÁ~"º-~"'
ra, um aspecto desse Prelúdio - sua linguagem
as notas Sol e Dó emolduram a movimentação e
~n-"ª''~ nota compasso 1 e primeira 2) constitui-se em
uma importante nota intermediária. Estas três notas também emolduram as
nhas superiores e inferiores posteriores e, de fato, todas as movimentações linea-
res. Assim como uma obra musical trabalha com áreas seletas de espaço, módulos
rítmicos e características de cor sonora, também seleciona determinadas alturas
e explora suas relações intervalares. Nesse aspecto, este Prelúdio é especialmente
criativo. Por exemplo, vimos as terças descendentes Sol4 -Mi!,4 e Mii,4 -Dó 4 , que
emolduram os gestos da primeira linha de quatro compassos, transformam-se
em sextas descendentes Mii,5 -Sol4 e Dó 4 -Mii,3 , que emolduram as linhas do segun-
do grupo de quatro de compassos.
As alturas Dó, Mii, e Sol não são importantes somente no movimento suces-
sivo ou linear da peça, elas também são as notas da primeira sonoridade simultâ-
nea. Acionadas ao mesmo tempo, estas três notas iniciam, de fato, cada um dos
grupos de quatro compassos. Além disso, formam a sonoridade final do segundo
e do terceiro grupos de quatro compassos, sendo que, no final do terceiro, elas
são estendidas por um compasso inteiro, a única extensão deste tipo que ocorre
nesta peça. Estas três alturas emolduram, portanto, as linhas e as sonoridades de
todo o prelúdio.
O intervalo de quinta (Q) no Exemplo P.5) 9 que delineia a movimentação
linear original (Sol4 descendo para Dó 4) também desempenha outras funções.
O Exemplo P.5 mostra a linha inferior do primeiro grupo de quatro compassos.
Cada nota se relaciona por um intervalo de quinta (ou seu complemento, o inter-
valo de quarta, @) com a nota anterior ou posterior, e às vezes com ambas. Esta
linha consiste, de fato, em uma cadeia de notas continuamente unidas e domina-
das por este único intervalo e seu complemento. Além disso, Dó e Sol - a primeira
e última notas, respectivamente - emolduram toda esta movimentação.

44 PRELÚDIO
e (@)no compassos 1-4

As notas Mi~ e moldam a peça, e sono-


as outras notas ocorrem como movimentos de passagem ou
como vizinhas dessas notas principais. As notas principais recorrem como repre-
sentações, expansões, complementos e transformações e, soam juntas na
sonoridade final, rememoram e sintetizam todos os eventos passados.
Este Prelúdio se restringe, portanto, somente a uma movimentação no
espaço e no tempo, nem tampouco a uma exibição de determinadas cores do es-
de cores sonoras, mas também cristaliza certas alturas e intervalos espe-
cíficos. Estes relacionamentos entre alturas específicas e intervalos é o que
minamos linguagem musical.
Com este esboço de análise, buscamos nos aproximar de campos imagi-
nação e da descoberta musical imepsamente ricos:

- espaço;
- linguagem;
- tempo;
- cor sonora.

No restante deste livro, tentaremos mostrar, de diversas maneiras, o que neste


caso só podemos sugerir, ou seja, como estas concepções têm formado a base da
criação musical por milhares de anos.
Para o leitor, ficará óbvio que novas maneiras de conceber, executar e es-
cutar uma obra musical tornam-se possíveis através da compreensão efetiva dos
vários aspectos de sua estrutura. Mesmo neste estágio inicial, fomos capazes de
compreender uma característica incomum desta notação: a separação do compas-
so 1 do compasso 2 e de ambos dos compassos 3-4:

comp. 3-4
Dó Sol

Dessa maneira, o segmento linear inicial, com seus dois subsegmentos, é nitida-
mente delineado. Igualmente dara é a razão para a conexão de todo o próximo
grupo de quatro compassos (5-8) em uma linha de ligadura:

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 45


A

trutura torna-se uma


podemos o não somente o
mas através de a maneira
realização em uma execução. as mais sutis escolhas - conexão e se-
equilíbrio e - o
examinado o Prelúdio claramente

- o sutil equilíbrio que precisa ser atingido nos compassos 5 e 9 entre


as linhas externas e a importante atividade interior sobre
- a resolução linear destas complexidades nos compassos 7-8 e
- os papéis desempenhados pelo módulo específico e pelas co-
res escolhidas para realçar as idéias centrais.

Apesar de sua brevidade e de sua familiaridade superficial, esta peça emer-


ge como uma experiência rica e sutilmente concebida. Suas premissas básicas
relação à linha, cor, tempo e linguagem) ganham clareza; as conseqüências
desenvolvidas a partir delas são, simultaneamente, lógicas e singulares. A
de um vago esboço, a obra assume características distintas de interesse e beleza.
Alguns poderão se questionar se esta não é uma maneira excessivamente com-
plicada de examinar a música. Responderemos perguntando se isso não é preci-
samente do que se trata a arte: ser capaz de desenvolver, a partir de um núcleo
delimitado de idéias e materiais, uma variedade quase inimaginável de riqueza
e unidade de sentido; ser capaz de desenvolver, a partir um
mente pequeno de sons, um microcosmo.

46 PRELÚDIO
1. por Peter-Crossley-Holland em "The Music of the Tantric Rituais of Gyume and Gyuto", en-
carte do disco The Music ofThe Tibet (Antb.,ology of World's Music AST-4005). Sua santidade Gyalwa
é a mais alta autoridade da Ordem bKa' -(b)rgyud-pa.
n.o.uL'ªI-'ª

2. Na pronúncia dos fricativos, o ar percorre uma pequena e restrita abertura, causando uma fricção
que um ruido colorido (veja no Apêndice B a seção "Ondas complexas ou ruído"). O som é
similar ao vento e as ondas.
3. A numeração de intervalos e registros é explicada no Apêndice A. A gama audível é considerada no
Apêndice B.
4. As representações gráficas de obras musicais neste livro apresentam marcantes semelhanças com
os gráficos musicais gerados por computadores descritos em M. V. Mathews e L. Rosler, "Graphical
Language for the Scores of Computer-Generated Sounds", Perspectives of New Music (Spring-Sum-
mer, 1968, p. 96-118). As qualidades que tornam os gráficos indispensáveis para os computadores
ajudam os humanos também. Consideramos os gráficos úteis como ferramentas iniciais, como um
apoio para perceber os delineamentos mais amplos da movimentação e da distribuição espacial. Dis-
cutiremos mais, a seguir, sobre as técnicas específicas de representação gráfica e os possíveis usos e
limitações dos gráficos (veja no Capítulo 1 a nota 9).
5. Uma bordadura (returning note) não precisa necessariamente ser uma vizinha espacial:

Uma nota vizinha não precisa retornar:

Em nossa análise, utilizamos a letra R para indicar todas as bordaduras, sejam vizinhas ou não. A
letra N indica notas vizinhas que não retornam. Ambos os princípios, vizinhança e bordadura, são su-
ficientes para formar uma elaboração. Durante este livro, tentamos desenvolver a consciência sobre
as notas que determinam uma movimentação (seu contorno), em oposição àquelas que elaboram uma
movimentação (ou contorno). A apresentação mais completa destas formas de elaboração encontra-
-se no Apêndice D.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 47


6. O pianista Cortot sugeriu a significação rítmica e linear desta atividade ao redor de Sol4 . Ele sugere
praticar esta frase da seguinte maneira:

Frederic Chopin, 24 Preludes, op. 28, ed. Alfred Cortot, trad. David Ponsonby (Paris: Editions Sala-
bert, 1926, p. 66).
7. Ibidem, p. 66-67.
8. Ibidem, p. 65.
9. Ver Apêndice A, seção "Intervalos", para maiores informações sobre a numeração dos intervalos.

48 PRELÚDIO
Jacob Bronowski1

Casals 2

Varêse 3
Os sons consistem em ondas produzidas por vibrações. As vibrações, sejam
originadas por cordas friccionadas, palhetas sopradas ou outro meio
quer, se propagam através do ar, a partir de sua fonte sonora, por meio de ondas,
ccuu'--'-'"'-- como uma pedra atirada em um lago calmo forma ondas concêntri-

cas. propriedade do som conhecida como altura depende do número de ciclos


ondas completadas em um segundo. O termo mais apropriado para designar
o completo de uma onda - que contém um pico e um vale - é ciclo. O nú-
mero de ciclos por segundo (cps ou hertz) é chamado de freqüência. Quanto maior
a freqüência, maior a altura. Por exemplo, o Lá4 (a nota acima do Dó central
e que dá o tom à orquestra) apresenta uma freqüência de 440 cps (hertz). A fre-
qüência da nota Lá mais grave do piano (Láº) é de 27,50 cps e do Dó mais agudo
(Dó 8), 4,186 cps.
O ouvido humano apresenta limitações em ambos os extremos do alcance
freqüência. O limite inferior é de 16 cps (aproximadamente o Dóº) e o superior
encontra-se entre 20.000 e 25.000 cps (acima do Dó1 º). Entre esses limites, se
encontra o espaço acústico dentro do qual a música acontece. 4 Uma das maneiras
de abordar uma obra musical é em relação ao movimento, apresentação ou design
desvelado no tempo e espaço acústico.
Assim como as concepções de espaço podem ser expressas de muitas manei-
ras diferentes nas artes visuais através da pintura, escultura, arquitetura e em
diversas qualidades como pontos, linhas, planos e volumes, os designs musicais
também podem ser concebidos em diversos meios e formas. Algumas proprieda-
des especiais da perc~pção visual e da luz, como a perspectiva e a natureza física
das cores, afetam profundamente as artes visuais. Da mesma maneira, certas
propriedades do som e da audição afetam a música e seus designs.
Ao longo sua história, a
elaboração, que pode ser em
(o canto grego e os cantos cristãos); a
(polifonia e renascentista); o pn~ac)mlrnto
racterística entre 1650 e 1950, geralmente
clássico, romântico e moderno) e a produção sons eletrônicos
décadas). Essa proliferação de fontes sonoras a expansão sucessiva
espaço acústico aproveitável, como demonstrado no Através
dos séculos, o alcance da música cresceu da ordem das dezenas ou centenas de
cps (hertz) dos dias de Sócrates aos milhares de cps da atualidade. 5 fascinante
história dos instrumentos musicais revela o incessante esforço de aumentar o
seu alcance através de modificações da construção e da técnica de execução. 6 No
decorrer desse processo, novas concepções design musical têm estimulado a
expansão espaço instrumental, o que, por sua vez, possibilita o surgimento de
concepções espaciais ainda mais amplas.

limites ap1·oxlma·dos
voz humana da música instrumental

-&

- 880 cps 65 cps

- 4,186

É curioso que tão pouca atenção tenha sido dedicada à investigação da na-
tureza e da extensão deste espaço, bem como de suas possíveis concepções e pro-
cessos de movimentação. A expansão que acabamos de descrever raramente foi
percebida, assim como suas enormes implicações para as formas musicais. Desco-
briremos que o próprio espaço musical oferece recursos e possibilidades musicais
instigantes. Além disso, o espaço afeta tanto a linguagem quanto a cor musi-
cal, o que torna uma descrição precisa desses campos dependente da consciência
espacial. O espaço será, portanto, a primeira de nossas explorações musicais e
estender-se-á pelos Capítulos 2 e 4.

52 O ESPAÇO MUSICAL
Examine a forma criada no espaço musical por esta peça como um todo. Existe um movi-
mento geral do começo ao fzm? Examine a forma das duas vozes. Quais são as similari-
dades e diferenças entre elas? Onde se detecta movimento, descreva a sua direção. Espe-
cificamente, quais notas conectam o movimento musical à forma? Todo o movimento da
música se encaminha ao mesmo tempo para a mesma direção? Existem movimentos de
longo e de curto alcance (curtos e rápidos)? A música permanece sempre fixa no espaço?
(O gráfico da música pode auxiliar na compreensão e na audição do contorno da música).

CONTORNO GERAL

A análise musical freqüentemente tende a quebrar uma obra em pequenas


unidades. O resultado é a visualização fragmentada e microscópica da música e
maior consciência dos detalhes e das partes do que da totalidade da obra musi-
cal.8 De fato, é a totalidade da peça musical que deve emergir de seu estudo, ou
seja, sua integridade em uma entidade formada. O principal interesse no estudo
de uma obra deve ser o de conceber e ouvir essa totalidade.
Para facilitar este propósito, apresentamos, no Exemplo 1.3, uma notação
alternativa do "Benedictus", que consiste na representação visual de suas linhas,
a fim de demonstrar sua evolução espacial de forma bem definida. 9 As linhas do
gráfico mostram que a totalidade do contorno compreende um par de vozes em
cruzamento ascendendo durante o desenrolar da obra. O ápice do movimento,
Dó 5 nos compassos 41-42, localiza-se quase duas oitavas acima do Ré 3 de onde
ambas as vozes iniciam o movimento. De fato, a distância total coberta pelas vo-
zes ascendentes (Lá 2 -Dó 5 , mais de duas oitavas) apresenta âmbito superior ao que
a voz normal pode alcançar confortavelmente. Em dois pontos (compassos 18-
31), portanto, a música passa dos pares de vozes graves a pares de vozes agudas,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 53


sucessivo
externos se no HHUU.H

- Josquin des Prez: missa L'homme armé, "Benedictus"

54 O ESPAÇO MUSICAL

:~
SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 55

:~
Vl

°'

Exemnlo 1.3 - Gráfico das linhas do "Benedictus" de Josquin des Prez

contraltos l e sopranos e

notas de cada
l
""'voz 2
f..lY.làUfli:$,U-U mínima l
vertical ~ uma nota dlatônlca
vozes em "Benedictus"

As composições, no tempo de eram geralmente reguladas pela teo-


dos modos. Os detalhes da teoria modal são apresentados no Capítulo 2. Neste
momento, o único aspecto que nos interessa é a delimitação do espaço. Em sua for-
ma original (como nos primeiros cantos cristãos), a modal limitava a maio-
das obras musicais ao espaço de um intervalo Çl§J. Em obras que combinavam
10

várias vozes diferentes, cada voz estava limitada ao espaço de um intervalo ~§::.
intenção e o efeito normal da teoria foram o de circunscrever o espaço de uma
melódica nos limites confortáveis da voz humana.
Josquin destacou-se por expandir esses limites. O teórico renascentista
Glareanus cita vários casos nos quais Josquin excede os limites "com a sua liber-
dade costumeira". 11 No "Benedictus", mesmo que as regras pareçam estar sendo
seguidas ao pé da letra quanto às vozes individuais, em espírito, o rigor da lei é
ignorado. Vincular pares de vozes em diferentes regiões para criar um único mo-
vimento espacial que ultrapasse enormemente os limites modais se constitui no
desenvolvimento espacial mais perspicaz e imaginativo de Josquin.

MOVIMENTAÇÃO DE UMA VOZ: LINEARIDADE

Concentre-se na disposição da palavra "Benedictus" (compassos 1-17) no baixo 1. Qual


é o movimento geral dessa linha? Existem notas particularmente importantes na con-
dução desse movimento? Existem pontos intermediários significativos? Qual é a função
dos saltos no movimento?

Os Exemplos 1.Sa e 1.Sb isolam o baixo 1 nos limites da palavra "Bene-


dictus". O movimento principal das vozes é interpretado no gráfico musical no
Exemplo 1.Sc. Esse gráfico revela a direção essencial do movimento bem como as
notas que desempenham papel decisivo em sua condução. 12 O movimento abran-
ge duas séries ascendentes de graus conjuntos: Ré 3 -Lá3 e Lá 3 -Dó 4 . As notas
Lá 3 e Dó 4 são os objetivos da movimentação, 13 e à medida que os graus conjun-
tos conduzem o movimento até estas notas, um novo espaço musical é
utilização pontos adjacentes 14 forma linhas ascendentes (Ré-Mi-Fá-Sol-Lá;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 57


é seus

A separação e a união gestos 5-12) são


realizadas com rara ue1e<~ct.

- o movimento '-'-'-"''-''-"'-'-'-"
nidade de retomar o movimento ascendente
com maior velocidade, mais
- mais especificamente, os gestos
- Ré 3 -+ Lá 2 , uma ao
3 3
te Ré-Lá (compassos 6-9); Ré -+ Lá

58 O ESPAÇO MUSICAL
uma
segundo gesto. Dessa
recorrem em novas direções, registros e
dades (ver Exemplo 1.5c);
- a nota Lá, meta comum (ou nota em todos estes gestos, é
3
mantida em evidência, apesar Lá ter momentaneamente

esta é uma preparação para recomeçar a ascendente pri-


3 3
na nota Lá . Com a recorrência de Lá (compasso 12), este movimento se-
gue o ap1ce seção, a nota Dó 4 (compassos 13-14).
Durante todo o decorrer do "Benedictus", as linhas ascendentes são interrom-,\
pidas com o único propósito de serem unidas novamente com suas continuações
posteriores. Dessa forma, o Dó 4 focalizado nos compassos 13-25 prepara o próxi-
mo movimento ascendente que, partindo desta nota, atinge novo ápice (Fá4) nos
compassos 25-27. Cada elo descendente da linha se curva em direção a seu ápice
anterior para desenhar uma linearidade ascendente no tempo e no espaço.

ELABORAÇÃO LINEAR

No decorrer de seus movimentos claramente direcionados, encontram-se


desvios ocasionais nas linhas. Esses desvios ocorrem nas notas Mi, no compasso
7, e Sol, no compasso 13 - notas vizinhas que atrasam por um instante a conti-
nuidade linear (Exemplo 1.6). Estes desvios atuam como elaborações de linhas cla-
ramente definidas. 15 Um outro tipo de elaboração acontece nos compassos 15-17,
nos quais o Lá 3 que o movimento se alterna com uma bordadura inferior.
Nesse ponto, a linha permanece estática, sem perseguir um novo objetivo (Exem-
plo 1.6c). O movimento de bordadura em torno da nota Lá elabora este momento
de repouso linear.

1.6 - Elaboração linear no baixo 1

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 59


sete compassos na seção. e
movimento ascendente é mais dezessete compassos
compasso 1 ao compasso 25). Estas técnicas de prolongação são
mente nos objetivos as alturas
desta peça. Essas alturas sua um
paço e tempo. exemplo, o é proeminente nos compassos
nos compassos 13-25.
prolongação é uma faca de dois gumes: ainda que estas elaborações e in-
terrupções, mais breves que sejam, incertezas sobre a continuação de
uma linha iniciada, elas permitem, como Josquin sobejamente demonstra, a con-
firmação definitiva dos elementos lineares básicos através de sua apresentação
em novas formas e aparências. Na linha de as prolongações aumentam
o poder das alturas formativas cruciais - Ré, Lá, Dó e (posteriormente) Fá-, além
de reforçar os princípios subjacentes da continuidade linear. A incerteza momen-
tânea transforma-se no meio pelo qual a própria incerteza é reduzida - através
da confirmação e da amplificação dos princípios e elementos fundamentais. 16

COORDENAÇÃO DAS VOZES

Como pode ser comparado o movimento do baixo 2 com o do baixo 1 durante a palavra
"Benedictus"? Como estão coordenados seus movimentos?

O baixo 2 começa com uma apresentação completa da linha "Benedictus" do


baixo porém no dobro da velocidade. 17 Em cada seção, tanto a voz 1 quanto a pri-
meira metade da voz 2 apresentam a mesma música (a seção I consiste nos baixos
1e2; a seção II, tenores 1e2; e a seção II I, sopranos 1e2). O desenrolar linear da
voz 1 consiste na força criadora primordial do movimento em toda a peça; cada um
de seus aspectos é reforçado por uma segunda ressonância na voz 2.
O Exemplo 1.7 mostra como os sons em cânone estão coordenados na
seção I (a linha descendente que constitui a segunda metade do baixo 2 tam-
bém apresenta esta coordenação). Podemos perceber agora que as interrupções
descendentes inseridas na linha principal desempenham ainda outra função.
Enquanto uma voz empreende a ascensão em um objetivo linear, a outra des-
cende, formando uma interrupção. Isso impede que uma voz atrapalhe a outra.
Essa coordenação cria um fluxo forte e ascendente, no qual os

60 O ESPAÇO MUSICAL
descendentes reforçam as metas

Os procedimentos observados nesta seção do "Benedictus" constituem a


base de toda movimentação: uma linha ascendente prolongada passando de uma
voz para a outra. 18 Historicamente, a ênfase tem recaído sobre a independência
das vozes na música renascentista. É verdade que a impressão momentânea das
vozes autônomas movendo-se livremente em diferentes direções impressiona.
No entanto, a ênfase exagerada dessa impressão oculta uma ordem superior de
coordenação que consiste na interação das vozes formando um fluxo linear dire-
cionado e unificado no espaço musical. Esse movimento de longo alcance no de-
correr do "Benedictus" confere contorno, forma e, em última análise, sentido aos
diversos gestos das linhas individuais (observações dessa peça, a partir de outros
pontos de vista, podem ser encontradas no Capítulo 2 e no Capítulo 3).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 61


4

Examine o contorno gerado no espaço musical pelos compassos 1-10 como um todo.
Existe uma direção geral nesse movimento? Quantas linhas separadas fluem simul-
taneamente nessa seção? Examine a forma de cada uma delas. De que maneira estas
linhas se unem para criar movimento e direção?

CONTORNO GERAL

Para facilitar a compreensão do contorno geral da apresentamos a


metade da peça em notação gráfica (Exemplo 1.9).
Assim como o "Benedictus" de Josquin, esta peça consiste em várias vozes
simultâneas. 19 Bach, através da sua notação, distinguiu três delas:

- a voz do baixo, que começa com uma extensa série de graus conjuntos
ascendentes;
- uma voz interna, que alterna notas e pausas desde seu começo;
- uma voz soprano, que apresenta padrões de semicolcheias em
sucessão.

Hl'!:enmpJlo 1.8 - J. S. Bach: Suíte francesa n. 4 em Mib, ''Allemande"

62 O ESPAÇO MUSICAL
SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 63
as notas cada voz, suas na mesma

- a voz do baixo aparece na clave de Fá, com as


- as vozes internas aparecem tanto na de
para na clave com as hastes
- a voz soprano aparece na clave de Sol com as hastes

Seguindo, começo ao fim, o 1.9, percebe-se esta as-


sim como o "Benedictus'', ascende continuamente para níveis elevados do
espaço musicaL Enquanto o desenvolvimento por Josquin consiste em
duas crescem a partir de um ponto, o movimento proposto por
Bach começa com uma textura aberta e espaçada que parte dos registros 2 e 3 e
ascende até o registro 5. O movimento é definido de forma especial pe-
las vozes externas (soprano e baixo), as quais delineiam a movimentação através
espaço. A coordenação entre essas vozes é responsável pela evolução espacial
de toda a textura .

.l:ix:en:i:pllo 1.9 - Gráfico da "Allemande" de J. S. Bach

um

64 O ESPAÇO MUSICAL
uma va-
~.,.if.',w'"·~.2u'~.~~.~ ou complexidade. Constatamos que, no '-"''-"'"-"·'-'
passa por desvios (ou afastamentos) para logo retornar
com renovada energia. Ao examinar o contorno
seu direcionamento principal suas e des-

Nos compassos 1-3 da "Allemande", o movimento da voz do baixo é


~u~~.u~~ por graus conjuntos em notas longas de Mi~ até Si~- Uma
dos mesmos compassos.
O gráfico da soprano (Exemplo 1.10) nesses compassos revela um pa-
muito mais complexo. Essa linha, entretanto, também ascende de maneira
'-"'~·-<" no espaço musical, demonstrado no Exemplo 1.lüb. A voz soprano con-
três linhas simultâneas e distintas que ascendem por graus conjuntos; sua
aparente complexidade surge do movimento que Bach realiza dentro e fora des-
sas linhas. voz soprano é, portanto, multilinear.

a)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 65


Como podemos ver no Exemplo 1.12, a
define o limite do espaço sonoro. Essa
nha soprano, enquanto as outras linhas funcionam como "''·"u'c
suporte ao movimento O padrão de ascensão é muito sendo ex-
presso por todas as cinco linhas que a textura. Além disso, três das cinco
linhas expressam, com ênfase distinta, a linha Mib-Fá-Sol-Lái,-Sii, de
maneira completa ou pardal.

66 O ESPAÇO MUSICAL

--------------------------------------------------
~Estrutura compassos 1-3

desenrolar da voz soprano revela ainda outra propriedade espacial da


música: a densidade. Nesta peça, a voz soprano tem uma densidade de três linhas.
O design da "Allemande" é tecido não apenas por três vozes e sim, mais
precisamente, por cinco linhas contidas nessas três vozes. Essa densidade difere
significativamente da utilizada no "Benedictus" de Josquin, que exibe uma den-
sidade constante de duas linhas e duas vozes (contudo, na missa L'homme armé, a
variedade de densidades é realizada pelos movimentos recorrentes de acréscimo
e subtração de vozes).

CONTINUIDADE DA LINHA E DENSIDADE

A textura do movimento nos compassos 1-3 da "Allemande" é manti-


da até a conclusão da peça. Suas três vozes, das quais uma sempre é multilinear,
~·~,~··· numa textura de cinco O Exemplo l.13a dá prosseguimento à
análise das linhas superiores até o final da primeira seção (compasso 10). Assim
como no início da peça, as linhas são coordenadas. Analisando-as por uma pers-
pectiva ampla, percebe-se que elas fluem de maneira conjunta através do espaço.
O Exemplo 1.13b mostra o principal design desse fluxo unificado e demonstra
uma sucessão de quatro gestos descendentes. Cada gesto, no entanto, se origina
em um nível mais elevado, adicionando um novo grau à linha ascendente origi-
nal. Dessa maneira, os gestos conduzem o movimento geral da voz aguda do Si~4 ,
alcançado no compasso 3, às notas enfatizadas nas quais a passagem atinge sua
culminância, Fá5 e Mi~5 no compasso 9. Esta série de ondas com cristas cada vez
maiores é poderosamente expressa através do espaço pelo fluxo coordenado das
linhas superiores.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 67


1.13 -A coordenação das linhas superiores nos compassos 1-10

MOLDURA DAS LINHAS EXTERNAS

Nos compassos 1-3 da "Allemande" de Bach, o movimento ascendente ini-


cial foi conduzido pelo esforço conjunto das linhas externas e internas. Discer-
nimos, nas linhas superiores, uma continuação desse movimento ascendente em
direção a um ápice no final da primeira seção. Como a linha do baixo se relaciona
com este movimento ascendente contínuo?
O Exemplo 1.14 isola a linha do baixo da primeira seção. Observe que, em
sua totalidade, esse exemplo nos mostra um longo movimento ascendente por
graus conjuntos, interrompido unicamente por uma breve retenção (compassos
3-4) e por um único declive (compassos 5-6). O ápice é formado ao redor de Sii:,3 e
das suas notas vizinhas, Dó 4 e Lá!:,3 . Essas notas vizinhas prolongam o sentido de
culminância durante os compassos 7-8. Somente quando a linha superior alcança
este ápice (compassos 8-9), a linha do baixo muda a direção e mergulha em um
movimento descendente ao Sib2 final. Entre os compassos 7 e 9, todas as vozes,
externas e internas, alcançam seus pontos culminantes.

1.14 - A linha do baixo nos compassos 1-10

68 O ESPAÇO MUSICAL
as vozes realizam seu a voz
º"'-<ª''"U seus ápices (Dó-Sil., compassos 3-4; Rél.-Dó, compassos 5-6; e
Sol-Fá-Mil,, compassos 8-9), o baixo estável ou descende momenta-
º""mc,nr·p e vice-versa (compassos 7-8). Dessa maneira, a energia ascendente se
reveza entre as externas, que assumem alternadamente a ~~ucun.uuau.c
impulso linear ascendente. O ímpeto ascendente só é quando
ocorre uma descida coordenada no final da seção (compassos 9-10). O Exemplo
1.15 sintetiza o paralelismo essencial das linhas, revelando como sua coordena-
ção o contorno geral de a seção.

a) o movimento coordenado das linhas superiores, das linhas internas e do baixo nos
compassos 1-10

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 69


b) representação gráfica das linhas do Exemplo 1.15a

~ ~=-=---,...-._~ ~ ~ -
-~~_....-

DETALHES NO INTERIOR DE UMA TEXTURA COMPLEXA

O fluxo linear da textura da "Allemande" de Bach emerge com a mesma


clareza que os pares de vozes de Josquin. Agora que entendemos alguns dos as-
pectos do movimento geral, podemos fazer uma pausa para apreciar os detalhes.
Primeiro, notemos as reiterações e as reflexões do gesto ascendente origi-
nal, Mi~-Si~. A linha soprano nos compassos 3-10 (ver Exemplo 1.13b) e, conse-
qüentemente, também as outras linhas superiores, que se movimentam parale-
lamente (ver Exemplo 1.13a), são constituídas inteiramente por inversões 21 deste
segmento linear de cinco notas. O mesmo segmento de cinco notas, em movi-
mento ascendente ou invertido, constitui-se também na base da do baixo.

Como em Josquin, o gesto linear original de Bach apresenta ressonâncias


em diversos níveis, na formas ascendente e descendente, bem como em diversas
velocidades. Esse gesto forma a movimentação e também suas
prolongações - como na linha soprano (Exemplo 1.13b). Dessa maneira, mais

70 O ESPAÇO MUSICAL
vez,

mas, no contexto
a soprano (Exemplo 1.12a).
Nesse aspecto, a técnica Bach é na em que ocorrem
Pn1r-PrnP1'irP lapsos temporais entre uma nota e sua continuação u11,ect1

entrelaçados (voltaremos aos


lapsos amplia a textura
possam ocorrer

dissecar uma destas passagens. O Exemplo mos-


tra como um movimento linear direto - o movimento coordenado por graus con-
descendente quatro linhas nos compassos 6-8 (Exemplo 1.16a) - se
em um animado diálogo de e vozes. No Exemplo 1.16b,
monstramos como a multilinearidade das vozes é ativada maneira
a seqüências descendentes. Cada repetição da seqüência inicia um grau
ª'-''"'"'·v do precedente. soprano é, sua vez, elaborada de maneira a
um eco do (Exemplo 1.16c).
As seqüências descendentes alternam-se com a do Dessa ma-
o movimento descendente linear várias apresentações, sendo res-
saltado por uma voz e depois por outra. A elaboração
ccu.1u."~"' colabora que estas imitações mútuas sejam ouvidas.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 71


RESUMO

A movimentação da "Allemande" de Bach, assim como a do "Benedictus" de


Josquin, é linear. A textura de Bach, entretanto, inclui mais linhas, abrange mais
espaço e é ainda mais rica em prolongações, interrupções e digressões do que a
textura da peça de Josquin. Mais uma vez, constata-se a extraordinária clareza
escrita de Bach, uma vez que o impulso linear principal mantém sua integrida-
de durante toda a peça. As linhas externas movem-se por graus conjuntos e estes
movimentos determinam o design de toda a seção. Essas linhas conduzem toda
a textura e as linhas internas apóiam esta movimentação. em Josquin, as
prolongações de Bach são utilizadas para restabelecer o gesto linear original em
novas modalidades e permitir as diversas vozes do uu.~~iú~
linear em diferentes momentos.
multilinearidade é uma das técnicas em que é um mestre: uma única
voz consistentemente origem a ele
três "'-''uvcw em u1na

72 O ESPAÇO MUSICAL
que
ª"-<''-'"--"- (mais observações sobre esta peça
3, Tempo e

Quantas linhas existem nesta obra? Qual elemento cria o contorno principal desta fra-
se? Qual é o movimento linear principal? Como podemos comparar esta frase aos exem-
plos anteriores?

CONTORNO GERAL: A VOZ DO SOPRANO

Nas peças de Josquin e Bach, duas ou mais vozes com contornos distintos
são coordenadas tão intimamente na produção de um padrão de movimento que
se torna difícil escolher uma voz primária consistente. A concepção de Mozart
no "Laudate Dominum", cujo gráfico das linhas está representado no Exemplo
1.18, é bem diferente. A única voz que realiza um movimento bem formatado é a
voz do soprano, executada pelo violino L A voz interna do violino II pode parecer
ativa à primeira vista, mas trata-se somente de três linhas estáticas, sendo que
nenhuma delas se move mais do que um grau acima ou abaixo do seu nível inicial
(Exemplo 1.18). Essas vozes dão apenas uma ilusão de movimento.
As duas vozes mais graves - fagote ad libitum e o baixo (tocados pelos vio-
loncelos, contrabaixos e órgão) - geram uma certa movimentação. Suas durações,
contudo, são muito medidas e ocasionalmente são interrompidas por longos
ríodos de imobilidade. Não obstante, oportunamente será considerada a relação
movimentos das vozes mais graves com o movimento mais ativo da linha do
L Ao todo, quatro vozes formam seis ramificações lineares. dessas
ramificações se de estática ou com

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 73


uma a a voz
seu contorno.

- W. A. Mozart: Vesperae solennes de confessore, K. 339, "Laudate Dominum",


compassos 1-11

*violino II: legato


**fagote ad líbítum (opcional): durante as passagens piano a dinâmica do fagote é assai piano (com suavidade)
***a voz do baixo: executada pelo cello e pelo órgão com o contrabaixo dobrando uma oitava abaixo; todas as
notas com indicação de staccato

74 O ESPAÇO MUSICAL
das linhas da de
vozes estão conectadas

·~ violino ll

ou contrabaixo

10
1

primeira parte da compassos 1-4, ascende diretamente do Fá4 ao


Dó 5 , prolonga este Dó 5 com bordaduras e inicia um movimento descendente in-
completo, Dó-Sii,-Lá. A segunda parte, compassos 5-11, completa esse movimen-
to descendente ao Fá4 inicial o dramatizando, ao começar numa altura superior,
Fá5 . Nos exemplos de Josquin e Bach, a energia das linhas ascendentes foi inten-
sificada por mergulhos descendentes; aqui uma repentina ascensão em direção
a uma nova altura (compassos 5-6) adiciona força à queda subseqüente. De fato,
Mozart repete imediatamente este gesto de interrupção (começando no Sol5), nos
compassos 7 e 8, COilJ.O uma elaboração do movimento Si-Si[, (Exemplo 1.20).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 75


É a como gesto Es-
sas resgatam um gesto
Por exemplo:

- a descendente Dó-Sil,-Lá (compassos


camente (Dó-Siq -Sil,-Lá), na base

- o início dessa linha descendente, nos compassos 3-4, gera direta-


mente o gesto de interrupção nos compassos 5-6;

- o gesto dos compassos 7-8 ecoa em ambos os aspectos da interrup-


ção nos compassos 4-5 - as sextas ascendentes (Lá-Fá e Siq -Sol) e a
descida linear que os integra à linha principal;
- as elaborações dos compassos 9 e 10 são idênticas em seus formatos
e estão enraizadas no ritmo do início da linha aguda;

Considerando-se o que foi observado, a melodia não revela repetições ób-


vias e cada elemento surge organicamente de elementos anteriores. Como é ca-
racterístico na música de Mozart, a linha é dinâmica: incorpora novos graus, di-
reções e áreas do espaço sonoro na medida em que se desenvolve.
A retomada da mesma passagem mais adiante no movimento (compassos 46-
56, mostrados no Exemplo 1.20a) apresenta a interrupção linear dos compassos
5-8 sob uma luz reveladora. Nos compassos 48-53 dessa retomada, a voz soprano
do coro canta uma versão sutilmente modificada (Exemplo 1.20b) da linha descen-
dente inicialmente apresentada nos compassos 5-11. Na variação coral, a segunda
interrupção (compasso 49) é completamente omitida e ocorre somente no acompa-
nhamento dos violinos. Aqui, torna-se evidente a essência da linha consiste na

76 O ESPAÇO MUSICAL
eem
·····~··e~ descendente a
da elaboração
e adição significativa de movimentação cromática
longado entre Lá e Sol).
Em ambas as passagens, as notas na do soprano que funcionam como
suportes principais de toda a movimentação são Fá4 , Dó 5 , Lá4 e Fá4 - uma
de Fá maior (Exemplo 1.21). Como essas notas um papel cru-
na definição do vocabulário tonal de Fá na peça, afetam ~ .. ··-·~~···~·~
mente a elaboração dos contornos da obra e a sua linguagem (estudaremos estas
funções lingüísticas no Capítulo 2).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 77


b)

(as partes do violino II, fagote, cello, órgão e baixo foram suprimidas, pois essencialmente 'f
duplicam as linhas do coro)

Ao examinarmos a movimentação da linha soprano, não podemos ignorar


o fato de esta ser apenas introdutória, o começo de um movimento muito mais
longo dentro do "Laudate". Nesse caso, a relação da parte com o todo é particu-
larmente interessante. A característica mais extraordinária do design da frase
inicial - uma ascensão abrupta que depois é integrada à linha - antecipa outros
movimentos similares (ver compassos 21 e 27 no Exemplo 1.22). Uma caracte-
rística que no contexto da frase é especial e até pode parecer disjuntiva, em um
contexto maior torna-se um elemento unificador do design O drama conti-
do na linha de Mozart depende da reiteração desse processo ao longo da obra. 22

78 O ESPAÇO MUSICAL
, voz soprano, compassos 17-32

Já observamos quão restrito é o espacial da figuração de três


linhas violino IL Essa figuração propicia uma base estática contra a qual se
projeta a linha principal (estas notas também definem algumas características da
linguagem musical - as harmonias - que serão examinadas no Capítulo 2. As mu-
danças harmônicas causam as sutis flutuações desta figuração). A voz do violino
II está em conformidade com um dos principais preceitos da escrita harmônica:
para ressaltar o contorno principal, o movimento das demais vozes deve ser o
limitado possível, procedendo sempre para a nota mais próxima disponível.
Movimentando-se quase totalmente por graus conjuntos, o fagote também
proporciona um discreto apoio ao movimento da linha principal, geralmente me-
diante o paralelismo em décimas (Exemplo 1.23). Este papel secundário de su-
porte é sugerido pela indicação ad libitum ("opcional").

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 79


VOZ DO BAIXO

Na voz do baixo, e uma - são a


altura Fá. Mozart, as poucas notas restantes com
ao design
que a soprano
graus ao a afasta-se desse Fá
em oposta graus - Fá-Mi-Ré-(Sol)-Dó -, chegando também
ao Se traçarmos o movimento completo da voz do baixo, constatamos que o
inscreve uma curva que, em termos gerais, consiste na inversão es-
'-"'~~,~ do arco soprano: o ascende, o descende e vice-
-versa. O resultado é um espaço total se expande e se contrai pela coordenação
desses limites superiores e inferiores (Exemplo 1.24).

Uma análise detalhada revela que várias notas do estão dispostas em


pontos onde não ocorrem outras ações, de tal maneira que recebam o máximo
de atenção (ver Exemplo 1.17) (além disso, através de suas freqüentes dissonân-
cias com a melodia do violino I ou com a melodia de suporte do fagote, as notas
do baixo são também lingüisticamente enfatizadas). Por meio de sua localização
temporal e das dissonâncias singulares que criam na linguagem musical, essas
notas - e seu contorno resultante - adquirem importância. É necessário reconhe-
cer as implicações desses pares de linhas externas na execução da obra. Freqüen-
temente, os intérpretes negligenciam as linhas do baixo e as suas relações com as
outras linhas. Embora "martelar" a linha do baixo seja desaconselhável e fora de
contexto, a clara apresentação de sua forma e de sua parte no design espacial total
é imperativa, ainda que mais rara do que as vozes angelicais.
introdução do "Laudate Dominum" de acrescenta um aspecto
ao nosso sobre o espaço uma única

80 O ESPAÇO MUSICAL
as outras vozes dessa
este contorno. Mesmo a em oposição do
no ascendente do soprano pela abertura de um espaço
toda expansão e contração espelham o movimento da do soprano.

EM
31, N. 3, PRIMEIRO MOVIMENTO, COMPASSOS 1-25
i.25)

Como a extensão do espaço utilizado neste trecho se compara com aquela utilizada nos
exemplos anteriores? Os saltos parecem ser uma importante característica no movimen-
to desta obra - por exemplo, nos compassos 10-16. Quais são os seus efeitos no desen-
volvimento linear?

"'"'"'"'"""1"' 1.25 - Beethoven: Sonata para piano em Mi~ maior, op. 31, n. 3, Primeiro Movi-
mento, compassos 1-25

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 81


EQUIVALÊNCIA DE OITAVA: A HÉLICE DO ESPAÇO MUSICAL

Como nos exemplos anteriores, apresentamos o início da Sonata para piano,


op. 31, n. 3 de Beethoven em notação gráfica (Exemplo 1.26). O gráfico não é de
forma alguma simples. Algumas conexões lineares são claras, principalmente no
começo e no final da passagem. Outras conexões são facilmente compreensíveis
ainda que, como em alguns dos exemplos anteriores, apresentem lapsos tempo-
rais. O gráfico não expressa, contudo, um movimento linear acabado. Podería-
mos questionar, nesse momento, a relevância do conceito do movimento line-
ar neste contexto, não obstante, qual é o papel das conexões lineares presentes
nessa peça? Se o movimento linear não é importante nessa peça, por que existem
tais conexões lineares? Essas questões refletem a necessidade de considerarmos
vários princípios adicionais de organização espacial.

82 O ESPAÇO MUSICAL
- Gráfico Beethoven: Sonata para piano em Mi',, maior, op, 31, n. 3, Primei-
ro Movimento, compassos 1-25

um quadrado horizontal "" uma sei:ninJma ( J)


11!!1111 "" voz do soprano
: · iote.rnas
vnz do hai:xo

Até o presente momento, descrevemos a movimentação espacial da música


como um processo linear: uma linha movendo-se de freqüências graves a agudas,
ou vice-versa. Essa concepção é válida para muitas movimentações espaciais, po-
rém não é adequada para muitas outras situações, especialmente nas movimen-
tações que abrangem vastas extensões de espaço musical. Assim como no espaço
terrestre, o intervalo entre dois pontos, à curta distância, parece ser uma linha
reta, porém projetado em maior escala revela linhas curvas ou geodésicas. O es-
paço musical também revela características de longo alcance não percebidas em
uma escala menor.
Entre essas características, a principal constitui-se na oitava. As alturas são
denominadas como se uma nota fosse de alguma maneira idêntica àquela loca-
lizada a uma oitava de distância. Todas as notas do Exemplo 1.27 são chamadas
de Dó. Essa notável correspondência é conhecida como equivalência de oitava e é
uma característica c~mum em várias linguagens e culturas musicais do mundo. 23

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 83


A freqüência da nota D6 2 é o dobro da freqüência de D6 1 • O mesmo relacionamento ocorre
em cada oitava sucessiva (pequenas discrepâncias são ocasionadas pelo arredondamento de
frações).

11xen1p.11.o 1.28 - Um modelo helicoidal do espaço musical: uma linha curva que, na medida
em que ascende (ou descende), continua girando ao redor de um mesmo eixo

a)

Na concepção espacial utilizada nas análises precedentes, os sons mais


próximos de qualquer altura são aqueles espacialmente adjacentes ou próximos.
Entretanto, em uma visão mais ampla do espaço musical, a oitava propicia uma
relação de identidade entre duas notas quaisquer. O espaço musical precisa ser
entendido em analogia não com uma linha reta e sim como uma hélice ou espiral
cilíndrica 24 (veja o Exemplo 1.28). Nessa concepção espacial, existem dois tipos
diferentes de relações de proximidade:

1) entre pontos próximos em uma curva linear, ou seja, entre graus


conjuntos adjacentes (Exemplo 1.28a);

84 O ESPAÇO MUSICAL
entre

entre graus adjacentes constitui-se no


anteriormente. Apresentaremos agora o movimento
registro) a como no Exemplo 28b.

DESLOCAMENTO DE REGISTRO

Como os deslocamentos de registros afetam o design musical? Que elementos do design


musical estão envolvidos nos deslocamentos de registros?

No compasso 3 da Sonata de Beethoven, as notas do baixo Lál, e Mil, mudam


oitava - das suas posições originais nos registros 2 e 3 (compassos 1-2) para
os registros 1 e 2. 25 No compasso 5, as notas Lál, e Mil, do baixo retornam dos re-
gistros 1 e 2 para seus registros iniciais, 2 e 3. No compasso 7, o baixo se desloca
novamente para o registro 1. O compasso 10 apresenta a melodia e a harmonia
compasso 1 (registro 3 e 4) nos'registros 4 e 5. Novas mudanças de registros
acontecem nos compassos 11, ,12, 14, 16, 18, 19, 22 e 23. Durante estes 25 com-
passos, ocorrem 13 mudanças de registros.
Uma recomposição dos primeiros 25 compassos da Sonata de Beethoven por
um compositor fictício, C. M. von Diabolus, é apresentada no Exemplo. 1.29. Nos
lugares em que Beethoven muda de registro, Diabolus apresenta as passagens
equivalentes, porém desprovidas destas mudanças. 26 É marcante que, nessa ver-
são, desaparece quase todo vestígio de saltos. Uma estrutura linear que antes es-
tava escondida emerge com nitidez (Exemplo 1.30). A voz multilinear do soprano
do Exemplo 1.30 contém três movimentações em direção ao Mil,:

Fá-Solj,-Sol-Fá-Mif,
Lá-Sol-Fá-Mi/,
> ocorrendo sucessivamente na linha do contralto, registro 4

Dó-Ré-Mi/, desenvolvendo-se lentamente na linha do soprano, registros 4 e 5

Essas linhas, principalmente o importante movimento do contralto, são apoia-


das pelo movimento•linear paralelo nas outras vozes.

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 85


E:x:en1pllo 1.29 - C M. von Diabolous: recomposição do op. 31, n. 3 de Beethoven, campas-
SOS 1-25

Com a eliminação das mudanças de registros, o movimento linear pode ser


mais facilmente entendido. Um lento movimento linear gradual desenvolve-se a
partir do proeminente Fá inicial:

- Fá-Sol~-Sol (ocorre na primeira frase, é repetida. Esse movimen-


to se estende por mais um grau conjunto ascendente até chegar à
nota Lá~ na segunda frase, compassos 18 e 22);

86 O ESPAÇO MUSICAL
- Fá-Mib descendente todas as frases).

Existe, portanto, uma estrutura subjacente nesta passagem de 25


compassos.

LINHA, REGISTRO E COR

Os deslocamentos de registro na Sonata de Beethoven prolongam e drama-


tizam o que, na versão de Diabolus, parece ser um movimento linear-harmônico
lento e repetitivo. Através de múltiplas mudanças de registro, esse movimento
incorpora diversas cores, graus de tensão e pontos de interesse.
Encontramos anteriormente vários exemplos de mudanças de registros uti-
lizados para a prolongação do movimento, como a descida do Lá 3 ao Lá 2 no "Bene-
dictus" de Josquin e a ascensão ao Fá5 no "Laudate Dominum" de Mozart, ambas
com função interruptora. Nesses dois casos, entretanto, a mudança de registro
é incorporada dentro de um fluxo linear contínuo. Fazendo uma analogia com o
modelo helicoidal, todos os pontos nas curvas espirais dessas obras são preen-
chidos, conectando os dois níveis da hélice. A Sonata de Beethoven salta, porém,
diretamente de um nível a outro (Exemplo 1.31). Cada evento dessa peça é deter-
minado por dois tipos de movimento: linear (como mostrado na recomposição de
Diabolus) e registral.
O estudo do movimento registral é recente e suas implicações menos co-
nhecidas do que as do movimento linear. 27 Nesse momento nosso objetivo é in-
troduzir o movimento registra!. Abordaremos novamente esse assunto, de ma-
neira mais detalhada, no Capítulo 4. Fazemos isso porque o movimento registral
não é meramente uma força espacial, mas também (em grau muito elevado) um

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 87


da cor sonora. registros
recem uma grande diversidade de cores sonoras. sons ~"°~~N~
rem enormemente dos sons graves. Essas diferenças se
relativo brilho ou opacidade (a mais óbvia
detalhes, com mais profundidade, no

O registro predominante no movimento linear desta Sonata de Beethoven


é o registro 4 (veja o Exemplo 1.30). Entretanto, através de deslocamentos de
registros, a voz do soprano introduz também os registros 3, 5 e 6. A voz do bai-
xo ocorre predominantemente nos registros 2 e 3, mas também se movimenta
nos registros 1 e 4, através de deslocamentos. Portanto, durante o desenrolar
da linha no registro 4 (apoiada nos registros 2 e 3 pelo baixo) nos 25 primeiros
compassos, a textura gradualmente expande seu espaço, abarcando do registro
1 ao registro 6. Esses 25 compassos apresentam diversos registros que, posterior-
mente, se transformam em localizações de atividade primária. Por exemplo, a voz do
soprano do segundo grupo de idéias concentra-se no registro 5 (Exemplo 1.32a).
Essa região foi preparada pelos deslocamentos anteriores para este registro (por exem-
plo, nos compassos 9-10, 14-15 e 18). Os Exemplos 1.32b e 1.32c evidenciam o
movimento bilinear deste segundo grupo, cujo espaço é ampliado pelos desloca-
mentos de registros.
O ponto culminante da abordagem multirregistral de Beethoven é alcan~
çada na seção de "passagem" (lead-through), ou desenvolvimento, do movimento. 28
Nessa passagem, Beethoven mantém três correntes atividades, que cobrem
simultaneamente cinco registros (Exemplo 1.33). Nela, Beethoven utiliza toda
a extensão do piano disponível na época composição desta obra, do Fá1 grave
ao Fá 6 agudo. A nota Fá é em registra!
da peça. No início, ela se encontra no marcante do

88 O ESPAÇO MUSICAL
o registro 5, o segundo de
a aparece nas extremidades
max desenvolvimento, no espaço mais longínquo que o instrumento Bee-
29
thoven pode alcançar. evolução espacial é, portanto, realizada simultanea-
mente pelos dois tipos de movimentos citados anteriormente: linear e registraL
Dessa maneira, todo o espaço registra! é aberto e explorado e a célula espacial
111."-""' explode em ampla gama de cores como resultado de seu movimento
diversos registros.

vizinha deslocamento de

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 89


1.33 -A atividade multirregistral na seção de desenvolvimento na Sonata op. 31,
n. 3 de Beethoven

123 126

É desnecessário mencionar que uma obra como esta requer um alto nível de
exigência do intérprete e que tal demanda dificilmente é alcançada, por ser esta
uma das sonatas de Beethoven mais freqüentemente sujeita a alterações e dis-
torções. Um intérprete consciente do papel dos deslocamentos de registros deve
tratar o primeiro destes, o baixo dos compassos 2-3, como um momento especial,
já que ele se constitui na semente da qual germinará toda a forma registral. Como
se Beethoven quisesse enfatizar este momento, é especificamente nesse ponto

90 O ESPAÇO MUSICAL
que está localizado o ritardando. De fato, as indicações de tempo, ataque
e dinâmicas de Beethoven são valiosas para ajudar o intérprete na projeção da
mudança de registros. Entretanto, essas indicações são freqüentemente ignora-
das ou mesmo contrariadas. 30
Apesar do movimento registra! (e a utilização criativa dos registros) já estar
presente na música européia muito antes de Beethoven, ele foi o compositor que
elevou o movimento de registros à mesma importância do movimento linear -
um desenvolvimento necessário na concepção do espaço musical. Esse assunto
não foi ignorado por seus contemporâneos. Tovey nos lembra que:

Weber pensou que Beethoven estava à beira do hospício por sustentar, na coda do pri-
meiro movimento de sua Sétima Sinfonia, a nota Mi em cinco oitavas simultâneas [...]. É
curioso que Weber não tenha mencionado então as cinco oitavas do Si~ bem no início
da Quarta Sinfonia de Beethoven, mesmo que este tenha citado anteriormente esta in-
trodução com desprezo e como uma instância de blefe, na qual Beethoven espalha uma
dúzia de notas durante quinze minutos. [grifos do original]31

Mesmo que esta avaliação seja contrária à nossa, Weber reconhece, na con-
cepção de registros de Beethoven, a cristalização (na música européia) de uma
nova arte do espaço musical. Talvez não tenhamos atribuído crédito suficiente
a estes gestos espaciais de grande envergadura e colorido como uma das princi-
pais origens da visão musical do século XIX e XX e ainda, possivelmente, como
exemplo da interconexão entre os mundos musicais e imaginativos da Europa e
da Ásia. 32 (Observações sobre esta peça, a partir de outros pontos de vista, serão
encontradas no Capítulo 2 ("O sistema tonal: conclusão") e no Capítulo 3 ("Exe-
cutando módulos, frases e seções").

ARNOLD SCHOENBERG: SEIS PEQUENAS PEÇAS PARA PIANO


1

OP. 19, N. 6 (EXEMPLO i.34)

Como pode ser comparado o espaço total desta peça com aquele utilizado na Sonata de
Beethoven op. 31: n. 3? Existe movimento melódico de uma ou mais linhas através do
espaço? Os saltos, que são um elemento importante desta peça, representam desloca-
mentos de registros em uma movimentação linear? Como pode ser comparado o movi-
mento espacial de Schoenberg com aquele de Beethoven?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 91


Utilizado com permissão da Belmont Music Publishers, Los Angeles, California 90049.
Copirraite (1940) Arnold Schoenberg.

O espaço total da sexta pequena peça para piano de Schoenberg é prati-


camente idêntico aos vinte e cinco compassos de Beethoven que já analisamos:
Láb1 -Mi6 (na Sonata de Beethoven, o espaço abrange Láb1 -Fá6). De fato, ainda que
apresentem diferenças marcantes na movimentação e na concepção do design es-
pacial, as duas peças são similares no espaço total e na sonoridade harmônica. 33
A técnica de Beethoven - que desenvolve de maneira equilibrada e simul-
tânea o movimento linear e de registros - era característica da música do século
XIX. Em Schubert, Berlioz, Wagner e Brahms, este equilíbrio é essencialmente
preservado. Posteriormente, no entanto, a movimentação registral assumirá
cada vez mais importância na concepção do fluxo espacial de uma obra musical
(por exemplo, no quarto movimento da Terceira Sinfonia de Mahler ou nas Nuages
de Debussy - a evolução de registros dessa peça de Debussy será extensivamente
examinada no Capítulo 4).
Schoenberg, no começo do século deu um passo decisivo: sua músi-
ca movimenta-se por todo o espaço disponível, utilizando principalmente a

92 O ESPAÇO MUSICAL
possa se movimentar, um espaço criado própria
34
. Schoenberg, não precisa de um "novo espaço", mas sim do
já existente em Beethoven e em seus sucessores. ampliação espaço
dlt.cu1.,.a.ua por Beethoven e confirmada nas composições século XIX) possibi-
uma concepção de movimento espacial ainda mais radical, designada total-
mente a partir de sua própria e vasta expansão espacial. Nesse novo tipo de movi-
mentação (da qual Schoenberg foi pioneiro), o design percorre amplas expansões
de registros, ao invés do desenvolvimento por graus adjacentes e lineares.

-
D

urn ·quttdr-ado vertical. "" um semitom


um qu21.drado horlzont:al uma c-01chei.a

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 93


REGISTROS E CAMPOS

O op. 19, n. 6 consiste em dois elementos que são identificados no gráfico do


Exemplo 1.35:

- notas longas articuladas simultaneamente e mantidas para formar


densidades sustentadas;
- breves instâncias melódicas em uma ou duas vozes.

Examinaremos inicialmente a movimentação do segundo elemento.


O gráfico no Exemplo 1.36 isola o elemento melódico e revela o movimento
espacial preponderante: um movimento descendente dos registros 5 e 6 para o
registro 1. Cada instância melódica cobre uma área registrai específica, ou seja,
um campo de ação de alturas. Utilizaremos o termo "campo" para designar áreas
de freqüência de qualquer amplitude - da amplitude restrita de uma única freqüên-
cia a todo o alcance de freqüências disponível. A amplitude de um campo pode
ser completa e continuamente preenchida ou definida pela demarcação de seus
limites, e seu espaço interno também pode ser dividido de outra forma. A instân-
cia extrema de amplitude e densidade consiste no ruído branco soando por toda
a gama de freqüências audíveis. 35
O gráfico do Exemplo 1.36 mostra os quatro campos de ação melódica na
peça de Schoenberg. Três destes campos (os campos I, III e IV) conduzem o mo-
vimento descendente:

Dentro de cada campo, o registro mais grave (encaixado no gráfico do Exem-


plo 1.36) é enfatizado:

- campo I - o registro 5 é enfatizado pelo acento e dinâmicas mais


intensas sobre as notas Ré# 5 ;
- campo III - o registro 3 é o âmago da ação melódica deste campo;
- campo IV - o registro 1 constitui-se no objetivo da movimentação;
esse registro é sustentado pela fermata final.

A movimentação registrai é descendente, sendo que o peso sempre incide no re-


gistro mais grave de um campo, conectando, dessa maneira, a parte inferior de
um campo com o próximo campo mais grave. 36

94 O ESPAÇO MUSICAL
op. 19, n. 6

campo IV

Nesta peça, é necessário conceber o movimento de uma maneira ampla,


considerando as movimentações através de registros e campos. Embora a peça
contenha também instâncias de gestos quase lineares (que serão examinados na

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 95


próxima seção), é impossível conceber seu como de
um registro específico como na versão de Não
existem registros predominantes. O trânsito constante pelos diversos registros
é intrínseco ao movimento desta peça. A tentativa de reduzir arbitrariamente
a peça a um único registro a O movimento descendente
registros e campos constitui, seu de longo ª"·ª'"-~

VARIANTES ESPACIAIS DE GESTOS

Durante a extensa movimentação descendente design espacial, o movi-


mento registral incorpora certas relações específicas entre as alturas. Sem an-
tecipar o assunto das relações entre notas e intervalos (que será discutido no
Capítulo 2), devemos, não obstante, discutir seu significado para o movimento
espacial. O campo I apresenta relações de alturas, intervalos e espaço que são
expandidas no campo III, ao passo que os mesmos tipos de relações no campo II
são expandidos no campo IV. Estes relacionamentos estão resumidos a seguir e
detalhados no Quadro A:

- os campos I e III enfatizam a nota Ré# (Mi~), que ocorre simultanea-


mente em dois registros em cada campo. Cada um desses campos
apresenta uma ou mais elaborações por bordaduras cujo intervalo
Q) é registralmente expandido - no campo I em um intervalo @ e no
campo III tanto em um intervalo @ quanto no @. Cada um desses
campos funde duas vozes;
- os campos II e IV enfatizam a nota Sol# (Lá~), a qual é elaborada pela
relação intervalar (1). De fato, cada campo consiste somente em duas
notas, a nota Sol# (ou Lá~) e sua nota de elaboração. Da mesma for-
ma que o intervalo Q) foi expandido para o intervalo @ no campo
III, o intervalo (1) do campo II é expandido por um registro transfor-
mando-se em um intervalo @ no campo IV. 37

Os intervalos mais importantes que definem os campos I e II são expandi-


dos em um registro nos campos e IV. Portanto, à medida que a peça se desen-
volve, o espaço do campo não somente descende, mas também se expande de maneira
sistemática.
Algo realmente surpreendente ocorre: os intervalos Q) e (1) - intervalos ca-
racterísticos das elaborações - são utilizados em várias formas e possibilidades
espaciais. Esses intervalos ocorrem tanto em suas formas mais reduzidas quan-
to em expansões espaciais. Em uma movimentação esses intervalos são

96 O ESPAÇO MUSICAL
pelas ~'-'-)~'-'-'"-
que um pode ser u.~'""''-'-V
como espaçado, nenhum espacial é
estabelecido. A utilização dos campos propicia a apresentação de intervalos com
e de disposições e nisso reside seu grande
para o movimento espacial.

campo I

- ênfase no Ré# através de dobramentos de oitava, elaboração e repetição;


- elaboração por bordadura superior (Ré#-Mi-Ré#) espaçado como G) e@(o
@surge do efeito acústico resultante do Ré mais forte no registro inferior);
- superposição birregistral de duas vozes.

campo II

- enfatização do Sol# através do acento, da dinâmica e da duração - observe


a fermata;
- relação interv;lar a>com o Sol#;
- gesto composto por duas notas.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 97


campo III

(Õ----

- enfatização da nota Mib através de transposições de oitava, elaboração e


repetição. O Ré é uma nota vizinha de Mib;
- elaborações por bordadura (Ré-Dó#-Ré e Mib-Mi-Mib) espaçadas como G),
@ e@ - ampliando a separação de um registro no campo I, o intervalo@,
para dois registros de separação, o intervalo @, no campo
- superposição birregistral de duas vozes.

campo IV

- enfatização do Láb por meio da duração - observe a fermata;


- relação intervalar Q) com o Láb, expandida em um registro no intervalo@;
- gesto composto por duas notas.

AMBIGÜIDADE DE MOVIMENTAÇÃO

Preocupamo-nos sobretudo com o movimento de larga escala que é respon-


sável pela criação do design; não temos a intenção de enfatizar demasiadamente
os detalhes. Schoenberg, entretanto, descobriu uma possibilidade no movimento
por campos tão característica, encantadora e diferente nos detalhes lineares que

98 O ESPAÇO MUSICAL

--- --~------------~-------------...._ _________


ser se constitui na criação de relacionamen-
tos ambíguos entre os
Dentro de cada campo existem ambigüidades de movimento. exemplo,
0 campo I nos permite três interpretações:

corno

um como voz inforim

um movimento ascendente descendente


formado eventos dimimícos mais marcantes

Eliminar qualquer uma dessas interpretações resultaria em uma arbitrariedade,


principalmente depois que constatamos (no Quadro A) que cada uma destas ca-
racterísticas gera novas conseqüências na peça. O movimento interno do campo
é, portanto, ambíguo: uma nota pode ter múltiplas interpretações e todas elas
são necessárias.
De maneira análoga, no campo II, o Sol# 3 pode ser interpretado de duas
maneiras: fixado (sustentado pela pedalização indicada) ou em movimento des-
cendente ao Fá# 3 . O detalhado movimento interno sugere novamente múltiplas
possibilidades através dos meios mais econômicos.
Na organização por campos, os detalhes podem permanecer tanto ambíguos
quanto múltiplos em suas interpretações. Por exemplo, o movimento estrutural
do campo II não é influenciado pelo fato de o Sol# ir para o Fá# ou vice-versa. Esse
detalhe seria, obviamente, crucial para o movimento linear, no qual uma nota se
movimenta para a sua continuação linear. O significado do campo, entretanto,
permanece inalterado nas duas possibilidades, já que consiste na soma do Sol# 3
e do Fá# 3 •
Essas fascinantes ambigüidades impedem sobretudo a possibilidade de
uma interpretação linear. 38 Obrigam, dessa forma, uma interpretação que leve
em conta o movimento de larga escala dos campos. Acreditamos que várias das
aparentes dificuldades da música do século XX se originam da incompreensão da
ampla movimentaçãG.J por campos. Uma tentativa fútil é realizada no sentido de
impor a continuidade linear em obras musicais cuja continuidade efetiva é con-
cebida através do movimento registral e de campos, obras cujos detalhes lineares

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 99


internos podem tanto estar ausentes ambíguos
ou mesmo ao

TOTALIDADE DOS CAMPOS

Com o propósito de oferecer uma dara aos campos e aos recur-


sos estes oferecem, nos concentramos até o momento nos campos
Schoenberg. Agora, examinaremos o design de sua peça op. 19, n. 6.
Assim como linhas podem ser superpostas, nos campos esta possibilidade
também é Na peça de Schoenberg, os campos de eventos melódicos são
superpostos contra campos de harmonias densas, como mostrado no Exemplo
1.37. É dessa sobreposição que surge o design total. Cada campo melódico se vin-
cula a um campo harmônico. Como podemos ver no Exemplo 1.38, o padrão de
movimento dos quatro campos harmônicos desenvolve-se de maneira distinta
do padrão dos campos melódicos. Nos campos I e II, os campos melódicos e har-
mônicos movimentam-se paralelamente. O movimento descendente nos campos
melódicos,

encontra paralelo no movimento descendente dos campos harmônicos,

Entretanto, nos dois campos restantes, as harmonias retornam aos seus regis-
tros originais (registros 3-5), uma ascensão que contrasta com o movimento des-
cendente dos campos melódicos em direção ao registro 1.
Várias forças são combinadas para produzir no campo conclusivo IV a maior
extensão espacial da peça, que cobre os registros 1 ao 5. Nos campos I e II, os
eventos melódicos e harmônicos apresentam similaridades quanto aos registros
e à direção descendente. Quando ocorre a separação dos movimentos harmônico
e melódico nos campos III e esses movimentos tomam direções opostas e o
espaço dos gestos melódicos característicos também se expande em um registro.

100 O ESPAÇO MUSICAL


melódicos e estão
"~,~~"~~ aumenta significativamente sua ~"'L~''"
a de direção e de registro. O movimento descen-
IJ"''"'cª'v espacial dos campos melódicos que observamos até agora fa-

design que no o mais intenso contraste - um


registros (abrangendo os registros 1-5) e de cores associadas a estas

- Os campos harmônicos do op. 19, n. 6 de Schoenberg

5 9
campo

"' limites do campo

Constatamos, portanto, que os campos podem se relacionar com outros


campos da mesma forma que as linhas se relacionam entre si, oferecendo a pos-
sibilidade de uma fascinante e complexa elaboração e justaposição. A peça op. 19,
n. 6 de Schoenberg é importante por ser a pioneira neste novo movimento e por
alcançar amplas expansões espaciais e atingir seu design com extraordinária eco-
nomia e concentração de elementos. Vastas regiões e movimentações são forma-
das por não mais q1;le toques de sons: movimentos espaciais e mudanças de cor
que anteriormente requereriam vários compassos e minutos de desenvolvimen-
to39 ocorrem nessa obra (através do movimento dos campos) quase de maneira
instantânea.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 101


Schoenberg disse certa vez que Webern, seu "expressar uma
novela em um único gesto, a alegria em uma respiração". 40 Esse reconhecimento
poderia ser atribuído ao próprio Schoenberg, já que ele foi o primeiro compositor
a realizar esta concentração em uma escala espacial.

Exemplo 1.38 -A sobreposição de campos melódicos e harmônicos do op. 19, n. 6 de


Schoenberg

campo r

melódicos - - , notas campos ham1õnlcos

102 O ESPAÇO MUSICAL


DE

Como pode ser comparado o espaço total desta peça com o dos exemplos anteriores?
O princípio formativo do design espacial constitui-se na movimentação linear ou por
campos? Quais são os limites espaciais e que instrumentos os criam? De que maneira a
densidade é variada?
\

CONTORNO GERAL

O último exemplo desta nossa introdução sobre o design espacial é formado


por campos cujas ações internas são consideravelmente mais extensas que as do
op. 19, n. 6 de Schoenberg. Retornaremos à "Introdução" do Segundo quarteto de
cordas de Carter em outros capítulos deste livro, para explorar seu multifacetado
conteúdo, a partir de outros pontos de vista.
Apesar de sua complexidade s,uperficial, o design espacial geral da "Introdu-
ção" é nítido. O gráfico do Exemplo 1.40 revela a presença de três campos espa-
ciais distintos (A, B e C). Os campos A e C são quase idênticos em suas amplitudes
espaciais e na utilização dos registros. Cada um desses campos se estende por
menos de uma oitava e meia e excede por pouco o limite do registro 4 (Dó# 5 é
o limite mais agudo de ambos os campos). Entre estes dois campos, o espaço do
campo B explode seus limites externos em ambas as direções, abrangendo, em
última instância, mais de cinco oitavas (Dó 2 -Ré7 no compasso 24).
A formação completa do espaço levanta diversas questões interessantes.
Por exemplo, de que maneira é obtida a ilusão de movimento nos campos A e
C, que não são percebidos como estáticos? Qual a relação entre os movimentos
internos desses campos com a expansão no campo B? Esta obra musical é tão
simples quanto sugere seu design de larga escala?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 103


- Elliot Carter: Segundo quarteto de cordas, "Introdução"

104 O ESPAÇO MUSICAL


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 105
suJ1ita meno .rnosso

106 O ESPAÇO MUSICAL


executado com a unhada mão direita
c'.i estralado contrn o es1:i!'.lllc
(l) o deve parar a nota a corda
verticalrnrnte ao um som ressonante como o do violão

ESTASE E MOVIMENTAÇÃO NO CAMPO A

A "Introdução" revela diversos procedimentos de movimentação e repouso


dentro do limitado espaço (Si~ 3 -Dó# 5 ) do campo A:

- movimentação através de todo o campo em um único gesto de movi-


mento (violoncelo, compassos 8-9);
- pares de notas longamente sustentados, que são, às vezes, alternados
ou repetidos para criar texturas sonoras (violoncelo, compassos 2-3);
- notas curtas dispersas e isoladas (violino II, compassos 4-5).

O primeiro procedimento, o gesto de abrangência do campo, é de suma im-


portância. Os cinco gestos desse tipo estão isolados no Exemplo 1.41. Na medida
em que esses gestos se desenvolvem, os campos que percorrem são ampliados,
ainda que de maneira bastante discreta (Exemplo 1.42). Os gestos são ampliados
tanto em sua expansão total quanto nos intervalos utilizados. Todos esses gestos são
f: variantes do primeiro, através das técnicas de extensão, inversão, aceleração e
expansão intervalar. (Exemplo 1.43). Embora tanto o campo quanto a natureza
geral do gesto permaneçam essencialmente estáticos, as sutis expansões de in-
tervalo e campo antecipam as importantes transformações no campo B.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 107


1.40 - Gráfico da "Introdução" do Segundo quarteto de cordas de Carter

108 O ESPAÇO MUSICAL


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 109
..

110 O ESPAÇO MUSICAL


no campo A

x = salto descendente de@


x 1 = x invertido
x 2 = x invertido e @expandido um semitom para®
x3 = x 2 invertido
y = dois x conectados na mesma direção

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 111


.................---- .............----~~~-

gestos aore~>er1taLdCJS
demos notar pelos exemplos
como notas curtas e isoladas. Cada gesto soa:

- em vários
- em cada do espaço
- como parte intrínseca aos e
espacial.

contrário da maioria dos exemplos anteriores, nos quais os limites do


campo eram definidos por uma única voz ou linha responsável pela movimenta-
ção mais externa, nesta obra os limites são definidos pela totalidade da música.
Cada linha limítrofe se constitui a partir de diferentes gestos e em diferentes
cores instrumentais (e, além disso, é constantemente misturada com o silêncio).
Ainda que aparentemente estática, cada limítrofe é de fato expressa com
muita variedade. Essa variedade - não somente nos limites, mas em todo o es-
paço do campo - é responsável pela ilusão de movimento e transformação no
campo. 41 A respeito dessa variedade, é importante notar que, antes da mudança
de tempo no compasso 11, cada gesto é expresso em intervalos menores que (§).
Depois da mudança de tempo, começam a aparecer intervalos maiores que (§\
porém ainda dentro dos limites restritos do campo A. Dessa maneira, a expansão
intervalar de cada gesto prepara a explosão no campo B.
Outro aspecto a ser considerado sobre o campo A consiste na distribuição
de densidade. Na parte inferior do Exemplo 1.40, são apresentados números
indicam a quantidade de notas simultâneas durante a composição. A densidade
resultante da soma das notas flutua constantemente, passando de baixa para alta
densidade e, posteriormente, de alta para baixa densidade:

1-2-4-6-7-4-2-1-2-3-4-5-2-1-3-4-5-6-8 e assim por diante


~~~~ ------------
No campo A, ocorrem dois pontos de densidade máxima: as sonoridades de oito
notas nos compassos 9 e 17. Essas culminações são apresentações da mesma si-
multaneidade de oito notas (Exemplo 1.44) que ocorrem em diferentes distribui-
ções intervalares e instrumentais. 42 Consistente com a sutil expansão espacial
sugerida dentro do campo A, a simultaneidade de oito notas é composta, no com-
passo 9, por intervalos iguais ou menores ao intervalo @ (consulte o Apêndice
A para maiores informações sobre o sistema de numeração dos intervalos) e no
compasso 17 como intervalos igual ou maiores ao intervalo@ (Exemplo 1.44).

112 O ESPAÇO MUSICAL


-A oito notas no campo A

Vários detalhes ocorrem dentro dos limites essencialmente fixados do


campo A:

- gestos de movimento interno;


- densidade;
- distribuição instrumental e intervalar da sonoridade de oito notas.

Todos esses detalhes são primeiro especificamente definidos para depois


serem sutilmente expandidos como preparação para o campo B.

A MOVIMENTAÇÃO NO CAMPO B

O fluxo restritamente contido dentro dos limites do campo A rompe seus


limites na explosão espacial do campo B. 43 No campo B, os pequenos gestos an-
teriores de movimentação espacial e o espaço total do campo expandem-se com
rapidez e de forma radical. O Exemplo 1.45 nos mostra, em detalhes, como um
elemento do gesto inicial do campo A (as duas notas acentuadas que concluem
o gesto) é reformulado no campo B. Apesar de manter sua acentuação original,
os intervalos @ são expandidos no campo B, formando intervalos (/), ®, @ e
@. Esses intervalos tanto ascendem quanto descendem e soam como notas in-
dividuais ou em pares como notas duplas. Cada uma destas ações - expansão,
inversão e acoplamento em simultaneidades - foi preparada no fluxo interno do
campo A. Embora a explosão espacial transforme o significado dos gestos, cada
um deles se constitui em uma variante expandida dos gestos do campo A. A ex-
pansão dos gestos conduz o espaço total do campo em direção às extremidades
inferior e superior (registros 2 e 7), alcançadas no meio do campo B (compasso
24). A expansão sutilmente proposta no campo A é realizada de maneira explícita
(e surpreendente) no campo B.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 113


-----------------------~~~-
lix•e:m:plo 1.45 - A expansão dos gestos no campo B

ESTASE E MOVIMENTAÇÃO NO CAMPO C

O campo C apresenta características registrais, quantidade de espaço uti-


lizado e qualidade de estase quase idênticas ao campo O espaço no final do
campo C é sutilmente reduzido, equilibrando a expansão espacial do começo do
campo A. o campo e é totalmente composto por um único elemento: os pares de
sons longamente sustentados do campo A.
O campo C é dominado por duas densidades de oito notas, cada uma pro-
longada por vários compassos (Exemplo 1.46). Com o propósito de dividir estas
densidades, duas notas fora do campo são ouvidas no violoncelo no compasso
31. Como no campo A, existe um fluxo dentro deste campo fixo e restrito: não
somente o fluxo das duas formações de densidades distintas, mas também (no-
vamente) diferentes distribuições instrumentais de cada uma das formações. A
primeira densidade de oito notas ocorre em duas distribuições intervalares e ins-
trumentais diferentes (Exemplo 1.46a):

- nos compassos 27-28, formada por intervalos (Dl ou por intervalos


mais amplos;
- nos compassos 29-30, formada por intervalos menores que (Dl.

114 O ESPAÇO MUSICAL


CLUJ,.,JCLU'l-~'J•
ao passo 0 c se no
percorrem todo o espaço campo e os uu11u:;:i
nos são por diferentes instrumentos em momentos diversos.
Cada campo individual, assim como a soma dos campos, revela diversas
possibilidades fascinantes de movimento, tanto em seu interior quanto entre
os campos. Particularmente, observamos a existência de uma conexão orgâni-
ca entre estase e movimentação. A idéia de estase incorpora (nesta sugestão de
expansão) as sementes da movimentação, ao passo que a movimentação (como
um todo) é a realização dramática das mais ínfimas alterações dentro da estase
(observações sobre a "Introdução" de Carter a partir de outros pontos de vista po-
dem ser encontradas no Capítulo 2, na seção "Ultrapassando os limites da série"
e, no Capítulo 3, em "Modulação de tempo (ou métrica)").

b}

vln.II

v!n.n

CONSIDERAÇÕES CULTURAIS E HISTÓRICAS

Uma concepção espacial desenvolve-se instintivamente


e em geral permanece desconhecida de seus próprios autores.
É justamente por causa de suas manifestações inconscientes
que ela fornece idéias reveladoras a respeito das atitudes de um período.
Siegfried Giedion44

O estudo que acabamos de realizar é importante não apenas para a


arte da música, mas também para toda a vida cultural na qual ela se insere.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 115


em uma faceta .""""C·~~.~
~~·~,~-··Paradoxalmente, nos
ampla da experiência humana que se e a
comunicação.
Essas afirmações não são oferecidas seu efeito
passo adiante para o entendimento das concepções
com dois riscos opostos: apresentar um necessariamente superficial
e especulativo a respeito das maneiras como o pensamento parte da
realização sensorial, emocional e intelectual do ser humano (um vasto e inex-
plorado campo de estudo) ou ignorar as conexões essenciais - por exemplo, a
derivação de quase toda a terminologia musical de outras áreas do pensamento.
Este último aspecto, ainda que freqüentemente ignorado, é muito importan-
te. O vocabulário musical é constituído basicamente por metáforas. Termos como
"alto", "baixo", "linha", "campo", "movimento", "forma", "espaço" são utilizados na
música por analogia. Não somente as palavras empregadas em nossa abordagem
analítica são analogias, mas também os termos de outras tradições. Na análi-
se harmônica tonal, por exemplo, são utilizados termos como "fundamental",*
"centro", "tonalidade" e "cadência". 45 As análises tonais dependem especialmente
da analogia numérica (parte de uma analogia atomística maior 46). As harmonias
são numeradas I, II, III e assim por diante. Esta numeração musical não é, porém,
idêntica à numeração matemática; ela é análoga somente em um dos seus aspec-
tos (por exemplo, duas vezes I não equivale a II; a multiplicação não existe no
sistema tonal. Quando ocorre na música - por exemplo, no pensamento de Bou-
lez47 - também consiste em uma analogia). Nos subseqüentes capítulos deste li-
vro, encontraremos ainda outros termos utilizados por analogia: "célula'', "pulso",
"frase", "módulo", "dimensão", "cor", "espectro", "brilho", "ataque'', "decaimento".
Há quem considere a presença da analogia uma desvantagem, entretanto
não concordamos com este pensamento. A analogia é inevitável: para eliminá-la
deveríamos eliminar todo o discurso musical do passado e também quase todos
os estudos científicos sobre som - com que propósito? Esses termos são valiosas
indicações de um aspecto que merece ser mencionado - a participação da música
em um "compartilhamento de alegorias comuns" observada pelo físico Gerald
Holton: "[...] estes lugares onde o estudo científico se conecta à mesma alegoria
geral que alimenta as concepções específicas dos artistas". 48 A mente musical não

* N. T. A tradução do termo não incorpora a metáfora do termo original: root (raiz). Temos a mesma
situação na palavra "tonalidade", a qual no original era key (chave).

116 O ESPAÇO MUSICAL


faculdades as se.~., ____ ---
nam. algumas questões específicas.
característico européia desde a Gré-
cia Antiga até o final da "era européia" (por volta de 1900) do que o da linha. Na
geometria, tal como pelos gregos, a linha é primária e fundamental.
dos cinco postulados iniciais de Euclides se referem à natureza das linhas
retas. Na física, a mecânica clássica formulada Galileu e Newton trabalha
com linhas de e linhas de força: "Todo corpo em estado
repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja forçado
.. ,.~~·~· seu estado por forças nele impressas". 49 Na pintura e no desenho, a
representa os limites das estruturas, formas e configurações. Além disso, na
perspectiva linear, a ilusão do espaço visual depende da convergência das linhas
(veja a Figura 1). Esses exemplos estão longe de serem triviais. A geometria, me-
cânica física e a perspectiva visual - conforme formuladas por Euclides e Platão,
Galileu e Newton, Piero della Francesca e Leonardo da Vinci - representam o
apogeu criativo da cultura européia.

1- Leonardo da Vinci: estudo para A adoração dos magos (1481)

' Alinari-Scala
Reimpresso com permissão de

Este rascunho preparatório revela de maneira vívida as funções lineares. As linhas convergentes
do piso e da estrutura principal criam a perspectiva espacial e o foco do desenho. Em uma

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 11 7


escala menor, as delimitações lineares (muitas das quais estão truncadas ou parcialmente
esboçadas) criam as fi_guras menores.

Na linguagem, séculos de discurso foram baseados em uma progressão


linear um ponto a outro. O antropólogo Edmund Carpenter observou que "o
formato de um livro (como meio) favoreceu a expressão Ja que o argu-
50
mento se desenrola como um fio da capa à contracapa". Dorothy Lee resumiu
a importância da linha ao dizer que "em nossa cultura, a linha é tão básica que
simplesmente a assumimos como uma realidade tácita". 51
O conceito de linha tem, portanto, nos influenciado tanto que se torna difí-
cil perceber que, de fato, ele nem sempre se constitui "numa realidade palpável".
A atividade (artística e científica) do século XX tem cada vez mais questionado a
linha (como uma concepção organizadora primária). A curvatura da terra e os no-
vos conceitos sobre a curvatura do espaço têm tornado a idéia da linha reta cada
vez mais limitada e arbitrária. Desde Einstein, mesmo a definição da linha reta
tornou-se um dos maiores problemas da física. As linhas geodésicas, curvas, que
no mapa formam o contorno da Terra (ou outras curvas espaciais), apresentam
um significado mais fundamental. Contudo, a relatividade geral demonstrou que
o formato das linhas geodésicas varia de acordo com o ponto de vista e que vá-
rios pontos de vista são possíveis. 52 A partir de diferentes pontos de vista no
espaço tridimensional, a mesma curva pode parecer côncava, convexa ou mesmo
uma linha reta - o que nos lembra da ambigüidade de detalhes na linguagem de
Schoenberg. A linha reta é, portanto, uma forma limitada, enquanto as linhas
geodésicas são fenômenos complexos e ambíguos.
Além das linhas geodésicas, outras novas formas de organização espacial
têm surgido. Entre elas, a massa e o campo são particularmente importantes.
A física da eletricidade e do magnetismo fazem uso da relação dos campos e
não da relação das linhas. Como disse Einstein, "como seria difícil descobrir
esses fatos sem o conceito de campo". 53 Os pintores impressionistas adquiriram
consciência do papel da luz, da cor e do reflexo na visão. Suas pinturas revelam
várias instâncias de "harmonias de massas modeladas em cores sem o auxílio
de linhas". Essas pinturas abriram a porta aos campos das cores e das texturas
como meios de criação artística com pouca ou nenhuma utilização de linhas
(veja a Figura 2). Quando os pintores contemporâneos usam as linhas, eles as
tratam como um fenômeno multidirecional complexo. Na Figura 3, o pequeno
painel central muda perpetuamente de direção para frente e para trás de ma-
neira quase mágica. As linhas não se movimentam, mas a nossa interpretação
das linhas muda continuamente. Esta figura se constitui em mais um exemplo
preciso de ambigüidade linear.

118 O ESPAÇO MUSICAL


- Georges Seurat: A casa mal-assombrada (desenho a lápis [ca, 1880], Coleção par-
ticular de Justin Thannhauser, Berne)

"Ele alcançou um perfeito domínio no equilíbrio dos volumes de luz e sombra, Sua preo-
cupação com a gradação e com o contraste, ao invés da linha, permitiu-lhe estudar os
problemas da interpenetração e da reflexão," 55

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 119


,-u.ua.•ª·''-'·'~"' os conceitos
linguagem e '-~·""~U·'-~,,,..~~ são bem menos
que antes. Os meios eletrônicos - o rádio, o ~···~· .. ~ e a televisão - e
os meios impressos - como as revistas e os jornais - como premissa básica
a justaposição de assuntos sem conexão. Como observa Carpenter, transmis-
são de notícias tida como ideal constitui-se em meia dúzia de apresentadores de
várias partes do mundo falando sobre os mais diversos assuntos". 54 Nenhum fio
linear une os conteúdos. A ficção e os filmes têm desenvolvido técnicas (tais como
o ff.ashback e os pontos de vista múltiplos) que interrompem e questionam o de-
senrolar linear dos eventos. Explorando essa nova realidade, Joyce e Pirandello
refizeram a novela e o teatro do século XX.
Historicamente, a música européia tem sido observada em termos de li-
nhas, vozes e melodias. De acordo com essa descrição, existem três abordagens
básicas, desenvolvidas em períodos históricos distintos:

- a música monofônica, caracterizada por uma única voz melódica,


como nos cantos e canções medievais cristãos;
- a música polifónica, caracterizada por várias vozes independentes que
soam simultaneamente, como na música desenvolvida do século XII
ao século XVI;
- a música homofônica, que consiste em uma voz melódica primária
acompanhada por outras vozes e harmonias, como praticado nos sé-
culos XVIII e XIX.

Sempre consideramos essa descrição suspeita. Nunca poderá ser decidido,


por exemplo, se a maior parte das músicas de Bach, com seus acompanhamentos
harmônicos incluídos em várias vozes lineares, são realmente polifônicas ou ho-
mofônicas. Nossos exemplos anteriores mostraram como uma única voz é geral-
mente multilinear; portanto, esta música é monofônica ou polifônica? Vozes que
parecem ser independentes podem revelar um alto grau de coordenação, como
no "Benedictus" de J osquin, ao passo que uma voz com função acompanhadora,
como no baixo de "Laudate Dominum" de Mozart, pode de fato desenvolver uma
verdadeira independência linear.
Este sistema tradicional de classificação musical representa um beco sem
saída; freqüentemente, resulta em danos irreparáveis à capacidade de percepção
dos músicos quanto à verdadeira forma e conteúdo espacial das obras musicais.
Entretanto, como doutrina, este sistema apresenta um aspecto interessante: as-
sume que toda música é linear, já que define toda música em categorias lineares.
Como vimos anteriormente, nem mesmo esta suposição pode ser justificada. So-
mente a análise e a avaliação cuidadosa de uma peça musical podem revelar a

120 O ESPAÇO MUSICAL


- se este é ou outro - e sua

- Josef Albers: Constelações estruturais (1957)

Retirado de Despite Straigt Lines de François Cucher. Reimpresso com a permissão do autor
e de Josef Albers.

"Nesta interpretação irracional de dois cubos abertos, notamos em primeiro lugar as


pesadas margens superiores e inferiores das aberturas frontais. Estas são apresenta-
das por quatro linhas de comprimento e largura idênticos e, devido ao seu paralelismo,
igualmente oblíquas. Porém, rapidamente o seu paralelismo se torna dúbio. Parece que
estas linhas pertencem a um plano convexo ou mesmo a um plano retorcido. Vemos o
cubo da direita abaixo e o da esquerda mais acima." 56

A ambigüidade espacial afeta em especial o pequeno painel central compartilhado pelos cubos.
Como parte do cubo da esquerda, este parece retroceder; já como parte do cubo da direita,
este painel parece ~mergir. Como na peça op. 19, n. 6 de Schoenberg, os detalhes vibram em
várias direções simultâneas. Dois significados opostos não resolvidos estão conjuminados em
um único elemento.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 121


·-------------------~~~-
Na história da teoria musical, há que se considerar o quão tem
sido o exame das configurações espaciais de 1725, a mu-
sical contentava-se com algumas poucas generalizações, sendo as de Zarlino (es-
crita em 1558, três décadas depois da morte de Josquin) as mais extensivas entre
os teóricos de sua época:

Devemos cuidar para que a parte contrapontística seja variada em seus diferentes mo-
vimentos e que percorra diferentes graus, ora agudos, ora graves, ora intermediários
[... ]. E devemos zelar também para que a parte contrapontística seja facilmente cantada
e para que esta proceda, tanto quanto possível, por graus conjuntos, já que neste proce-
dimento reside parte da beleza do contraponto. 57

A melodia, o movimento das vozes no espaço e a linearidade dos graus conjuntos


são considerados de igual valor e primários. Zarlino sustentou que "a harmonia
surge das melodias soando simultaneamente". 58 Entretanto, além dessas genera-
lizações, ele tem pouco a oferecer sobre a formação linear e melódica.
A teoria musical e o estudo composicional de 1720 a 1900 estiveram domina-
dos pelas abordagens influentes, porém contraditórias, de Jean-Philippe Rameau
e J. J. Fux. Em seu Traité de l'Harmonie ("Tratado da Harmonia", 1722), Rameau
afirma que a melodia deriva da harmonia. 59 Essa posição não só contradiz Zarlino
como também contraria alguns contemporâneos de Rameau 60 e mesmo práticas
musicais anteriores. O livro de Rameau foi uma tentativa de compreender a nova
arte da harmonia tonal e, por causa de sua necessidade urgente, tornou-se a base
da teoria musical posterior. A asserção de Rameau sobre a supremacia da harmo-
nia fechou a porta da análise para as características melódicas e espaciais. Por
quase duzentos anos, os teóricos detiveram-se no estudo da harmonia, enquanto
os compositores debruçavam-se sobre o tratado de J. J. Fux e confiavam em suas
próprias intuições, a fim de conceber o movimento no espaço.
A importância de Fux foi mais óbvia na composição do que na teoria e aná-
lise. Em seu Gradus ad parnassum (1725), publicado três anos depois do tratado
de Rameau, Fux desenvolveu "um simples método com o qual os novatos podem
progredir gradualmente" na prática da escrita musical. 61 Este livro, baseado no
conhecimento (limitado) de Fux sobre um compositor da renascença italiana, Pa-
lestrina, apresenta exercícios de composição quevisam desenvolver no estudante
o domínio da movimentação espacial pela sobreposição de linhas melódicas. O
livro de Fux não era um guia analítico para a compreensão da melodia ou do es-
paço, tampouco da música de Palestrina. Fux não estava propondo uma teoria.
Ele estava escrevendo um livro eminentemente prático e por isso foi tão bem

122 O ESPAÇO MUSICAL


Bruckner, Schoenberg e outros
este em seus estudos e ensinamentos.
As soluções que esses compositores encontraram para cada um dos problemas
apresentados por Fux, bem como as revisões de seu método têm sido amplamen-
te republicadas.
Gradus ad parnassum implicitamente contradiz a suposição de Rameau
de que o movimento espacial melódico deriva da harmonia, pois em cada uma
das páginas de Fux, as melodias e as combinações criadas não levam em consi-
deração a harmonia tonal triádica de Rameau. Essa contradição entre os concei-
tos de Rameau e os procedimentos de Fux somente foi resolvida no século XX.
Nessa época, as intuições criativas dos músicos já estavam muito distanciadas
das teorias de Rameau e Fux. Talvez o choque das novas implicações do espaço
musical do século XX (tanto nas artes quanto nas ciências) tenha sido respon-
sável pela reabertura de intensas investigações sobre o assunto. Qualquer que
tenha sido a razão, o estudo analítico do espaço musical iniciou realmente ape-
nas no século XX.
O teórico austríaco Heinrich Schenker e seus seguidores revolucionaram o
ponto de vista dos músicos ao ilustrar em muitas análises elegantes o movimen-
to linear na música do século XVIÚ e XIX. Outros, como Hindemith, realizaram
estudos similares, ainda que menos refinados. As análises apresentadas neste
Capítulo e no Capítulo 2 revelam a enorme dívida de gratidão aos textos insti-
gantes de Schenker. 62
A partir de duas perspectivas - criatividade composicional e entendimento
teórico -, surge uma nova consciência das realizações do passado e das novas
possibilidades de formatação do espaço musical. Uma teoria da música que igno-
re estes desenvolvimentos espaciais permanecerá distanciada de algumas das
mais importantes ferramentas de entendimento musical e de criação desenvol-
vidas no século XX. Novas extensões do espaço acústico estão sendo exploradas.
A música eletrônica elimina todos os limites espaciais, exceto aqueles da audição
humana (sejam quais forem), tanto nos limites externos quanto no interior do
espaço musical. Os limites do espaço alteraram-se, assim como a divisão inte-
rior do espaço - sua embalagem. Enquanto o espaço anterior foi subdividido em
modos ou escalas (diatônicas ou cromáticas), o espaço musical atual é freqüen-
temente concebido como um continuum, uma entidade flexível que pode ser, em
maior ou menor grau, dividida ou compactada. Essa nova concepção demandou
nova notação, novas ·técnicas instrumentais, e, sobretudo, nova visão imaginati-
va do movimento no espaço (veja as Figuras 4 a 6). Linhas, campos e formas de
amplitudes e densidades variadas são concebidas e escritas com um mínimo de
referência a limitações predeterminadas.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 123


..........._____________ ~~-

nossa concepção como a preocupação com o ea


forma surgiram a estudo espaço e de e comu-
nicação atualmente disponíveis. Veremos, nos subseqüentes,
paço consiste em um campo estudo isolado. Suas formações são
sáveis na criação da linguagem e da cor os capítulos a
e o conteúdo aqui

Nesta notação medieval japonesa, as relações espaciais são indicadas por meio de gráfi_cos.
Na Ásia, desde muito cedo, o espaço musical foi concebido de maneira mais espaçada, mais
próxima do modelo de continuum fluído do que na Europa (veja também o Apêndice C). A
notação, assim como a do canto budista tibetano, reflete esta concepção espacial.

5 - Arnold Schoenberg: Ode para Napoleão Bonaparte, narrador, compassos 78-83

Copirraite (1994) G. Schimer, Inc., New York. Reimpresso com permissão.

124 O ESPAÇO MUSICAL


O movimento emerge com vivacidade, apesar da notação indicar somente de maneira
aproximada as relações altura. Schoenberg chamou este estilo vocal de sprechgesang
("canção falada"). Essa técnica foi utilizada pela primeira vez na sua obra Pierrot Lunaire
(1912). Na Europa, esta obra sinalizou uma abertura significativa do continuurn espacial e
revelou outro aspecto da original imaginação espacial de Schoenberg.

6 - Robert Cogan: whirl...ds I, parte da voz solo

LEITURA COMPLEMENTAR

FORTE, ALLEN. Schenker's Conception of Musical Structure. Journal of Music Theory, 3, p.


1-30, 1960.

FUX, J. J. The Study of Counterpoint. ed. e trad. A. Mann. New York: Norton, 1965.

JEPPESEN, KNUD. Counterpoint. trad. G. Haydon. New York: Prentice-Hall, 1939.

KRENEK, ERNST. Studies in Counterpoint. NewYork: G. Schirrner, 1940.

OSTER, ERNST. Register and the Large-Scale Connection. Journal of Music Theory, p. 54-71,
1961.

SALZER, FELIX. Structural Hearing. New York: Dover, 1962.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 125


SALZER, FELIX; ABRAHAM SCHACHTER. Counterpoint in Composition. New York: McGraw-
-Hill, 1969.

SCHENKER, HEINRICH. Five Graphic Music Analyses. ed. Felix Salzer. New York: Dover, 1969.

_ _ . Der Freie Satz. Vienna: Universal Edition, 1935.

_ _ . Free Composition. trad. Ernst Oster. New York: Langman, 1979.

SCHOENBERG, ARNOLD. Preliminary Exercises in Counterpoint. New York: St. Martin's, 1964.

SCHEPARD, ROGER. Circularity in Judgement of Relative Pitch. Journal of the Acoustical So-
ciety of America, 26, p. 2346-2353, 1964. [O fenômeno acústico descrito neste artigo, agora
conhecido como Shepard's Tones, pode ser ouvido nas gravações da Decca DL 710180, Voice of
the Computer].

ZARLINO, GIOSEFFO. The Art of Counterpoint. trad. G. Marco e C. Palisca. New Haven: Yale
University Press, 1968.

NOTAS

1. "Obviamente, as medições e a precisão ainda são necessárias, entretanto, agora as reconhecemos so-
mente como material bruto para a ciência. O propósito da ciência consiste em encontrar as relações
que organizam este material bruto, as formas e as estruturas dentro das quais os dados coletados se
encaixam. O segredo do código genético não está na aritmética, mas na disposição da geometria. A
perspectiva da ciência moderna não é a busca de dimensões numéricas e sim a busca de relações to-
pológicas. O público tem pouca consciência das mudanças que estes novos e revolucionários concei-
tos da estrutura lógica causam na ciência" (Jacob Bronowski, "The Discovery of Form" em Structure
in Art and Science, editado por G. Kepes - New York: Braziller, 1965, p. 56-69).
2. J. Corredor em Conversations with Casais (trad. A. Mangeot - New York: Dutton, 1956, p. 188).
3. Edgard Varese, "Spatial Music" em Contemporary Composers on Contemporary Music (ed. E. Schwartz
e B. Childs - New York: Holt, Rinehart & Winston, 1967, p. 204). Neste artigo, Varese trata do es-
paço musical formado pela extensão audível, nosso interesse imediato, e também sobre a música no
espaço arquitetural.
4. A totalidade do espaço acústico (ou musical) equivale à extensão das freqüências audíveis. A natu-
reza desta extensão, as propriedades físicas do som e os aspectos mais importantes da audição hu-
mana são discutidos no Apêndice B. Este apêndice fornece o conhecimento acústico, ou psicofísico,
necessário para a leitura do Capítulo 1.
5. Em contraste, a música da Ásia explorou, desde muito cedo, um espaço relativamente amplo. Com-
pare a análise de registros das Três variações chinesas sobre Plum biassam ("Ameixeiras em floração")
do Capítulo 4 com os exemplos anteriores europeus apresentados nos Capítulos 1 e 2 (os cantos
gregorianos e as obras de Machaut, Josquin des Prez e Lassus). O Apêndice C também observa o
espaço multirregistral reconhecido pela teoria indiana antiga.

126 O ESPAÇO MUSICAL


6. Considere, por exemplo, o piano. Sua extensão original de quatro oitavas foi ampliada, no tempo de
Mozart, para cinco (Fá1-Fá 6). As últimas obras de Beethoven requerem uma extensão do Dó 1 ao Fá 7 ,
uma nova expansão de uma oitava e meia. Na metade do século XIX, a extensão atual de LẠa Dó 8
tinha sido alcançada. Este desenvolvimento ainda encontra possibilidades de expansão, na medida
em que os pianos elétricos podem oferecer um âmbito ainda maior.
7. Composições medievais e renascentistas estão freqüentemente apoiadas nos cantos religiosos, fol-
clóricos, populares ou em outras obras musicais e, muitas vezes, a canção utilizada dá nome à com-
posição. A canção francesa L'homme armé ("O homem armado") talvez seja a canção mais famosa e
utilizada da Renascença. Dufay, Ockeghem, Josquin e Palestrina os compositores mais importan-
tes deste período - utilizaram essa canção como base para a composição de missas. Os três últimos
compassos

proporcionam o ímpeto para o movimento do "Benedictus" de Josquin. Veja os compassos 31-35


e também o começo da peça, no qual estas notas aparecem em movimento retrógrado (em ordem
reversa). A melodia completa pode ser encontrada em A. T. Davison e W. Apel, HistoricalAnthology
of Music (Cambridge: Harvard University Press, 1947, p. 71).
8. "Supõe-se freqüentemente que uma execução 'analítica' irá cortar a música em pequenas seções
disjuntas. O resultado de uma análise cor~eta só pode ser o de propiciar uma visão mais ampla" (Do-
nald Francis Tovey em A Companion to B~ethoven's Pianoforte Sonatas - London: Associated Board,
1931, p. iiHv).
9. Na disposição dos gráficos que serão apresentados, um quadrado vertical representa cada nota da
coleção básica de alturas: na música modal, um quadrado para cada nota do modo (Lá, Si ,Dó, Ré,
Mi, Fá, Sol); na música tonal, um quadrado para cada nota da escala maior ou menor; na música
dodecafônica, um quadrado para cada nota cromática .. Essas coleções de alturas e seus sistemas de
organização serão introduzidos no Capítulo 2. Os iniciantes podem fazer uma suposição imediata
sobre o sistema utilizado em uma peça de música européia ao olharem a data de sua composição.
Se ela tiver sido composta até 1650, podemos supor que o sistema utilizado é o modal; de 1650 a
1900, o tonal e de 1900 até os dias atuais, o dos doze sons. Na música modal e tonal, um acidente
cromático é representado pela elevação ou pelo rebaixamento de uma metade de quadrado. O eixo
vertical representa o espaço, ao passo que o eixo horizontal representa o tempo. Geralmente, a uni-
dade de atividade rítmica predominante é representada por um quadrado horizontal. Os gráficos são
oferecidos como ferramentas, isto é, são recursos para auxiliar a compreensão. Estes gráficos devem
ser complementados pelo conhecimento obtido sobre a natureza exata do movimento e da distri-
buição espacial. Consideramos que os gráficos podem exprimir informações de uma maneira vívida,
mesmo para músicos com alto e sofisticado grau de instrução, sobre o fluxo (ou distribuição) geral
do movimento espacial - uma informação que de outra forma passaria despercebida. A ferramenta
só se justifica quando servir como um auxílio à percepção do movimento e da distribuição espacial.
10. Willi Apelem Gregorian Chant (Bloomington, Ind.: Indiana University Press, 1958, p. 133-135).
11. Entretanto, ele conclui: "deixemos esta pequena falha ser perdoada em vista dos outros incompa-
ráveis talentos do homem" (Glareanus, Dodecachordon, Livro III, Capítulo 24; citado em O. Strunk,
Source Readings in Music History: The Renaissance - New York: Norton, 1965, p. 29-37). Assim como
no tempo de Josquin, durante o tempo de Beethoven e mesmo nas últimas décadas, a extensão do

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 127


espaço musical provocou as mesmas discussões e antagonismos que ocorreram em relação a outros
aspectos do crescimento musical.
12. Nos gráficos musicais que mostram o movimento linear:

= o início ou o objetivo do movimento linear

= uma nota conectiva em um movimento linear

• =uma nota de elaboração. Uma flecha, Y- ou---.,., mostra a nota elaborada

= direção do movimento

=sustentação ou prolongação de uma nota

Essas indicações não implicam valores rítmicos, somente sua função linear.
13. As notas Dó, Fá, Lá e Dó, que servem como ápices do movimento linear em todo o "Benedictus",
desempenham funções especiais na linguagem musical da peça (que serão discutidas no Capítulo 2).
Geralmente, os objetivos da movimentação são cruciais na definição da linguagem musical de uma peça.
14. Adjacente em relação ao sistema (neste caso, o sistema modal, cujas notas são Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá,
Sol e Lá.
15. Esta elaboração do movimento linear foi descrita por Adrianus Petit Collico em seu Compendium Mu-
sices (Nuremberg, 1552), como "a primeira ornamentação que Josquin ensinava aos seus pupilos":

16. Surpreendentemente, a teoria da informação estabelece uma equivalência entre informação e incer-
teza. Podemos dizer que, antes da resposta, é preciso haver uma pergunta. Certas técnicas musicais
geram questões (por exemplo, o deslocamento para uma região espacial ainda inexplorada) e, pos-
teriormente, as utilizam para reconfirmar a informação inicial. A palavra entropia é o termo técnico
para a incerteza. "A incerteza, ou entropia, é entendida como a quantidade de informação expressa
por uma mensagem produzida por uma fonte. Quanto mais soubermos sobre a mensagem que será
produzida por uma fonte, menores serão o grau de incerteza, de entropia e a quantidade de informa-
ção" (J. R. Pierce em Symbols Signals and Noise - New York: Harper & Row, 1961, p. 23).
17. A repetição justaposta de uma melodia em duas (ou mais) vozes é conhecida como cânone. Neste câ-
none, a velocidade das duas apresentações melódicas apresenta a proporção 2:1. Para as implicações
rítmicas desta relação de velocidades, veja o Capítulo 3.
18. O "Benedictus", da missa L'homme armé de Dufay, predecessor de Josquin, oferece uma fascinante
possibilidade de comparação. Também escrito para duas vozes, o "Benedictus" de Dufay realiza um
movimento linear elegante em sua primeira frase (de onze compassos). Entretanto, nesse movimen-
to, esgota o espaço disponível das vozes no sistema modal. Confrontado com o problema de como
e para onde proceder, Dufay fez da necessidade uma virtude: a solução por ele encontrada consiste
em produzir um incremento na atividade rítmica enquanto o espaço é gradualmente restringido.
Contudo, comparada com a expansão espacial deliberada de Josquin, na qual cada nota do começo
ao fim participa no desenvolvimento do crescimento espacial, a totalidade da peça de Dufay parece
menos estável.

128 O ESPAÇO MUSICAL


19º A "Allemande" de Bach foj obviamente, para um instrumento de teclas, porém, suas li-
nhas ainda são discutidas como "vozes", uma prática derivada do período de Josquinº Até o período
barroco (que começa no século XVII), a composição e a teoria européias foram concebidas tendo em
vista a música vocal- a música para uma ou mais vozes cantadasº Entretanto, as práticas interpreta-
tivas não eram exclusivamente vocaisº Na música medieval e renascentista, os instrumentos podiam
dobrar as partes vocais, executá-las de forma instrumental ou mesmo improvisar sobre estas partes,
a fim de torná-las mais próximas do idioma instrumentaL O arranjo específico era feito pelo intér-
prete (veja a nota 17 do Capítulo 4)º Durante os períodos barroco, clássico e romântico (séculos XVI
e XVII), o termo "voz" continuou sendo utilizado, porém perdeu sua conotação estritamente vocaL O
elemento mais agudo de uma peça era chamado de "voz do soprano", e o mais grave, "voz do baixo"º
Entre esses elementos, encontravam-se as "vozes internas": a mais aguda destas foi denominada
de "voz do contralto" e, a mais grave, "voz do tenor"º A textura que apresentava uma voz soprano,
contralto, tenor e baixo representa a norma desses períodosº A textura, contudo, podia apresentar
menos ou mais vozesº Um ou mais instrumentos, dependendo das especificações do compositor, po-
deriam conduzir qualquer uma ou mesmo todas as vozesº Em uma peça para instrumento solo, este
instrumento poderia ser concebido como um conjunto de vozesº A palavra "linha" (como utilizada
neste livro) adiciona uma qualidade especial ao significado da palavra "voz": uma linha é uma voz (ou
parte de uma voz) organizada como uma movimentação por graus conjuntosº
20º Padrões repetidos em vários níveis espaciais são conhecidos como seqüênciasº
21º Uma inversão é uma relação de espelho na qual cada intervalo ascendente é transformado em um
intervalo descendente da mesmo dimensão e vice-versaº
22º Note que este processo é quase semprê marcado por uma breve intensificação da dinâmica (por
exemplo, nos compassos 5-6 e 27-29)º
23º Do ponto de vista psicofísico, a natureza singular da oitava é discutida no Apêndice R
24º A operação de um princípio de proximidade na percepção de altura e a concepção de espaço musical
como uma hélice (ou espiral) são apresentadas no artigo de Rº Nº Shepard, "Circularity in Judge-
ments of Relative Pitch" (Journal of the Acoustic Society of America, 26, pº 2346-53, 1964)º Shepard
atribui a primeira teoria sobre hélice do espaço acústico a Drobisch (1846)º Todo o artigo é extraor-
dinariamente rico em implicações musicaisº
25º Na análise desta peça, os registros são concebidos de Mi~ a Mib, ao invés do usual de Dó a Dó (em
outras palavras, são transportados uma terça menor acima), o que consiste numa simplificação para
acomodar a predominância da nota Mibº
26º Diabolus precisou eliminar um compasso da peça de Beethoven (compasso 9), cuja única função é
transicional: conectar registros amplamente separados no final de uma frase e no começo da seguin-
teº Como a recomposição de Diabolus omite as mudanças de registros, não necessita desta transição
entre os registrosº
27º Este aspecto é enfatizado no artigo de Ernst Oster, "Register and the Large-Scale Connection" (Jour-
nal ofMusic Theory, 5, pº 54-71, 1961)º De maneira geral, o movimento registral tem sido amplamen-
te ignorado no estudo das técnicas e possibilidades composicionaisº O artigo escrito por Oster, bem
como observações ocasionais feitas por compositores contemporâneos, são exceções rarasº
28º Para uma discussão sobre os termos "passagem" (lead-through) e "desenvolvimento", consulte o Ca-
pítulo 2 e, especialmente, o Poslúdioº
29º Composições que utilizavam mudanças de registros poderiam se beneficar de registros adicionais no
pianoº Esta necessidade foi atendida e, durante a vida de Beethoven, a extensão do piano foi expan-
didaº Veja a nota 6 deste capítuh

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 129


30. Em suas gravações, Backhaus e Rubinstein retardam os compassos 1 e 2. Para estabelecer o andamen-
to do allegro, apressam os compassos seguintes, justamente onde Beethoven indica o ritardando! Ao
apressar esses compassos, obscurecem a crucial mudança, enquanto o efeito das indicações de Beetho-
ven é justamente o de enfatizar esta mudança através de certa relutância nestes compassos.
31. Donald Francis Tovey em Essays ín MusicalAnalysis (London: Oxford University Press, 1939, p. 75, v. 6).
32. Compare as mudanças de registros de Beethoven com aquelas das Três variações sobre Plum biassam
("Ameixeiras em floração"), discutidas no Capítulo 4, seção "Cor e registro em Plum biassam".

33. Considere, por exemplo, sonoridades equivalentes como (Beethoven) e

(Schoenberg).

34. H. Jalowetz em "On the Spontaneity of Schoenberg's Music" (Musical Quartetly, 30, October 1944,
p. 385-386). Na página 389 deste artigo, Jalowetz observa que "a concepção da oitava não incorpora
mais o significado de barreira limítrofe".
35. Boulez e Stockhausen também se referiram aos campos espaciais. Consulte Pierre Boulez em Boulez
on Music Today (Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 41). O "ruído branco" é definido no
Apêndice B.
36. O campo II prefigura a ampla movimentação registral descendente e a nota final enfatizada, Láb(veja
a discussão a seguir no texto). Sendo uma antecipação, este campo é uma elaboração do movimento
dos outros campos, que são, de fato, os principais responsáveis pela condução do movimento des-
cendente. Um campo pode elaborar outros campos, assim como certas notas elaboram outras no
movimento linear. A continuidade dos campos I, III e IV pode ser percebida ao executarmos a peça
sem o campo II.
37. Combinando as notas enfatizadas dos campos, o intervalo (z) é enfatizado,

38. O princípio da ambigüidade estrutural recorrerá em nossas observações do espaço, linguagem e rit-
mo na música do século XX. Apesar de sua importância crítica em todo o pensamento do século
XX, a ambigüidade estrutural permanece amplamente incompreendida. Veja neste capítulo a seção
"Considerações culturais e históricas" e no Capítulo 2, a nota 46.
39. A fim de abranger grandes distâncias, um movimento puramente linear deve percorrer um número
enorme de pontos adjacentes sucessivos. Por conseguinte, esta é necessariamente uma forma menos
concentrada de cobrir amplos espaços do que o movimento registral ou por campos.
40. Arnold Schoenberg em "Prefácio" para Seis bagatelas para quarteto de cordas ("Six Bagatelles for
String Quartet"), op. 9, de Webern (Vienna: Universal Edition, 1924).
41. Para maiores detalhes sobre este aspecto do campo A, veja a discussão da peça no Capítulo 2.
42. As metades inferior e superior (Lá#, Si, Ré, Mi e Fá, Sol, Láb, Réb) que formam esta simultaneidade
produzem também os grupos pan-intervalares de quatro notas, tão característicos da linguagem
musical de Carter (ver na discussão desta peça no Capítulo 2).
43. Novas dinâmicas, especialmente o ff sub (compassos 19 e 20), também definem, em uma execução,
o início do campo B, ou pelo menos deveriam.
44. Siegfried Giedion, "Space Conception in Prehistoric Art" em Explorations in Communication (ed. E.
Carpenter e M. McLuhan - Boston: Beacon Press, 1960, p. 73).
45. Veja o Capítulo 2, seção "O sistema tonal".

130 O ESPAÇO MUSICAL


46, "Atomismo, em termos gerais, significa a redução de dados complexos para os números finitos de
unidades de fatores fixos", L L Whyte, "Atomism, Structure and Form" em Structure in Art and
Science (ed. G. Kepes - New York: Braziller, 1965, p. 21).
47, Veja o Capítulo 2, subseção "Ultrapassando os limites da série",
48, Gerald Holton, "Science and the Deallegorization of Motion" em The Nature andArt ofMotion (ed. G.
Kepes -NewYork: Braziller, 1965, p, 27-28),
49, Este é o famoso postulado de Newton, citado em Einstein e Infeld, The Evolution of Physics (New
York: Simon & Schuster, 1938, p, 8),
50, Edmund Carpenter, "The New Languages" em Explorations in Communication (ed. E. Carpenter e M.
McLuhan - Boston: Beacon Press, 1960, p. 163). Para um divertido exemplo ver Laurence Sterne em
Tristam Shandy, capítulo XL
51. "Lineal and Nonlineal Codificacions of Reality" em Explorations in Communication (ed. E. Carpenter
e M. McLuhan - Boston: Beacon Press, 1960, p. 142),
52. Nesta discussão da relatividade de Einstein, os conselhos do professor Joseph Agassi foram valiosos.
53. Einstein e Infeld, op. cit., p. 133.
54. Carpenter, op, cit., p. 164-165.
55. John Rewald em Post-Impressionism (New York: Museum of Modern Art, 1962, p. 80),
56. Josef Albers em Despite Straight Lines (New Haven: Yale University Press, 1961, p. 78),
57. Gioseffo Zarlino em Istituzioni Armoniche (Livro III, Capítulo 40; citado em Oliver Strunk, Source
Readings in Music History: The Renaissance - New York: Norton, 1965, p. 55),
58. Atribuído em Knud Jeppesen, Counterpoint, trad. G. Haydon (New York: Prentice-Hall, 1939), p, 27.
59. Citado em O. Strunk, Source Readings in Music: The Baroque Era (New York: Norton, 1965, p. 210-11),
60. "Você pode proclamar que meus princípios básicos, assim como os de meu falecido pai, são contrá-
rios aos de Rameau" (C P E, Bach, em uma carta citada em Essay on the True Art of Playing Keyboard
Instruments de Bach, ed. e trad. W J. Mitchell- New York: Norton, 1949, p. 17),
61. J, J, Fux em The Study of Counterpoint (ed. e trad. A, Mann - New York: Norton, 1965, p. 17),
62, Para os pontos de vista e as análises de Schenker, consulte suas obras na lista de leituras apresentada
anteriormente, Não tentamos de maneira alguma aderir à ortodoxia schenkeriana, Nossa gratidão e
nossos desvios serão nítidos para aqueles que conhecem o trabalho deste estimulante teórico.
-
longo da história da música, presenciamos a emergência de ampla varie-
dade de linguagens musicais em o mundo, por exemplo, o sistema pentatô-
da China; o maqam arábico; os sistemas rãga da Índia; o sistema modal da
Europa medieval e renascentista; o sistema tonal da Europa barroca, clássica e
romântica e, mais recentemente, o sistema dodecafônico. A compreensão da lin-
guagem musical alcança, atualmente, uma crise similar à das linguagens verbais.
Cada linguagem é concebida de maneira separada, não existindo uma concepção
unificadora da multiplicidade lingüística.
No campo da lingüística, o problema foi convincentemente formulado por
Chomsky. É a falta de "uma gramática universal que acomode o aspecto
do uso da linguagem e que expresse as regularidades existentes que, por serem
universais, são omitidas da própria gramática". 4 Uma razão para este fracasso é
a ''convicção amplamente aceita da existência de uma 'ordem natural de pensa-
mentos' e que esta se reflete na ordem das palavras" 5 e, conseqüentemente, de
que algumas linguagens são superiores por aderirem a essa "ordem natural". Essa
idéia também influenciou o pensamento musical. O sistema tonal europeu, em
particular, foi considerado por seus teóricos, de Rameau a Hindemith, como uma
ordem natural. Alguns destes teóricos proclamaram os séculos XVIII e XIX como
o "período da prática comum", uma concepção surpreendente quando seus dois
séculos de ideais comuns são comparados com os mil anos anteriores do sistema
modal europeu ou com os diversos milênios dos sistemas rãga indianos. Na medi-
da em que essa concepção ignora não só a música desses períodos como também
a música de outras c;ulturas e mesmo a música do século XX, quão comum pode
ser esta prática?
Durante a história da música, foi produzida uma extensa variedade de lín-
guas e dialetos. Um dos aspectos mais interessantes do último século (certamente,
uma faceta estimulante e positiva) é a crescente entre essas linguagens.
Atualmente, tornou-se claro que, para entender os princípios linguagem musi-
cal, é preciso compará-las. Examinar somente uma linguagem não permite o re-
conhecimento das características comuns das várias linguagens nem tampouco a
discriminação das propriedades que podem ser singulares.
Após esta discussão introdutória, nossa abordagem consistirá em examinar
em detalhes quatro sistemas de linguagem da Europa:

- o sistema modal;
- o sistema das consonâncias e dissonâncias;
- o sistema tonal;
- o sistema dodecafônico.

Além disso, a linguagem dos sistemas rãga da Índia será examinada no Apêndice
C. Apesar da limitada gama de linguagens escolhidas, acreditamos que seu estu-
do revelará o "aspecto criativo do uso da linguagem" sobre o qual Chomsky escre-
veu. Além disso, nos proporcionará a oportunidade de integrar uma variedade de
linguagens com diversas concepções espaciais - para mostrar que, de fato, estes
dois aspectos da música são inseparáveis.

ÜBSERVAÇÕES INICIAIS

As alturas de uma obra musical não determinam somente o design de seu es-
paço musical. Notamos anteriormente que um determinado intervalo pode apre-
sentar um significado especial em um contexto específico, como no caso da oita-
va. Agora, aprofundaremos nosso conhecimento sobre as relações intervalares.
Em várias culturas e sistemas musicais, o espaço musical é dividido de
acordo com certas medidas. Pontos no espaço musical, que constituem as alturas
disponíveis em uma determinada música, são selecionados de maneira que apre-
sentem determinadas distâncias entre si. Estas distâncias são conhecidas como
intervalos. Existem diversas maneiras de dividir o espaço e, conseqüentemente,
diferentes coleções de intervalos em vários sistemas. 6 Além disso, as linguagens
musicais desenvolveram maneiras distintas de utilizar coleções intervalares si-
milares. A seleção de alturas e (especialmente) as relações intervalares características
entre estas alturas criam uma linguagem musical.

134 A LINGUAGEM MUSICAL


Quais são as notas nos Exemplos 2.1 e 2.2? Os agrupamentos intervalares
característicos criados por suas sonoridades e pela sua movimentação são similares ou
diferentes?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 135


- Chopin: Mazurka, op. 56, n. 1, compassos 12-22

Os Exemplos 2.1e2.2 utilizam a mesma coleção de alturas:

Lá#-Si-Dó#-Ré#-Mi- Fá#-Sol#

Essas notas constituem a escala de Si maior (ou Sol# menor natural), de acordo
com a terminologia do sistema tonal.7 Entretanto, os agrupamentos intervalares
construídos a partir dessas notas na obra "O velho castelo" de Mussorgsky dife-
rem significativamente daqueles presentes na Mazurka de Chopin. A peça "O ve-
lho castelo" enfatiza as notas Sol# e Ré# e o intervalo ('j_) formado por estas notas
(a numeração de intervalos é explicada no Apêndice A):

- a nota Sol# é utilizada incessantemente como nota pedal do baixo e


também constitui o objetivo das movimentações lineares nas vozes
internas e no soprano;
- a nota Ré# se sobressai como nota inicial das movimentações
lineares.

A nota Si é um pouco menos enfatizada e soa proeminentemente nos compassos


5, 7, 9, 13-14, 16 e 18.
Juntas, as notas Sol#, Ré# e Si constituem a estrutura intervalar conhecida
como a tríade menor (Exemplo 2.3). Essa tríade domina a passagem inteira: as

136 A LINGUAGEM MUSICAL


A Mazurka de Chopin enfatiza a triade maior. A estrutura intervalar da tría-
maior é ligeiramente (porém significativamente) diferente da tríade menor
(Exemplo 2.4). As sonoridades da tríade maior são Si-Ré#-Fá#; Mi-Sol#-Si; ou
Fá#-Lá#-Dó#-(Mi) (Exemplos 2.Sa e 2.Sb). Essas tríades maiores são ornamen-
tadas por bordaduras e notas vizinhas, e somente nos compassos 17-18 ocorrem
breves tríade menores (Exemplo 2.Sc). Todas as tríades maiores que podem ser
criadas com as notas da escala de Si maior são utilizadas e, de fato, nenhuma
tríade além destas está presente na peça de Chopin.

adic!i:mada

A partir da mesma coleção de notas, duas passagens diferentes são criadas:


uma que enfatiza fortemente a sonoridade da tríade menor e outra, a da tríade
maior. Uma coleção de notas contém um potencial latente de relações que podem
ser utilizadas em obras e sistemas musicais. As relações escolhidas para serem
enfatizadas podem ser obtidas somente dos recursos intervalares disponíveis na
coleção de notas. Chopin pode utilizar três tríades maiores diferentes porque sua
coleção de notas as contém, o que não é verdadeiro para todas as coleções. Dessa
forma, uma linguagem musical apresenta dois aspectos:

- a coleção de alturas utilizada, que contém várias relações potenciais;


- as relações intervalares efetivamente manifestas e escolhidas para
serem enfatizados. 9

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 137


..
2.5

pdndpalmente: acorde
passagem) elahormlnrl

Durante a discussão da linguagem destes exemplos, diversos procedimen-


tos podem ter temporariamente passado despercebidos. Nos Exemplos 2.3 a 2.5,
a unidade de sonoridade básica de cada obra é mostrada em suas disposições
mais reduzidas. Muitas linguagens permitem a expansão de suas sonoridades no
espaço, através de diversas disposições, de acordo com o princípio da equivalência
das oitavas. A unidade de sonoridade básica ocorre em posições mais espaçadas,
sem que isso afete sua identidade. Algumas das vastas possibilidades de expan-
são da tríade de Si maior são demonstradas no Exemplo 2.6; outras podem ser
encontradas na Mazurka (compassos 2, 4, 5, 8 e 10).
Todas as tríades maiores podem ser reduzidas a um conjunto e a uma ordem
espacial de relações intervalares:

(D~ conforme demonstrado no Exemplo 2.4.

138 A LINGUAGEM MUSICAL


As tríades menores podem ser reduzidas ao mesmo conjunto intervalar, po-
rém ordenadas de maneira diferente:

r(Z)~ conforme demonstrado no Exemplo 2.3.

As unidades de linguagem musical - sonoridades, escalas ou séries - po-


dem ser agrupadas de acordo com o conteúdo e o ordenamento de suas relações
intervalares. Algumas são idênticas e outras podem ser similares ou dissimilares,
dependendo do grau de correspondência entre seus intervalos componentes.
Podemos vislumbrar agora a riqueza de possibilidades e de questões que a
linguagem musical apresenta. A coleção completa de intervalos de diversas obras
pode ser idêntica, similar ou radicalmente diferente. As relações escolhidas, tan-
to as enfatizadas quanto as secundárias, podem também ser similares ou dissi-
milares. Como as relações mais e menos enfatizadas de uma linguagem se inter-
-relacionam? Como a função lingüística se relaciona com a distribuição espacial?
Quantas relações diferentes podem ser obtidas a partir de uma simples coleção
de notas? Podem ocorrer relações similares em coleções diferentes?
Certas culturas e períodos exploraram determinados aspectos da lingua-
gem musical. Eles podem se limitar a uma única coleção ou considerar maneiras
diversas em variadas coleções. Essas manifestações consistentes são denomina-
das sistemas musicais - o sistema modal, o sistema rãga da Índia, o sistema to-
nal, o sistema dos doze sons e assim por diante. Estudaremos esses sistemas em
breve. Antes, porém, o estudo da linguagem de uma obra musical completa nos
trará mais proveito. Assim como cada nota desempenha um papel na formação
do contorno da obra, também atua na definição de sua linguagem. Ao perceber-
mos as múltiplas funções das notas no delineamento do espaço e na definição
da linguagem, cheg;mos às questões mais complexas, poderosas e especiais da
estrutura musical.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 13 9


Examine os dois primeiros compassos: quais notas delineiam o movimento espacial?
Quais são os intervalos formados? Quais notas e intervalos preenchem os detalhes do
movimento? Quais notas e intervalos não estão presentes?

Hx:en1pllo 2. 7 - Claude Debussy: Syrinx para flauta solo (1913)

140 ALINGUAGEM MUSICAL


LINGÜÍSTICA

O gráfico no Exemplo 2.8 identifica as características mais proeminentes na


formação espacial-lingüística da obra. Analisaremos esse gráfico, refinando com
detalhes este delineamento geral.
A primeira frase da peça (compassos 1-2) dá início a dois processos
inseparáveis:

- a movimentação da peça;
- a definição dos seus elementos lingüísticos.

A movimentação delineia:

- um movimento descendente de Sib5 a Réb5 , seguida por um retorno


imediato a Sib5 ;
- uma subdivisão em Mi 5 no interior deste movimento (Exemplo 2. 9a).

A nota Mi5 é o objetivo da linha descendente contínua, ao passo que Réb5 é o


objetivo final da movimentação descendente; Sib5 , sustentado por uma longa du-
ração, inicia e conclui a movimentação.11 Juntas, estas três notas (Sib, Mi e Réb)
constituem a célula lingüística primária da obra. 12 Os intervalos componentes da
célula são@ e@. O primeiro está disponível duas vezes - Sib-Réb e em Réb-Mi
- dando a este intervalo especial proeminência. Como Debussy demonstra, esse
intervalo pode assumir diferentes formas espaciais, nesse caso, como® (Mi-Réb)
e@ (Sib-Réb).
O Exemplo 2.8 demonstra o desenrolar inicial da célula, que forma a frase
Ia. Um rápido olhar pelo restante do gráfico revela a mesma célula nas frases Ib,
Ila, IIIa, IIIb e IVa. As notas da célula e seus intervalos constituintes são a base
formativa das demais frases e seções. No decorrer da peça, a célula é reordenada,
fragmentada e deslocada para outros registros.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 141


.......... -------------------~~~-

- Movimentação e linguagem musical em Syrinx

O papel de Ré b como objetivo da movimentação da primeira fase prefigura


seu papel maior como objetivo conclusivo definitivo da peça (ver Exemplo 2.8):

- a primeira metade da peça consiste em uma movimentação linear-


-registral descendente em direção ao Réb4 , que é elaborado nos com-
passos 16-19 (frase Ilia);
- a segunda metade (seções III e IV) é derivada dos deslocamentos
de registro do Ré b e das notas associadas à célula pelo espaço da
peça (registros 4, 5 e 6). Esses deslocamentos reconstroem o registro
original da peça, o registro 5 (frase Illb), e atingem seu ápice no re-
gistro 6 (frase IVa). Sua conclusão definitiva ocorre no registro mais
grave, na nota Réb4 (frase IVb).

A primeira frase de Syrinx não é formada somente pelas três notas que cons-
tituem a célula, mas também por notas que as conectam e as elaboram. Estas
outras alturas reforçam os elementos da célula e, ao mesmo tempo, acrescentam

142 A LINGUAGEM MUSICAL


conteúdo intervalar, no Exemplo 2.9. A Sit,-Mi, por exemplo,
é através de notas longas no início de cada tempo, formando uma
de intervalos Q):

Cada nota desta linha é elaborada por rápidas adjacências cromáticas, que
preenchem ainda mais a movimentação linear até Mi e adicionam vários interva-
los G) ao conteúdo intervalar:

iniciais e finais
d)
mov!mi:mtaçõea de passagem
e de saltos

e) notas de movimentação
de passagem

notas de passagem de ~""u"''"~


fJ ag1·up:ad~111 em tri?!l notas cromáticas

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 143


_.........______________ ~~-

Q)eQ), e
' - V ' · LC.-LM-'-V

são então adicionados aos ULLICU~.v o conteúdo


intervalar completo da frase.
Outros intervalos ® são entre os compasso
pelo movimento entre uma nota de elaboração e a nota conexão se segue:

Como os saltos presentes na célula também fazem parte da classe intervalar ®,


constatamos que todos os saltos da frase são intervalos ® (ou seu complemento,
®). Esses saltos reforçam a importância classe intervalar ® estabelecida na
célula primária.
É muito importante estar consciente tanto dos elementos excluídos da lin-
guagem quanto daqueles presentes. O intervalo® e, especialmente, o intervalo
@não desempenham quase nenhuma função na linguagem musical da primeira
frase. Resumindo, esta linguagem consiste em:

- uma célula primária, SikMi-Ré),, que contém alguns intervalos® e


um intervalo @; intervalos conectores 0, que formam um segmen-
to escalar e os intervalos Q) com função de elaboração.
Outro aspecto da linguagem consiste no fato de o segmento escalar sugerido no
começo da frase não prosseguir além da nota Mi. Descobriremos mais adiante que
esse preenchimento escalar incompleto é completado na próxima frase.

CONTINUAÇÃO E CONCLUSÃO LINGÜÍSTICA

Após a reminiscência da frase Ia (compasso 3), a frase Ib desenvolve-se nos


compassos 4-8. Seu conteúdo é apresentado, de forma sintética, no Exemplo 2.8.
Ao invés de apresentar um movimento descendente a partir do Sii,5 , essa frase
ascende linearmente a partir do Sii,4 • De fato, a ascensão linear é realizada suces-
sivamente em dois registros diferentes: inicia em Si),4 (compassos 4-5) e em Sit,5
(que conecta o compasso 3 com os compassos 6-8, o que torna o compasso 3 mais
do que uma mera reminiscência).

144 ALINGUAGEM MUSICAL


A frase Ib, portanto, completa (e amplia) o preenchimento linear da oitava
Sii, -Sii,4 iniciado na primeira frase. A junção dos segmentos escalares das frases
5

e Ib forma uma entidade lingüística nova e mais extensa (Exemplo 2.10): urna
escala 13 que preenche a oitava Sii,5 -Sii,4 .

segmento escslar de

frase Ib, além de adicionar o segundo segmento dessa escala, pertence


à mesma célula primária (Sii,-Mi-Réi,) e ao mesmo conteúdo intervalar da frase
Ia (como detalhado no Exemplo 2.11). A célula primária é reordenada (Sii,-Réi,
-Mi); as outras notas do segmento surgem de processos conectivos similares aos
da frase Ia e são cromaticamente elaboradas através dos mesmos procedimentos
empregados na frase Ia.
Quando o segmento escalar ascendente é reexposto nos registros superio-
res (registros 5 e 6, compassos 6-8), somente as notas da escala (Dói, - Réi, - Mil,
-Sii,) são utilizadas, dispensando a elaboração cromática e definindo o segundo
segmento da escala da maneira mais clara possível:

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 145


1--'

""'
G>

:i>
t""
zo Exemplo 2.11- Segmento escalar e conteúdo intervalar de Syrinx, compassos 3-9
§2
o
tI1
s;:
s;:
e:

s a)
C/l

o
.,,.,
i::l '"'
a1i
l>jl .,
'lJ .,
o:!
b)'

"'

e)

,g ;i d)
--;t "';

~o.,,_,~
u .5
e)

f)
frase Ib uma interessante evolução lingüística
o movimento do registro 5 para novas áreas espaciais.
isso, a célula primária é reformulada nas novas regiões espaciais. As con-
exões e as elaborações dos membros da célula são similares aos utilizados na
frase Ia e seu conteúdo intervalar é idêntico. As novas notas de conexão, en-
tretanto, completam a formação escalar na metade inferior da oitava Si~5 -Sib4 •
No :final desta frase, com a ausência da elaboração cromática, as notas essenciais
da escala são enfatizadas e (também) possíveis transformações lingüísticas são
pressagiadas.

TRANSFORMAÇÃO LINGÜÍSTICA

Como a linguagem dos compassos 1-8 se transforma no restante da peça?

Nos compassos 1-8, constatamos que as notas da célula são conectadas


de modo a formar uma escala: essas notas da célula e da escala são elaboradas,
acrescentando outros recursos intervalares. Durante o desenrolar do movimento
nesses compassos, os elementos celulares, escalares e intervalares são reformula-
dos em novas áreas espaciais. O restante da peça continua os processos iniciados
nos compassos 1-8, alterando, por conseguinte, a forma dos elementos lingüísti-
cos iniciais.
O conteúdo das frases seguintes, IIa e IIb (compassos 9-15) também está
sintetizado no Exemplo 2.8. Agora, o local principal de ação é o registro 4. Esse
local havia sido imediata e :firmemente estabilizado pelo deslocamento da célula
primária (e gesto incial) para este registro no compasso 9. Esta mudança do regis-
tro 5 para o registro 4 dá continuidade ao amplo movimento descendente que
caracteriza a peça desde o seu início.
A reexposição da célula primária nos compassos 9-10 vincula-se especifica-
mente ao movimento escalar descendente em intervalos@: Sib-Láb-Solb. Esses
compassos continuam o processo de eliminação de certos intervalos caracterís-
ticos da linguagem: os intervalos ® e Ú). 14 O processo de :filtragem teve início
nos compassos 6-8 e prepara a primeira transformação lingüística completa, que
ocorre nos compassos 10-12 .
.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 14 7


sentados em novas roupagens, ao passo que outros desaparecem.
célula é reduzida a Sib e Réb e incorporada à escala, ao invés de ser utilizada nas
extremidades. As notas Sib e Réb, contudo, ainda são importantes: obser-
ve, por exemplo, a duração dos Sib. A apresenta muitas notas em
comum com a escala original. Somente duas notas são alteradas: Fá no de
Mi (ou Fáb), e o Dób, que desaparece completo. A ausência Dób Si) re-
sulta no salto Sib-Réb, característico da célula primária. Como na primeira frase,
os saltos são predominantemente intervalos ®· Entretanto, agora a linguagem
intervalar é dominada pelo intervalo CV. Como mencionado anteriormente, os
intervalos CD e® foram eliminados.
Assim que a transformação é estabelecida, outra já toma o seu lugar - na
frase IIb, compassos 13-15 (Exemplo 2.8). Esta segunda transformação é forma-
da precisamente com os elementos intervalares omitidos na primeira transfor-
mação: os intervalos CD e®·

Essa transformação mantém o salto de ® tão característico da linguagem do


início da obra. Contudo, o intervalo® não ocorre mais com as notas da célula
original (Sib-Réb-Mi). Esse intervalo é transposto para Solb @-Mib e Dó ®-Lá.
Pela primeira (e única) vez na peça, as notas específicas da célula desaparecem,
assim como a formação escalar específica (diferente da escala cromática formada
pelos intervalos CD deslizantes).
Através destes estágios de transformação coordenados, a peça atinge um
ponto no final da frase IIb que, espacial e lingüisticamente, é muito distante
do ponto inicial da obra. Foram utilizados quase dois registros completos. Os
elementos originais da linguagem, tal como inicialmente apresentados, passam
por um prisma que seleciona um elemento de cada vez e os submete a certas
transformações: estes elementos selecionados se multiplicam, se deslocam e por
fim desaparecem. Inicialmente, os intervalos CD e ® desaparecem, ao passo que
o intervalo @ permanece. Neste novo paradigma intervalar, a célula e a escala
continuam perceptíveis, ainda que alteradas. Depois, os intervalos CD e® res-
surgem, enquanto a célula e a escala desaparecem. Novas mutações proliferam.
Assim como diferentes formações intervalares dão origem a mundos musicais
diversos nos exemplos de Mussorgsky e Chopin, também aqui (nesse caso, dentro

148 A LINGUAGEM MUSICAL


/

eo são entre as
osso da linguagem assim como nossa
reação a compreensão dessas sutis transformações lingüísticas.
No compasso 16 (o início IIIa), os elementos lingüísticos '""''-":U"'
começam a se reconstituir: a célula primária e depois (nos compas-
sos 20-24) a estrutura escalar. Ao mesmo tempo, a movimentação reverte sua
começando uma ascensão gradual ao registro original. Este retorno à
linguagem e ao espaço original, bem como outras transformações posteriores
que ocorrem junto com este retorno, está resumido no Exemplo 2.8, frases III e
Esse gráfico, junto com a discussão precedente, tem por objetivo propiciar o
acompanhamento destes últimos desenvolvimentos. Embora a investigação de
cada novo estágio em detalhe seja fascinante, tal discussão nos distanciaria de-
mais de nosso objetivo essencial, qual seja, a introdução aos processos de defini-
ção e de transformação lingüística.
Apesar de sua brevidade, Syrinx é rica tanto por seus elementos lingüísticos
(célula, escala e conteúdo intervalar) quanto pelas transformações às quais eles
são submetidos. Não existem notas sem sentido. Cada nota participa na definição
e posteriormente na significativa transformação da linguagem. Como resultado,
esta obra constitui uma fonte extrâordinariamente valiosa para a introdução dos
elementos lingüísticos. Agora que estamos conscientes de alguns destes elemen-
tos, podemos examinar a evolução da linguagem musical até chegarmos em De-
bussy, bem como desenvolvimentos posteriores desta evolução. Esta investigação
nos conduzirá diretamente aos posicionamentos coletivos em relação à lingua-
gem, que dão origem ao que denominamos sistemas musicais.

INTRODUÇÃO AOS SISTEMAS MUSICAIS

Por uma questão de clareza, faremos distinção momentânea entre sistemas


de linguagens musicais composicionais e teóricos. Em certos períodos e culturas,
algumas abordagens gerais em relação à linguagem musical são compartilhadas
pelos compositores. Por exemplo, eles exploram os recursos de uma única co-
leção de alturas, ou '6eja, uma única maneira de dividir o espaço musical, e as-
sim o fazem de forma composicional, aplicada à música. Embora possam formu-
lar suas pesquisas composicionais verbalmente (seja para eles próprios ou para

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 149


outros), não tentam necessariamente realizar uma explicação sistemática ato
composicional.
Uma linguagem musical teórica tem por objetivo descrever explicitamente a
ordem e as operações de uma determinada linguagem musical. A formulação de
um sistema teórico depende da existência prévia de um repertório, seja este am-
plo ou restrito, que compartilhe certas características. Por exemplo, as primeiras
formulações da teoria modal medieval datam do século X, diversos séculos após
a criação de vastas manifestações do canto modal cristão, que se constitui no
primeiro monumento composicional deste sistema. De forma análoga, a música
tonal de Corelli e seus contemporâneos precedeu em algumas décadas a formu-
lação teórica de um sistema de harmonia tonal por Rameau. Mais dois séculos
se passaram até que Schenker enriquecesse a compreensão da música tonal com
suas idéias teóricas.
Pode parecer estranho, para aqueles que não são músicos criadores, que a
música de um período ou cultura compartilhe princípios gerais consistentes e
altamente desenvolvidos antes que estes sejam descritos e compreendidos. Con-
tudo, o oposto também seria igualmente estranho, isto é, que fosse de tal monta
o conhecimento sobre os materiais sonoros e sobre as operações estéticas dos
humanos que se pudesse instantaneamente formular e descrever as novas explo-
rações e limites da consciência musical criadora.
De fato, a exploração composicional do som tende a ocorrer concomitan-
temente com as possíveis descrições teóricas daquilo que foi atingido composi-
cionalmente. A exploração e a descrição teórica movem-se em paralelo e intera-
gem de forma contínua. Uma vez definido, um sistema teórico apresenta novos
desdobramentos criativos, sejam eles no aspecto composicional ou teórico. A
formulação da teoria modal no século X foi seguida por seis séculos de música
modal. Originando-se a partir de um repertório musical, os sistemas teóricos são
um fator determinante na criação, enquanto permanecerem pertinentes para os
compositores.
O entendimento teórico de um repertório modifica-se com o tempo. As
descrições teóricas podem ser melhores ou piores, e suas explicações da música
descrita, mais ou menos adequadas. Um :filósofo da ciência descreveu o papel da
evolução teórica com as seguintes palavras:

É o mito ou a teoria que conduz e guia nossas observações sistemáticas - observações


tomadas com a intenção de provar a verdade contida na teoria ou mito. Sob a pressão
do criticismo, os mitos são forçados a se adaptarem, no sentido de propiciar uma visão

150 A LINGUAGEM MUSICAL


cada vez mais
coisas que nunca teríamos observado na sua ausência. 15

Sistemas teóricos são, portanto, dinâmicos e expansivos.


Teorias sistemáticas foram freqüentemente utilizadas como ferramenta (ou
armas) da crítica. Josquin foi criticado por ampliar espacialmente os modos 16
e Monteverdi, por expandir a quantidade de sonoridades (consonantes e disso-
nantes) no âmbito da teoria de consonâncias e dissonâncias.17 Composições não
adequadas a uma teoria sistemática podem, contudo, representar um novo es-
tágio ou mesmo um novo sistema ainda não teoricamente formulado. Esse foi o
caso de Schoenberg, Ives e outros compositores no século XX.
Os sistemas teóricos também são significativamente incompletos em decor-
rência de sua natureza coletiva e generalizada. Esses sistemas lidam com carac-
terísticas comuns a diversas obras, mais do que com as especificidades de cada
composição. Freqüentemente, consideram a música a partir de um ponto de vista
limitado ou mesmo a partir de um único ponto de vista. Descobriremos que o
sistema modal original se preocupou com os aspectos horizontais (ou sucessivos)
da música - a linguagem das escal~s e melodias. Esta teoria não diz quase nada
a respeito dos aspectos verticais (ou simultâneos), como harmonias, consonân-
cias e dissonâncias - assuntos que necessitaram outras formulações teóricas. E o
sistema tonal, embora seja responsável tanto pelos eventos musicais sucessivos
quanto pelos simultâneos, se preocupa primordialmente com um grupo limitado
de formações intervalares.
A importância de um sistema téorico reside no fato de que este oferece
indícios para a construção de uma linguagem musical. Como Popper observou,
necessitamos desses indícios como ponto de partida para nossas percepções. De
fato, pesquisas recentes confirmam cada vez mais que a percepção é moldada
por preconcepções. Por esse motivo, é importante que os sistemas téoricos sejam
esclarecedores e não fontes de confusão.
Nossa compreensão de uma obra musical deve, entretanto, superar a obser-
vação geral e chegar à análise detalhada de premissas, procedimentos e refina-
mentos da obra em particular - como nossa discussão sobre Syrinx de Debussy.
Em última instância, é a obra que deve ser consistente e lógica, por mais com-
plexos e desafiantes que sejam seus procedimentos. "Obras de arte criam regras,
mas regras não criar:çi. obras de arte". Tais obras são entidades artísticas e repre-
sentam uma sólida base para a generalização sistemática.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 151


E

É difícil precisar o início do emprego de uma determinada musical.


natureza do ato criador, praticado tanto indivíduos quanto culturas
inteiras, cria esta dificuldade. Iniciando com processos intuitivos, a manifestação
concreta de uma técnica musical é um processo gradual. Portanto, o e o tér-
mino do período do sistema modal não podem ser determinados com exatidão.
A criação do canto modal cristão na Europa prosseguiu durante todo o período
inicial do cristianismo, desde seus primórdios (e até mesmo anteriormente, na
música grega e hebraica). A primeira coleção e ordenação de real importância dos
cânticos ocorreu durante o pontificado do Papa Gregório I, no século VII, três
séculos antes da formulação da teoria modal. As primeiras tentativas de definir o
sistema modal de que se têm conhecimento ocorreram em um tratado do século
X, denominado Alia Musica. Gustave Reese considera que esse tratado constitui
"um marco na história da teoria modal medieval". 18 Esta obra foi seguida pelos
escritos de Guida d'Arezzo (995-1050), Berna de Reichenau (1048) e Herman-
nus Contractus (1013-1054), compositor dos cânticos Alma Redemptoris Mater e
Salve Regina. O último acréscimo importante à teoria modal medieval foi feita
por Glareanus em seu Dodecachordon (1547). A história da teorial modal cobre,
portanto, seis séculos, ao passo que a prática da música modal se estende por
mais de um milênio.
O Exemplo 2.12 ilustra o princípio básico do sistema modal: uma única
coleção escalar de notas pode ser inflexionada de várias formas, criando diferen-
tes relações intervalares e, conseqüentemente, conteúdo musical e qualidades ex-
pressivas distintas. Para obter este resultado:

1) todos os modos são formados por uma única coleção escalar de al-
turas (Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá, Sol) que preenchem uma oitava por
graus conjuntos;
2) cada modo tem uma nota prioritária, chamada de f1nal. Nas pri-
meiras definições, somente Ré, Mi, Fá e Sol (as notas quadradas no
Exemplo 2.12, modos I-VIII) serviam como finais; Glareanus poste-
riormente acrescentou as nota Lá e Dó como finais (Exemplo 2.12,
modos IX-XII). A nota Si nunca foi utilizada como f1nal; 19
3) cada nota final dá origem a duas escalas modais, que são caracte-
rizadas por diferentes localizações espaciais das notas escalares e
da f1nal. Nos modos autênticos, a final é tanto a nota mais aguda

152 A LINGUAGEM MUSICAL


e nos plagais, a no

•u~·~~
é a uma oitava uma nota
cional de elaboração nos limites inferior e superior do modo.

comparação com os sistemas musicais posteriores, este sistema pode


limitado - especialmente sua restrição ao uso de apenas sete altu-
ras e seu âmbito espacial restrito. Esse sistema, porém, dá origem à investigação
das relações potenciais entre essas setes alturas. Os exemplos anteriores de Mus-
sorgsky, Chopin e Debussy revelaram o papel crucial das relações intervalares na
determinação conteúdo e da expressividade musical. No sistema modal, a per-
mutação da ordem das sete notas em cada modo traz à tona diferentes padrões de
relações intervalares (observe a numeração dos intervalos abaixo de cada escala
no Exemplo 2.12).
O conteúdo intervalar de um modo é determinado em especial pelas re-
lações formadas entre a nota prioritária enfatizada, a fmal, e as outras notas
do modo. Comparando o modo III (Frígio) com o modo V (Lídia), por exemplo,
notaremos quão radicalmente diferente podem ser estas relações intervalares
(Exemplo 2.13). Dos sete intervalo!! formados com a final de cada um destes mo-
dos, somente dois - (!)e@ - são comuns aos dois modos, pois todos os demais são
diferentes. Como o contéudo intervalar enfatizado difere tanto entre os modos,
não é de se surpreender que os teoristas medievais tenham atribuído diferentes
qualidades expressivas (ethos) a cada um deles, assim como os gregos e indianos
fizeram com suas escalas e rãgas.
Como mencionamos anteriormente, a nota Si nunca foi utilizada como fi-
Essa nota desempenha um papel especial no sistema e não se configura como
uma altura totalmente integrada à coleção de notas. A razão disso é sua partici-
pação no intervalo(§) - Si-Fá. O intervalo(§\ considerado, na teoria medieval, o
diabolus in musica, somente ocorre na coleção modal entre as notas Si e Fá. Em
uma escala por graus conjuntos, não há como evitar o intervalo (§) entre duas de
suas notas. O problema que desafiou teoristas e compositores foi como evitar um
intervalo (G) audível, sem introduzir um lapso espacial no sistema. Somente uma
solução provisória foi possível: o Si foi alterado para Sii, em contextos onde a nota
Fá era fortemente enfatizada. Entretanto, nesse novo contexto, um novo inter-
valo(§) formado pelas notas Mi-Sii, constituiria um novo problema. O dilema do
trítono nunca poderia ser completamente resolvido se uma coleção escalar em
graus conjuntos fosse mantida. Posteriormente, a partir da estratégia utilizada
para evitar o trítono, ou seja, a alteração cromática (como em Si-Sii,), novos recur-
sos lingüísticos surgiram.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 153


2.12

acrescentados Glaureanus

2.13

modo modo

relacionamentos co.m final

154 A LINGUAGEM MUSICAL


SPIRITUS E KYRIE DEUS

Qual é o modo de Veni creator spiritus? Quais são as notas, os intervalos e as células
intervalares prioritárias? Como essas se relacionam com o modo? Como a linguagem e o
design são integrados?

Nesta discussão do hino Veni creator spiritus, nos referiremos constante-


mente ao Exemplo 2.15, que demonstra seus elementos lingüísticos, seu design e
a interação entre estes elementos.
Estabelecemos que a modalidade depende destes fatores:

- a presença da coleção escalar modal;


- a prioridade de uma de suas notas, a fmal;
- a localização espacial da final na escala;
- a delimitação espacial do modo.

Veni creator spiritus utiliza todas as notas da coleção modal (e somente estas no-
tas): Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá e Sol. As notas Dó e Sol são escutadas dez vezes em cada
estrofe, mais do que qualquer outra nota. Entretanto, qual dessas é a final? O
Exemplo 2.15a demonstra que a nota Sol inicia e termina o cântico e também que
ela é bastante enfatizada, pois recorre freqüentemente tanto no início quanto
no final do canto. Essa nota constitui também o foco de atenção das adjacências
nos movimentos de bordaduras (célula a, Exemplo 2.15a). Além disso, a nota Sol
predomina na frase Amen, que conclui o conjunto de estrofes com uma variante
rítmica do movimento original de bordaduras ao redor desta nota (veja a célula
a do Exemplo 2.15a). A nota Sol, portanto, domina o início e o final do design e,
durante o canto, constitui um ponto de referência freqüente, nivelando um platô
contra o qual o movimento ascendente e descendente resulta claramente delinea-
do. Em contraste, a nota Dó é utilizada como ponto intermediário e subordinado
da movimentação, cujos pontos de chegada são Sol e Ré. A nota Sol é claramente
a nota priorizada: todo o canto é construído a partir das relações de Sol com suas
alturas adjacentes, o que fica evidente na célula a.
Como Sol é a final, o modo pode ser tanto o modo VII (Mixolídio) ou VIII
(Hipomixolídio). O canto encaixa-se no campo espacial de qualquer um desses
modos (considerando as possíveis extensões através das notas de elaboração). O
papel de Fá - como p;rte da célula vital que circunda a nota final, Sol- é tão signi-
ficativo que é preferível considerar o modo como Hipomixolídio. A nota Fá é parte
integral desse modo e não mera extensão opcional. O modo VIII (Hipomixolídio)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 155


-
ao este está associado no de cantos o

Esta peça atende aos pré-requisitos básicos da é


coleção modal, apresenta uma nota Sol, e desenrola-se
espacial de um dos modos (VIII).

t;x:en1pllo 2.14 - Canto gregoriano Veni creator spiritus (hino atribuído a Rabanus Maurus,
século IX)

A mesma música é repetida por mais seis estrofes. O Amen é cantado somente após a
última estrofe.
Observação: o ritmo do canto foi determinado seguindo cuidadosamente a notação e os
princípios da edição proposta pelos beneditinos da Abadia de Solesmes (Liber usualis, p.
885). Um apóstrofo (') indica um ponto de respiração opcional. O tempo para a respiração é
obtido através da diminuição do valor da nota anterior e não através do acréscimo de uma
pausa à música. A marca vertical ( 1 ) indica notas que devem ser sentidas como um início de
grupos rítmicos, porém sem aumentar seu valor ou causar um acento perceptível.

156 A LINGUAGEM MUSICAL


Veni creator spiritus

A célula a consiste em notas vizinhas ao redor da final. As células a 1 e a 2 são as duas únicas
transposições dentro da coleção modal que produzem a mesma configuração intervalar,

célula b

A célula b origina-se do movimento ascendente da escala modal, omitindo a nota provisória


Si. Essa célula funciona como um elemento de ligação espacial entre a célula a e a 1 • A célula b
ocorre em diversas permutações, porém não é transposta.

célula e e invertida

A célula c consiste na elaboração de uma nota por bordaduras. É uma maneira de utilizar o
intervalo (li, que é comum às células a e b. Ela é, portanto, uma suhcélula derivada.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 157


Ressaltamos é '"'"'1-''-n
apresenta possibilidades e singulares em aos ~~ .. "~·~ .. n,~~,~
Exemplo 2.15 mostra que Veni creator spiritus é caracterizado por pequenas cé-
lulas de relações intervalares originadas do modo Hipomixolídio. Já falamos a
respeito da célula a, que estabelece Sol como nota prioritária no início e término
do canto. Seu conteúdo intervalar Q) domina o canto. Um aspecto igualmente
importante consiste na utilização da mesma célula intervalar em diferentes
níveis espaciais, determinando o design do canto. A célula a só pode reproduz-
ir sua relação intervalar original em outros dois pontos da escala modal; estas
transposições são chamadas de a1 e a2 no Exemplo 2.15. O contorno do canto
pode ser descrito como uma trajetória envolvendo estas células: a - a 1 - a 2 - a. A
movimentação de a para a1 cria o movimento ascendente Sol-Ré (Exemplo 2.15a),
ao passo que a movimentação de a 1 para a 2 e o retorno para a preenchem a quinta
descendente Ré-Sol que completa o canto.
Ao reiterar a célula original, a linguagem adquire um caráter sonoro consis-
tente e, ao alterar a localização da célula no espaço, a linguagem ganha em riqueza
de variação e movimento. Isso ilustra o epigrama de Stravinsky, "A variedade só é
válida como meio de alcançar a similaridade". 2°Como observamos na peça Syrinx
de Debussy, as mesmas alturas e intervalos definem tanto a linguagem como o
design: o design expressa as características proeminentes da linguagem; os elementos
da linguagem geram o design.
Veni creator spiritus resulta da ampliação da célula inicial dentro das possi-
bilidades de reprodução ou amplificação oferecidas pela coleção modal. As outras
células, b e c, contribuem mais para o desenvolvimento da célula a do que para o
acréscimo de novas características primárias à linguagem. A célula b, ao conduzir
o movimento escalar ascendente (omitindo a nota provisória Si) da célula a (ao
redor de Sol) para a1 (ao redor de Ré), funciona como elemento de ligação. Pos-
teriormente, as permutações da célula b carregam o movimento de Ré para Sol
através de a 1 , a 2 e a. Como a célula b desempenha uma função de conexão, não é
transposta para outros níveis nos quais sua função seria desnecessária. A célula
c apresenta ainda menos independência, pois sua única função é a de apresentar,
por meio de bordaduras, o intervalo Q), principal componente intervalar da célula
a e elemento vital da célula b. A célula c é uma subcélula de a e b e sua transposição
resulta mais do movimento de a e b do que de sua própria movimentação.

158 A LINGUAGEM MUSICAL


nota final com
seu

- a célula a apresenta as adjacências intervalares imediatas ao redor da


final; suas transposições a1 e a2 resultam da presença de rela-
ções intervalares idênticas em outras partes do modo;
- a célula b origina-se da escala Mixolídia ascendente que conecta as
transposições de a;
- a célula c resulta da extração do elemento intervalar comum às duas
células anteriores, o intervalo CT>.

Estas relações específicas, escolhidas entre as várias relações intervalares pos-


síveis no modo, formam a linguagem deste canto e seu caráter sonoro singular.
Desde a Grécia antiga, constata-se o reconhecimento que certas relações
intervalares são reproduzidas no interior dos modos. O teórico medieval Berno
de Reichenau escreveu: "De fato, constata-se que cada modo, seja ele autêntico
ou plagal, recorre a uma miraculosa e divina concordância, se transposto a uma
quarta de sua localização original". 21 A maioria dos modos reproduz o padrão
tervalar de suas quatro notas iniciais (conhecidas como tetracarde) nas notas 4-7
ef

ou 5-8 à distância de quarta ou de quinta (vide Exemplo 2.12). Percebemos ago-


ra que os compositores utilizam estas relações intervalares inerentes aos modos
como elementos formais básicos que criam um caráter sonoro consistente. Outro
teórico medieval, o famoso Guido d'Arezzo, descreveu explicitamente o emprego
de células na composição. Sobre as células intervalares, ele escreveu:

Estas podem ser ocasionalmente modificadas [...] utilizando um movimento ascendente


ou descendente, a partir dos mesmos graus. Se o primeiro descende por grau conjunto,
o segundo pode formar um eco ascendente, a partir dos mesmos graus [...] As células
podem ser variadas, começando com o mesmo som ou com outros sons, de maneira a
propiciar a proporção entre o grave e o agudo. 22

Veni creator spiritus apresenta uma bela formação de contorno e de lingua-


gem musicais. Além de pertencer ao repertório do canto gregoriano, também faz
parte, com um texto diferente, do repertório do canto ambrosiano prevalente no
norte da Itália desde o começo do período cristão. Durante a Renascença, Du-
fay e Dunstable compuseram versões polifônicas desta melodia. Posteriormente,
Martinho Lutero compôs uma versão germânica, Komm Gott Schopfer, Heiliger
Geist ("Venha Deus criador, espírito sagrado"), ao passo que J. S. Bach a utilizou
como base para obras voca.is e organísticas. No século XX, Arnold Schoenberg

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 159


n~ir.,.,.,,,,
o coral para órgão
creator spiritus é examinado sob outro vista no
líbrio dimensional: canto gregoriano - Veni creator spiritus").
Examinaremos agora outro canto para mostrar como processos uu.>:u""
similares dentro de um mesmo sistema originar peças com'-"' ''-c'u'-'"
tervalares e caráter sonoro

Como os elementos modais de Kyrie Deus sempiterne (Exemplo 2.16) diferem daque-
les de Veni creator spiritus?

Não há dúvida sobre a final ou o modo do Kyrie Deus sempiterne. A nota Mi


conclui suas nove seções, inicia seis delas e é repetidamente enfatizada. Na pri-
meira frase, por exemplo, a nota Mi ocorre nove vezes, enquanto Fá (a segunda
nota mais freqüente) ocorre somente cinco vezes. O espaço, delimitado por um
Dó grave e um Si~ agudo, é o do modo IV (Hipofrígio), cuja final é a nota Mi.

.t;xen:api.o 2.16 - Canto gregoriano Kyrie Deus sempiterne (da missa III, século XI)

eleíson"

160 A LINGUAGEM MUSICAL


Kyrie eleison, Senhor, tende piedade de nós
Christie eleison, Cristo, tende piedade de nós
Kyrie eleison. Senhor, tende piedade de nós

(cada linha é repetida três vezes)

* cantado por somente um lado do coro


** retorno do coro completo

Observação: notas repetidas em uma mesma sílaba são unidas em um só som.

Chris - te

Um apóstrofo (') indica um ponto de respiração opcional. O tempo para a respiração é obtido
através da dimin~ição do valor da nota anterior e não através do acréscimo de uma pausa
à música. A marca vertical ( 1 ) indica notas que devem ser sentidas como início de grupos
rítmicos, porém sem aumentar seu valor ou causar um acento perceptível.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 161


Assim como as características intervalares de Veni creator spiritus são deri-
vadas das relações das notas nas imediações da final, assim também o são as re-
lações intervalares do "Kyrie" (Exemplo 2.17). Uma característica intervalar
mum modos Frígio e Hipofrígio é o intervalo CD presente entre a e a nota
acima desta (as notas Mi e Fá, nesse exemplo). Ao longo música
européia, a condução de vozes para uma final realizada por um CD des-
cendente na voz superior e um intervalo 0 ascendente na voz tornou-se
conhecida como cadência frígia (Exemplo 2.17a). Em cada uma das nove frases do
canto, a palavra eleison atinge a final através destas adjacências (Exemplo 2.17b).
Muitas outras frases são elaborações dessas mesmas relações.

2.17 -Adjacências intervalares da fznal nos modos Frígio e Hipofrígio

Uma outra característica destas adjacências que ocorrem ao redor da final


Mi é o intervalo® formado entre as notas Fá e Ré (Exemplos 2.18a e 2.18b). Essa
relação intervalar ocorre mais de quarenta vezes e representa o salto predomi-
nante do canto. Por exemplo, na segunda frase do "Kyrie eleison", este intervalo
prevalece e é submetido a elaborações e expansões (Exemplo 2.18c). Em contras-
te, os outros saltos (@e@, por exemplo) quase não são utilizados.
Enquanto em Veni creator spiritus os intervalos@ rodeando a final predomi-
nam, neste "Kyrie" os intervalos CD e ® também desempenham funções impor-
tantes. Utilizando esses intervalos, o canto é ampliado e explora regiões acima e
abaixo da final, preenchendo o modo (Exemplo 2.19). O ápice desta expansão é
alcançado na sétima frase, com a nota Sii,, a única do modo que ainda não havia
sido apresentada (o mesmo gesto também é repetido duas vezes na nona frase).
Por que a nota Sii,, ao invés da alternativa modal Si, foi escolhida como nota
culminante, tendo em vista que o Sii, cria o intervalo® "diabólico" com a final,
Mi? A nota Sii, elabora Lá com um intervalo CD, assim como no modo Frígio a nota
Fá elabora Mi. Os paralelismos do canto tornam-se especialmente claros, quando
comparamos os inícios das linhas "Christie eleison" (frases 4, 5 e 6) com o início
das frases 7 e 9 (Exemplo 2.20). Nas frases 4-6, as bordaduras CD (Mi-Fá-Mi) são
geradas e enfatizadas por notas de longa duração. Nas frases 7 e 9, a bordadura
CD paralela (Lá-Sii,-Lá) no ápice da peça (também ampliado) é a expressão cul-
minante dessa célula característica do modo Frígio. A escolha de Sii, torna esta
amplificação celular possível.

162 A LINGUAGEM MUSICAL


Exemplo 2.20 - Reprodução do intervalo Q) no ápice do canto

frase S e duas vezes na frase 9

Assim como em Veni creator spiritus, neste canto a célula primária também foi
transposta e essa transposição determinou o ápice do design. O caráter sonoro é in-
tensamente expresso·pela reprodução de uma característica primária da célula no
ápice do canto. Constatamos novamente que as relações intervalares específicas do
modo geram possibilidades singulares de elaboração da linguagem musical - pos-
sibilidades que apresentam características intervalares e expressivas consistentes.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 163


Recapitulemos o princípio básico do sistema exposto anteriormen-
te neste capítulo: uma determinada coleção escalar pode ser de vá-
criando diferentes relações intervalares e, conseqüentemente,
ferentes qualidades expressivas. Podemos entender agora como o sistema unJ~<U
estimula a exploração do potencial sua coleção singular de notas. Cada modo
permite a exploração das relações intervalares formadas uma - a
nal - com as notas que a circundam (e, por extensão, com notas mais distantes).
A soma dessas possibilidades resulta na totalidade dos recursos intervalares do
sistema modal. Começamos a observar agora como as células de uma linguagem
podem se inter-relacionar e como os recursos da coleção escalar possibilitam are-
produção e amplificação de uma célula em diversos níveis. Descobrimos também
a enorme importância dessa amplificação, tanto para a linguagem quanto para o
design de uma obra musical.
Embora o sistema modal europeu tenha mantido suas propriedades bási-
cas, também incorporou novas características ao longo de sua história. Citare-
mos algumas destas novas possibilidades, sobre as quais nos deteremos nas pró-
ximas páginas:

- transposição - um modo pode se adequar às diversas extensões vo-


cais, sendo transposto para níveis mais graves ou mais agudos. No
período polifônico, esse procedimento tornou-se necessário para
que as diversas extensões vocais pudessem ser combinadas.
- cromatismo - a ambigüidade Si-Si~ foi a semente do cromatismo ine-
rente ao sistema. Com a transposição dos modos, outros acidentes
tiveram necessariamente que ser incorporados à notação modal. À
medida que esses acidentes foram incorporados, os compositores
começaram a explorar as possibilidades do próprio cromatismo na
elaboração e na variação de certas notas e para recriar células. Ao
final do período modal, a música tinha se tornado altamente cro-
mática. O cromatismo tornou-se, de fato, um fator determinante de
desintegração do sistema, na medida em que proporcionava meios
de obliterar a coleção modal original (veja, por exemplo, o Prophetiae
Sibyllarum de Roland de Lassus, cerca de 1550).
- multimodalidade (polimodalidade) - uma peça com diversas seções
pode incorporar vários modos, um para cada seção. Quando a músi-
ca se torna polifônica, as vozes simultâneas podem utilizar diversos
modos diferentes.

164 A LINGUAGEM MUSICAL


~~ .. ~-~
a música
melodias monofônicas ~ o can-
to cristão, troubador, trouvere, minnesinger; a canção do menestrel; o
litúrgico medieval. sistema originalmente não considerou
de vozes simultâneas. os seis séculos
período modal (séculos XI-XVI), os compositores desenvolveram
a nova arte de vozes, ocasionando mudanças significati-
vas no sistema. De fato, um segundo sistema de linguagem, baseado
nas consonâncias e dissonâncias, foi incorporado ao sistema modal
para lidar com a combinação de vozes.

O Apêndice C compara os sistemas rãga da Índia com o sistema modal euro-


peu. A comparação revela as similaridades e também as diferenças cruciais entre
estes dois sistemas. Ambos, porém, nos auxiliam a compreender como os siste-
mas de linguagem exploram as potencialidades de suas premissas básicas.

LINGUAGEM DE VOZES COMBINADAS -


GUILLAUME DE MACHAUT:
DURE QUE UN DYAMANT, VIRELAI (EXEMPLO 2.21)

Examine a peça levando em consideração os aspectos previamente desenvolvidos: cole-


ção escalar, final, modo e utilização do espaço. Intervalos são formados entre as duas
vozes: existem prioridades na linguagem intervalar que resultam da combinação devo-
zes? (primeiro, examine a frase inicial - compassos 1-4-depois os compassos 1-22 e, por
último, a peça inteira). Descubra se certos intervalos desempenham funções específicas.

Observamos a formação da linguagem musical em Syrinx (Debussy) e em


dois cantos gregorianos. Esses exemplos utilizam somente uma única voz. Du-
rante os últimos séculos do período modal e concomitantemente com a gradual
cristalização da teoria modal, os compositores estavam descobrindo novas pos-
sibilidades através das combinações de vozes. A teoria modal não considerou ori-
ginalmente estas explorações, que constituíam um novo campo de experiência
musical.
Neste exemplo de Machaut, concentraremos nosso estudo nesta nova pos-
sibilidade: a linguagem produzida pela combinação de duas vozes modais - o solo

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 165


de tenor em modo Hipodórico e o acompanhamento em
rico. Na primeira frase, surge uma hierarquia preferências

- o intervalo 0 ocorre cinco vezes;


- o intervalo @ ocorre quatro vezes;
- os intervalos @, ©e@ ocorrem uma vez cada (Exemplo 2.22a).

Hxen:tpl.o 2.21- Guillaume de Machaut: Plus dure que un dyamant (virelai para voz tenor e
instrumento acompanhante)

166 A LINGUAGEM MUSICAL


1) Plus dure que un dyamant 1) Mais duro do que um diamante,
ne que pierre d'aymant tal qual uma pedra brilhante
est vo durté, é a sua dureza.
clame qui n'aves pité, Oh! dama sem piedade
de vostre amant para com seu amante,
qu'ocies en desirant mata a quem só
vostre amitié. sua amizade almeja.

2) Dame, vo pure biauté 2) Dama, sua beleza pura,


qui toutes passe a mon gré, que, para mim, a tudo ultrapassa,
et vo semblant e o seu semblante,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 167


3) simple et plein d'umilité, 3) Simples e pleno de humildade
de doucer fine paré, com doçura fma sem par
en sousriant, ao sorrir.

4) par un accueil attraiant, 4) Por sua atrativa acolhida,


m'ont au cuer en resgardant meu coração, em seu resguardo,
si fort navré profundamente feriu,
que jamais joie n'avré, que jamais terei alegria
jusques atant até que, como uma dádiva, sua graça
que vo grace qu'il atant eu receba
m'aures donné.

5) Plus dure que un dyamant 5) Mais duro que um diamante


ne que pierre d'aymant é a sua dureza,
est vo durté, oh, dama sem piedade
clame qui n'aves pité, para com seu amante,
de vostre amant mata a quem só
qu'ocies en desirant sua amizade almeja.
vostre amitié.

Existem duas outras maneiras de contar a ocorrência dos intervalos: pela


duração e não pela quantidade de vezes que eles ocorrem ou pelo número de
vezes que o intervalo é enfatizado quando suas notas são atacadas simultanea-
mente. Utilizando esses métodos de contagem, as preferências são praticamente
idênticas àquelas já mencionadas:

- a soma das durações do intervalo (Z) equivale a sete


- a soma das durações do intervalo @ equivale a sete
- a soma das durações do intervalo @ equivale a quatro )l;
- a soma das durações dos intervalos© e@equivale a duas )l;
- o intervalo (Z) recebe dois ataques simultâneos;
- o intervalo @ recebe um ataque simultâneo;
- o intervalo @ recebe um ataque simultâneo;
- os intervalos @ e @ não recebem ataques simultâneos (Exemplo
2.22b).

A partir desses critérios, constatamos também que o intervalo preferencial


é a quinta justa (Z), ao passo que os intervalos @ e @recebem ênfase secundá-
ria. Como o Exemplo 2.22c mostra, cada nota da linha do baixo instrumental é
combinada com um intervalo (Z) na voz superior. Estes intervalos (Z) estabelecem
a sonoridade consistente e predominante e, de fato, determinam o som da frase.

168 ALINGUAGEM MUSICAL


nos compassos 1-4

76

+ 38%

soa 23 vezes
+
soa

soa 18 vezes 1%

3 vezes

.soa

No Quadro A, as linhas pontilhadas conectam os complementos espaciais dos intervalos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 169


No Quadro B, os intervalos são agrupados em classes e mensurados de acordo com a
porcentagem que representam no número total de intervalos da peça.

As preferências intervalares da frase são características em


a peça, como demonstrado nos Quadros A e mesmos três - eJl,
@ e@ (junto com seus complementares espaciais, @, @e @) -
temente a sonoridade intervalar. Assim como em uma peça
certos intervalos desempenham um e outros um
importância, a combinação de vozes gera uma linguagem na existem tanto
sonoridades intervalares predominantes quanto subordinadas. Da mesma
que em uma linguagem melódica, as características de uma linguagem de
dades intervalares são definidas no início de uma peça.

FUNÇÕES DOS INTERVALOS PREDOMINANTES

Tendo estabelecido as preferências gerais da linguagem sonora, examinare-


mos agora seus detalhes. Um dos intervalos enfatizados, o intervalo @, desem-
penha um papel muito especial na primeira frase: ocorre no ponto de conclusão
textual e musical (compasso 4). Nesse compasso, o texto chega ao fim de uma
linha e a música cessa durante um compasso inteiro, portanto, tanto a movi-
mentação musical quanto o texto são pontuados por uma pausa. Essa mesma
pontuação ocorre nos finais das linhas 3, 5 e 7 do texto (compassos 9-10, 16 e
22 da música) e também posteriormente. Em todos os casos, uma pausa musical
ocorre paralelamente a uma pausa no texto. As rimas "ant" e "é" definem o final
destas linhas poéticas. De modo similar, a utilização consistente do intervalo@
define o final das linhas musicais. (Nos compassos 9-10, isso é realizado de forma
sutil: o intervalo !@conclusivo ocorre na sílaba "dur" da palavra "dur-té." "Dur"
é a parte da palavra que carrega o radical "duro", ao passo que a sílaba "té" indica
somente a desinência. Portanto, o significado verbal e intervalar no final da frase
unem-se no intervalo© na sílaba "dur").
No poema, esses finais são definidos por sons - terminações rimadas - e
pela movimentação - pausas no final das linhas. Como acabamos de ver, também
são definidos musicalmente pelo som e pela movimentação, através do uso con-
sistente do intervalo @ sustentado por um compasso inteiro, durante o qual não
ocorre atividade rítmica. Vários desses pontos de repouso são definidos também
pela chegada de uma ou de ambas as vozes na final do modo, nesse caso a nota Ré
(compassos 4, 9-10, 22 e outros). Esses pontos de repouso foram posteriormente
denominados cadências.

170 A LINGUAGEM MUSICAL


e a movimentação ou seja, a linguagem
movimentam-se ou repousam simultaneamente.
constatamos só a linguagem musical é definida através de ca-
gerais que se aplicam a toda a peça, mas também que os pontos es-
'--'-'~'v de uma obra são definidos de maneira muito específica. Assim como na
verbal, um som específico - a sílaba rimada, por exemplo - apresenta
papel singular em um determinado contexto, nesta peça o intervalo @ de-
sempenha uma função específica em um contexto musical.
Nesta peça, não só os finais, mas também os inícios de linhas são definidos.
Após cada um dos pontos de repouso, a música inicia com um intervalo (D - nos
compassos 1, 5, 11, 17 e 27. Em alguns casos, este intervalo (D é elaborado por
uma nota vizinha superior - por exemplo, a nota Si nos compassos 5 e 17.
Nossa compreensão da linguagem sonora tornou-se agora muito mais com-
pleta. Constatamos a existência de uma forma específica na frase de Machaut,
que geralmente inicia com o intervalo (D e conclui com o intervalo @. A com-
binação de vozes cria, de maneira consistente, intervalos com funções bastante
específicas nas frases musicais, que apresentam relações bem definidas com o
texto. Esta conexão íntima entre linguagem musical e linguagem verbal não deve
surgir como uma surpresa, na medida em que essas duas linguagens se encontra-
vam unidas durante a vida criativa de Machaut. Os textos poéticos de suas obras
seculares foram escritos por ele mesmo, que era um poeta dotado de habilidades
excepcionais e muito respeitado entre seus contemporâneos. Durante o período
em que viveu, uma nova arte de combinação de vozes possibilitou a abertura de
novos recursos de linguagem musical e também (como veremos no Capítulo 3) o
surgimento de novos recursos rítmicos. Machaut foi um dos primeiros explora-
dores da linguagem e do ritmo da combinação de vozes, o mestre de uma forma
de arte que adota as técnicas e as premissas mais refinadas de seu tempo.

INTERVALOS SUBORDINADOS

Embora os intervalos (D, @ e @ e seus complementos espaciais predomi-


nem nesta obra, esses não são os únicos intervalos produzidos pela combinação
das vozes. Os intervalos@ e@,© e©, assim como o trítono -@-também
são formados, porém com menor freqüência (dois intervalos - @ e {D - não são
utilizados). O Exemplo 2.23, que mostra a segunda seção da peça, ilustra diversas
maneiras pelas quais esses intervalos subordinados se relacionam com os inter-
valos predominantes. Esses intervalos menos comuns (no contexto lingüístico

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 171


é

~~""~~à os
ao espaço, formam uma relação de grau conjunto com uma ou,
mais frequentemente, com ambas as notas as
circundam (por exemplo, o Sol no compasso 24
de grau conjunto com as notas adjacentes Lá, ao passo o
compasso 25, tem uma relação com as notas adjacentes Lá e Fá).
estes intervalos ser tanto notas vizinhas, bordaduras
ou notas de passagem.

Através dessas técnicas, se evita que os menos freqüentes sejam


enfatizados. Esses se subordinam lingüística e espacialmente, nunca ocorrem em
uma posição rítmica enfatizada e não duram muito. Desempenham sua função
sem comprometer a definição da linguagem sonora estabelecida. Ainda assim,
são indispensáveis. As notas Sol dos compassos 24-25 integram pequenas linhas
descendentes em direção à cadência na nota Mi (compasso 26). No compasso 24,
a nota Sol na voz solista faz parte um gesto de bordaduras que recorre repeti-
damente (com o mesmo sincopado ou com seus valores prolongados) nos
compassos 25, 28, 29, 30 e 31 e também anteriormente. Esta elaboração por meio
de bordaduras é um elemento importante nos detalhes do gestual da obra. Em
particular, os intervalos subordinados formam momentos de entropia - incerte-
zas temporárias que são sempre resolvidas, reconfirmando, por conseguinte, as
sonoridades predominantes da peça. 23

2.23 - Intervalos subordinados em Plus dure

172 A LINGUAGEM MUSICAL


- intervalo subordinado
N - nota vizinha
P - nota de passagem
R bordadura
(estas adjacências elaboradas são descritas mais detalhadamente no Apêndice D)

MODAL

O compositor geralmente define as sonoridades intervalares da linguagem


no início de uma obra (assim como define certas características como coleção
notas prioritárias e células melódicas). Durante o desenrolar da obra,
ele trabalha com as possibilidades da linguagem sonora definida,
sendo influenciado e limitado pelos recursos da coleção básica de notas. Como
essa coleção influencia especificamente a sonoridade intervalar? Teoricamente, a
coleção contém quantidades definidas de cada um de seus intervalos disponíveis.
exemplo, os recursos intervalares da coleção modal do Exemplo 2.24 podem
ser assim sintetizados:

7 intervalos (Q) (ou Q;?::) possíveis 25%


6 intervalos(~) (ou (j_)) possíveis 21 %
5 intervalos(~) (ou@)) possíveis 18%
4 intervalos(ª) (ou (2)) possíveis 14%
3 intervalos<.~) (ou(§)) possíveis 11 %
2 intervalos(~) (ou <.tP) possíveis 7%
1 intervalo(§) possível (o complemento espacial 4%
de (§) é o próprio (§))
100%

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 173


- Intervalos disponíveis na coleção modal

O Exemplo 2.24 retrata os intervalos obtidos através de todas as combinações possíveis da


coleção modal. Os intervalos entre@e@ são mostrados. Os intervalos mais amplos ((D a
@e assim por diante) são somente extensões espaciais dos mesmos pares de notas.

A comparação da distribuição efetiva dos intervalos em uma obra musical


com a distribuição intervalar teórica de sua coleção escalar (conforme demons-
trado no Quadro C) revela as escolhas do compositor. Anteriormente, caracteri-
zamos os intervalos predominantes de Plus dure como pertencentes às classes
intervalares @, @ e @. o Quadro e demonstra que esses intervalos são três
dos quatro intervalos potenciais mais freqüentes da coleção modal. Entretanto, na
peça, sua ordem de freqüência é @, @, @, ao passo que no quadro modal esta
ordem é @, @, @, @.
De maneira própria, Machaut configurou sua linguagem a partir das so-
noridades intervalares mais proeminentes da coleção modal. Em Plus dure, as
classes intervalares @ e @ ocorrem ainda mais freqüentemente (36% e 28%,
respectivamente) do que na coleção modal, ao passo que os intervalos subordi-
nados ocorrem com freqüência ainda menor. As sonoridades subordinadas são

174 ALINGUAGEM MUSICAL


@,(D e@.24
ao certa maneira, ocorre
menos freqüentemente do que poderia se supor a partir de sua freqüência
na coleção modal. A definição da linguagem de sonoridades, tanto em relação às
sonoridades predominantes às subordinadas, revela uma conexão direta,
porém não rígida, entre os recursos da coleção de alturas e a distribuição especí-
fica das sonoridades elaboradas a partir destes recursos.

DERIVAÇÕES E EXTENSÕES LINGÜÍSTICAS

Como Stravinsky observou em uma das epígrafes deste capítulo, criar uma
linguagem musical significa estabelecer uma ordem entre alturas e intervalos.
Após definir a linguagem de uma obra, o compositor procura, na gama de alturas
disponíveis, os sons que podem se encaixar nessa linguagem definida. Quanto
mais sonoridades forem possíveis descobrir, maiores serão os recursos disponí-
veis para reconfirmar a qualidade sonora específica da linguagem. Por essa razão,
Machaut constrói sua linguagem principalmente com intervalos {Ql, que ocor-
rem freqüentemente na coleção rp.odal, oferecendo, portanto, oportunidades
abundantes de reconfirmação da qualidade sonora da linguagem. Machaut tira
proveito dessas oportunidades desde o início da peça (Exemplo 2.22c). Os inter-
valos predominantes podem ser também brevemente elaborados por adjacências
espaciais (como notas de passagens, bordaduras e notas vizinhas). Essas elabora-
ções ampliam a linguagem e a movimentação, porém sem ofuscar a sonoridade
predominante.
Os compositores, no entanto, vão ainda mais longe na exploração dessas
extensões lingüísticas. Em Plus dure, Machaut utiliza os intervalos e seus com-
plementares de forma equivalente. Dessa maneira, cada par - @ e @, @ e @,
@e@ - é utilizado de forma similar (conforme o Exemplo 2.25). Os Quadros
A e B demonstram a preferência geral de Machaut pelos complementos espaciais
mais amplos - @, @e@. As porcentagens de@, @e@ no Quadro B (8%, 7%
e 6%, respectivamente) seguem a mesma ordem de preferência que a apresentada
por seus complementares mais amplos. Em relação à freqüência de ocorrência, o
intervalo @ realiza a mesma função entre os intervalos menos amplos que seu
complemento@ realiza entre os mais amplos. A ordem da linguagem é então du-
plamente confirmada; pelo uso dos intervalos amplos e pela recorrência da mesma
ordem entre seus complementares espaciais mais restritos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 175


As mesmas notas são dispostas inicialmente como intervalos ® movendo-se para @ e, em
seguida, como intervalos@ movendo-se para@.

Dessa maneira, o número intervalos para reconfirmar as ca-


racterísticas da linguagem são duplicados. A variedade torna-se um meio de confirmar
e reconfirmar a similaridade. Naturalmente, tais extensões só podem ser utilizadas
quando o ouvido aceita os complementos de oitava como sendo similares. Portan-
to, a partir de uma linguagem inicial na qual os intervalos {V, @e @são predo-
minantes, esta ordem é ampliada, incluindo seus complementares:@,@e@.
Assim como o número de intervalos disponíveis pode ser expandido, no-
tas também podem ser acrescentadas. Os intervalos adicionais reconfirmam (ao
invés de obscurecer) as características estabelecidas da linguagem, ao passo que
o acréscimo de notas confirma as funções modais. Em Plus dure, a nota Dó# é
adicionada às alturas disponíveis da coleção modal nos compassos 3, 6 e 32 (na
primeira terminação). Essas notas sempre conduzem à do modo Dórico, a
nota Ré (e, portanto, a elaboram). Dessa forma, elas a final e reforçam
sua primazia.
função especial da nota Dó# em relação à final do modo, Ré, é exposta de
forma inequívoca e bela no início da voz solo (compassos 1-4). Como o Exemplo
2.26a mostra, a movimentação (por meio de notas vizinhas) circunda Ré - a nota
que inicia, termina e domina a frase. A nota Dó# oferece uma outra possibilidade
no processo de circunscrever Ré: constitui uma altura adicional que conduz à
nota Ré. Os Exemplos 2.26b e 2.26c mostram outras aproximações e elaborações
da nota Ré com a nota Dó#. Portanto, a nota que aparentemente constituía uma
exceção à escala modal, de fato reforça a final Ré ao invés de obscurecê-la.
Enfatizar a final pela aproximação e elaboração com sua sensível era um
procedimento composicional comum do período modal tardio. Esse procedi-
mento surge como uma convenção, chamada de musica falsa na Idade Média e
de musica ficta na Renascença. Essa convenção ditava o uso da alteração mesmo
quando o compositor não havia escrito este acidente. Muitos editores modernos
indicam estas alterações (que teriam sido executadas por intérpretes renomados

176 A LINGUAGEM MUSICAL


e

e das alterações
estabelecem sensíveis, novos elementos são incorporados à linguagem. Os ele-
mentos são escolhidos enfatizar e refinar - ao invés de e
cer - os aspectos primários linguagem: os intervalos predominantes e a nota
prioritária. A ordem lingüística é ampliada e reconfirmada (Plus dure é examina-
da sob outro ponto de vista no início do Capítulo 3).

JOSQUIN DES PREZ: MISSA L'HOMME ARMÉ, "BENEDICTUS"


(EXEMPLO 1.

Como os elementos modais desta peça podem ser comparados com as peças modais es-
tudadas anterior.mente? De que maneira a linguagem sonora é similar ou dissimilar do
virelai de Machaut? Como o design e a linguagem se inter-relacionam?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 177


Apesar das semelhanças, existem
e o "Benedictus" As
tâneas. O modo Hipodórico, presente na voz solo
predominante na peça de Josquin; a final, é a mesma nas
do, no Capítulo salientamos o ousado uso extensão
Josquin, que amplia o modo em uma extensão de de oitavas.
Hipodórico utilizado por Josquin alcança, in tato,* Lá até Lá , e o Lá4 superior é
2 4

brevemente estendido até um ápice em Dó 5 . Logo descobriremos que a concepção


modal também será ampliada de maneira a outros modos e assim
como a utilização mais ampla do espaço.
As similaridades em relação à quantidade de vozes e ao modo produzem
sonoridades intervalares similares? Assim como Machaut definiu a natureza de
sua linguagem sonora no início da peça, também o faz Josquin. Na primeira frase
de "Benedictus" (compassos 1-9), a freqüência com que ocorrem os intervalos é a
seguinte (por classe de intervalos):

@=9
@=5
@=5

Enquanto o intervalo (J) dominava a linguagem sonora de Machaut, o intervalo


@ domina a linguagem de Josquin. Esse intervalo ocorre quase duas vezes mais
que os outros intervalos mais freqüentes.
O Quadro D apresenta os resultados desta análise em todo o "Benedictus".
Assim como procedemos na análise de Machaut, esse quadro compara o núme-
ro de ocorrência dos intervalos, suas durações e os intervalos enfatizados por
ataques simultâneos nas duas vozes. O Quadro E simplifica essas informações,
agrupando os intervalos por classe intervalar. Embora a linguagem do "Bene-
dictus" inclua um número maior de intervalos do que a da peça de Machaut e
(especialmente) uma maior variedade de disposições espaciais, sua distribuição é
claramente definida. Em todos os critérios de classificação, o intervalo @ é for-
temente dominante; sua sonoridade é inequivocamente confirmada. As classes
intervalares @, @ e (J) são utilizadas em quantidades menores e equivalentes,
ao passo que os intervalos ®,@e® são utilizados raramente.
Assim como no virelai de Machaut, a função de cada sonoridade - predo-
minante ou subordinada - na hierarquia é definida: o conteúdo intervalar distinto

* N. T. Em sua totalidade.

178 A LINGUAGEM MUSICAL


Entretanto, seu especí-
intervalo0 utilizado na peça de Machaut.
Exemplo 2.24 mostra que a coleção oferece quatro pares de notas que
produzem intervalos @. Existem, portanto, dentro coleção modal amplas
possibilidades de reprodução e de confirmação dessa sonoridade. As outras esco-
lhas de Josquin, assim como as de Machaut, correspondem aos intervalos predo-
minantes na coleção modal. disso, no "Benedictus", o intervalo@, assim
como em Plus dure, é subutilizado. Como na peça de Machaut, os intervalos @e
@ ocorrem com pouca freqüência, em concordância com sua baixa freqüência na
coleção modal.
O tratamento dado aos intervalos subordinados também demonstra as
mesmas características encontradas na peça de Machaut. Estes intervalos (as-
sinalados no Exemplo 2.27) são geralmente breves, ocorrem entre os tempos do
compasso e estabelecem adjacências (ou como notas de passagem ou como borda-
duras) com os intervalos predominantes que estão ao seu redor. Essas caracterís-
ticas são comuns a todos os intervalos subordinados da peça.

numero de ocorrendas

35

25

14

11

11

Hl

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 179


inclui intervalos

lndui intervalos

a classe intervalar Intervalos

a classe intervalar !ndu! intervalos

a dasae Intervalar Inclui intervalos

classe intervalar índui os intervalos e

inclui os intervalos

*Esta classe foi classificada como


de acordo com sua forma mais frE!oíierrte mais reduzida.

180 A LINGUAGEM MUSICAL


O sinal indica um intervalo subordinado. Os intervalos subordinados são mostrados ao
lado dos intervalos que os circundam.

Consideramos o intervalo @ subordinado, pois ocorre tão infreqüentemente quanto estes


intervalos e recebe o mesmo tratamento dado aos intervalos subordinados. (Portanto, os
complementos espaciais nem sempre são equivalentes).

Ü CONCEITO DE UM SISTEMA DE CONSONÂNCIAS E DISSONÂNCIAS

O tratamento da sonoridade intervalar nestas peças de Machaut e Josquin


pode ser descrito como um sistema de consonâncias e dissonâncias. Nossa com-
preensão é semelhante, porém difere sutilmente do entendimento histórico do
termo. Geralmente, as consonâncias e as dissonâncias em obras que utilizem
esse sistema têm sido definidas de maneira absoluta: alguns intervalos são in-
variavelmente consonantes e outros, dissonantes. Essa noção tem sido motivo
de contínua controvérsia e de dificuldades, pois os conceitos a respeito de con-
sonâncias e dissonâncias se modificaram no decorrer da história da música. No
século XII, as quartas eram consideradas consonantes e as terças dissonantes.
No século XV, as terças eram consonantes e as quartas, dissonantes. No início do
século XVII, os acordes de sétima eram dissonantes e, no final do século XIX, eles
eram consonantes. Definições absolutas sobre a consonância e a dissonância têm

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 181


sido de confusão os músicos desejam abordar
culturas e compositores.
Além disso, definições absolutas obscurecem os processos a
dos quais o compositor define, no início de uma obra, a linguagem específica a ser
empregada. Não se pode enfatizar suficientemente que a linguagem de uma
musical, a despeito do elevado grau de características compartilhadas, possua
algo muito especial que seja peculiar. Uma obra define uma linguagem cujas
nuances só podem ser descobertas levando em conta a substância e os processos
de seu próprio contexto.
Nosso conceito de sistema de consonâncias e dissonâncias consiste, por-
tanto, em um contexto que dá origem a uma hierarquia de intervalos (ou células
intervalares), que podem ser predominantes (consonâncias) ou subordinados (dis-
sonâncias). Nesse sistema, as dissonâncias são tratadas de maneira especial, para
que não interfiram com a sonoridade básica que foi estabelecida, predominante-
mente, pelas consonâncias.
Afirmar que os intervalos não são intrinsecamente consonantes ou disso-
nantes não significa dizer que estes não possuem características próprias. Um
intervalo apresenta uma variedade de propriedades e, como uma cor, assume dife-
rentes matizes e nuances em contextos diversos. Um intervalo apresenta tantas e
tão diversas propriedades que generalizações simplistas se tornam impraticáveis.
Por exemplo, Machaut selecionou os intervalos predominantes em Plus dure ( 0,
© e@) pelo critério da dimensão. Todos esses intervalos cobrem entre a metade
de uma oitava (@) e uma oitava. Os intervalos que não se encaixam nessa faixa,
por serem mais ou menos amplos do que os limites estabelecidos, desempenham
um papel menor. Todavia, entre os menos amplos, aqueles que são complementos
dos intervalos predominantes e@, @ e @) são ocasionalmente tratados como
predominantes. Portanto, já travamos contato com duas propriedades possíveis
de um intervalo: dimensão e complementaridade. Em nossas análises, enfatiza-
mos outra propriedade intervalar: a freqüência de ocorrência (ou disponibilida-
de) dentro de uma coleção geradora. Mais do que uma propriedade intrínseca de
um intervalo, esta é uma propriedade relativa à coleção geradora.
Os argumentos lançados em favor das propriedades intrínsecas dos inter-
valos têm sido freqüentemente imprecisos ou mesmo equivocados. Argumenta-
-se, por exemplo, que as consonâncias intrínsecas não produzem batimentos
acústicos, ao passo que as dissonâncias intrínsecas o fazem. No Capítulo 4,
estudaremos os batimentos em detalhes, como um componente vital da cor do
som. Mostraremos que a presença ou ausência de batimentos (em praticamente
qualquer intervalo) depende de registro, instrumentação, dinâmica e duração.

182 A LINGUAGEM MUSICAL


tempo, que
em certas dinâmicas, ao passo que outros
seja qual for o intervalo. A produção de batimentos é apenas uma das
muitas propriedades dos intervalos e é ativada de acordo com o registro, a instru-
mentação e a dinâmica específica - em outras palavras, por contextos específicos.
Acreditamos que a percepção histórica e a precisão analítica necessitam le-
var em conta a visão contextual do significado dos intervalos aqui desenvolvida.
Se essa for adotada, poderá conduzir a resultados mais reveladores em relação à
linguagem musical do que as confusões causadas pelas generalizações comuns,
apoiadas na idéia de consonâncias e dissonâncias intrínsecas. Por exemplo, com
bastante freqüência tem se dito que na música de Josquin as terças são conso-
nantes. Essa afirmação ofusca a distinção, tão nítida no contexto do "Benedictus"
de Josquin, entre as diferentes terças, @ e @. Nessa peça, a sonoridade mais
freqüente é o intervalo dominante@. O intervalo© é relativamente infreqüen-
te (veja os Quadros D e E). Igualar os intervalos @ e @ ou @ com qualquer
outro intervalo supostamente consonante sem considerar sua função em um de-
terminado contexto significa falsificar e obscurecer o que verdadeiramente ocor-
re na música. A visão contextual resulta em clareza e precisão na determinação
das funções intervalares. Um sistehia de consonâncias e dissonâncias consiste,
portanto, em uma ordenação hierárquica de intervalos: um ou mais intervalos
predominam, ao passo que outros são subordinados. O contexto composicional
define e reconfirma quais intervalos assumem essas funções.

FLUXO LINGÜÍSTICO E MOVIMENTAÇÃO ESPACIAL

Examinaremos uma última característica do "Benedictus" de Josquin: as


transformações modais que ocorrem entre os compassos 9 e 31. No decorrerdes-
ses compassos, os modos Eólio e Lídio são definidos, antes do retorno do modo
Hipodórico nos últimos 18 compassos.
Nos cantos Veni creator spiritus e Kyrie Deus sempiterne, encontramos células
intervalares reproduzidas em pontos nos quais estas células reaparecem na cole-
ção modal. O mesmo ocorre no "Benedictus". Utilizando a coleção modal, existe
somente uma nota além de Ré que pode ser utilizada como ponto inicial de um
movimento ascendente que obtém a mesma configuração intervalar da célula ini-
cial (Exemplos 2.28a, e 2.28b): a nota Lá, final do modo Eólio. A reapresentação
da célula intervalar partindo da nota Lá, no compasso 9, constitui o ponto onde
a definição do modo Eólio ocorre (confirmado pela utilização da sensível, Sol#, de
sua nota final, Lá). À medida que a célula se movimenta, o modo é alterado.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 183


mesmo gera o nos
2.28c), as operações complexas. Nesse caso, a~~-"~~~
vertida e sutilmente elaborada; além disso, a última nota da seu
linear, atua como final do novo o modo Lídio. Embora as conexões sejam
mais elaboradas, o princípio permanece o mesmo: o
garantido pelo da célula intervalar original.
que esta inversão antecipa o retorno célula ao modo com a ~~,"~~~
também em movimento descendente. Essa última pode ser considerada
como uma inversão ou (mais precisamente) como o retrógrado célula ascen-
dente original.

2.28 - Reproduções da célula gerando diversos modos no "Benedictus" de


Josquin

É importante mencionar que esta última forma descendente da célula


(Exemplo 2.28d) revela que o "Benedictus" se origina a partir de L'homme armé,
a canção folclórica subjacente à missa de Josquin (Exemplo 2.28e). As operações
ilustradas nos Exemplos 2.28c e 2.28d (elaboração, inversão e retrogradação) pa-
recem complicadas, porém sua função é justamente a de revelar, gradualmente, a
canção original em seu estado mais simples.
Assim como nos dois cantos anteriores, no "Benedictus" de Josquin ocor-
rem movimentos espaciais que conduzem a célula a outros níveis nos quais esta
pode ser reproduzida. Josquin enfatiza essa movimentação - utilizando os meios
lingüísticos que estudamos (notas prioritárias enfatizadas, alterações que produ-
zem sensíveis e cadências) - para definir temporariamente novas finais e modos.
Nos compassos 8-9 (e novamente nos compassos 16-17), todas essas técnicas en-
fatizam a movimentação em direção à nota a final do modo Eólio e, posterior-
mente para Fá, a final do modo Lídio.
A movimentação espacial e a linguagem são precisamente coordenadas
no "Benedictus". 25 O movimento se direciona, ou parte de pontos que possuem

184 A LINGUAGEM MUSICAL


como nos o
sejam ampliados ao uic,A11uu
novos é uma amplificação da '-""-"·ª
peça. Mais uma vez, o epigrama de Stravinsky, "a variedade só é válida como
de alcançar a similaridade", é relevante observações a rac•na + 1

ser encontradas no do Capítulo 1 e na


seção "Dimensão e atividade (I)" do 3).

CHANSON

Existe uma célula inicial de sonoridades cujas relações são posteriormente reproduzi-
das? Qual é o modo da peça? O que é incomum nessa peça em comparação com as peças
estudadas anteriormente?

Durante o período modal tardio (séculos XV e XVI), a densidade da música,


ou seja, o número de vozes em uma obra, de maneira geral, aumentou significati-
vamente. Para Machaut, no século XIV, quatro vozes simultâneas representavam
a densidade máxima; a maior parte de sua música foi escrita para uma, duas ou
três vozes. Durante o século XVI, o período de Palestrina e Lassus, quatro vozes
simultâneas representavam a norma; freqüentemente, cinco, seis, oito ou mais
(em circunstâncias excepcionais) vozes eram usadas. O aumento da densidade
era uma nova prática musical com vastas implicações para o design e a linguagem.
A chanson de Lassus, Bon jour, mon coeur, é escrita para quatro vozes. Além
das características observadas nas peças anteriores - design, modo e células me-
lódicas, estudaremos pela primeira vez uma linguagem de quatro vozes. Discu-
tiremos aqui duas questões: 1) a natureza geral da linguagem sonora da peça;
2) como a linguagem sonora, as relações de intervalos melódicos e o design são
construídos a partir de uma célula inicial que contém características específicas
da coleção modal.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 185


- Roland de Lassus: Bon jour, mon coeur, chanson

186 A LINGUAGEM MUSICAL


Bon jour mon coeur, Bom-dia meu coração,
Bon jour ma douce vie, Bom-dia doçura da minha vida,
Bon jour mon oeil, Bom-dia olhos meus,
Bon jour ma chere amie! Bom-dia minha querida amiga,
He! bon jour ma toutte belle, Ah! Bom-dia, minha coisa linda,
Ma mignardise, minha doçura,
Bon jour mes delices, mon amour, Bom-dia meus deleites, meu amor,
Mon doux printems, Minha doce primavera,
Ma douce fleur nouvelle, Minha doce e nova ffor,
Mon doux plai~ir, Meu doce prazer,
Ma douce colombelle, Minha doce pombinha,
Mon passereau, Meu passarinho
Ma gentle tourterelle! Minha gentil rolinha!
Bon jour ma douce rebelle. Bom-dia minha doce rebelde.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 187


sica escrita vozes, as em
formados entre duas notas. uma obra escrita para quatro vozes, é
sonoridades com mais duas notas nos compassos 1-2). Ades-
cnçao simples dessas sonoridades pode ser ~··~~.u
suas formas espaciais mais compactas. Todas as sonoridades compassos
@
consistem em um agrupamento intervalar de notas: o grupo {D© , conhe-
cido como a tríade maior (Exemplo 2.30). Nessa peça, essas tríades maiores são
dispostas em posições espaciais ligeiramente mais espaçadas do que suas possi-
bilidades mais reduzidas, sendo que a nota mais grave sempre é duplicada uma
ou duas oitavas acima (obviamente, uma das notas deste agrupamento de três
deve ser dobrada em uma textura a quatro vozes).

A única sonoridade presente nos compassos 1-2 é a tríade maior, que ocorre
em várias distribuições distintas. De fato, as três tríades maiores utilizadas (que
são construídas a partir de Sol, Fá e Dó) empregam todas as notas da coleção
modal e representam, nessa coleção, todas as possibilidades de formação deste
agrupamento.
O Exemplo 2.31 continua a análise da sonoridade no restante da primeira
frase (compassos 1-5). Nos compassos 4-5, ocorrem novas sonoridades (mar-
cadas por um Q)). Cada uma destas sonoridades resulta da elaboração de uma
tríade maior:

- por notas de passagem (marcadas com "P" no Exemplo 2.31): notas


que preenchem o espaço entre as notas da tríade;

188 A LINGUAGEM MUSICAL


u1na
rn'""'rn'º"''"" ascendente ou descen-
conjunto;
suspensões (marcadas com "S"): um caso especial
de elaboração, no uma nota é ligada à sonoridade pre-
cedente antes de resolver em uma nota da tríade.

- As sonoridades nos compassos 4-5

Em cada um desses casos, a sonoridade predominante permanece sendo a


tríade maior. As sonoridades não-triádicas momentâneas resultam de detalhes
mínimos da elaboração linear, quando uma das vozes se movimenta ao redor,
em direção ou a partir de uma nota da tríade. Esses detalhes não recebem ên-
fase espacial, temporal ou lingüística e são absorvidos pelas tríades maiores,
elaborando-as.
Ainda precisamos compreender duas sonoridades, aquelas marcadas com
um "x". A última sonoridade do compasso 4 (Exemplo 2.31) consiste (quando re-
duzida espacialmente) nos mesmos intervalos de uma tríade maior, porém em
diferente ordenamento: {Z)l~ . Essa é uma tríade menor. A última sonoridade
®
do compasso 5 é formada por somente duas notas, separadas por um intervalo
@, constituindo, portanto, uma tríade incompleta. Essas duas sonoridades estão
intimamente relacionadas com a tríade maior pelo seu conteúdo intervalar. Essas
sonoridades utilizam um ou mais dos intervalos da tríade maior e não intro-
duzem nenhum novo intervalo à linguagem. Esta frase, portanto, contém não
somente a tríade maior predominante (que ocorre dez vezes), mas também a tría-
de menor (que ocorre uma. vez), intervalicamente relacionada, e a tríade maior

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 189


~~· .. ~~· ..
ocorre somente uma vez. Essas
são as sonoridades
A linguagem de toda a chanson reflete a linguagem sua
todo, ocorrem 71 tríades maiores e 18 tríades menores. As caracte-
rísticas da primeira frase - predominantes e subordinadas e os diferentes tipos
de elaborações - são reproduzidas durante a peça em sua totalidade. Assim como
certas tríades são elaboradas no da primeira frase, também o são no
peça, em especial nos compassos 28-31. A linguagem da primeira frase prefigura
a linguagem de toda a peça.
Partindo dessa descrição geral da linguagem sonora, poderemos avançar
para a segunda parte de nossa discussão: a evolução da linguagem total (as rela-
ções intervalares melódicas, sonoridades, design e modo) a partir da célula inicial.
O Exemplo 2.32 apresenta a análise detalhada dos elementos da linguagem
da célula inicial (compassos 1-2), assim como as duas reproduções desta célula
(compassos 3-5) que concluem a primeira frase. A célula inicial configura a uti-
lização das três tríades maiores disponíveis na coleção modal. Essa utilização é
caracterizada por:

- duas relações intervalares melódicas enfatizadas nas vozes externas


- Q) na voz soprano e (J) na voz baixo;
- tríades maiores construídas a partir das notas do baixo; isso signifi-
ca que as tríades distam um intervalo (J) umas das outras;
- movimentação por bordaduras, corno princípio formativo de cada
voz e da célula total.

A segunda apresentação da célula (compassos 3-4) ocorre no único outro nível no


qual todas estas relações (melódicas e da sonoridade de tríades maiores) podem
ser reproduzidas na coleção modal. Movimentações de passagem na voz soprano
(apoiadas por sonoridades que já foram escutadas) conectam a primeira apresen-
tação da célula com a segunda (compasso 3) - esta movimentação de passagem é
então elegantemente reproduzida no baixo do compasso 4.
A terceira apresentação da célula é consideravelmente variada. N otarnos
anteriormente que suas sonoridades eram de fato variantes da sonoridade predo-
minante da tríade maior. Outras novas características desta célula variada são:

- o intervalo Q) no soprano é invertido (e sutilrnente elaborado), trans-


formando-se em uma bordadura inferior;
- o intervalo (J) no baixo é transformado em seu complemento espa-
cial@;

190 ALINGUAGEM MUSICAL


- as notas e são acrescentadas à coleção de ª"'ªe
que esta maiores a partir de Lá e Ré (nesse
caso, uma tríade incompleta).

2.32 -A célula dos compassos 1-2 e suas reproduções nos compassos 3-5

li

Essas variações da célula são particularmente interessantes. Nesse ponto, ava-


riação se faz necessária, na medida em que as duas apresentações precedentes
da célula esgotam as possibilidades de reprodução estrita da célula, utilizando
somente a coleção modal. Essa situação exige uma escolha entre três possíveis
soluções: repetição, incoerência (ou seja, falta de conexão com a célula prece-
dente) ou variação. As variações escolhidas trazem à peça sonoridades subor-
dinadas e relacionadas (as tríades menores) e acrescentam novas notas. Estas
alterações possibilitam a construção de mais tríades maiores e, portanto, de
novas apresentações da célula original. Conseqüentemente, as variantes resul-
tantes enriquecem em muito os recursos da linguagem da peça, porém, ao mes-
mo tempo, estabelecem múltiplas conexões (melódicas e de sonoridade) com a
célula original. A variante também auxilia na definição do modo, um assunto
ao qual retornaremos em breve.
A alteração acrescenta novas notas que podem ser usadas para formar novas
tríades maiores, o que, por sua vez, possibilita novas reproduções da célula original.
Além disso, outras variantes da célula podem ser construídas utilizando as tríades

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 191


menores
No decorrer da~~-··,,.·~~.

Um aspecto est)ec1aln
estabelece um contorno de
célula que elabora Mi 5 no soprano), o design "''''~'"~'""'-·"-,_ aes(:eIJLue
linhas para o ponto mais grave (as que
A seguir, a célula da última frase (compassos 23-31) a célula
descendendo 4
fim até Si~ , o de origem da peça (Exemplo 2.33).
Cada evento da peça se origina a da sonoridade e gesto melódi-
co da célula Esses gestos são continuamente reapresentados, deslocados
ou elaborados. A presença da célula assegura a unidade da linguagem da peça e
sua distribuição linear garante a unidade de design e clareza de movimentação.
A célula incorpora os recursos das tríades maiores disponíveis na coleção "''"''-'-"'·'·
Por meio alterações, a célula é construída a partir de cada uma das notas da
coleção modal. Então, em última instância, os recursos disponíveis no sistema
modal para a reprodução dessa célula são completamente explorados e esgotados.
Durante essa exploração, a sonoridade da célula é continuamente amplificada e
reconfirmada durante a peça.
ainda um assunto a ser discutido: o modo da peça. Como acabamos de
constatar, a peça se origina de relações inerentes à coleção modal. Apesar das al-
terações, as notas da coleção modal são nitidamente dominantes na linguagem.
Mesmo quando as alterações estão presentes, a sonoridade predominante da tría-
de maior é construída somente a partir de notas que pertencem à coleção modal.
Ainda assim, a questão do modo, em uma peça que apresenta freqüentemente di-
versas vozes simultâneas, não é fácil de ser solucionada. Esta chanson se origina
não a partir de uma única nota prioritária, mas sim de uma sonoridade que contém
várias notas. A sonoridade prioritária é clara. Essa sonoridade é a tríade maior e,
posteriormente, a tríade construída na nota Sol. Esta tríade está presente no início
e no final da célula inicial em toda a peça: não menos do que seis apresentações da
célula (nos compassos 1-2, 6-7, 11-12, 17-20 e 28-30) enfatizam e elaboram esta
tríade, muito mais do que qualquer outra. Porém, a nota Si ocorre repetidamente
na voz soprano da célula; por conseguinte, é fortemente enfatizada na elaboração
linear. Será então Si a nota final? Ou a nota Sol? alguma outra nota?

192 A LINGUAGEM MUSICAL


-As Bon mon couer

A nota Sol é a escolha mais convincente. Essa é a nota enfatizada pelo baixo
(e dobrada em cada uma das tríades de Sol maior) e, em vários pontos cruciais,
é precedida pela sensível Fá# (compassos 5-6, 10-12, 24-25, 27-28 e 30-31). Des-
cobrimos que, durante o período modal, a utilização de uma sensível - obtida
através da alteração de uma das notas da coleção - era um procedimento
lizado para enfatizar a nota final. Esta importante função da nota Fá# remete
à terceira apresentação da célula (compasso 4-5), na qual essa alteração ocorre
pela primeira vez. Anteriormente, ponderamos que alguma variação se fazia ne-
cessária neste ponto da peça. Podemos compreender agora por que esta variação

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 193


específica a
como uma sensível, esclarece o
permite a mudança vital Fá# nas vozes
final do Mixolídio.
Resumindo, a variação da nos compassos 4-5 uma nova so-
noridade (relacionada e subordinada) à e acrescenta notas que
expandir os recursos, permitindo a construção novas células. disso, es-
tes novos recursos são incorporados à linguagem de maneira a fortalecerem o
modo, ou seja, direcionando-se à final do modo, a nota
Em uma peça como esta, a linguagem musical evoluiu enormemente em
comparação com as primeiras formulações do sistema modal e de consonâncias e
dissonâncias. As linhas deste desenvolvimento são claras:

- predomínio da coleção modal;


- estabelecimento de uma nota prioritária;
- definição de relacionamentos entre células melódicas;
- definição de sonoridades predominantes e subordinadas;
- reprodução de relações melódicas e sonoras, utilizando os recursos
disponíveis na coleção modal;
- alteração das notas da coleção modal como meio de elaboração da(s)
nota(s) prioritária(s) e de expansão das possibilidades de reprodu-
ções da célula;
- coordenação de todos os elementos no sentido de obter um design
linear coerente.

Em uma obra como Bon jour, mon couer, os limites do sistema são alcançados.
A profusão de notas cromáticas pode obscurecer a coleção modal, assim como as
características intervalares dos modos. A profusão de vozes sugere quase neces-
sariamente uma multiplicidade de modos soando simultaneamente. Este tipo de
composição exigia uma nova formulação teórica que incorporasse as notas cro-
máticas, bem como as sonoridades formadas pelas múltiplas vozes. Bon jour, mon
couer foi parte de uma experiência composicional que estabeleceu os alicerces
para o sistema tonal que viria a seguir.
Notamos anteriormente que uma obra musical deve ser consistente e lógica.
Uma obra que atinge esses requisitos constitui uma entidade artística por si só e
apresenta bases sólidas a partir das quais podem ser feitas generalizações siste-
máticas. Bon jour, mon couer se encaixa nessa descrição. Elegante em seu design de
linguagem, ela sugere muitas novas possibilidades lingüísticas. Assim como Veni
creator spiritus, esta chanson de Lassus encontrou ressonâncias no decorrer da

194 A LINGUAGEM MUSICAL


da contém um conjunto de
esta canção, o cravo. Essas variações foram compostas na
glaterra pelo compositor Peter no começo do século XVII (Exemplo 2.34).

Dois compassos do arranjo de Philips equivalem a um compasso do original de Lassus.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 195


DE

mon couer são en-

série em como
tríade maior. Os parciais 1-6 dessa série formam uma tríade ....A"~~.
te espaçada. Dentro série harmônica, os sons triádicos são
proporções matemáticas (2:3 e 4:5) que eram consideradas simples que as
razões das combinações não-triádicas. Por causa dessas duas razões, a tríade
considerada um "acorde da natureza" e conclusões abrangentes fato,
praticamente imperativos morais) foram concebidas teoristas como Rameau,
26
Schenker e Hindemith.
Análises psicofísicas do som realizadas durante os últimos cem anos trou-
xeram à tona novos posicionamentos sobre estes fenômenos. da mera
especulação sobre os sons harmônicos, tornou-se possível, no século XX,
ficá-los: discernir quais parciais estão presentes em um som, e em que quantida-
de. Tornou-se também possível medir precisamente a dimensão dos intervalos e,
conseguinte, verificar se estes são de fato determinados por razões "simples"
ou mais "complexas". Os resultados dessa análise do som, ainda em andamento,
são apresentados em várias partes do livro (especialmente no Apêndice B e no
Capítulo 4). Diversos pontos emergem claramente desta análise:

- os sons apresentam relacionamentos variados com a série harmôni-


ca. A onda senoidal não apresenta harmônicos. Outros sons, como
os instrumentos de cordas, geralmente apresentam um vasto núme-
ro de parciais, inclusive muitos que não são triádicos. Outros sons
- por exemplo, toda a diversa categoria de "ruídos" - apresentam
pouca ou nenhuma relação com a série harmônica ou com as tríades;
- o significado da proporcionalidade matemática das alturas tem se
tornado cada vez mais incerto. No sistema de afinação temperado,
as razões entre os intervalos (à exceção das oitavas, que permane-
cem em uma razão 2:1) são muito complexas. Além disso, o vibrato,
o efeito coral e a consistente desafinação de alturas "semelhantes"
(como no piano) afastam ainda mais os intervalos produzidos na
execução musical da "pureza" das razões fixadas. Poder-se-ia pen-
sar que a música tenta aproximar-se desta presumida pureza; no
entanto, a análise do som da música revela quase o oposto. Poderia

196 A LINGUAGEM MUSICAL


A explicação pela série harmônica outros problemas. Na série
as tríades menores são tão raras as tríades maiores não-tem-
peradas são comuns. as tríades menores desempenham uma função
quase tão importante quanto as maiores na música triádica e, em muitas
formam a sonoridade triádica predominante. Elas são parte vital dos sistemas
triádicos. Como essas sonoridades da tríade menor devem ser compreendidas? E
como devem ser compreendidas as sonoridades imensamente diversificadas da
música não-triádica? Até agora, nenhum sistema de linguagem musical baseado
na série harmônica obteve sucesso em confrontar todas essas questões e obje-
ções. Ao mesmo tempo, a análise psicofísica revelou outro papel para os fenô-
menos dos sons harmônicos: ela serve como base para uma teoria da cor sonora.
Nesse contexto, a presença ou ausência de parciais (assim como a diversidade de
afinações), ao invés de enfraquecer a teoria, forma sua substância.
No que tange à linguagem musical, os teoristas começaram recentemente
a investigar outra maneira de pensar sobre os conteúdos dos sistemas musicais.
E isso envolve a cuidadosa análise matemática dos elementos fornecidos por um
sistema (mais especificamente, por uma coleção de notas). 27 Anteriormente, fize-
mos uma análise desse tipo sobre os intervalos disponíveis na coleção modal. Em
seguida, comparamos as sonoridades de Plus dure de Machaut com estes recursos,
validando, portanto, a escolha de intervalos de Machaut. Posteriormente, fize-
mos uma comparação similar com o "Benedictus" de Josquin. As escolhas inter-
valares das duas peças são diferentes, porém ambas selecionam suas sonoridades
predominantes a partir dos intervalos mais comuns e mais prováveis da coleção,
e utilizam os intervalos menos comuns com muito menos freqüência.
Seguiremos essa linha de pensamento, aplicando-a também às sonoridades
de três notas. O princípio construtivo das tríades maiores e menores é a adição de
três notas alternadas, ou seja, não adjacentes, da coleção modal (terças). A partir
desse princípio, o Exemplo 2.35a mostra as tríades construídas em cada uma das
notas da coleção modal. Os intervalos resultantes das tríades estão, com uma
única exceção, entre os mais freqüentes da coleção modal. Somente o intervalo
@da última tríade é menos freqüente (e, portanto, potencialmente dissonante).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 197


- @, © e {Dl - são constantemente am-

iixen1pJ,o 2.35 - Todas as combinações possíveis de três notas que usam a coleção modal;
as demais são redistribuições da mesma

No Exemplo 2.35b a 2.35e, o mesmo processo é realizado em todas as sono-


ridades de três notas disponíveis na coleção modal. Uma sonoridade construída
a partir do modelo da linha (b) (três notas adjacentes) apresentaria muitos@ en-
tre os intervalos resultantes, porém os intervalos @ (ou {Dl), os mais freqüentes
da coleção, não seriam utilizados. Além disso, as sonoridades subseqüentes da
linha não reconfirmam ou ampliam os intervalos da sonoridade modelo. A sensa-
ção sonora resultante seria, portanto, inconsistente e irregular. Os modelos das
linhas (c) até (e) no Exemplo 2.35 apresentam as mesmas características.
As tríades no Exemplo 2.35a possuem outra qualidade singular. A tríade
modelo é reproduzida sem que sejam adicionados novos intervalos, à exceção do
supracitado intervalo @. O conteúdo intervalar total de todas as tríades é idên-
tico ao conteúdo da tríade original:@© {Dl. Existe uma unidade neste grupo de
sonoridades - a reprodução constante de certos intervalos comuns e fundamen-
tais da coleção modal - que não existe em nenhum outro grupo das sonoridades
de três notas.

198 A LINGUAGEM MUSICAL


acordo com os
termos musicais, isso significa as sonoridades
ser reproduzidas sem a intrusão de intervalos estranhos
ao contexto Esse modelo disponibiliza um sonoro variado, po-
homogêneo, para ser elaborado em uma obra musical. As tríades são combi-
nações dos intervalos predominantes disponíveis na coleção
entidades totalmente distintas e separadas. Esse posicionamento é
consistente com as visões prevalentes desde o século XIV até o século
A música modifica-se de uma sonoridade de duas notas a uma sonoridade de
três notas, através da extensão da prática anterior de consonâncias e dissonân-
cias. A partir dessa visão, o problema da tríade menor é resolvido: assim como a
tríade maior, a menor também surge dos recursos intervalares da coleção modal
e da experiência prévia dos compositores com esta coleção. Uma clara continui-
dade é revelada entre a linguagem musical construída em termos de intervalos e
aquela construída a partir de tríades três notas.
Não propomos esta explicação como uma alternativa absoluta à teoria ba-
seada na série harmônica. Nossa intenção é meramente demonstrar que existe
uma alternativa à oferecida pela fréqüentemente aclamada explicação pela série
harmônica. Além disso, esta alternativa é consistente historicamente e diz res-
peito tanto à música antiga quanto à musica recente. Logo mostraremos que este
pensamento pode ser aplicado também a outras coleções de notas e sistemas que
não utilizam sonoridades triádicas.

SISTEMA TONAL

INTRODUÇÃO

Durante os séculos XVI e XVII, a música rompeu os limites do sistema mo-


dal de consonâncias e dissonâncias. A canção Bon jour de Lassus, bem como a
versão para teclado de Philips, aponta contradições que surgiram nesse sistema,
à medida que este ev.oluía de uma para diversas vozes e depois para concepções
musicais instrumentais:

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 199


~w··~~w e era na
obscurecer ou mesmo
intervalares
- as vozes melódicas,
propriedades
tras características, como a sonoridade
a melodia soprano começa e
a mas que a nota
em SoL A melodia do não expressa realmente o "'~·~~
da peça; de fato, a final Sol é a nota
ocorre na voz do
- a introdução de instrumentos, assim como ocorreu anteriormente
com a combinação de vozes, ampliou vastamente as possibilidades
de espaço e movimentação, por fim destruindo irrevogavelmente
as limitações de âmbito dos modos. Um rápido olhar na versão de
Philips para Bon jour mostra a utilização de formações escalares que
percorrem amplas áreas de espaço musical. Como apontamos no Ca-
pítulo 1, uma "voz" torna-se uma entidade cada vez mais flexível,
sujeita à elaboração e aos deslocamentos de registro. Esses desenvol-
vimentos decorrem da fácil movimentação instrumental por exten-
sões que cobrem muitas oitavas, em contraste com a movimentação
mais limitada (em âmbito e agilidade) voz humana.

O sistema modal de consonâncias e dissonâncias tornou-se inadequado


as novas possibilidades da música: seu espaço, sonoridades e quantidade de
vozes e notas. A coleção modal, as características intervalares singulares de cada
modo, a limitação espacial dos modos e a ênfase primária nas relações melódicas
foram todas drasticamente modificadas. Essas características não descreviam
mais as possibilidades musicais disponíveis de maneira precisa. Por mais de um
século, os compositores - entre eles, Giovanni Gabrieli, Monteverdi, Frescobaldi,
Alessandro Scarlatti, Corelli, os madrigalistas e cancionistas ingleses e Purcell,
Schütz e Buxtehude - exploraram as sonoridades, as escalas, o espaço e os meios
instrumentais que prepararam a base para a redefinição da linguagem musical.
O efeito das novas possibilidades - cromatismo, sonoridades harmônicas, espa-
ço ampliado, movimentação instrumental - explosivo. Essas possibilidades
desencadearam uma onda de invenção musical que por resultaria não só em
novas formas (a ópera e a música instrumental virtuosística), mas também na
redefinição da musical predominante.

200 A LINGUAGEM MUSICAL


linguagem
precedida não só pela música dos
já mencionados, mas c~'º''"'~'.H seus contemporâneos: J.
G. F. Handel, Scarlatti e Vivaldi.
sua teoria,
músicas com as características sistema tonal. Rameau
de seus contemporâneos: "Nem seu conhecimento é comum,
28
o poder de comunicá-lo". O problema era a ausência conceitos
nova linguagem, uma preocupação que ocuparia compositores e teoristas
mais duzentos anos.
Definamos, então, as principais características do sistema tonal. Posterior-
mente, poderemos compará-las com as seu predecessor, o sistema modal de
dissonâncias e consonâncias, do tanto se apropriou e ainda assim
tão decisivamente.

TONALIDADE

No sistema tonal cada característica musical - sonoridade, linha, frase e


a obra inteira - converge para um único som central. O sistema é chamado de
"tonal" por causa do papel crucial deste som. A função primária da música tonal
é estabelecer prioridade, posição, poder ou mesmo onipotência do som escolhido.
O som principal é chamado de "tônica" ou "tonalidade" e é numericamente repre-
sentado, na análise tonal, por 'T' ou "1". A tônica funciona como ponto de partida
e retorno, todos os outros sons se relacionam a este grau, em distâncias variadas.
Descobriremos várias maneiras de conceber e distâncias tonais, que não
são necessariamente meras distâncias espaciais. No universo tonal, portanto,
um único sol, a tônica, exerce domínio de maneira absoluta.

COLEÇÃO TONAL

A mesma coleção modal de notas que serve de base para o sistema un,~<U
forma o alicerce do sistema tonal. Entretanto:

- os modos são reduzidos a dois: o modo Jônico, agora com o nome de


escala e o Eólico, chamado agora de escala menor (Exemplo

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 201


A e
zão para a das estruturas no
sistema modal contra duas no cvic1au0unJ,
- a limitação espacial
ou menor pode uc""'L'"-
Os compositores
desenvolvimento a extensão
disponível durante o
- a divisão cromática da oitava em uma coleção doze notas eqüi-
distantes (Exemplo 2.36b) atua como uma latente de notas e
relações. A estrutura escalas e menor pode ser
transposta doze vezes, a das doze notas desta escala (Exem-
plo 2.36c). uma das doze notas atuar como
tônica da obra e produzir a escala e menor constituirá
a fonte musical desta obra. Os princípios estruturais da tonalidade
derivam das escalas maior e menor que produzem os relacionamen-
tos básicos. Em uma obra baseada numa escala maior
ou menor, as notas cromáticas remanescentes serão subordinadas.

l:ixe:n1pl.o 2.36 - Estrutura intervalar das escalas maior, menor e cromática

estrutura
intervalar

202 A LINGUAGEM MUSICAL


EM EM

Assim como as escalas tonais derivam dos modos e a coleção modal,


as sonoridades da música tonal são essencialmente aquelas do sistema
tríades, isto é, a sonoridade de três notas construídas terças (Exemplos
2.37a). Citando Rameau, "tantas harmonias, tantas melodias, esta diversida-
de infinita [...] tudo isso se origina de dois ou três intervalos dispostos em terças". 29
~~ .... ~ no sistema modal, uma nota da tríade pode ser elaborada por uma nota es-
pacialmente adjacente se a nota da tríade suceder ou preceder imediatamente sua
nota elaboradora. O princípio da sonoridade construída em terças foi ampliado,
como veremos, produzindo as formações conhecidas como acordes de sétima. 30

2.37 - Tríades construídas em terças

No sistema tonal, as sonoridades triádicas adquirem novos níveis de signi-


ficado. Assim como uma obra musical tonal converge para uma única nota prin-
cipal, assim também o fazem seus vários elementos. As escalas são dominadas
pela tônica, com a qual iniciam e terminam. Uma tríade também é considerada
uma expressão de uma única nota - a nota mais grave da sua terça mais grave -
quando disposta na posição mais fechada possível (Exemplo 2.37b). Rameau cha-
mava esta nota de centro harmônico ou baixo fundamental, termo que mais tarde
foi reduzido simplesmente para "fundamental". "O princípio da harmonia está
presente [...] de maneira ainda mais precisa no centro harmônico com o qual todos
os outros sons devem ser relacionados". 31 Todos os sons devem ser relacionados com
uma sonoridade triadica e sua fundamental. A fundamental domina a tríade, assim
como a tônica domina a totalidade da obra. Rameau considerava que a progressão
de baixos fundamentais das tríades sucessivas constituía a movimentação essen-
cial da música.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 203


DA TONALIDADE:

meau apresentou em sua Génération Harmonique. estrutura


tema depende desta propriedade das sua capacidade
cadeias fundamentais, conectam
coleção cv.uct.L

a) cadeia de quintas vinculando todas as notas da escala de Dó maior (e Lá menor)

b) ciclo de quintas: sete notas sucessivas em qualquer parte do círculo equivalem às


notas de uma escala maior e às notas de sua relativa menor

b)

Completando a concepção de Rameau do sistema tonal:

- todas as sonoridades são basicamente triádicas;


- cada tríade é dominada por uma fundamental;

204 A LINGUAGEM MUSICAL


A mais quintas em direção a uma con-
32
na progressão I-V ou 39a e 2.39b). Essa progressão conec-
ta a tríade da tônica com a tríade cuja fundamental se uma acima
- chamada de dominante devido a seu relacionamento crucial com a tônica. Ra-
meau, em um momento escreveu: "[. .. ] escute então a música
mestres mais habilidosos, a examine e a teste por meio do baixo [... ]
33
estou dizendo, encontrarás somente a tônica e sua dominante". Essa declaração
estabelece o núcleo sistema tonal. Juntas, as progressões e V-I
uma cadeia circular composta duas conexões de quintas, dominadas nos
tos extremos por I (Exemplo 2.39c). Esta progressão I-V-I representa a essência
do sistema tonal.
A fundamental do grau IV, chamada subdominante, localiza-se uma
quinta abaixo de I (Exemplo 2.39d). Essa fundamental também se relaciona
com I por um intervalo de quinta e pode ser incluída em cadeias maiores com
a dominante. O Exemplo 2.39e mostra uma cadeia que contém duas conexões
por quintas, I-IV e V-I.

Os graus I, IV e V - a tônica e as tríades que se relacionam à tônica por


quintas - constituem as tríades primárias da tonalidade. Quando derivadas da
escala maior, estas tríades são maiores; quando derivadas da menor, são (em sua

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 205


básica, não as conexões mais
a mesma a sistema-
tiza a experiência durante o período das sonoridades
as sonoridades das
""'~, .. as mesmas Conseqüentemente, os termos
e menor descrevem tanto a escala peça quanto a suas tríades
34
primárias.
As tonalidades maiores e menores apresentam, portanto, características
muito fortes, que resultam da concordância das sonoridades de suas tríades pri-
márias. Entre os modos, somente o Jônico e o Eólio (as escalas maior e menor)
produzem esta concordância (veja o Exemplo 2.40). Esta forte caracterização
mônica foi responsável pela padronização dos modos e menor.

2.40 - Tríades primárias dos modos Dórico e Frígio

mencrr maior menor menor

Em todos os modos, exceto o Jônico e Eólio (a escala maior e menor), as tríades que se
relacionam com a nota final por quintas não concordam em sonoridade com a tríade da final.
Portanto, estes outros modos não apresentam uma única sonoridade característica que seja
reconfirmada por todas as tríades primárias.

Através das progressões de fundamentais por quintas, uma cadeia maior


pode ser formada, conectando todas as tríades disponíveis nas escalas maior e
menor (Exemplo 2.41). Essa cadeia inclui, além das tríades primárias, as quatro
tríades secundárias - II, III, VI e VIL As tríades secundárias não se conectam di-
retamente à tônica por progressões de quinta; ao invés disso, alcançam a tônica
através de V. Esta progressão tira máximo proveito da propriedade das quintas
de formar cadeias no sistema tonal e ilustra como ao invés de IV, funciona
como dominante neste sistema. O grau V retrocede em direção a todas as tríades
secundárias (através de II) e progride para I, ao passo que o grau IV se conecta a
I somente por meio de uma quinta perfeita (Exemplo 2.42). Na medida em que V
conecta todas as tríades secundárias a I, este grau se constitui na conexão verda-
deiramente crucial.

206 A LINGUAGEM MUSICAL


estas se básicos. 35
à distância tonal; o seguinte ""J~·-·~ fornece um importante

Vll

.l
[2
[3
[4
Is l
A distância relativa de qualquer tríade da tônica I, medida pelo número de conexões de quintas
necessárias para alcançar I.

2.41 - Cadeias de tríades tonais, conectadas por quintas

J,

1
l

1
1

1
l
Sem conexão por

1
1

1 SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 207


Examine os compassos 1-13 de acordo com os aspectos estudados do sistema tonal: qual
é a escala? Qual a tônica? Quais são as tríades e qual é a progressão do baixo funda-
mental? Como os membros da progressão de baixos fundamentais são conectados por
quintas?

Essas são questões a teoria de Rameau nos levaria a sobre uma


peça de música tonal. Responderemos estas perguntas através dos procedimentos
ficaram conhecidos como a análise harmônica na tradição de Rameau. O Exem-
2.44 mostra a progressão das fundamentais das tríades nos compassos 1-15. A
da tríade da tônica (I), identificamos cada harmonia com um roma-
no que designa a localização de sua fundamental na escala Sol maior.
Cada nota da canção de Brahms pertence à coleção de notas comum às escalas de
Sol maior e Mi menor. Desde o começo, está claro que a nota Sol é a tônica, o centro har-
altarnente enfatizado, na medida em que uma tríade prolongada de Sol
preenche os compassos 1-3. A escala é Sol maior e a tríade de Sol maior é I. A partir
dessa tríade, cada harmonia recebe um numeral romano para designar sua localização
na escala de Sol maior. Nesta peça, muitas das tríades apresentam também uma terça
adicional, formando acordes de sétima. 36 Além disso, algumas tríades são prolongadas
no espaço e no tempo - a tríade Idos compassos 1-3 por exemplo.
A enumeração das harmonias revela algumas características da linguagem
musical da peça:

- esta linguagem é composta por tríades e extensões triádicas;


- as tríades são todas compostas a das notas da escala de Sol
maior;
- certas notas podem ser compreendidas corno sendo o baixo
fundamental;

208 A LINGUAGEM MUSICAL


mera <euuu,''-~ não ni"",OV<>ro
a ordem específica que uma determinada
à outra e esta progressão um
Para a sucessão harmônica, a progressão deve ser examinada
com mais As conexões abaixo dos numerais romanos no Exemplo
2.44 revelam cada fundamental é conectada por seja com sua tríade
precedente ou com a tríade subseqüente freqüentemente com ambas). Dessa
maneira, cadeias de progressões por quintas são formadas. Começando com a
tônica e depois com as tríades primárias (compassos 1-5), as cadeias crescem e
acabam por todas as tríades - primárias e secundárias - que podem ser
formadas com as notas da escala de Sol maior.

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 209


210 A LINGUAGEM MUSICAL
nLu""'"" meu e me escuta;
ouve bem o que quero te dizer:
meu coração anseia por tua bondade;
mulher, não me deixes desesperar!
Para ti se volvem todos os meus desejos - acredita-me!
Deixa-me sentir a tua dedicação!

Destina-me o teu corpo soberbo e abre-me o teu coração!


Prende-me ali, querida minha,
e alivia minhas imensas dores que, dia e noite,
somente sinto por tua causa!
Sê carinhosa e atende o meu pedido!

Oh, meu prezado jovem: suspende o teu pedido


tu me és impetuoso demais e, se eu fosse te dar atenção,
tenho receio que isso não ficaria entre nós dois.
Mesmo assim, meu prezado hóspede,
sou grata pela atenção que, de coração, me ofereces.*

1
1

cadeia de tr.iades sec•.mdárlas em direção dominante cadeia de triades sec1mdárlas sendo conduzidas à -

IV

com:lu!ndo na tôf!lca

* N. T. A tradução do alemão para o português foi feita por Hella Frank.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 211


próximos são
compassos 14-15 são interessantes. Eles
o retorno à tônica, tanto à do compasso
compasso 16, quando a peça segue
Observando, no Exemplo
da progressão
da sucessão. Após estabelecer a tônica e suas
distantes são configuradas em cadeias
e suas relações primárias.
música tonal, portanto, estabelece e satisfaz uma de expectativas:

- as sonoridades consistem em tríades com baixos


- os baixos fundamentais progridem quintas;
- as tríades primárias, especialmente a estabelecida no início,
constituem os objetivos ou metas das cadeias progressões por
quintas.

Essas expectativas podem ser momentaneamente frustradas, resultando em ten-


são, como nos compassos 9-12. Nesses compassos, ao invés da tríade I esperada
(seguindo a dominante do compasso 8), uma nova cadeia que com har-
monias distantes ocorre em seu lugar. Em uma escala menor, no compasso 15 a
expectativa da sonoridade da tríade é adiada por uma dissonância que elabora
a nota Sol da harmonia, seguida por um breve adiamento da movimentação de
V para I. Dois procedimentos (elaboração e adiamento) são, portanto, utilizados
ao mesmo tempo no compasso 15 com o objetivo de acumular tensão, que é re-
solvida somente com a repetição do início, tornando esta repetição necessária e
inevitável.
Podemos entender agora três conceitos associados que são característicos
do sistema tonal:

-função;
- distância;
- tensão (entropia) e resolução.

212 A LINGUAGEM MUSICAL


a incerteza
de maneira as expectativas originais.
a tensão no compasso 9 - V movimenta-se para ao invés de
a criação de uma nova cadeia de por que
conduz rapidamente à progressão V-I nos compassos 12-13. Essa progressão re-
os princípios originais da progressão e da função
que o V-III colocado momentaneamente em questão.
tensão é, portanto, relacionada à distância Cada em
reção a uma remota origina uma dúvida ou uma incerteza a respeito do
princípio do e da função tonal - uma questão é
quando, pela movimentação quintas, a progressão harmônica retorna à
tônica. A também está relacionada com a elaboração. Vimos, no compasso
15, como a elaboração momentânea de uma nota produz incertezas sobre a na-
tureza da sonoridade. Veremos, a seguir, que essas elaborações constituem uma
rica fonte de criação tonal. Portanto, cada obra tonal cria funções e distâncias
tonais e as utiliza para obter e resolver a tensão.
Os argumentos até aqui apresentados representam os limites da teoria de
Rameau para a compreensão desta peça.

FLUXO TONAL: PROGRESSÃO E LINHA

Qual é a movimentação espacial dos compassos 1-13? Entre quais graus da tonalidade
flui a voz solo? Esse fluxo é coordenado com a movimentação das linhas do acompa-
nhamento e com a progressão harmônica? A movimentação espacial contribui para a
definição da tonalidade?

A teoria de Rameau incorporou uma atitude ambivalente a respeito da


movimentação espa_cial da música. De certa forma, suas implicações eram
revolucionárias:

- enquanto a teoria antiga tinha enfatizado o movimento das vozes


por grau conjunto (linear), a progressão do baixo fundamental por

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 213


na
pelo menos uma vozes, o ~~·"''''
- o membro mais grave acorde incorporava a função
damental e, conseqüentemente, o movimento essencial
voz

Rameau, entretanto, negou a possibilidade uma


dica (ou espacial):

[...] a melodia surge da harmonia; por conseguinte, é a harmonia que nos guia, não a me-
lodia; a harmonia, portanto, é gerada inicialmente e é de acordo com ela que devemos
necessariamente derivar nossas regras de melodia. Estaremos naturalmente fazendo
isso ao selecionar os intervalos harmônicos, discutidos anteriormente, que se formam
a partir da progressão fundamental. Embora o resultado ainda não constitua uma me-
lodia, ao seguirmos o curso diatónico natural delineado pelas próprias progressões, na
medida em que estas se apóiam reciprocamente, extraímos de suas consonâncias e pro-
gressões diatônicas toda a melodia de que necessitamos. 37

Rameau claramente julgava sua teoria harmônica capaz de explicar tanto a


harmonia quanto a melodia.
Um paradoxo no pensamento musical foi criado imediatamente após a pu-
blicação, em 1725, pelo compositor austríaco J. J. Fux do Gradus ad parnassum.
Fux ensinou a composição de melodias e sua combinação, sem levar em conta
a teoria de Rameau das progressões triádicas de baixos fundamentais. Duran-
te quase duzentos anos, o paradoxo permaneceu sem solução e, de fato, quase
despercebido. A análise musical seguiu Rameau quase exclusivamente, ao passo
que o ensino e a prática da composição foram profund9-mente influenciados por
Fux. Somente no começo do século XX, os teoristas - principalmente o austríaco
Schenker - abordaram abertamente este problema e resolveram estas contradi-
ções. No processo, as duas teorias passaram a ser consideradas complementares e
a natureza da movimentação espacial na música tonal começou a ser esclarecida
pela análise.
Na medida em que a movimentação espacial é negligenciada na teoria tonal
de Rameau, se poderia esperar que a música tonal não revelasse uma direção e
design linear significativo. Pelo contrário, retornemos a Brahms. Torna-se ime-
diatamente claro que a movimentação de sua canção apresenta um alto grau de
organização (Exemplo 2.45a). O fluxo principal de cada linha e, tomada conjunta-
mente, de toda a textura, resulta numa linha descendente durante os compassos

214 A LINGUAGEM MUSICAL


no em sete
com Uo~-iL~
voz solo Sua movimentação descende
passando pelas notas da escala de Sol maior (S - 4- 3- 2- i ). Antes
movimentos breves, que
a tríade de Sol ,..~-·~· em direção à nota

- o arpejo da tríade de Sol maior até a nota Ré (compassos 1-4) ....~.~~


a (Sol = i) e a nota linear inicial (Ré = S);
- a movimentação linear descende pela escala - S-4- 3-2
(compassos
5-8) - em direção à tônica (i), porém essa movimentação é desviada
no compasso 9 (no qual a progressão harmônica também é desviada
de V para
- a movimentação linear é então repetida e concluída nos compassos
/\ /\ 1\ /\ /\

9-13: 5- 4- 3- 2-1

Assim como a progressão harmônica movimenta-se pela trajetória das conexões


harmônicas - a cadeia de quintas - em direção à tônica, também as linhas princi-
pais se movem pelo trajeto das conexões lineares - a escala - em direção à tônica.
A tônica Sol, expressa linearmente como Í e harmonicamente como I, é o
objetivo da movimentação linear-harmônica. A progressão harmônica e a movi-
mentação linear trabalham conjuntamente no direcionamento e definição da
nota principal. Sua relação mais próxima no sistema tonal - a quinta Ré (V e S) -
é dominante tanto na harmonia quanto na linha (na qual inicia a movimentação
linear). Como observamos anteriormente em Syrinx de Debussy, no canto Veni
creator spiritus, no "Benedictus" de Josquin e em muitas outras obras, as mesmas
notas definem tanto o caráter sonoro da linguagem quanto o contorno do design.
São, portanto, duplamente encarregadas: o contorno expressa as características
proeminentes da linguagem e as características da linguagem definem o contor-
no. A movimentação linear direciona-se às notas e às harmonias que são mais
significativas para a definição da linguagem tonal. Para descrever a música tonal,
na qual tanto as linhas quanto as sonoridades convergem na tônica, é necessária
a análise conjunta dos aspectos lineares e harmônicos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 215


DAS VOZES

as

- a voz
-a voz

certo, momentos nos quais as


a distribuição dada é a norma na
Na canção de Brahms, a na
medida em que apresenta as
são harmônica - por exemplo:

- a fundamental I (compasso 1);


- a fundamental de V (compasso 5);
- as fundamentais das notas conectadas (compassos 5-8).

baixo combina essa função com seu papel linear mais relevante de apoio na
movimentação dos limites inferiores. A reconciliação dessas diversas funções
à voz do baixo uma estrutura complexa que consiste, de fato, em duas
linhas cujos movimentos descendentes são paralelos entre e com a linha da
voz solo (Exemplo 2.45b). A linha mais grave é especialmente - ela é o
baixo do baixo, por força de expressão - e apresenta as dos pontos
harmônicos principais.

I (V) IV V I
compassos 1-5 8 12 13 (veja o Exemplo 2.45b)

Seu fluxo linear abrange uma quinta descendente entre relações primárias (I-IV),
assim como a voz solo, que apresenta uma movimentação linear 5-i Ao descender
para IV, o baixo é posicionado de maneira a formar a cadência da canção com as
harmonias primárias (IV-V-1, compassos 11-13). O baixo unifica as funções har-
mônicas e lineares: as fundamentais das harmonias tonais primárias são enfa-
tizadas em seus pontos finais. Durante o curso da movimentação, as fundamen-
tais são incorporadas em um fluxo linear que conduz às harmonias primárias.

216 A LINGUAGEM MUSICAL


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 217
MOMENTO ESPECIAL

Notamos os ~-9 formam um momento espe-


na peça: a esperada I e 1é
~~u.,_,,c.au.u.v a tensão. a passagem (compassos 8-13) uc...unn
Brahms no manejo do sistema À exceção
no a melodia atinge a frase melódica (9-13) essencialmente """" I· 0 0

a frase anterior (compassos 5-8). A canção ter sido como no


Exemplo 2.46, no qual as frases melódicas similares são harmonizadas de ma-
neira idêntica .

.l:lx:en1p110 2.46 - Compassos 9-12 recompostos como repetições dos compassos 5-8

compassos 5-8 são melódica

218 A LINGUAGEM MUSICAL


acordo com os
~~·~~· é extremamente débil:

- a tensão presente na versão de Brahms é eliminada quando o V é


pelo I esperado, ao invés distante
- o fluxo linear do baixo torna-se repetitivo, revisitando o espaço en-
tre I e V sem explorar novos territórios.

linha de Brahms conduz na segunda frase, fundindo as duas frases em


uma única movimentação linear do baixo, que havia começado na primeira frase
e é completada com a chegada em IV na segunda. A segunda frase de Brahms não
é meramente uma repetição da primeira, tampouco uma variação escrita sim-
plesmente pela variedade. Assim como na melodia da voz solo, seu papel linear é
conduzir a movimentação adiante (para IV, o objetivo linear definitivo), antes da
cadência. incerteza no início do compasso 9 é resolvida pela reconfirmação das
funções harmônicas tonais mencionadas previamente e pelas linhas externas,
que alcançam seus objetivos definitivos na última frase. Sob esta perspectiva,
não deve ser permitido que a harmonia dos compassos 8-9 resolva em I, pois esta
resolução destruiria o fluxo harmônico antes que os objetivos lineares fossem
alcançados. Esta passagem enfatiza a necessidade de unir o entendimento linear
e harmônico, pois somente dessa forma a grande distinção da versão de Brahms
se torna aparente.

MOVIMENTAÇÃO TONAL AMPLIADA

Não pretendemos cobrir cada detalhe do sistema tonal, mas sim esclarecer
os princípios essenciais que o embasam. No Apêndice D, são mostrados alguns
procedimentos específicos para ampliar as operações lineares e harmônicas:

- adição de terças às tríades (produzindo acordes de sétima e nona);


- inversão de harmonias;
- elaboração linear de harmonias;
- conexão linear de harmonias;
- alterações cromáticas (tonicização). 39

Juntas, essas técnicas constituem meios de expandir significativamente o ter-


ritório tonal. Atravé's destes procedimentos, é possível prolongar a progressão
tonal por ampla extensão de tempo e espaço. Esses procedimentos, concebidos
originalmente como relacionamentos entre momentâneas, transfor-
mam-se em diretrizes na conexão de amplas áreas tonais.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 219


- ao invés de uma
de compreender seu papel de acordo com essa
tríades com a de é radicalmente
- a função é atribuída às tríades imoam ou con-
cluem movimentações lineares e harmônicas, e também para tríades
que, enfatizadas insistentemente pela repetição e pelo apoio das re-
lações de quinta, não poderiam deixar de exercer uma tonal.

Portanto, ao invés de a função de fundamental como uma proprie-


dade de cada harmonia, como Rameau fez, considere que uma deve
executar fortemente esta função em seu contexto para que seja analisada como
tal. Por si só, essa exigência elimina muitos dilemas sobre fundamentais ambí-
guas, fracas ou inteiramente inexistentes (conforme demonstrado no Apêndice
D) - dilemas que atormentaram e ainda atormentam a análise harmônica da tra-
dição de Rameau. Essas sonoridades não necessitam uma descrição de sua fun-
damental, mas devem ser compreensíveis em termos lineares. Ao descrever uma
passagem famosa da Sonata para piano, op. 2, n. 2 de Beethoven, Donald Francis
Tovey escreveu:

Esta é uma das passagens que marcaram época na história musical. Sua importância
não reside em suas maravilhosas modulações enarmônicas [...] Sem o baixo ascendente,
seu propósito seria o de meramente surpreender e não o de construir. Porém, com o baixo
ascendente e com recursos semelhantes, toda a arte da tonalidade se expande [...]40 [grifo
nosso]

[...] um movimento regularmente ascendente e descendente no baixo é muito mais im-


portante do que os acordes sobre ele. Se esses acordes são comuns, o baixo os dramatiza;
se são surpreendentes, o baixo incrementa essa qualidade ao torná-los inevitáveis [. ..] 41

Foi essa crescente consciência das funções lineares que Schenker sistematizou
em suas revisões do pensamento musical tonal.

220 A LINGUAGEM MUSICAL


F s 2.

outra "passagem que marcou época", dessa vez escrita


jovem ~~ ..,~,-· .. de Beethoven, Schubert. canção é tão
que a analisaremos completo (Exemplo 2.48). no cco-'\.cv.
concentraremos em sua segunda seção.
Os compassos 16-24 do Exemplo 2.48 resumem a seção Essa seção con-
siste em um movimento linear de passagem entre duas posições
dominante: V~ V~. Esta movimentação cromática ascendente é realizada em
todas as linhas do piano. O ritmo das mudanças cromáticas origina
várias harmonias passageiras.
Essas harmonias provocam o surgimento de diversas sugestões harmônicas
inusitadas e efêmeras (por exemplo, as tríades de Mi~ menor e Si~ Maior - bII
menor e VI maior em Ré - harmonias que não são construídas a partir ou com
os membros das escalas de Ré e que não desempenham papéis bem definidos na
estrutura tonal de Ré). Nenhuma dessas sugestões é confirmada. Entretanto, o
desenrolar da movimentação cromática, que ocorre como um movimento
de passagem entre as harmonias V no início e término da seção, é confirmado de
maneira inexorável.
A voz solo também elabora sobre a dominante, porém de outra maneira.
Como o Exemplo 2.48 (seção II) mostra, as notas principais da linha vocal for-
mam um circuito de notas vizinhas que cercam cromaticamente o grau S.

N N

Por meio destes dois procedimentos, nesta seção a função de dominante


é prolongada através da movimentação linear cromática. O prolongamento no-
vamente significa o estabelecimento de uma área inteiramente governada por
uma única função tonal. As outras sonoridades triádicas que surgem são mera
.
conseqüência da movimentação linear e não possuem funções tonais próprias
e definidas. No início da seção III, a dominante movimenta-se para a tônica, Ré.
Assim como a seção II prolonga a dominante (V), a seção III confirma a tônica
(I). Dessa forma, as principais harmonias que estruturam a tonalidade emergem

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 221


com clareza - uma seria obscurecida caso um romano (e uma
~~,'"~··' tivesse sido atribuído tríade momentânea.
Em Wehmut, o vocabulário tonal extrapola consideravelmente o
estado básico encontrado em Wach'auf de Brahms:

- as notas não são obtidas exclusivamente da coleção tonal de sete


notas, mas também da coleção de doze
- as sonoridades não são limitadas às poucas tríades (e sétimas) construí-
das nos sete graus tonais dispostos de acordo com a cadeia de quintas.

2.47 - Schubert: Wehmut (compassos 13-27)

222 A LINGUAGEM MUSICAL


2.48 - Movimentação linear-harmônica em Wehmut

! passagem V pasagem para V

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 223


Podemos observar, no que as funções tonais fundamentais e as movi-
mentações lineares de longo alcance estão firmemente estabelecidas tanto em
Schubert quanto em Brahms.
Outro aspecto que merece ser notado consiste no fato de a movimentação
cromática de passagem na canção originar-se da fusão que Schubert opera entre
os modos maior e menor. No início de nossa análise (Exemplo 2.48), indicamos
esta característica da seguinte forma:

ré Ré

menor

A origem celular desta movimentação cromática de passagem é encontra-


da na seção I, compassos 5-10, na sucessão das tríades Ré maior (so wohl - "tão
bem") e ré menor (und weh - "e doente") que ocorrem como movimento de pas-
sagem entre as harmonias V (uma sucessão que origina a voz interior cromática,
Sol-Fá#-Fá-Mi, nos compassos 8-10):

224 ALINGUAGEM MUSICAL


Não é exagero considerar essa célula - com sua combinação de V e I, sua
movimentação cromática de passagem derivada do híbrido maior-menor, e sua
associação verbal - wohl und weh - como o aspecto germinativo da peça
Esta célula cristaliza a essência da linguagem musical e a profunda dicotomia
verbal-emocional reside no cerne desta canção.
A seção II Wehmut é uma conseqüência lógica não só das possibilida-
des lineares do sistema tonal, mas também desta célula germinativa da
canção. Entre Wach'auf e Wehmut, encontra-se uma vasta gama de possibilidades
oferecidas pelo sistema tonal. A linguagem tonal presta-se não só ao relaciona-
mento de uma sonoridade com outra, mas também, de maneira mais fundamen-
tal, ao relacionamento estabelecido entre áreas tonais de longo alcance. Antes de
abandonarmos o estudo do sistema tonal, examinaremos duas outras obras, pois
seu estudo nos revelará mais esclarecimentos sobre a capacidade do sistema de
propiciar um arcabouço estrutural para obras musicais completas.

FRANZ SCHUBERT: RUH (EXEMPLOS 2. A 2.5

Quais são as características linear-harmônicas da introdução (compassos 1-7)? Como


essas características celulares são desenvolvidas nas seções I (compassos 8-53) e II (com-
passos 54-82)? Como e onde as funções tonais primárias são enfatizadas?

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 225


é uma é
com variações

introdução seção I seção I seção II seção II


compassos 1-7 compassos 8-30 compassos 31-53 compassos 54-67 compassos 68-82

Um aspecto a canção a
do conteúdo As linhas e progressões to-
nais inicialmente apresentadas são cada vez seção
seqüente. Cada novo desdobramento uma nova inflexão tonal e, como
resultado desses desdobramentos, as funções primárias
das. A análise nos 2.49 a 2.51 revela esta rede
A discussão, a seguir, se a esses relacionamentos.
Na introdução (Exemplo 2.49), duas irradiam-se simulta-

dominante
a1, descendente SR
A
4A
A

3
A
2
A

1
a2 , ascendente 5 6 7 8 c8=i)

Essas são as células lineares fundamentais canção, continuamen-


1
te durante o seu desenrolar. Consideramos a célula a como Observe
1
na introdução que a linha descendente, a , é apoiada pela linha descendente do
baixo, b. De fato, esse padrão descendente é fortemente manifestado pela textura
tonal da introdução. Os gráficos lineares das seções I e II mostram que, nessas
seções, o padrão descendente S-4-3-2-i resume a movimentação linear entre a
primeira e a última nota. Esse padrão pode ser visualizado seguindo o desenrolar
da linha a 1 nos Exemplos 2.49, 2.50 e 2.51. Com sua linha descendente partindo
da dominante em direção à tônica, a 1, determina o fluxo linear prevalente de cada
seção.
Na introdução, a linha do baixo b, assim como a progressão harmônica, de-
lineia a tônica e a dominante. O baixo movimenta-se linearmente de I para V e
apresenta as seguintes funções tonais:

I encaminhando-se para~ V I

Cada linha, bem como a totalidade da progressão da introdução, incorpora,


portanto, as funções dominante e tônica. O papel especial da dominante torna-se

226 A LINGUAGEM MUSICAL


de ~L·JiVL<UCUÇ
::irr::iu''"

Esses deslocamentos de registro são

- Schubert: Du hist die ruh, introdução (compassos 1-7)

piano

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 227


8-30) - nos compassos 31-53

228 A LINGUAGEM MUSICAL


sutis)

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 22 9


A introdução desta canção é, portanto, uma instância de extraordinária
concentração composicional. Quatro elementos - a 1 , a 2 , b e x - são superpostos,
porém todos soam com surpreendente clareza. O cambaleante dos eventos
nas diferentes linhas contribui para tornar essa clareza mais aparente. De fato,
as suspensões nos compassos 3-6 - o principal recurso utilizado para obter essa
característica - tornam-se outra característica celular, que recorre especialmente
no clímax da canção (o qual ocorre no início da seção compassos 54-60 e é
repetido nos compassos 68-74):

Os sete compassos da introdução propagam as sementes, lineares e harmônicas,


de todos os desenvolvimentos posteriores.
Os Exemplos 2.50 e 2.51 mostram o crescimento das linhas da introdução,
1 2
a e a , nas linhas das seções I e Na introdução, a 1 e a 2 são superpostas - mais
precisamente, inter-relacionadas. De outra forma, na seção I, cada elemento
near é disposto sucessivamente (Exemplo 2.50). Primeiro a 2 e depois a 1 se desdo-
bram. Em contraste com a concentração da introdução, o desenredar das linhas

230 A LINGUAGEM MUSICAL


I, ocorre um a grau
é precedido sua através de n,N,<LO~
e harmônicos (as de V II respec-
°'ª''-''C'-h a dominante ganha ainda mais proeminência na seção I. A
expansão seção I possibilita tempo suficiente para que a tonicização de V seja
incorporada à progressão linear-harmônica básica.
A seção II combina as linhas e a2 de outra maneira (Exemplo 2.51). No seu
início (compassos 68-74), a linha a 2 recebe ainda mais ênfase. Ao invés da quarta
ascendente, Sii,-Mii,, a ascendente é ampliada até uma sétima, Sii,-Lái, (5-4).
Lái,, a subdominante, é atingida linear (4) e harmonicamente (IV) ao mesmo
tempo (compasso 74), e é tonicizada pela sua dominante, I. A disposição espacial
,..,......,.,.,,.,,.ºimensa ênfase a essa subdominante, pois as notas Lái, na vocal e no
5 1
baixo (Lái, e 1, ) formam os pontos extremos da canção. Assim como a seção
I deu nova proeminência à função dominante, a seção II coloca a função suhdomi-
nante na cena frontal dos eventos e a transforma em objetivo linear e harmônico
crucial.
Com essa movimentação, S-4, Schubert prepara um golpe de mestre e satis-
faz a exigência de Beethoven, qual seja, a de que toda boa música seja ao mesmo
tempo lógica e surpreendente. O deslocamento descendente de registro do grau
4(compassos 74-76) revela que a linha ascendente - que abrange uma sétima, 5-4
- é· de fato uma variante dramaticamente ampliada da movimentação por grau
descendente, 5-4, que inicia em a 1 • Quando o registro é deslocado, o movimento
5-4 é transformado instantaneamente do padrão ascendente 5-4 de a 2 no padrão
descendente 5-4 de a 1 . As duas células lineares, a 1 e a 2 , são amalgamadas de ma-
neira completamente distinta e essa fusão é confirmada pela conclusão subse-
qüente de a 1 •
Acompanhamos a evolução da movimentação linear-harmônica da introdu-
ção na medida em que ela origina as principais movimentações lineares das seções
I e IL Cada seção flui para a tônica através de um caminho similar, é estabele-
cido na introdução. Cada seção, entretanto, expande e explora novos e diferentes
aspectos desta trajetótia: a seção I elabora a dominante, ao passo que a seção II, a
subdominante. A tônica e estes relacionamentos tonais primários fornecem, por-
tanto, a moldura para toda a movimentação linear-harmônica da canção.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 231


MUSICAL

- os ~L.caVLWCUL
eia no

Na seção I, vimos a elaboração )e


Láq (4 aumentado) gera a tonicização
na qual a função dominante é a elaboração
por bordaduras 5. A A

Como o movimento 6 -5 é claramente estabelecido na tônica, será que a


mesma relação é estabelecida na dominante sua tonicização? Sim, nncYC><m
com uma diferença: ao invés de Sol-Fá (6-5 em Sit,), as notas Solb-Fá (i,6-5 de Si[,)
são utilizadas nas vozes internas (compassos 16-21). Esse sutil
conseqüências de longo alcance. Logo em seguida, no final da seção I, (compassos
26-28), a nova variante é proeminentemente transferida para a tônica - Dót,-Si[,
(i,6-5 em Mi[,) - e alternada com sua forma original (6-5 ). Assim como a con-
clusão da introdução (elemento x), essa nova elaboração 5 ocorre no final da
seção I e com a dominante elaborada deslocada registralmente (do registro 4 para
os registros 2 e 3). Constatamos, portanto, que não somente a estrutura linear-
-harmônica principal é reiterada (e variada) seção para seção, mas também
que o mesmo processo se aplica igualmente aos detalhes mais variados. Cada
gesto tonal, do mais amplo ao mais ínfimo, é reproduzido de diversas maneiras e
apresenta ressonâncias ao longo da canção.
Observaremos agora a função da nota Dó[, na seção IL A ascendente
(S-4) que domina o início da seção II não se movimenta pelas notas da escala da
tônica, mas sim através de alterações desta:

A nota Dó[, associa-se, é com o Dó[, que acabamos de elaborando


no final seção L Mas sua função não é meramente rememorar um evento

232 A LINGUAGEM MUSICAL


nota
um em direção ao seu
a subdominante Lái,, que é atingida simultânea, linear (4) e
(IV). Essa subdominante constitui um objetivo nítido, que é
alcançado pelo 5- 6- 7- S, mesma forma que o objetivo
Mil,, foi alcançado pelo mesmo Desse (e através da disposição
espacial que observamos anteriormente), somente a nota Lái, é enfatizada, pre-
o caminho para a iminente mudança de registro, reinterpretação linear
e movimentação final para a tônica.
Schubert, assim como Brahms, a utilização prematura tônica; am-
bos encontraram meios de conduzir o para além
tônica em direção à subdominante. Somente após a subdominante ser alcan-
çada, a dominante e a tônica compl12tam a apresentação das harmonias primárias
e a movimentação para a tônica. Na canção de Schubert, isso é obtido pela pre-
sença das notas Dói, de passagem, tanto na linha vocal (6) na progressão
harmônica (bVI). O grau 6, que inicialmente atua como uma importante nota de
elaboração de 5, engendra o surgimento de toda urna série de novas conseqüên-
cias durante a canção, sendo este movimento de passagem a delas e a de
maior alcance.
Para concluir nossas considerações sobre esta canção, observemos seu final.
progressão linear-harmônica de cada seção (à exceção da última) conduz à tô-
nica, conforme descrevemos:

}
Em todos os casos, assim que a tônica é alcançada, imediatamente ocorre urna
reiteração do grau 5(através da mudança de registro, corno no elemento x). Como
nas outras seções, a última apresentação da seção II conduz a linha vocal em di-
reção à tônica - 5-4·3-2 ... - porém não a atinge. A linha vocal acaba na nota Sii,
(5) que anteriormente era sempre sucedida por um movimento descendente para
Mii,cl) (compassos 79-80). O retorno ao grau 5, que ocorreu~,,.,~~~,
ao final de cada seção precedente no piano, através

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 233


ocorre nesse momento na voz, ao
near em direção à é ao
compassos canção, o compositor as
escutadas

- Versão de Diabolus para a seção II, compassos 68-74, de Du bist die ruh

Diabolus: versão a

Diabolus: versão b

Para apreciarmos esta conclusão, devemos considerar o relacionamento da


música com o texto poético. A dicotomia textual básica - a "saudade" em oposição
a "aquilo que a aplaca" - é expressada no início da canção como uma dicotomia
linear entre a dominante (S) e a tônica (S).

234 A LINGUAGEM MUSICAL


Ao indicar o caminho para a resolução (a tônica), porém sem realizá-lo completa-
mente no final, o lamento da última linha do texto, O füll es ganz ("Oh, preencha-o
completo"), permanece irrealizado. Esse lamento nunca é completamente re-
solvido (na voz solo) pela chegada na tônica. É este final definitivo - a linha da
voz no grau S, o piano em Íe a totalidade oscilando entre a tônica e a dominante,
entre a saudade e sua dissipação - que cada final das seções anteriores (e, de fato,
a canção desde seu início) tinha antecipado. Em última instância, o lamento é
resolvido. Raramente se encontra um paralelo tão claro entre uma declaração
verbal e a estrutura de uma declaração musical, em sua formação como lingua-
gem musical. Através dessa reapresentação variada no final, o início da canção e a
conclusão de cada seção anterior assumem nova e quase profética significância.
Os elementos musicais são formados de maneira a criar não só a ordem tonal,
mas também a expressar (através dessa ordem) um sentido musical paralelo ao
sentido verbal da canção.

SISTEMA TONAL: CONCLUSÃO

Através do estudo destas canções de Schubert, nossas percepções a respeito


da tonalidade ampliaram-se do relacionamento de notas individuais e sonorida-
des triádicas ao relacionamento entre linhas e áreas tonais completas. As rela-
ções tonais básicas expandiram-se em fluxos lineares ricamente elaborados que
se desenvolvem durante amplas extensões de espaço e tempo musical. Apesar da
lógica do movimento tonal derivar da coleção tonal, o conteúdo efetivo das obras
tonais é enriquecido .por notas e sonoridades que não pertencem à coleção.
canção Du bist die ruh de Schubert elabora as funções tonais primárias, obtendo,
das células lineares e harmônicas iniciais, conseqüências que enriquecem a pro-
gressão tonal e a movimentação espacial.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 235


no
Essas relações trazem à linguagem novas
(estas podem ~~ ... ~~ ... ª""'-ª.,..ª'
tempo demasiado a sua coleção notas e os
movimentação

iix~emplo 2.53

A ampla movimentação tonal do movimento da Sonata de Beethoven é re-


presentada no Exemplo 2.53. Cada uma das harmonias principais (que estão ano-
tadas em semibreves) é expandida de maneira a formar uma área tonal própria.
A função principal de cada seção do movimento consiste em estabelecer uma ou
mais dessas áreas tonais. As áreas tonais distantes (III, VI e II) retornam à tô-
nica através de progressões por quintas. Portanto, as progressões por quintas
conectam não só sonoridades individuais, mas também sucessões de áreas tonais
distintas, governadas por essas sonoridades. Nesse contexto, cada área soa como
uma única harmonia na ampla movimentação tonal do movimento.

236 A LINGUAGEM MUSICAL


é uma

Se as Mozart e Beethoven forem tomadas como guia (e a quais ou-


tros compositores recorreríamos?), as regras passíveis de serem descobertas da forma
sonata são def1-râtivas em relação à distribuição de tonalidades e absolutamente indefinidas
em relação à quantidade e à distribuição de temas nessas tonalidades. 42 [grifo nosso]

exposição apresenta a tônica e, a seguir, o movimento através da


um nível próximo nesse caso). Após a exposição,
segue a seção desenvolvimento. O termo em alemão
esta seção - durchfürung ("passagem")* - descreve melhor seu
essencial: "conduzir" através de harmonias mais distantes. Essa é uma seção
movimento que incorpora relações distantes à órbita tonal
e após explorá-las, regressa à ~~,u~·~·
"passagem" ao invés de "desenvolvimento". e
maticamente confirma a tônica. Esse é o plano tonal dos de uma
sonata.
Um aspecto especialmente fascinante deste movimento de Beethoven con-
siste na antecipação, no primeiro instante da obra, das distantes regiões que se-
percorridas posteriormente:

A indicação inicial do movimento do grau 6 para o 2 é plenamente realizada pela


movimentação tonal da seção de "passagem". Essa movimentação é ampliada,
criando áreas inteiras de VI e II, que então conduzem a V e I na recapitulação.
O foco desse início incomum consiste nesta "antecipação" tonal e no acorde de
sétima que a incorpora. Este acorde de sétima - alterado, elaborado e movimen-
tando-se linearmente.de diversas maneiras - então conduz às várias áreas tonais

* N. T. No original, leading through. Na mesma frase, leading through também foi traduzido como "con-
duzir".

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 23 7


com asteriscos no
o ~"''.,.~-~ é ~~uc-~, na em
conecta as distantes regiões tonais seção de passagem VI e II com a
e retorna a tônica.
Regiões tonais podem, ser conectadas com a tônica
através do movimento cadeia de quintas ou, como nas canções
regiões lineares adjacentes às regiões tonais primárias. Em ambas as formas,
foram encontrados novos recursos se com os elementos funda-
mentais do sistema tonal e com o objetivo definitivo da movimentação tonal - a
tônica - e que, por conseguinte, reforçam sua primazia.

Durante quase dois anos, os sistemas de linguagem musical da música


européia tiveram como referência uma coleção de sete notas: a coleção modal
e (posteriormente) tonal. Tanto seus recursos lineares quanto suas sonoridades
foram exploradas. Ao final do século XIX, certas incongruências do sistema tonal
foram intensificadas, assim como ocorrera anteriormente com o sistema modal.
A lógica do sistema tonal tem sua origem na função específica da quinta como
intervalo predominante e na sua capacidade de conectar a coleção tonal. Entre-
tanto, esse processo de conexão poderia conduzir a notas que não pertencem à
coleção de sete notas, mas sim à coleção dodecafônica, conforme demonstrado
pelo ciclo de quintas no Exemplo 2.38b. Por esse motivo, o sistema apresentava
a tendência de exceder seus limites originais. Durante algum tempo, isso signi-
ficou simplesmente que as doze notas foram incorporadas sob a lógica da música
tonal de sete notas, sendo as notas adicionais subordinadas. Em última instân-
cia, entretanto, os compositores começaram a explorar os recursos intrínsecos da
divisão da escala em doze sons, com a finalidade de descobrir sua própria lógica
e seus recursos sônicos.
Essa exploração enormemente estimulada pela mistura das culturas do
mundo, no final do século XIX e começo do século XX, e pela descoberta de que
a música de diversas partes do planeta oferecia não somente uma única cole-
ção de notas, e sim uma variedade de coleções (veja o Apêndice C - os sistemas
rãga da Índia). Debussy, por exemplo, utilizou como fonte a música da Rússia

238 A LINGUAGEM MUSICAL


parâmetros, ao invés de serem
"--''"'u'c" do sistema tonal. Estava em curso a busca siste-
mas mais e inclusivas pudessem os recursos das diversas
coleções de notas e princípios subjacentes esclarecessem a variedade de
linguagens.
Desde os últimos anos do século XIX, compositores e teoristas da música
empenharam-se na fascinante tarefa de desenvolver um novo sistema de lingua-
gem musical. Entre eles: Debussy, Satie, Messiaen e Boulez, na França; Schoen-
berg, Webern e Berg, na Áustria; Scriabin e Stravinsky, na Rússia; Busoni e Sto-
ckhausen, na Alemanha; Bartók, na Hungria; Xenakis, na Grécia; Ives, Varêse,
Sessions, Partch, Carter, Cage e Babbitt, nos Estados Unidos - para citar somente
os proeminentes. Na Europa, as raízes dessa evolução remontam a
Wagner, Mussorgsky, Mahler e Sibelius.
Torna-se cada vez mais claro que os sistemas de linguagem musical do sécu-
lo XX estão fundados em dois conceítos relacionados: os conceitos de simetria e de
amhigüidade estrutural. Descreveremos o desenvolvimento e a significância desse
sistema a partir destas perspectivas.

COLEÇÕES SIMÉTRICAS

As coleções de notas simétricas apresentam duas características importantes: preen-


chem urna oitava através da reprodução exata de um único intervalo ou célula interva-
lar; podem iniciar em mais de urna de suas notas e reproduzir exatamente as mesmas
sucessões de intervalos, sendo, dessa maneira, arnbíguas. 43

A escala de tons inteiros (Exemplo 2.54) forma uma coleção simétrica. To-
mando por ponto de partida qualquer uma de suas seis diferentes notas, a mesma
coleção - Dó, Ré, Mi, Fá#, Sol#, Lá# - produz o mesmo ordenamento de interva-
los: uma sucessão de intervalos C~\
Esclareçamos imediatamente a conexão entre a simetria da coleção e sua
ambigüidade. Na medida em que a coleção é formada pela reprodução exata de
uma única célula intervalar (nesse caso, o intervalo C~)), o mesmo ambiente inter-
valar ocorre em diversos níveis da coleção. De fato, na coleção de tons inteiros,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 239


2.54 - Seis escalas de tons inteiros com configurações intervalares''-''·"''-'-<"'
obtidas a partir da mesma coleção notas

Nas coleções simétricas, qualquer intervalar seja, o


qual se chega a uma pode ser
coleção. Conseqüentemente, essa característica ~·F, . . . . . ~~
finição de uma a da que existem
múltiplos recursos reprodutivos nestas coleções. 2.55 mostra
fragmentos de Voiles, de Debussy. Nesse prelúdio, as células são recriadas em di-
versos níveis e são todas derivadas da mesma coleção tons inteiros. Essas cé-
lulas são ricamente reproduzidas, utilizando unicamente as notas da coleção de
tons inteiros.

Hx.en:1pl:o 2.55 - Debussy: Voiles

240 A LINGUAGEM MUSICAL


Existem somente duas coleções de tons inteiros (Exemplos 2.54 e 2.56),
sendo que a segunda também gera'seis escalas de tons inteiros. Essas duas cole-
ções formam escalas de tons inteiros a partir de todas as doze notas cromáticas.
natureza da transposição e modulação nas estruturas por tons inteiros é, por
conseguinte, muito diferente daquelas encontradas em estruturas modais e to-
Na escala de tons inteiros:

- seis das transposições são meramente permutações de uma coleção


de notas, estas permutações não introduzem notas novas;
- as outras seis transposições são permutações da outra coleção de
tons inteiros.

Messiaen, conseqüentemente, considera as coleções simétricas como "modos de


transposição limitada". 44
Vejamos agora como estas propriedades simétricas se refletem em uma obra
musical.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 241


DO VOLUME

Qual é a coleção de notas utilizada? Quais são suas características intervalares e de


simetria? Como essas propriedades estão refletidas na peça?

A coleção de notas utilizada em Mãos de é


temente encontrada na música Sibelius, Debussy, Ravel, Stravinsky e muitos
outros compositores. Essa coleção escala octatônica. 45
o Exemplo 2.58 mostra, esta coleção consiste em intervalares(~)
+CD. Cada coleção octatônica sua estrutura escalar em diferentes
níveis, começando em cada uma das quatro diferentes células (~) + :J\ Qualquer
1

característica celular obtida dessa coleção poderá ser em quatro ní-


veis diferentes.
Bartók utiliza esta propriedade para gerar a peça inteira a partir células
que são reproduzidas em diferentes níveis. Como podemos ver no Exemplo 2.59,
@ G)
a célula principal de três notas - a célula a (Dó- Ré - Mib) - é reproduzida em dois
A

de seus três níveis possíveis. Uma segunda célula, a célula h - um salto (5) (Dó-
-Fá) que aos poucos é preenchido - também é reproduzida em um segundo nível.
O preenchimento da célula h revela que esta é uma expansão da célula a, com o
intervalo Dó-Mib sendo ampliado para Dó-Fá.
Cada vez que a célula é transportada para outro nível, o sentido tonal é
enriquecido em ambigüidade. Por exemplo, durante os compassos 1-8 a célula a é
apresentada em dois níveis:

- mão direita, nível original, Dó-Ré-Mib, ênfase em Dó;


- mão esquerda, célula transposta, Lá-Si-Dó, ênfase em Lá.

O efeito resultante é a suspensão da música entre dois pólos - as notas prioritá-


rias Lá e Dó. De fato, o termo polaridade tem sido freqüentemente utilizado para
descrever a música baseada em coleções simétricas. Quando a célula a é trans-
portada para um terceiro nível (Fá#-Sol#-Lá) no compasso 15, surge outro pólo
enfatizado, a nota Fá#.
Messiaen descreveu a polaridade das estruturas de notas simétricas: "Exis-
te uma atmosfera de várias tonalidades simultâneas (sem politonalidade) - fi-
cando o compositor livre para ressaltar uma das tonalidades ou deixar uma im-
pressão tonal flutuante". 46 Ao invés da certeza do objetivo da tônica no sistema

242 A LINGUAGEM MUSICAL


- uma entre diversos
"'"'u'"'"' - é à estrutura das coleções simétricas. Através
de células vários níveis simétricos, as notas enfatizadas também
mudam. Em Mãos cruzadas, os focos desta ambigüidade, ou seja, os pólos que se
opõem, são as notas Dó, Lá e Fá# - as notas da célula principal em
47
seus três diferentes níveis na peça.
Em Mãos cruzadas, a movimentação formada pela proliferação das células
uma estratégia espacial "bipartida" (Exemplo 2.60):

a linha superior extrema ascendendo


de Dó (frase 1)
para Mib5 (frases 2 e 4)
para Fá 5 (frase 5)
expansão das
extremidades
a linha inferior extrema descendendo
de Dó 4 (frase 1)
para Lá 3 (frase 2)
para F~# 3 (frases 4 e 5)

preenchimento o espaço não preenchido na frase 1 (Mib5 a Lá4 )


do interior é reduzido na frase 3,
{
(registro 4) e completamente preenchido na frase 5

Portanto, ao término da quinta e última frase, um espaço de duas oitavas (Fá# 3 -Fá#5 )
foi aberto e completamente preenchido por reproduções da célula.
Dessa forma, a coleção escalar de Mãos cruzadas fornece:

- as células da peça;
- os níveis para os quais estas se movem;
- as ênfases polares resultantes;
- os meios para expansão e preenchimento do design espacial.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 243


Mãos cruzadas, Mikrokosmos, volume 4

Copirraite (1940) Hawkes & Son (London) Ltda, renovados em 1967. Reimpresso com permissão de Boosey &
Hawkes, lnc.

Os números referem-se ao Exemplo 2.60.

244 ALINGUAGEM MUSICAL


a coleção octatõnica de Mãos cruzadas de Bartók

as permutações da coleção que reproduzem a mesma estrutura escalar em outros níveis

2.59 -As células de Mãos cruzadas

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 245


b,

O nível original da célula é sempre distinguido por dinâmicas mais fortes e (no grá'(7.co) por
linhas mais escuras. Esse nível sempre é executado pela mão direita, ao passo que o segundo e
o terceiro níveis são executados mais suavemente pela mão esquerda. Cada nível celular ocorre
em dois registros distintos (exceto o terceiro nível da célula a). O ordenamento e o ritmo das
notas da célula são enormemente variados; as notas externas da célula são ocasionalmente
elaboradas por vizinhos adjacentes ou por bordaduras.

246 ALINGUAGEM MUSICAL


--~~------ sonora
mostra os recursos
- os intervalos resultam da combinação das notas
coleção:

(@ ~ 8)
@~ 4
® ~ 4
@ ~ 8

©~ 4
(@ ~ 4
@ ~ 4

forma análoga à coleção modal-tonal, a coleção octatônica também pos-


um intervalo favorecido: o intervalo G'?\ que está disponível no dobro de for-
mas do que qualquer outro intervalo. Entre as sonoridades de Mãos cruzadas, esse
intervalo predomina fortemente:

Classe intervalar ~úmero de ocorrências Ataques


@@ 15 7

@@ 15 2

®@ 3 o
1@© 45 26 1
©@ 19 3
(@ (D 6 o
@ 16 8

O intervalo (~) da coleção octatônica é, portanto, fortemente expresso de


várias maneiras diferentes:
/®~
- esse intervalo delimita a célula linear a (Dó Ré Mi~);
- esse é o intervalo transpositor das reproduções da célula a e, como
tal, constitui também a distância entre as notas prioritárias das cé-
lulas em suas três transposições (Dó, Lá e Fá#). Como essas notas
são enfatizadas, o intervalo ® também recebe ênfase. Este inter-
valo con~titui, de maneira inquestionável, a sonoridade intervalar
predominante.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 24 7


coleções de tons inteiros e a octatônica são exemplos de coleções simé-
tricas. Messiaen revelou das coleções simétricas disponíveis
a partir das doze notas cromáticas (Exemplo 2.61). ante-
riormente, as denominou de "modos de transposição estrutura
intervalar de cada modo é diferente, porém todos os compartilham as
propriedades características das coleções

- formações obtidas através da reprodução de células em


vários níveis;
- reproduções (a de uma única coleção) da mesma estrutura es-
calar em níveis diversos.

Estas propriedades comuns dos modos da capacidade - compartilhada


por todos os modos - de criar múltiplas reproduções de qualquer célula formada
a partir de seus recursos intervalares e de criar ambigüidades polares dentro de
uma única coleção de notas.
Existe, portanto, uma importante diferença entre os sistemas simétricos do
século XX e os sistemas modais e tonais anteriores. O sistema simétrico define a
natureza geral das relações estruturais, porém permite uma variedade de realiza-
ções específicas destes relacionamentos gerais:

- existem várias coleções simétricas diferentes, não somente uma;


- essas coleções diferem significativamente em seu conteúdo intervalar;
- a coleção de tons inteiros, por exemplo, não contém intervalos (ª\
CD ou (~\ ao passo que a coleção octatônica contém mais intervalos
(;~) do que qualquer outro intervalo e também contém os intervalos
(~)e(~).

Cada coleção simétrica, então, ressalta diferentes intervalos proeminentes e um


conjunto diferente de possibilidades polares. partir dessas possibilidades, po-
dem ser compostas muitas linhas, sonoridades e designs. Este sistema resolve

248 A LINGUAGEM MUSICAL


coleção notas.

COLEÇÃO DE DOZE NOTAS (DODECAFÔNICA)

Vimos que a coleção de doze notas estava disponível ao longo do período


tonal, porém somente como fonte de notas adicionais, utilizadas na elaboração e
extensão da coleção tonal básica. Schoenberg, mais do que qualquer outro com-
positor de seu tempo, percebeu que a coleção cromática de doze notas poderia
ser explorada de acordo com suas propriedades e possibilidades intrínsecas. Sua
vida composicional, assim como a de seus alunos e de muitos seguidores, pode
ser descrita como um esforço persistente no sentido de dar continuidade a essa
exploração. ·
Assim como a investigação das propriedades da coleção de sete notas escla-
rece a compreensão da música modal e tonal, a análise da coleção de doze notas

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 249


ção
2.62). Nenhuma
mesmas notas.
tar em doze níveis diferentes.
reproduzem a si mesmo e suas em com
uma única coleção notas), a coleção de doze notas é a em possibilida-
des reprodutivas e, a mais

- A coleção de doze notas e sua reprodução em outro nível, utilizando as


mesmas notas

Na coleção dodecafônica, cada intervalo pode ser recriado um número equi-


valente de vezes - doze - à exceção do trítono, que só possui seis reproduções
diferentes. Conseqüentemente, não existe intervalo predominante. A sensação
desta coleção é de que seus intervalos são essencialmente iguais, ao invés de orga-
nizados em hierarquias como consonâncias e dissonâncias ou predominantes e
subordinados (esta igualdade intervalar forneceu a base do conceito da "emanci-
pação das dissonâncias" de Schoenberg, segundo o qual as hierarquias de conso-
nância e dissonância não são mais necessárias).
Existe, entretanto, um aspecto no qual os intervalos permanecem desi-
guais: sua capacidade de formar cadeias todos os membros da coleção de
doze notas. Constatamos anteriormente (no ciclo das quintas) que os intervalos
('j) e C~) formam uma cadeia que vincula todas as doze notas da coleção. As escalas
!
no Exemplo 2.62 mostram que o intervalo C;D também uma cadeia desse
tipo. O Exemplo 2.63 apresenta a descoberta de Schoenberg sobre o que acontece

'
1
250 A LINGUAGEM MUSICAL
1
u~.uu~ tentamos com os outros 49
invés
correrem a esses intervalos voltam à sua nota
origem, portanto, embora os intervalos (exceto(§)) estejam igualmente dis-
poníveis na coleção, (f: e (~) (e suas expansões espaciais) são especialmente mó-
veis: estes intervalos favorecem a movimentação fluída pela coleção. Isso explica
a preocupação (começando com Wagner e Schoenberg) com o intervalo
(1): era um novo intervalo estrutural com a característica especial de percorrer
toda a coleção cromática de doze notas e de vincular todos seus membros; em
conseqüência, ele enormemente a composição com doze notas.

ANTON WEBERN: TRÊS PEÇAS PARA CELLO E PIANO, OP. 11, N. 3


(EXEMPLO 2.64)

Como a coleção de doze notas é distribuída na peça? Qual célula intervalar é proeminen-
temente obtida a partir da coleção e ricamente recriada?

As notas melódicas desacompanhÇ1.das que soam no cello e no piano formam,


em sua totalidade, uma apresentação completa da coleção de doze notas - um
único agregado 50 de doze notas (Exemplo 2.65). Essa apresentação transcorre
durante a duração total da peça; quando esta apresentação se completa, a peça
termina.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 251


O agregado contém uma série de pequenas células, cada uma consistindo
principalmente no intervalo CD (marcadas por chaves abaixo das notas no ~,,,_.,,
plo 2.66). Ao longo do desdobramento seis diferentes CD são
escutadas. Elas ocorrem em diferentes variantes espaciais (CD, @ e @ - em mo-
vimento ascendente ou descendente) e em uma variedade de Além disso,
são dispostas:

em diversas disposições espaciais de registros, em


em diversas cores sonoras
uma movimentação geralmente ascendente

Mi!,-Fáj, cello com surdina;


trinado; sul ponticello
CD, registro 2

Dó-Si cello com surdina; @, registros 4 e 2


harmônicos e sonoridade normal;
arco ligado

cello com surdina;


Si-Si!,
CD, registro 2
em surdina; arco ligado

Fá#-Sol } piano,
registro 3
Sol#-Sol nas cores. de dois registros
registros 2 e 3
distintos;
toque legato

Ré-Dó# cello com surdina;


@, registros 5 e 6
harmônicos

252 A LINGUAGEM MUSICAL


doze notas com seis células CD

2.66

a) transferências das células CD do cello para as simultaneidades do piano

b) células CD nas vozes externas das simultaneidades do piano

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 253


de
uma soe como uma
é isolada da segunda

primeira célula - Mi~-Fáb [Q)J segunda célula - Dó-Si [@]

registro registro 2 registros 3 e 4


cor tonal cello: trili; sul ponticello cello: Dó harmônico, Si normal; legato
ritmo trinado rápido, não mensurado movimentação lenta e mensurada

Entre as células W, freqüentemente ocorrem lapsos causados por outros in-


tervalos - por exemplo, os intervalos® (FákDó, Sib-Fá#, Fá-Lá), cujas notas são
diferenciadas por, pelo menos, uma das seguintes características:

- saltos de registro;
- instrumentação e cor tonal diferente;
- interrupções no fluxo temporal (pausas).

O resultado dessa diferenciação é a união das notas dos intervalos Wem células
homogêneas e perceptíveis e a quebra de todos os outros intervalos em notas se-
paradas. Os intervalos atomizados (ou seja, aqueles que não são o intervalo W)
introduzem incerteza - ou entropia - na linguagem musical da peça e a entropia
é sempre resolvida pela próxima célula Q).
Reproduzidos nos seis diferentes níveis possíveis, os intervalos W consti-
tuem as células essenciais da peça. A coleção dodecafônica da melodia completa é
explorada de acordo com sua capacidade de fornecer reproduções dessas células.
Dessa forma, a célula Wpode se manifestar em novas notas. A brevidade da peça
não reduz a quantidade de reproduções da célula ou sua variação e movimentação.
Ao contrário, esta peça é um vívido exemplo de produção de novas formas celula-
res e de sua transformação em relação a espaço, ritmo e cor tonal. Nela, algumas
dessas transformações se fundem, originando um design espacial de longo alcance.
De fato, a peça é ainda mais rica do que indicamos, na medida em que omi-
timos da discussão as três simultaneidades do piano. O Exemplo 2.66 revela que
cada simultaneidade do piano também incorpora ao menos um intervalo (D.
Além disso, os pares de notas destes intervalos (D repetem em eco ou antecipam
os intervalos W produzidos pelo cello. Estes intervalos são então reproduzidos
nos intervalos IDdas simultaneidades do piano, resultando em nova transforma-
ção da célula básica W- de ocorrências sucessivas para ocorrências simultâneas.

254 A LINGUAGEM MUSICAL


doze notas formados por todas as
agregados menores:

Fá Lã Ré

Sl

Sol., U1,

. Estes são agregados de oito, seis e dez alturas cromáticas respectivamente


(o agregado da frase 3 elide com as últimas notas da frase 2). Dessa maneira, a
melodia completa da peça, assim como os conteúdos de cada frase, e
reproduzem a natureza cromática básica da coleção. Os intervalos t}) propiciam
a mobilidade dos agregados cromáticos, porém ela não constitui uma mobilidade
simples e literal, como na escala cromática. Outros intervalos quebram a cadeia
de intervalos CD e introduzem entropia, que sempre é resolvida pela próxima
ocorrência do intervalo celular CD.
Em cada agregado, nenhuma nota é enfatizada pela repetição, tampouco
nenhuma célula (~) individual recebe primazia durante toda a peça. A coleção é
claramente definida e as células CD são precisamente articuladas e profusamen-
te amplificadas pela reprodução no contexto composicional. Tendo em vista que
o objetivo consiste na reprodução múltipla da célula e agregado característico, a
redução para uma única nota não faz parte dessa idéia. A linguagem é formada,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 255


coa-
nota

um e os recursos e
amplos da coleção de doze notas. estas explorações
.._o__uu.v

serialismo foi desenvolvido.

PARA OP. 27

Em uma série dodecafônica, a coleção de doze notas é de maneira


a produzir uma sucessão específica de intervalos. intervalar das di-
ferentes séries pode variar enormemente. No Exemplo 2.67a, a série repete um
único par de intervalos (Cl) e({!) quatro vezes; a série é por esses
valos. outro modo, na série do Exemplo 2.67b, todos os intervalos entre Ct~ e
(~1! ocorrem somente uma única vez; a diversidade intervalar é enorme e
intervalo é dominante. A série do Exemplo 2.67b exemplifica um tipo especial de
série: a série pan-intervalar*. Essa série, por um lado, e aquelas que amplificam
uma única célula (ou um pequeno grupo de intervalos), por representam
os dois extremos estruturais possíveis em uma ou máxima redun-
dância intervalar. maioria das séries - como a do Exemplo 2.68a, a série das
Variações para piano de Webern - encontra-se entre esses extremos.

a) Webern: Concerto para nove instrumentos, op. 24

b) Berg: Suíte lírica

* N. T. No original, all-interval series.

256 A LINGUAGEM MUSICAL


- a série;
- sua inversão;
- seu retrógrado;
- o retrógrado da inversão.

Cada forma é transposta aos doze níveis disponíveis na coleção dodecafônica.


Estas transposições das quatro formas da série representam as quarenta e oito
reproduções do mesmo conteúdo intervalar. Estas permutações (pois todas estas
formas são permutações dos mesmos doze sons) oferecem uma imensidão de re-
cursos para explorar o conteúdo intervalar de uma série de maneiras diferentes.
A série, portanto, desempenha duas funções cruciais na música dodecafônica:

- estabelece (e com a repetição confirma) a coleção de doze notas;


- obtém desta coleção um conteúdo intervalar específico e o reproduz
enormemente.

Em suas obras seriais, Webern foi um pesquisador engenhoso e profundo dos


recursos lingüísticos de uma série. Estudando as Variações, descobriremos que
cada movimento obtém novas formações e recursos intervalares a partir de uma
única série. Esses recursos representam algumas das possibilidades cardinais do
serialismo dodecafônico.
Uma consideração deve ser feita antes de examinarmos a linguagem serial
de Webern. Fazer justiça à riqueza da linguagem musical de um compositor cria-
não é uma tarefa simples, que possa ser realizada em poucas palavras. Isso
ficou claro quando rastreamos as variações das células principais em Du hist die
ruh de Schubert, na medida em que essas células recorriam em diversas matizes e
nuances. O mesmo ocorre no estudo das Variações de Webern. Como acabamos de
mencionar, cada um de seus movimentos explora certas características (uma úni-
ca célula ou uma única forma da série - a inversão, por exemplo). Cada escolha,
entretanto, recorre posteriormente em múltiplos matizes, como se um esforço
tivesse sido realizado no sentido de descobrir a máxima riqueza disponível em
cada idéia criada a partir da coleção dodecafônica. À medida que acompanhamos
os ricos, porém parcialmente escondidos, recursos da linguagem serial We-
bern, nossa descrição torna-se necessariamente mais complexa. Contudo, como
em nossos outros exemplos, aprenderemos não somente as operações básicas de

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 257


os recursos sua

Hx,emplo 2.68*

A série em sua forma original (ou prima - P) está disposta horizontalmente, da esquerda para
a direita; os retrógrados (R) estão dispostos horizontalmente, da direita para a esquerda;
as inversões (I), verticalmente, de cima para baixo, e os retrógrados das inversões (RI),
verticalmente, de baixo para cima. As doze colunas, horizontal e verticalmente, apresentam
todas as transposições de cada forma. Os números à esquerda mostram a distância (medidas
em semitons ascendentes) de cada transposição de P e R da série original (PO e RO). De maneira
análoga, os números no topo mostram a distância das transposições de I e RI de IO e RIO.

* N. T. Para facilitar a visualização desse exemplo específico, optamos pela manutenção da grafia original.

258 A LINGUAGEM MUSICAL


•....~······
?QF

PRIMEIRO MOVIMENTO

Quais formas da série ocorrem nos compassos 1- 7? Como estão distribuídas? Quais são
as células intervalares presentes na música?

O primeiro movimento é criado a partir da superposição consistente de


duas formas da série:

- a forma prima com seu retrógrado (P + R);


- a inversão com seu retrógrado, o retrógrado da inversão (I + RI).

As formas superpostas da série são sempre transpostas identicamente. Na


primeira frase (compassos 1-7), PO ocorre na mão direita e RO, na mão esquerda.
Exatamente no meio da frase (compasso 4), as formas de série trocam de mão
(Exemplo 2.69a).
O Exemplo 2.69b mostra a sucessão de células (e sonoridades) intervalares
que resultam da superposição da série em sua forma prima e retrógrada:

compartilhado com as células anteriores;


- a segunda metade desta apresentação reproduz exatamente as mes-
mas quatro células da primeira metade na forma retrógrada.

superposição das formas P e R origina e amplifica as células : três destas


células soam duas vezes. Todo o movimento é construído a partir da descoberta
de Webern que a superposição destas formas P e R (ou I e RI) da série recriam
consistentemente esta célula em diversos níveis.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 259


que maneira a superposição de P e R produz esta estrutura es-
pecífica? Na série original (Exemplo 2.68), encontramos prevalência de interva-
los rj} Os intervalos @ recorrentes das células são simplesmente pela
ocorrência simultânea de notas adjacentes de P e R: Mi e Fá, Fá# e Sol, Lá e Si~ e
assim por diante. A série é, entretanto, escassa em intervalos (~) e (§) ; para com-
preendermos sua presença constante, precisamos explorar mais profundamente
a estrutura da série.
Se dividirmos a série em dois hexacordes, 52 descobriremos que as notas de
cada hexacarde (tomadas conjuntamente) formam agregados cromáticos de seis
notas:

hexacarde 1: Dó Dó# Ré Mi~ Mi Fá


hexacarde 2: Fá# Sol Sol# Lá Si~ Si
(§) ($) C§) (§) C§) (§)

Cada nota do hexacarde 1 relaciona-se com uma nota do hexacarde 2 por um in-
tervalo @. A superposição dos dois hexacardes apresenta, portanto, um grande
potencial de gerar intervalos($). Essa superposição de hexacardes ocorre quando
as formas P e R da série são justapostas (Exemplo 2.70). Quatro intervalos C§)
diferentes são produzidos (e cada um recorre somente uma vez); um intervalo @
está presente em cada célula. Os intervalos @ocorrem inevitavelmente em uma
célula@+©:

260 A LINGUAGEM MUSICAL


-Trítonos superpostos

Uma série apresenta, portanto, não somente as características de seu desen-


mais direto, mas também características combinatórias. Essas resultam
combinação de seus segmentos (tais como hexacardes) ou de suas combinações
com outras formas da mesma série. Nas células intervalares desse
os intervalos@ resultam da adjacência direta presente nas séries, e os intervalos
@e@, das propriedades combinatórias. De fato, uma nova série (a combinação
de ambas as linhas do Exemplo 2.7Ó, lida da esquerda para a direta - Mi, Si,
Sol, Dó#, Fá#) foi derivada da original através da combinação de diversas formas
da série original.

AMPLIFICAÇÃO CELULAR

A primeira frase estabelece uma linguagem musical cujas características es-


senciais são amplificadas no decorrer do movimento. Por exemplo, nos compas-
sos 8-10 (Exemplo 2.71):

- a superposição da série com seu retrógrado é mantida: 12 + RF


(Exemplo 2.71a);

- novas células 11 continuam sendo formadas. Cada sonoridade de


três ou mais notas apresenta essa célula (Exemplo 2.71b). Os inter-
valos @ que fazem parte dessa célula duplicam aqueles encontrados
no centro da primeira frase e nenhum novo intervalo @ocorre. Por-
tanto, embora as transposições da série e das células sejam inéditas,
os trítonos em comum fazem com que esses compassos ecoem e con-
firmem as células anteriores. Esta característica é responsável pelo

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 261


e
os ~"-~"'"~··~~
- a estrutura verso-reverso* da frase a segunda da
frase repete a primeira, porém em ordem reversa de eventos) é es-
sencialmente

Webern: Variações para piano, primeiro movimento, compassos 8-10

e)

Apesar da ocorrência de novas transposições da série e da célula, estas substan-


ciam e amplificam os aspectos originais da linguagem: sua série, célula primária
e sucessão de intervalos @ subjacente.
Os compassos 11-18 são uma repetição dos compassos 1-10 com pequenas
alterações, confirmando ainda mais as características iniciais da linguagem. No
compasso 19, entretanto, a peça apresenta uma série de mudanças em seu ritmo,
registro, dinâmicas e texturas. Contudo, o Exemplo 2.72 mostra que, mesmo nes-
se compasso, os aspectos essenciais da linguagem são preservados:

- a série superposta, F + RF;

* N. T. No original, forward-retrograde.

262 A LINGUAGEM MUSICAL


-a

- a estrutura verso-reverso da frase.

linguagem consiste na de novos

- SikMi, que inicia e a frase;


- Fá#-Dó, durante o desenrolar da frase.

Células são, portanto, em instância, formadas ao redor de todos os


presentes na coleção de doze notas.
Resumindo, novas formas da célula são produzidas continuamente ao
longo do

- na primeira frase;
- na segunda frase, construídas a partir dos mesmos intervalo (~)
primeira;
- na quarta frase (como no compasso 19), que acrescenta novos
valos(§).

A célula básica é, portanto, imensamente amplificada, partindo de formas


intimamente relacionadas com as originais pelos intervalos (§) em comum) para
versões mais distantes (sem intervalos (~) em comum). Os vastos recursos ofere-
cidos pela coleção para recriação e inter-relação dessa célula são explorados ao
máximo.
Para concluir, devemos notar novamente a coordenação da linguagem mu-
sical com outros parâmetros: ritmo, movimentação espacial, textura e dinâmi-
cas. A mudança nesses parâmetros, no compasso 19, corresponde à mudança que
acabamos de notar: a introdução de reproduções da célula baseadas em novos
intervalos C§\ O retorno de ritmo, registro e textura original no compasso 37
é correspondido pelo retorno dos intervalos C§) do início da peça. Ao longo do
movimento, uma progressão se desenrola: esta parte das células originais e de
células fortemente relacionadas para formas mais distantes, retornando em úl-
tima instância para f('.)rmas que são similares (porém não idênticas) às originais.
A enorme gama de reproduções da célula disponíveis na coleção dodecafônica
torna desnecessária a reafirmação da sucessão celular original de maneira literal,
mesmo quando sua presença é evocada.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 263


- Webern: Variações para piano, compassos 19-23

SEGUNDO MOVIMENTO (EXEMPLO 2.73)

Quais formas da série ocorrem nos compassos 1-6? Existe uma superposição con-
sistente de formas da série neste movimento? Como os intervalos e agrupamentos
intervalares deste movimento são derivados da série?

O primeiro movimento é construído a partir de relacionamentos de retro-


gradação: a superposição da série com seu retrógrado reproduz determinadas
células. O segundo movimento origina-se do processo de inversão: os intervalos
resultam da superposição direta (como um cânone espelhado) 53 da série e sua
inversão - P + I (Exemplo 2.74a).

264 A LINGUAGEM MUSICAL


nota
à

o grupo de intervalos
(Q) (~;)
(Exemplo 2.47b)

ou

Metade das superposições P + I produz somente o primeiro conjunto de interva-


los, ao passo que o restante produz somente os intervalos do outro conjunto. Os
intervalos dos dois conjuntos nunca se misturam enquanto a série for superposta
nota por nota.
Este movimento utiliza somente as superposições P + I que produzem o
conjunto de intervalos (Ex~mplo 2.74b); as séries superpostas são todas
escolhidas de maneira que reproduzam este mesmo conjunto. Além disso, estes
intervalos (O, 2, 4 e 6) são sempre produzidos pelos mesmos pares de notas:

- (Q) Lá-Lá ou Mi~-Mi~ (@ou® no Exemplo 2.74a e 2.73b);


- (~) Sol#-Si~ ou Ré-Mi(@ ou® no Exemplo 2.74a e 2.73b);
- (~j) Sol-Si ou Dó#-Fá (@)ou© no Exemplo 2.74a e 2.73b);
- (§) Fá#-C (CD no Exemplo 2.74a e 2.73b).

As superposições da série reapresentam constantemente estes intervalos e pares


de notas em novas ordenações.

SehrsdmeH

SOM E MÚSTCA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 265


li:11:e1n.)l1.l.o 2.74 - Superposições da série nas Variações para piano, segundo movimento

Lá Si

266 A LINGUAGEM MUSICAL


Sol Dó

S1

R.é Dó Mib Sol#

b)

classe
intervalar
par de nota

e)

A consistência desses pares de notas resulta das diversas superposições P +


I que formam pares de notas consistentes. Se as primeiras notas de uma super-
posição P + I formam um dos pares de notas representados pelas letras @ até ®
no Exemplo 2.74, então a superposição completa da série produz somente esses
pares de notas. Portanto:

- a superposição P + I inicial (P 4 + 16 ) com Si[,-Sol# (par de notas


@);o mesmo ocorre na terceira superposição P + I (P 6 + 14);

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 267


-a p +I com
notas@);
- a superposição P + I (P 9 + P) com Dó#-Fá notas
@),

as superposições P + I do com um pares notas


Exemplo conseguinte, todas somente os pares notas
do Exemplo 2.74b.
Assim como no primeiro movimento, células intervalares consistentes são
derivadas da superposição consistente de formas série. A linguagem novamen-
te resulta dos recursos combinatórios da série. Webern descobre possibilidades
fascinantes para a amplificação de intervalos e células. No segundo movimento,
os intervalos escolhidos para a amplificação por superposição não o
tervalo :j) predominante na série. Isso seria redundante, pois o intervalo CD já
amplificado pelas muitas transposições da série ao longo do primeiro movimen-
to. Ao invés disso, o compositor amplifica intervalos menos freqüentes da série
- os intervalos (~), (;;i) e (§} Como constatamos anteriormente, a coleção de doze
notas apresenta a possibilidade de igual amplificação de todos os seus intervalos,
à exceção do intervalo(§). Webern traz à tona, através da série e de seus recursos
combinatórios, o rico potencial intervalar da coleção. Certos procedimentos com-
binatórios enfatizam determinados intervalos e grupos de intervalos, ao passo
que outros procedimentos ressaltam conteúdos intervalares distintos. A variação
de superposições da série, de movimento para movimento, produz uma lingua-
gem cada vez mais rica e que encontra, nas explorações da série (e de suas combi-
nações), novas fonte de intervalos.

A SÉRIE NO ESPAÇO

Como cada superposição da série é distribuída no espaço no segundo movimento? Qual


é o papel especial desempenhado pela nota Lá 4 ? Por que os campos simétricos são par-
ticularmente apropriados à linguagem serial de Wehern?

O segundo movimento é um cânone espelhado construído a partir de for-


mas da série que (sendo a forma prima e sua inversão) também se espelham
(Exemplo 2.75a). As notas das séries superpostas são distribuídas espacialmente
em campos simétricos, cujas metades superiores e inferiores se espelham inter-
valicamente (Exemplo 2.75b). A nota Lá4 é o ponto médio de cada campo simé-
trico. Essa nota é o ponto de encontro das duas mãos, o ponto de intersecção no

268 A LINGUAGEM MUSICAL


nota soa, o
série, cânone e
ocorra a seguir. Dessa o espelhado, as justaposições espelhadas da sé-
as pares de notas espelhados e os campos espaciais simétricos espelhados reff_etem-
-se mutuamente.

r."'·"""""''"' 2.75 -
Inversões da série formando campos simétricos ao redor da nota Lá4 nas
Variações para piano, segundo movimento

As formações de campo são apropriadas para a música serial (e para a mú-


sica baseada na coleção dodecafônica) por muitas razões. As formações lineares

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 269


!-''-'-'~'-'"
da presença contínua
suas conexões por grau conjunto.
igualdade de apresentação e pela amplificação de diversos intervalos
força das circunstâncias, considerar limitante esta necessária dependência das
segundas - de fato, contrária aos seus objetivos. Os campos a apresen-
tação (a priori, sem preconceito) não só de todos os intervalos, mas também das
muitas distribuições espaciais diferentes um pode assumir (ou a
expressão espacial variada de uma classe intervalar). A estrutura linear favorece,
em última instância, as formas restritas e adjacentes, necessariamente tendendo
a limitar os tipos de intervalos e sua ocorrência espacial. Os campos, em con-
traste, podem ser construídos por uma variedade de intervalos e distribuições
espaciais; de fato, essa é a sua essência.
Assim, Webern constrói campos simétricos consistentes no segundo movi-
mento das suas Variações para piano. Essa distribuição espacial expressa as mais
profundas simetrias de sua linguagem intervalar e da forma. Embora a natureza
consistente dos campos seja mantida, os intervalos encontram diversas expressões
espaciais diferentes nestes campos (por exemplo, no espaçamento variável dos pa-
res de notas, letras©,@,® e®, no Exemplo 2.75b). Conseqüentemente, a es-
trutura intervalar de cada campo é nitidamente diferente, ainda que o princípio
subjacente da simetria seja mantido.

0 TERCEIRO MOVIMENTO

Quais formas da série estão presentes nos compassos 1-12? Qual célula é amplificada?
Como a célula se relaciona com a série? Como são as células dos compassos 5-9 em com-
paração com as células dos compassos 1-5 e 9-12?

Os primeiros dois movimentos são construídos a partir de combinações da


série. No terceiro e último movimento, as células e os recursos para sua amplifi-
cação são derivados da própria série.
A série dos compassos 1-5 do terceiro movimento é simplesmente a for-
ma R4 (Exemplo 2.76). Essa série soa como uma sucessão de células (i} Uma
variedade de meios é utilizada para organizar as notas em pares que formam
células (i):

similaridade de duração ; etc.


similaridade de registro

270 A LINGUAGEM MUSICAL


r--~ J:::"~
ataque ~ ~ ; ..--···-< ; •J~ ; etc
dinâmicas

Cria-se a que toda a série é, de fato, composta somente por células G} A


função intervalo j) na série, como intervalo predominante, é,
O mesmo procedimento ocorre, a seguir, com RI 6 , a série
dos compassos 5-9 (Exemplo 2.76). A série acrescenta mais seis intervalos (1)
4
aos já apresentados R:

compassos 1-5 compassos 5-9


MikRé Mit,-Mi
Si-Sib Sol-Sol#
Dó#-Dó Fá-Fá#
Fá#-Sol Dó-Si
Mi-Fá Ré-Dó#
Lá-Sol# Lá-Si[,

célula Q) é, pois, amplificada doze vezes, produzindo todos os intervalos (1) dis-
poníveis na coleção dodecafô nica.
A amplificação do intervalo Q) predominante da série atinge, portanto, seu
ponto máximo no último movimento. Existe, pois, uma razão clara para a esco-
lha das sucessões da série e para a maneira como as notas das duas séries estão
agrupadas: a apresentação do intervalo predominante da série, C)) em todas suas
formas possíveis.
Resumindo: tanto intrinsecamente quanto em combinação, a série forne-
ce meios de enfatizar e amplificar os recursos intervalares da coleção dodecafô-
nica. Nas Variações, a série apresenta um núcleo fundamental de relacionamen-
tos. Suas diversas facetas são refletidas de maneira distinta em cada um dos três
movimentos. A obra não amplifica somente as características mais óbvias da série.
A célula por exemplo, é sugerida somente uma vez - no centro da série original:

Sol Si

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 271


outras intervalares sene. LCH.iLic<, o
variado da série e a diversidade disponíveis na coleção

- Webern: Variações para piano, terceiro movimento, compassos 1-9

Copirraite (1937) Universal Edition. Utilizado com permissão do editor Theodore Presser Company, único repre-
sentante nos Estados Unidos, Canadá e México.

ULTRAPASSANDO OS LIMITES DA SÉRIE

Após Schoenberg ter reconhecido as riquezas intervalares da coleção dode-


cafônica e realizado suas primeiras explorações (durante a Primeira Guerra Mun-
dial) na "composição com intervalos" obtidos a partir desta coleção, bem como
depois de seu pioneirismo na música serial dodecafônica, os compositores (como
Webern) rapidamente perceberam o valor da série. Cada série se concentra em

272 A LINGUAGEM MUSICAL


e sugere e
metade do século XX, os compositores torna-
vez conscientes natureza diversa das várias séries e de suas
possibilidades combinatórias.
A série não é, entretanto, a única maneira de explorar a coleção dodecafôni-
ca. Ela oferece um meio que focalizar relações intervalares e sua recriação
em outros níveis. similares atingidos por compositores (como
Stravinsky, Bartók e Messiaen) trabalharam com variedade de coleções simé-
tricas. Cada coleção pode conter menos notas do que a coleção dodecafônica com-
pleta, porém, através da combinação de diversas coleções (ou pela transposição),
pode-se obter toda a coleção dodecafônica.
Elliott Carter é um compositor especialmente preocupado em alcançar a
variedade intervalar plena inerente à coleção dodecafônica. Cada uma de suas
obras maduras desenvolve maneiras específicas de atingir essa meta. A lingua-
gem de seu Primeiro quarteto de cordas é gerada por uma única célula de quatro
notas que contém, potencialmente, cada intervalo possível na coleção dode-
cafônica (Exemplo 2.77). Carter percebeu que isso propicia uma "gama total
de qualidades intervalares que ainda podem se relacionar à sonoridade cordal
básica de quatro notas". 54

cél.ula:

(o mesmo conteúdo intervalar está presente na inversão, no retrógrado e no retrógrado da


inversão, hem como nas transposições)

O Exemplo 2.78 apresenta os primeiros seis compassos da cadência do vio-


loncelo no início do quarteto. Inicialmente, várias destas formas da célula (todas
compartilhando as notas Mi ou Sit,) são misturadas de maneira bastante intrin-
cada. Em determinados pontos (compassos 5-6 e 11-12), a célula soa nitidamen-
te. A mistura de céluias permite a amplificação de elementos selecionados, espe-
cialmente as notas Mi e Si[, (Lá#) e o seu relacionamento por trítono. Através de
seleção, reordenamento, transposição, distribuição espacial variada e mistura,

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 273


- Elliott Carter: Primeiro quarteto de cordas, primeiro compas-
SOS 1-6e11-12

J
-.·-···-···-······-·-·..
.~ ~~~l

Em seu Segundo quarteto de cordas, Carter cria novamente um ambiente pan-


55
-intervalar, desta vez distribuindo os intervalos por Cada classe
intervalar apresenta dois espaçamentos distintos e é delegada a dois instrumen-
tos diferentes:

- o intervalo <J) é espaçado como t9 no violino II e como @! na viola;


- o intervalo (~) é espaçado como @:: na viola II e como :H: no violino I;

274 ALINGUAGEM MUSICAL


- o é como ($) no I e como j) no
- o C~D é como (~[) no II e como }f: no
- o ($.) é espaçado como ($.) no cello II e como C?.) no violino I;
- o intervalo@ é espaçado como@ na e como'~ª: no cello.

ex1eo1taLaa por cada é, conseqüentemente, formada


três (veja o Exemplo a "Introdução" do Quar-
teto). gestos melódicos horizontais quanto simultaneidades verticais (exe-
cutadas em cordas duplas) são criados a dos intervalos de um instrumento.
Nessa concepção, os intervalos (i) e(~) em suas formas mais reduzidas não são
considerados como intervalos si só, mas como adjacências vizinhas que
conectam os intervalos efetivos. Esses intervalos que formam adjacências são
utilizados por todos os instrumentos. Através da superposição de instrumen-
tos, os intervalos característicos de cada instrumento são somados, criando uma
textura multintervalar e, em última instância, pan-intervalar. Em certos pontos
contrastantes, os instrumentos trocam ou compartilham características interva-
lares (terceiro movimento, compasso 286, viola e cello), momentaneamente am-
plificando ou eliminando determinados intervalos.
O Exemplo 2.79 apresenta o rnício da "Introdução" do Segundo quarteto de
cordas. Assim que a nota superior extrema, Dó# 5 , é atingida no compasso 7, o re-
curso multintervalar fornece uma variedade de intervalos que soam contra o Dó#5
(compassos 7-19). Todas as notas no espaço de uma oitava, com exceção da
nota Mi~, são acionadas, formando relações melódicas ou harmônicas contra o
Dó#. A variedade pan-intervalar é utilizada contra a nota Dó# e permite que Car-
ter mantenha o design estático livre de redundância. 56 A natureza pan-intervalar
da linguagem é, portanto, apresentada desde o início do Quarteto (outras observa-
ções a respeito da "Introdução" do Segundo quarteto de cordas de Carter podem ser
encontradas no Capítulo 1 e nos comentários sobre o Exemplo 3.31 no Capítulo 3).
Carter desenvolveu, portanto, as células pan-intervalares e a distribuição
igual dos intervalos como maneiras de explorar os recursos intervalares equâni-
mes da coleção dodecafônica. Essas técnicas constituem uma outra abordagem aos
recursos das coleções simétricas desenvolvidos por Debussy, Stravinsky, Bartók,
Messiaen e aos recursos das séries desenvolvidas por Schoenberg, Webern e Berg.
Posteriormente, muitos compositores ampliaram o alcance da técnica serial: Stra-
vinsky, através da rotação; Messiaen, pela interversão; Dallapiccola, através da seg-
mentação; Babbitt, peia comhinatoriedade; Boulez, pela multiplicação, entre outros.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 275


- Condução das vozes até Dó# 5 e a presença de diversas notas soando contra
esta, criando o ambiente multintervalar da "Introdução" Segundo quarteto de cordas

Os Exemplos 2.80-2.82 ilustram esses processos. Nos Canti di Liberazione de


Luigi Dallapiccola (Exemplo 2.80a), a série pan-intervalar original é segmentada
em células de três notas (Exemplo 2.80b). Cada célula é então reproduzida quatro
vezes de maneira a produzir uma nova série, derivada da original. A série pan-
-intervalar utilizada produz todos os recursos intervalares da coleção de doze
notas e cada série derivada amplifica uma célula e seus intervalos. Através da
amplificação de diversas células, uma de cada vez, o compositor, em última ins-
tância, amplifica todos os recursos intervalares.
Milton Babbitt inicia seu ciclo de canções Du (Exemplo 2.81a) com uma sé-
rie pan-intervalar na linha vocal. As células de três notas da série são amplifi-
cadas, originando o acompanhamento do piano, como mostra o Exemplo 2.81b:

- na área A, a célula a é amplificada três vezes; esta amplificação dá ori-


gem às formas R, I e RI da série. As quatro apresentações da célula
criam um agregado completo de doze notas;
- na área B, a célula b é amplificada três vezes da mesma maneira, pro-
duzindo outro agregado de doze notas;
- a repetição das áreas B e A dá continuidade ao mesmo processo,
resultando na criação de quatro áreas dodecafônicas (A, B, B e A)
e também de quatro linhas dodecafônicas simultâneas - I (a série
original na voz), II, III e IV (as três séries derivadas no piano). Cada
uma dessas séries é formada pelas células a e h.

A todo momento, a textura apresenta numerosas amplificações das células


da linha vocal. Cada série derivada tem seu próprio espaço registrai na textura
do piano, possibilitando a conexão espacial das células e das séries derivadas e
tornando-as perceptíveis.

276 A LINGUAGEM MUSICAL


soprano

b)

contralto

tenor

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 277


1--

278 A LINGUAGEM MUSICAL


Exemplo 2.81a está repleto de derivações da série original e com repro-
duções de suas células. Contudo, a música apresenta ainda outro aspecto: cada
área dodecafônica (A, B, B e A) se subdivide intervalicamente em duas metades,
conforme mostrado pelas linhas pontilhadas do Exemplo 2.81b:

Área A primeira metade segunda metade


Si Fá
(~) CD
Dó Fá#
:·3-·" :·3-·"
''... ) \ .. )

Mi Si[,
:·3-·" :·3-·"
....... )
\ .. J
Sol Dó#
(j_", <I!
'' .. ~'

Láb Ré

As células verticais (::J)-(ª)) da primeira metade da área A estão refletidas na


sua segunda metade, ·de configuração intervalar idêntica. Enquanto as células
melódicas horizontais são amplificadas, suas notas são verticalmente superpos-
tas, formando uma sucessão de áreas de sonoridades idênticas também são
amplificadas. A amplificação e a derivação progridem simultaneamente em dois

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 279


níveis - horizontal e vertical - os eventos ante-
riores da peça. Estes resultados extremamente
com um número de séries
mais elevado grau. denominou essas séries de pan-combinatórias*. 57
Enquanto das técnicas de amplificação de e
novas séries a partir dos elementos da série original, a multiplicação de Boulez
amplifica as células de uma série sem necessariamente novas séries. 58 O
Exemplo 2.82a apresenta, para propósitos de ilustração, uma série em
cinco células, representadas pelas letras@ até®· Cada célula é então multipli-
cada pela célula@. (O Exemplo 2.82b mostra o resultado desse processo. Para
multiplicar qualquer célula por ©, basta construir os intervalos da célula © em
cada nota da célula. As notas resultantes são então combinadas, como no Exem-
plo 2.82c. Boulez omite uníssonos e dobramentos de oitava). Quando uma suces-
são de células é multiplicada por uma única célula, as características intervalares
da célula multiplicadora dominam, em última instância, a linguagem musical.
O Exemplo 2.82c mostra que não só as características intervalares da célula ori-
ginal são ampliadas, mas também que suas densidades relativas são refletidas.
Tanto o conteúdo intervalar quanto a relativa densidade das células da série po-
dem ser reproduzidos através da multiplicação das várias células integrantes.

Hx.en1plio 2.81- Milton Babbitt: Du, compassos 1-5

a)

plano

* N. T. No original, all-combinatorial.

280 A LINGUAGEM MUSICAL


Os acidentes só se aplicam às notas imediatamenteposteriores.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 281


l '

--, '
' l
1
' 1
~-J L

Os acidentes só se aplicam às notas imediatamente posteriores.

2.82 - Uma série dividida em cinco células, que são multiplicadas pela célula CD

Os acidentes só se aplicam às notas imediatamente posteriores.

282 A LINGUAGEM MUSICAL


Os exemplos apresentados as contínuas descobertas a respeito da
natureza da coleção dodecafônica. Novos recursos de linguagem ainda estão sen-
desenvolvidos. A divisão da em doze partes equivalentes não pode ser
considerada como uma necessidade. O espaço musical pode ser subdividido de
outras formas ou pode ser considerado como um continuum sem divisões fixas (o
Exemplo B.8 do Apêndice B sugere os possíveis limites humanos na pernepção da
subdivisão do espaço musical). A música eletrônica torna disponível todo o espa-
ço musical de uma extremidade à outra e oferece os meios para realizar as mais
ínfimas subdivisões deste espaço. Cada freqüência audível pode ser produzida
eletronicamente com precisão. Por exemplo, caso uma linguagem utilizasse in-
tervalos tão pequenos quanto a diferença entre 435 e 440 cps (1/7 de <J)), tais in-
tervalos poderiam ser produzidos eletronicamente com facilidade. Obviamente,
isso excede em muito a sensibilidade em relação à altura da maioria dos intérpre-
tes humanos e as capacidades dos instrumentos anteriores. Novas possibilidades
de relacionamento entre as alturas e a expressão humana manifestada por estes
relacionamentos estão abertas para p. exploração.
De fato, mesmo antes do advento do som eletrônico, as divisões mais ínfi-
mas do espaço musical (e suas possibilidades como um contínuo de alturas) fas-
cinaram os compositores. Ives, Carrillo, Bartók, Haba, Varese e Partch (entre os
compositores do início do século XX) exploraram a composição microtonal. Em
algumas culturas, notavelmente a da Índia (veja o Apêndice C), subdivisões mí-
nimas do espaço musical e a concepção deste como um contínuo não segmentado
são lugares comuns. Cage, Stockhausen, Xenakis e outros compositores de músi-
ca eletrônica ao redor do mundo estão necessariamente reconcebendo a divisão
do espaço musical e criando novos recursos para a linguagem e os sistemas de
linguagem musical. Descobriremos, no Capítulo 4, que, em última instância, os
detalhes da linguagem musical e da cor musical se fundem, formando desafios
absolutamente novos de exploração e expressão.
Neste capítulo, desenvolvemos uma visão consistente de diversas lingua-
gens musicais:

- o espaço musical é dividido de maneira a fornecer uma coleção de


alturas e intervalos;
- diferentes âmbitos espaciais e diferentes divisões são possíveis; por-
tanto, coleções distintas também são possíveis;
- cada divisão torna disponível certos recursos intervalares, explora-
dos e desenvolvidos pelos compositores;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 283


Esta é a técnica lingüística. Seu resulta em vívida e
uu.~u=. o é sensibilizado em um sonoro organizado, no os
mais ínfimos (ou mais gritantes) desvios causam tensões e tremores. variedade
de tais mundos enorme de

Esta lista é dividida de acordo com os sistemas de linguagem musical. Fon-


tes originais do período modal e tonal são marcadas com um asterisco.

SISTEMA MODAL DE CONSONÂNCIAS E '-'"-''"''-'


DA EUROPA MEDIEVAL E RENASCENTISTA

APEL, WILLL Gregorian Chant. Bloomington, Ind: Indiana University Press, 1958.

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ÜUTRAS DISCUSSÕES SOBRE A LINGUAGEM DA MÚSICA DO SÉCULO


PODEM SER ENCONTRADAS NAS SEGUINTES PUBLICAÇÕES:

Darmstadter Beitrage zur Neuen Musik (a maioria dos artigos estão em alemão)

Gravesaner Bléitter (em diversas línguas; todos os artigos traduzidos para o inglês)

Journal of Music Theory

Music Forum

Perspectives of New Music

Die Reihe (edição em inglês, v. 1-8)

Source

NOTAS

1. Citado por Edgar Varese em "The Liberation of Sound" em Contemporary Composers on Contemporary
Music (ed. E. Schwartz e B. Childs - New York: Holt, Rinehart & Winston, 1967, p. 196).
2. Hermann von Helmholtz em On the Sensations of Tone (quarta edição alemã de 1877, tradução A.
Ellis (New York: Dover, 1954, p. 235).
3. Igor Stravinsky em Poetics of Music (tradução A. Knodel e I. Dahl - Cambridge: Harvard University
Press, 194 7, p. 37).
4. Noam Chomsky em Aspects of the Theory of Syntax (Cambridge: MIT Press, 1965, p. 6).
5. Ibid. Não é de se surpreender que Chomsky mencione a forte tradição francesa deste pensamento,
estendendo-se de 1660 (Lancelot) a 1751 (Diderot) - período contemporâneo à vida de Rameau.

286 A LINGUAGEM MUSICAL


6. Coleção de alturas é um grupo de alturas em um estado desordenado. Coleção escalar é uma coleção de
alturas ordenadas em uma linha de adjacências. Coleção intervalar são todos os intervalos que podem
ser formados a partir de uma coleção de alturas (geralmente, por conveniência, os intervalos são
mostrados em sua forma mais reduzida).
7. Tais referências ao sistema tonal consistem somente em identificações, seu conhecimento não é
necessário para o entendimento deste assunto. O sistema tonal será introduzido posteriormente
neste mesmo capítulo.
8. Sétimas adicionadas às tríades, formando o acorde de sétima, são discutidas no Apêndice n Neste
momento, a presença da sétima não influencia a argumentação.
9. Estes pontos, aparentemente óbvios, nos fornecem indicações fundamentais a respeito da lingua-
gem musical e só recentemente foram compreendidos. Estes argumentos são válidos para todo o
conteúdo deste capítulo.
10. Alguns leitores podem preferir adiar a leitura desta análise detalhada da linguagem de Syrinx até
que tenham lido a discussão dos diversos sistemas de linguagem musicais neste capítulo a partir da
seção "Introdução aos sistemas musicais". Algumas observações analíticas que fazemos sobre Syrinx
- porém não todas - foram feitas por William Austin em Music of the Twentieth Century (New York:
Norton, 1966, p. 7-14). Chegamos até estas observações de maneira independente. Não entendemos
a idéia de Austin sobre a transposição de Syrinx um trítono abaixo.
11. Foi documentado que, na percepção de objetos visuais, mudanças de direção (ângulos e curvas acen-
tuadas) recebem mais atenção e implicam maior conteúdo de informação. A atenção é fixada em de-
talhes não usuais (em termos de contexto) e em contornos não previsíveis. Esta pesquisa foi resumi-
da em n Noton e L Stark ("Eye Movement and Visual Perception", Scientiflc American, June, 1971,
p. 36-37). A percepção musical ocorre de forma similar: os objetivos (ou metas) das movimentações
são os pontos nos quais a direção do movimento muda. Tais objetivos são análogos aos ângulos ou
curvas e denotam importante informação lingüística. Veja, por exemplo, a nota Réb no compasso 1
de Syrinx.
12. Uma célula é uma pequena coleção de notas ou intervalos que é repetida. Suas notas ou intervalos
podem ser sucessivos (horizontais) ou simultâneos (verticais - uma célula de sonoridade). As células
podem passar por uma variedade de transformações: reordenamento, fragmentação, elaboração,
redistribuição espacial e assim por diante.
13. Esta é a mesma coleção de notas que originou a linguagens de tríades menores e maiores nos Exem-
plos 2.1 e 2.2, compostos respectivamente por Mussorgsky e Chopin. Debussy, no entanto, utiliza
outra de suas potencialidades: sua célula, Sib, Réb, Mi, uma tríade diminuta, @-@-@, apresenta
um conteúdo intervalar muito diferente do conteúdo C)) - (;!) - (j) das tríades maiores e menores.
Adicionando notas e intervalos por conexão e elaboração, Debussy atinge, através desta coleção,
uma linguagem muito distante daquela de Mussorgsky e Chopin.
14. O pianista Charles Rosen observou (em suas notas para Piano Music of Debussy, Epic LC 3945) que
Debussy era um "grande mestre das transições". Tanto o gradual desaparecimento dos intervalos
CD e® quanto a ênfase nas notas Sib, Láb e Solb servem como transição para a transformação de
linguagem que se sucederá.
15. Karl Popper em Conjectµres and Refutations (New York: Basic Books, 1962, p. 127).
16. Veja o Capítulo 1.
17. Veja O. Strunk em Source Readings in Music History: The Baroque Era (New York: Norton, 1965, p.
33-52).
18. Music in the Middle Ages (New York: Norton, 1940, p. 154).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 287


19. Alguns teóricos e historiadores afirmaram que os modos são caracterizados não só por uma final,
mas também por uma "dominante". Apel rejeita esta "Dificilmente a dominante
ser considerada uma característica do modo [... ] a dominante não aparece em nenhuma das descri-
ções medievais dos modos". (Willi Apelem Gregorian Chant - Bloomington, Ind: Indiana University
Press, 1958, p. 135-136). Sua descrição do sistema modal é especialmente concisa e bem informada.
A tentativa de impor uma dominante no sistema modal surge de confusões com o sistema tonal
posterior.
20. Stravinsky, op. cit., p. 32.
21. Citado em Apel, op. cit., p. 161.
22. Esta descrição precoce da composição por células encontra-se no Micrologus de Guido D'Arezzo (Ca-
pítulo 15, trad. em J. W. A. Vollaerts, Rhythmic Proportions in Early Medieval Ecclesiastical Chant- Lei-
den: Brill, 1958). Posteriormente, retornaremos a esta descrição sob a ótica da composição rítmica.
23. A teoria da informação esclarece a necessidade da presença dos intervalos subordinados. "A incerteza,
ou entropia, é entendida como a quantidade de informação expressa em uma mensagem" (Capítulo
1, nota 16). Um único intervalo estático e imutável não contém muita informação, tampouco define
uma linguagem. Esta linguagem só se desenvolve na medida em que o intervalo for apresentado em
uma variedade de situações, ou seja, quando este intervalo repetidamente resolve a incerteza repre-
sentada pela questão "Qual é o intervalo importante neste contexto?". Os intervalos subordinados são
necessários porque sua presença acarreta esta pergunta. Os intervalos subordinados geram, portanto,
entropia, produzindo uma situação na qual os intervalos predominantes podem expressar suas im-
portantes informações a respeito da natureza da linguagem.
24. Como mencionamos anteriormente, o trítono não era aceito no sistema modal, sendo denominado
de diaholus in musica. Em termos de possível freqüência de ocorrência, ele realmente se encontra
quase fora dos limites da possibilidade. Em nossa visão, o intervalo soa "estranho" no contexto mo-
dal por causa de sua escassez; em outros contextos, como aprenderemos em breve, sua presença é
comum, ao passo que outros intervalos soam "estranhos" e "errados" por serem raros.
25. A junção das notas prioritárias (finais) dos modos com as notas que formam (com estas) a sonorida-
de intervalar predominante@ resulta no seguinte conjunto de notas importantes: ~-Fá-[l;Ji]-Dó
'--v--' '--v--'
($) ($)

Estes quatro sons cruciais são objetivos de todas as movimentações lineares da peça, conforme ob-
servamos no Capítulo 1. Sua conjunção dá origem ao design e à linguagem de sonoridades da peça.
26. A série harmônica ou de parciais é discutida no Apêndice B. Teorias de consonância e dissonância de-
rivadas dessa série são discutidas nesse apêndice na seção "A teoria de consonâncias e dissonâncias
segundo as razões intervalares".
27. Os músicos devem muito a Milton Babbitt por suas análises matemáticas dos recursos oferecidas
pelas coleções de alturas.
28. Citado em Strunk, op. cit., p. 205.
29. Ibid., p. 209.
30. Elaborações das tríades e sua extensão em acordes de sétima são discutidas no Apêndice D.
31. Strunk, op. cit., p. 205.
32. Na análise tonal, os numerais romanos referem-se à fundamental de urna tríade, especificamente à
posição da fundamental na escala tonal. Em Dó maior, por exemplo, a nota Dó é I (quando esta é a
fundamental da tríade). Em Lá menor, a nota Dó como fundamental é III (a terceira nota da escala
de Lá menor).

288 A LINGUAGEM MUSICAL


33. op. cit., p. 208.
34. Na prática, as tríades menores não são tão completamente caracterizadas quanto as maiores. Se-
ª prática do período modal, na qual a tônica era atingida por grau conjunto ascendente, o
sétimo grau da escala é aumentado para formar a sensível. Portanto, as tríades da dominante (no
modo menor) são maiores quanto sucedidas pelas suas respectivas tônicas. Isso não altera o nosso
argumento, já que em todas as outras circunstâncias o modo menor apresenta urna estrutura unifi-
cada em suas tríades primárias.

35. Consulte Villiarn Mitchell em Elementary Harmony (New York: Prentice Hall, 1939, p. 59-73) ou
Roger Sessions em Harmonic Practice (New York: Harcourt, Brace, 1951, p. 73).
36. Veja o Apêndice D, seção "Acordes de sétima".
37. Citado em Strunk, op. cit., p. 210-11.
38. Numerais arábicos com um acento circunflexo(") referem-se aos graus de escala em uma movimen-
tação linear tonal importante: em Sol maior, i é Sol, Sé Ré e assim por diante.
39. Os leitores que não estejam familiarizados com estas técnicas de extensão devem consultar o Apên-
dice D antes de continuar a leitura do texto.
40. Donald E Tovey em The Forms of Music (Cleveland: Meridian, 1956, p. 219).
41. Donald E Tovey emA Companion to Beethoven's Pianoforte Sonatas (London: Associated Board, 1931,
p. 5)
42. Donald E Tovey em The Mainstream of Music (Cleveland: Meridian, 1959, p. 14).
43. A natureza e a importância da arnbigüidade estrutural foram sugeridas no Capítulo 1, Considerações
culturais e históricas. A Figura 3 demonstra que a ambigüidade estrutural não pode ser associada
à falta de clareza: simplesmente não existe uma única resolução para as implicações espaciais bi-
direcionais de seu painel central. Ao contrário, o design depende da presença da ambigüidade. De
forma análoga, existem equações matemáticas cujos termos são resolvidos por vários números (por
exemplo, por diferentes pares de números). Essas equações não são de forma alguma equivocadas
ou aleatórias. Elas não são resolvidas por qualquer número; simplesmente admitem mais do que uma
resolução. Na literatura, o início da ambigüidade estrutural foi brilhantemente anunciado por Edgar
Allan Poe; este fato demarcou o limite entre a literatura romântica e a literatura contemporânea. No
âmbito da literatura popular, a ambigüidade estrutural manifestou-se no surgimento do romance
de ambigüidade, ou seja, o mistério. Existiram, entretanto, manifestações ainda muito mais profun-
das. Um marco da crítica contemporânea é o livro de William Empsoms, Seven Types of Ambiguity
(New York: New Directions, 1930), uma análise exaustiva da ambigüidade literária. Pirandello deu
à ambigüidade forma dramática e presença. Por cristalizarem a ambigüidade, Joyce, Kafka e Borges
("ambigüidade é riqueza") são epítomes. O homem comum freqüentemente não tem consciência do
quanto a ambigüidade estrutural permeia as noções atuais também nas ciências físicas. Na física, a

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 289


matéria é concebida tanto em forma de ondas como em forma de partículas. Esta concepção compar-
tilha propriedades de ambas as formas e uma resolução (pelos menos atualmente) ainda é impossí-
vel. O famoso "princípio da incerteza" de Heisenberg descreve como o ato de mensurar afeta o objeto
mensurado, tornando as descrições ambíguas. Novamente, uma única resolução - neste caso, uma
medida física - torna-se impossível. Os exemplos apresentados no Capítulo 1 e nesta nota podem
sugerir o quanto a visão de mundo do século XX foi permeada pela inevitável ambigüidade estrutural.
44. Consulte Olivier Messiaen em The Technique of my Musical Language (Paris: Leduc, 1942, p. 58-62).
45. O termo é de Arthur Berger. Veja seu esclarecedor artigo, "Problems of Pitch Organization in Stra-
vinsky" em Perspectives of New Music, 2, 1963, p. 11-42.
46. Messiaen, op. cit., p. 51.
47. As células separadas são identificadas tanto pelas dinâmicas quanto por suas alturas.A célula a, em
seu nível original (enfatizando a nota Dó), sempre ocorre na mão direita em dinâmica mf; em seu
segundo nível (enfatizando Lá), ocorre na mão esquerda em dinãmica p. A separação celular e polar
é refletida na separação de dinãmica, de maneira que um nível "faça eco" ao outro - ou pelo menos
deveria - o que não ocorre nas gravações de Gyorgy Sandor.
48. Messiaen, op. cit., p. 58-62.
49. Arnold Schoenberg em Harmonielehre (Vienna: Universal Editions, 1911, p. 489).
50. Um agregado consiste em uma apresentação completa da coleção de doze notas; o termo é de Milton
Babbitt. Às vezes, nos referimos também a agregados de menos de doze notas. Por exemplo, um
agregado de oito notas consiste em uma coleção de oito notas cromaticamente relacionadas - um
segmento cromático de oito notas.
51. Para uma visão bastante diferente, consulte George Perle em Serial Composition andAtonality (Berke-
ley: University of California Press, 1963, p. 21-25).
52. Hexacarde é um termo tradicional para designar uma coleção de seis notas.
53. Um cânone no qual uma voz é a inversão da outra.
54. Elliott Carter, "Shop Talk by an American Composer" em Problems of Modem Music (ed. P. H. Lang -
NewYork: Norton, 1960, p. 56-57).
55. Harmonias pan-intervalares, similares àquelas do Primeiro quarteto de cordas também estão presen-
tes. Veja a seção "Estase e movimentação no campo li.' no Capítulo 1eanota42: todas as simultanei-
dades de oito notas são superposições das duas células pan-intervalares de quatro notas.
56. Veja a discussão do campo A no Capítulo 1, seção "Estase e movimentação no campo!\.'.
57. Milton Babitt, "Some Aspects of Twelve-Tone Composition" em The Score (n. 12, p. 55-61, 1955).
58. Pierre Boulez em Boulez on Music Today (Cambridge: Harvard University Press, 1971, p. 39-40).

290 A LINGUAGEM MUSICAL


relativamente ""'·ªu'~~
um temporal concebido e anotado seu
como a música ocorre no tem sido chamada de ritmo. As-
como o poético é composto diversos níveis simultâneos - durações
sílabas, pés poéticos, linhas, versos e estrofes - o musical também apre-
senta níveis similares:

- durações de notas e silêncios;


- durações de agrupamentos de notas em módulos, compassos e frases;
- durações

As notações musicais são de especificar o fluxo tempo nestes níveis


distintos.
Freqüentemente, a investigação do ritmo parte das menores unidades
cas: notas e pausas individuais, tempos, compassos e as durações destes elemen-
tos. De fato, o ritmo tem sido considerado equivalente a estes elementos. Como
conseqüência, dimensões mais amplas e em muitos aspectos mais importantes da
formação do tempo musical têm sido ignoradas. Em particular, os eventos e as re-
lações rítmicas mais amplas e fundamentais são perdidos quando o ritmo é iden-
tificado somente nos seus aspectos mais superficiais. Para evitar este erro, inicia-
remos, assim como procedemos na investigação do espaço musical, com uma visão
em larga escala do fluxo temporal, para posteriormente nos determos nos
DURE

Onde ocorrem pausas no f7-uxo temporal da atividade da peça? Onde ocorrem as pausas
no texto poético? Qual a duração das frases, em número de compassos, e que papel as
pausas exercem nesta delimitação? Qual é a relação entre a duração da frase musical e
a de seu texto?

Como observamos no Capítulo 2, Machaut criou neste virelai uma lingua-


gem específica de consonâncias e dissonâncias a partir das possibilidades ofere-
cidas pelos modos Dórico e Hipodórico. Investigaremos agora o fluxo temporal
da peça e como este se relaciona com outras características musicais obra e,
especialmente, com a estrutura rítmica do texto poético.

DURAÇÃO DAS FRASES

Na estrofe I (compassos 1-22), as pausas na atividade rítmica ocorrem nos


compassos 4, 10 e 16. No compasso 22, a atividade é completamente interrom-
pida. 5 Em cada um destes pontos, a atividade cessa durante um compasso intei-
ro. Estas interrupções no fluxo delimitam as frases, que duram quatro ou seis
compassos:

estrofe I
frase 1 = compassos 1-4 = 4 compassos
frase 2 =compassos 5-10 = 6 compassos
frase 3 = compassos 11-16 = 6 compassos
frase 4 =compassos 17-22 = 6 compassos

As mesmas durações de frases são também definidas posteriormente:

estrofe II
frase 5 =compassos 23-26 = 4 compassos
frase 6 =compassos 27-32 = 6 compassos

As dimensões desta peça são formadas por uma sucessão de frases que duram
quatro ou seis compassos. Cada estrofe contém uma frase introdutória de quatro
compassos sucedida por uma ou mais frases de seis compassos.

294 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


;;::sFP''
w:~y

Existe uma eo

Os versos de sete sílabas sempre equivalem a uma frase de quatro compassos,


ao passo que o agrupamento de onze sílabas (uma linha de sete sílabas somada
a uma linha de quatro) equivale a uma frase de seis compassos. Cada duração
(ou agrupamento) de frase poética é invariavelmente identificada em uma duração
exata da frase musical.
A julgar pelo ritmo musical, é provável que Machaut tenha considerado que
o verso de sete sílabas contém oito sílabas e o agrupamento de onze, doze - sendo
a sílaba extra uma pausa com duração de uma sílaba no :final de cada linha. Esta
pausa, denominada na poesia caesura, é freqüentemente necessária para definir o
fluxo da poesia quando lida (ou cantada). Ao suspender o fluxo poético-musical,
as interrupções na atividade musical desempenham a função de caesura no final
das linhas de sete sílabas e nos agrupamentos de onze sílabas. Portanto, se con-
sideramos que o texto apresenta versos de oito e doze sílabas, as frases musicais
reproduzem as mesmas proporções do ritmo poético: 8:12 como 4:6: ou 2:3.

* N. T. A tradução do poema está no Capítulo 2, logo após o Exemplo 2.21.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 295


8 4
12 6
12 6
12 6

-a
relações no
através:
texto, tanto
ocorrência nos
linguagem e
específicos;
- de pausas no fluxo
durações frase específica e

Como observamos no primeiro exemplo deste (o Prelúdio de os


pontos principais de linguagem e estrutura são coincidentes
e reciprocamente esclarecedores.

SEÇÃO: UM NÍVEL MAIS

Quais são as seções e quais suas durações? Existe mais de uma maneira de conceber as
seções da peça?

Existe um nível rítmico mais elevado (isto é, mais amplo e mais extenso)
que a frase: a seção. No virelai de Machaut, existem duas maneiras de conceber as
dimensões seccionais de larga escala (Exemplo 3.1), ambas simétricas. Iniciare-
mos pela subdivisão seccional mais óbvia, apresentada no início do Exemplo 3.1.
Nos compassos 22 e 32 (segunda finalização), as barras duplas indicam conclu-
sões. As seções demarcadas são definidas pela substância musical e pela estrutu-
ra poética:
- ambas as vozes chegam ao intervalo cadencial de oitava e na nota
Ré do Dórico);

296 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


a uma e

(as rimas em destaque são aquelas dos agrupamentos discutidos anteriormente)

SOM F. MÜSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 297


Cada seção é '-V''"'"'V"' são
a segunda seção, menor em
compassos).
A outra análise seccional
seis frases de (na repetição, a
tida). Esta divisão, equilibrada em um central no
meira :finalização), leva em consideração duas r-:i-v-:u-rp·n

- a cadência bastante do compasso 32, um @


(Dó#-Mi) ao invés do intervalo cadencial comum, o intervalo@;
- a repetição imediata dos compassos 23-32.

O ponto que divide estas seções é um evento bastante marcante na linguagem


musical da peça: sua excepcional sonoridade cadencial representa o ponto no
qual a peça atinge sua mais intensa incerteza ao momentaneamente suas
próprias regras. Além disso, este ponto marca o :final da apresentação de novas
idéias musicais e o início da repetição idéias anteriores. Este ponto age como
um eixo de equilíbrio, dividindo a peça em duas seções simétricas de seis frases.

3.2 - Três planos simétricos proporcionais

Inicialmente, dividir a mesma extensão de tempo musical de duas maneiras


distintas e que incluem dois conjuntos de dimensões pode parecer confuso. Uma
analogia visual pode esclarecer o efeito. O Exemplo 3.2 mostra uma extensão
temporal dividida de três maneiras diferentes:

a) de maneira simples, como 4 + 4 + 4;


b) de maneira simples, como 6 + 6;
c) complexamente, de maneira que o contraste claro-escuro enfatize
uma divisão 6 + 6 ao passo que o preenchimento dos retângulos
(linhas contra círculos) defina uma divisão 4 + 4 + 4.

298 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


e menos en-
e interesse e suas simetrias são expressas bem menos -~----''~
inferior (c), organizada de forma complexa. No plano dimen-
corresponde à (c), as dimensões complexas são mais
do que apenas interessantes por si só. A divisão dual e simultânea da
em duas e três seções de quatro e seis frases encontra correspondência pre-
cisa na escala dimensional mais ampla nas proporções existentes nas estruturas
das frases (quatro e seis compassos, na razão 2:3) e nos agrupamentos ,poéticos.
Esta é a expressão no nível dimensional mais elevado da razão 2:3, subjacente a to-
das as durações musicais e poéticas da peça.
As seções não são, portanto, meras massas inertes. Ao equilibrar, criar con-
trastes e interagirem na duração, podem expressar os relacionamentos tempo-
rais fundamentais da peça na escala mais ampla. 6

0 MÓDULO: UM NÍVEL RÍTMICO INFERIOR

Apesar do nosso plano de estudo partir dos níveis rítmicos mais elevados
(seções e frases), precisamos examinar agora um nível inferior de atividade rítmi-
ca. Durante o período imediatamente anterior ao de Machaut, os detalhes rítmi-
cos eram criados pela repetição contínua de pequenos módulos conhecidos como
modos rítmicos. Os principais modos originais eram:

1) d j
2) jd
3) J jd
4) j d J

A distribuição rítmica do texto poético em Plus dure revela que um destes


J
modos rítmicos, o modo j origina os detalhes rítmicos da peça (Exemplo 3.3).
d
O módulo j determina a disposição rítmica das sílabas poéticas (nos com-
passos 1, 3, 5, 6, 8, 9 e assim por diante). Os compassos cadenciais, rimados, no
J
final de frases (compassos 4 e 10) são exceções, e apresentam a figura Os com-
passos 2 e 7 (marcados com um* no Exemplo 3.3) apresentam outra fascinante
categoria de variação. Nestes compassos, assim como nos compassos 11-12, 19,
25, 27-29 e 31, o módµlo é invertido (d J d
J). Estes dois tipos de exceções ( e J)
aumentam a duração e, por conseguinte, enfatizam certas palavras cruciais:

- compasso 2 - dure ("duro"), a palavra que motiva todo o poema;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 299


- Módulos subjacentes no Plus dure de

Através destes aumentos de duração, tanto a o som da palavra focal,


dure, recebem ênfase especial na música. As seguintes palavras são enfatizadas
da mesma forma que as citadas anteriormente:

- compasso 4 - dyamant ("diamante", "dureza");


- compasso 7 - d'aymant (englobando um duplo sentido de "ímã" e
"amor": pierre d'yamant é uma "pedra magnética" - novamente a
idéia de "dureza" e aymant, que significa "amante").

Esta ênfase é utilizada novamente para unir palavras de sons similares, cujos sig-
nificados cristalizam o conflito fundamental do poema: o amor duro como uma
pedra. No compasso 11, outra palavra de som similar, dame ("dama"), é enfati-
zada pela inversão do módulo. Essa palavra é, sem dúvida aquela que liga todas
as palavras precedentes! (Este processo é repetido na palavra amant - "amante"
- nos compassos 15-16).

300 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


DIMENSÕES TEMPORAIS

Sem levar em conta os níveis rítmicos mais inferiores, como os e


suas subdivisões (exceto como maneira de medir eventos em níveis rítmicos su-
periores), descobrimos três níveis de agrupamentos rítmicos na peça de Machaut:
seções, frases e módulos. Cada um destes aspectos se torna foco para a habilidade
e imaginação do compositor; como conseqüência, integram-se no jogo da
peça e participam da disposição musical do texto. Esta
se constitui, indubitavelmente, no objetivo definitivo peça.
A variação de módulos, durações de frases e seções engendram constan-
tes nuances e surpresas. Poderíamos continuar esta análise nos níveis inferiores,
abordando a subdivisão dos módulos. Entretanto, isso nos afastaria demais da
investigação dos níveis rítmicos superiores, nosso objetivo neste momento. Em
Plus dure, o interesse rítmico resulta da existência de diversos níveis rítmicos e
da riqueza de variação, especialmente nos níveis superiores. A superfície da peça
não revela imediatamente as sutilezas de sua formação temporal nem o encan-
tador jogo rítmico dos níveis superiores que emergem a partir da audição e aná-
lise cuidadosa. Não é a preocupação com a complexa subdivisão dos tempos e
dos compassos que tQrna estas qualidades aparentes. Elas só emergem através da
percepção e comparação dos vários níveis superiores da estrutura rítmica.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 301


Adentraremos agora no fascinante caminho dos rítmicos. Assim
como existem diversos níveis dimensionais superiores, também podemos cons-
tatar a existência de diversos níveis inferiores de atividade rítmica. Plus dure re-
vela um manejo preciso dos níveis dimensionais amplos, enquanto outras obras
de Machaut revelam a composição de um fluxo variado de atividade rítmica, até
a mais breve nota ou silêncio. De fato, toda a era de Machaut, a Ars Nova, ino-
vadora principalmente em sua descoberta de um repertório de atividade rítmica
vastamente expandido em comparação com a música européia anterior. 7 Muitos
dos recursos rítmicos descobertos durante aArs Nova têm, por séculos, caracteri-
zado a música européia e têm sido continuamente refinados e renovados.
A Missa de Notre Dame de Machaut foi possivelmente a primeira disposição
polifônica da Missa realizada por um único compositor. O final do "Credo" ela-
bora uma única palavra, ''Amen". A atividade deste final, mais de um minuto de
música livre de obrigações textuais detalhadas, é um exemplo puro da fantasia e
imaginação rítmica do compositor. Dentro desta seção encontraremos:

- diversas velocidades de atividades que se movimentam tanto simul-


tânea quanto sucessivamente;
- padrões de acentuações, compassos e módulos, combinados para
formar, em última instância, um equilíbrio rítmico;
- o princípio do isorritmo, uma das descobertas rítmicas extraordiná-
rias deste período e que regulava toda a atividade rítmica.

A atividade rítmica total é igual à atividade de uma voz individual? Como certos pontos
de pulsações são mais enfatizados do que outros? Como os pontos de ênfase estão distri-
buídos no tempo? Dentre as diversas durações de notas, qual é a mais freqüente? Que
padrões de atividade rítmica recorrem no ritmo total? E nas vozes individuais?

Uma redução rítmica do Amen é mostrada no Exemplo 3.5. Nesta redução,


podemos constatar que cada voz ataca suas notas em pontos temporais distintos.
A atividade rítmica total é um mosaico formado por todos os ataques e durações
das vozes. O ritmo total dos ataques é mostrado na parte inferior do Exemplo 1
3.5. Para compreender a atividade coordenada da peça, deve-se levar em conta
1
i
este ritmo total de ataque. '
i
1

302 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Amen da Missa de Notre Dame 8

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 303


Embora cada voz ataque e movimente-se de maneira distinta,
as vozes unem-se em determinados pontos comuns de ataque. No Exemplo 3.5, a
1 linha "ataques simultâneos" (através dos números 3 e 4) os pontos exatos

304 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


vozes que ocorrem a cada três
~~'- .. ~'~'-H~·~ com o cada compasso ~;
das quatro vozes ocorrem a três o, coinci-
cada compasso g..

IJ J J
ij J IJ J J J
J J
J
~~~
~'-
1 rr 1 r. r r r r rrr r
li

IJ

-
4
-

li rr r
- 1
i
-··

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 305


J J
lj J J
J J
3 3

i r ir ir 1 rr r r li ii l

i i 1 li

As métricas ~ e~. são manifestações destas regularidades de acentuação e


confirmam os acentos em pontos de ataque simultâneo. O início de cada compasso
é, portanto, um ponto relativamente acentuado no fl-uxo temporal. É extremamente
importante reconhecer que, a partir da substância musical (nesse caso, ataques
simultâneos), surgem os padrões de acentuações conhecidos como "compasso" e
"métrica".
Pontos de ataque comuns não são o único meio de produzir acentos. Como
uma nota longa necessita de mais energia inicial do que uma curta, o início de
uma nota mais longa em um contexto musical é, portanto, freqüentemente perce-
bido como um acento. O valor rítmico o· caracteriza-se como a duração mais lon-
ga do Amen. O início de cada o· coincide com uma acentuação criada por pontos
comuns de ataque. Portanto, dois tipos de acentuação (pontos de ataque comuns

306 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


e ""'-"~ mutuamente. longo padrão
~.é e::>i1-1e1_1a.u11C ~-A~,-~~ causada
três das vozes no início de cada compasso~. simultaneamente em
notas longas.
Como conseqüência desse padrão acentuação, a duração do Amen
é subdividida em séries regulares de pulsações acentuadas que apresentam duas
velocidades e intensidades diferentes:

- as acentuações ~, freqüentemente realizadas por somente três ata-


ques simultâneos;
- as acentuações mais fortes ~- efetuadas sempre por quatro ataques
simultâneos, dos quais três são também inícios de notas longas.

As acentuações são produzidas de maneira consistente, resultando em com-


passos de duas dimensões distintas, sendo que o compasso maior - delimitado
pelas acentuações mais fortes - equivale a três compassos menores. No decorrer
do Amen, as diferentes vozes unem-se para conferir regularidade a estes acentos.
Devemos ressaltar o papel significativo da acentuação na geração do
Nesta obra, as pulsações regulares -são incorporadas na própria trama musical,
como na gradação entre acentos fortes e menos fortes. A música flui de um ponto
acentuado para outro e suas acentuações não são derivadas de sinais externos.
Em particular, não derivam automaticamente de uma barra de compasso, já que
agora está claro que diferentes barras de compasso manifestam diferentes grada-
ções de acentuação, de acordo com a substância musical. Uma composição e sua
execução devem manifestar claramente estes pontos de acento, visto que eles
são os suportes estruturais da atividade rítmica nos quais se apóiam os detalhes
temporais intervenientes. 9

PULSOS E IMPULSOS

As acentuações não são os níveis mais inferiores ou rápidos da atividade


musical. O tempo entre estes acentos é preenchido por níveis de atividade ainda
mais rápidos: o ritmo explícito das vozes individuais.
As durações das notas do Amen abrangem os valores compreendidos entre
o· e cobrindo uma razão de durações 12:1 (12 x = o·). As diferentes durações
não desempenham a 'mesma função. Por exemplo, o papel especial exercido pela

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 307


3
2
vado.

duração nas vozes


O· 53
o 45

50
30

d
A preponderância da é tão marcante no total na atividade das
vozes individuais. A partir som, ocorrem ataques em 94 das 111
divisões de ddo Amen:

1 J J J
i
IJ JJ
j

A duração total subdivide-se, portanto, em três níveis de pulsações regulares. Em


cada ocorre uma forte acentuação e em cada o· um acento menos enfá-
tico. O outro nível é formado pelas pulsações quase sempre igualmente consis-
J
tentes (94 de 111, ou 85%) das Este é o nível do pulso. Ainda que freqüente e
altamente explícito, esse nível carece da consistência absoluta da ênfase coorde-
nada que marca os pontos de acentuações. De fato, o pulso de mínima é freqüen-
temente efetuado por somente uma ou duas das quatro vozes e, ocasionalmente,
está ausente. O pulso é claramente apresentado, porém é expresso de maneira
menos intensa pelo contexto do que as acentuações.
Em contraste, as outras durações ocorrem em menor freqüência e de manei-
ra inconsistente (veja a lista anterior). No ritmo total, a ação ocorre:

- em somente 130 das 222 divisões de j possíveis. (Além disso, embo-


ra este dado pareça indicar uma atividade em 59% das divisões de

308 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


somente

- em somente divisões de possíveis ao

de indicar pulsações regulares e consistentes, as j e representam


breves e ocasionais de no temporal das vozes '""r""'

Conseqüentemente, a extensão temporal do Amen pode ser em


uma grade mostra as pulsações regulares de forças diversas - 0o, J
Ex1~mplo 3.6). Todas estas pulsações se relacionam com uma razão de 3:1.

3 J (pulsos) = 1 o· (duração entre os acentos ~)


3 o· = 1 (duração entre os acentos 3

grade combina três níveis de atividade: o pulso, o acento e o acento am-


Contra as pulsações regulares desta grade ocorrem os impulsos ocasionais
ação mais rápida ( Ji
j ). Aléni de serem mais rápidos e infreqüentes, estes
e
impulsos também representam diferentes razões de subdivisões: j : j (2:1) e j :
(4:1). Os impulsos são o nível de atividade mais rápido.
A formação da ação rítmica é, portanto, análoga ao processo de formação da
linguagem musical de alturas. A grade, no Exemplo 3.6, representa os intervalos
predominantes de tempo, que ocorrem em freqüências constantes. Os impulsos
são subordinados e geram entropia. Veremos a seguir (prosseguindo com a analo-
gia) como os padrões - células rítmicas ou módulos - são formados, ou seja, como
pulsos e impulsos são combinados em unidades específicas.

> = os acentos mais fortes J.


os acentos mais fracos

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 309


DE ATIVIDADE: MODULAR E

Embora exista um padrão predominante de regularidade no


Amen, a atividade é vitalizada eventos

- momentos de relativa inação, nos quais o pulso de uuuuu~ está tem-


porariamente ausente;
- explosões momentâneas de ação relativamente rápida,
uma torrente de impulsos rápidos.

Veremos como os padrões recorrentes de atividade, ou seja, os módulos e as fra-


ses isorrítmicas, são combinados e como estes são responsáveis por todos os deta-
lhes da ação rítmica.
A essência da atividade rítmica consiste em amplo módulo recorrente, com-
posto por três módulos menores (Exemplo 3.7). A duração deste módulo equivale
a um compasso ~., enquanto cada módulo menor equivale a um compasso ~ e
possui sua própria freqüência de ação característica (veja o Exemplo 3.7). Den-
tro do módulo mais amplo, um pequeno módulo de inação e um módulo de ação
rápida são equilibrados entre um módulo que manifesta o pulso normal da peça,
J
representado pela A atividade do módulo mais amplo realiza, portanto, uma
aceleração: parte da relativa inação para a freqüência normal da pulsação e em
seguida para uma ação relativamente rápida.

l:ixemp!o 3.7

módulo normal

j j i í i
1
1
1
1
---==--=--=~--~=~=---w-~

O módulo mais amplo inclui nesta ordem:

- um módulo menor de relativa inação rítmica;


- um módulo menor que apresenta a normalidade rítmica, o pulso J;
- um módulo menor de atividade rítmica relativamente rápida.

Dessa maneira, os compassos são definidos não somente por seus acentos
iniciais e suas durações recorrentes, mas também por sua atividade interna. Cada
compasso menor (~) constitui um módulo característico que integra o módulo

310 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


é um padrão
recorre consistentemente. Em um destes
a é e à forte acentuação e ao momento
de relativa inação que inicia o próximo módulo amplo.
Exemplo 3 mostra como módulos amplos em sucessão formam
cada frase isorrítmica, ou talea (termo que identifica esta no período
Ars Nova). A não ser por exceções momentâneas no início e no final (marcadas
em itálico no Exemplo 3.8 e discutidas a seguir), as três talea são em
cada detalhe de sua atividade rítmica. Esses padrões extensos e recorrentes de
atividade rítmica são aquilo que os teóricos daArs Nova denominavam isorritmo.

frase
!sorrítmlca,

talea III

~ módulo pequemo de
módulo pequeno de "normalidade"
módulo pequeno de
\_J módulo
~ variante do módulo

oco!Te no úl.t.imo

total
de módulos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 311


to cada talea. Todas essas
módulos de menor atividade módulos de ···~-·~·
1
no lugar de e "a " no lugar de . Conseqüentemente, cada talea
revela em seus segundo, terceiro e quarto módulos uma aceleração
marcante de atividade antes do retorno ao normal .., . . ·=···~
que a talea. Assim como os módulos menores formam
sua aceleração de atividade, ao início de cada
módulo mais amplo, esses módulos mais extensos também formam
uma aceleração de atividade (através dessas variantes) que ~~-··~~~
ao início de cada talea. Nos dois níveis de atividade amplo módulo
e a talea isorrítmica), ocorre progressão do descanso para a ação e
desta para uma ação ainda maior.
- as variações singulares do início e final do Amen - nas variações modu-
lares regulares, os módulos menores de "normalidade" são substi-
tuídos (no segundo módulo extenso de cada talea) por módulos de
"ação". Esses três módulos "a" adicionais, somados àqueles presentes
nos doze módulos extensos, resultam no total de quinze módulos
de ação. Esta adição de módulos de "ação" é equilibrada pela adi-
ção de três módulos de "inação": dois módulos "n" são substituídos
por módulos "i" no primeiro e no último módulo amplo da peça; o
terceiro "i" adicional é aquele que termina a peça (veja o Exemplo
3.8). Dessa maneira, os módulos de ação e inação são perfeitamente
equilibrados no Amen (ambos com quinze ocorrências). Os módulos
extras de inação são encontrados no início e no final, intensificando,
portanto, o estado de repouso nestes Conseqüentemente, o
Amen reproduz, em sua totalidade, a progressão de relativo repouso
(no início), atividade e volta ao relativo descanso (no final), que ca-
racteriza os níveis dos módulos e das frases. Assim como o módulo
mais amplo equilibra elementos de inação e ação sobre uma norma-
lidade, a peça como um todo atinge, em seu final, o equilíbrio exato
de elementos de ação e inação.

312 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


mais extenso ao mais breve,
- desempenha um papel específico no
rítmico.
contrário de Plus dure, as frases do Amen são essencialmente idênticas
em duração, assim como são os módulos, tanto os menores quanto o módulo mais
ª"'"'"·~. As durações regulares das frases e dos módulos formam a moldura para
sua atividade interna variada. No interior dessas durações regulares subjacentes,
as acelerações e relaxamentos, ou seja, o fluxo e refluxo da atividade detalhada
manifestam-se de maneira vívida. É nesta interação de níveis e, particularmente,
nos detalhes variáveis da atividade em seu nível de detalhe mais minucioso que
reside a inventividade rítmica do Amen.

ATIVIDADE DAS VOZES INDIVIDUAIS

O compositor poderia ter distribuído esta flutuação de atividade igualmen-


te entre as quatro vozes, ou concentrá-la inteiramente em uma voz. Qual a razão
da escolha de Machaut em relação à distribuição desta atividade? A solução é ao
mesmo tempo consistente e imaginativa: reproduzir na distribuição das vozes o
mesmo contraste entre diferentes freqüências de atividade presentes em todos os
níveis rítmicos. Toda atividade mais rápida que o pulso se concentra nas duas vo-
d
zes superiores; as vozes inferiores movimentam-se somente no pulso ou ainda
mais devagar. Tornar esses contrastes audíveis é uma obrigação específica - fre-
qüentemente não atingida - dos intérpretes desta peça, de maneira que a vaga-
rosidade das vozes inferiores contra a atividade mais rápida das vozes superiores
possa ser percebida claramente.
As quatro vozes individuais compartilham muitas características de ativida-
de rítmica. Cada voz individual também é isorrítmica, repetindo três vezes sua
própria talea de quatro módulos ou compassos amplos - ou seja, doze módulos me-
nores (veja o Exemplo 3.5). Além disso, os detalhes da atividade rítmica das vozes
individuais são derivados dos rítmicos específicos dos módulos (Exemplo
3.7). O módulo "i" (d 0
), em especial, gera variantes nas vozes individuais. A dimi-

nuição de sua síncope resulta nos módulos mostrados no Exemplo 3.9.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 313


Hxe:m.plo 3.9

dlm . e

Esses módulos derivados do módulo originam os módulos "a" mostrados


no Exemplo 3.10.

3.10

módulo módulo 1 d!m.

módulo 1 dim.

ritmo total ritmo total

Conseqüentemente, cada detalhe rítmico do Amen é diretamente derivado


do módulo A peça inteira é formada a partir da repetição contínua desse
módulo. Sua progressão do repouso para atividade é o modelo para a evolução
de cada frase e mesmo para o Amen em sua totalidade. Os módulos menores são
transformados (por diminuição, dupla diminuição e retrogradação) e combinados
para criar os detalhes rítmicos até os menores impulsos de atividade. Os módulos
são constantemente redistribuídos entre as vozes para que, em última instância,
as características do módulo tornem-se absolutamente predominantes
- manifestadas pela atividade rítmica em cada voz e em cada nível.

RESUMO

Tanto no Amen quanto em Plus dure são estabelecidos diversos níveis


rítmicos. No nível mais elevado, o Amen é formado por três frases, cada uma

314 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


apresentando uma vez o isorrítmico. A duração das frases é essencial-
mente invariável; as frases estabelecem uma moldura temporal para a extraor-
dinária atividade nelas contida. Dentro destes níveis superiores - a seção Amen
inteira, as frases isorrítmicas e os módulos mais amplos-, a atividade progride
de relativa inação para ação e, em última instância, retorna ao estado original de
inatividade. Esses contrastes internos de atividade, bem como sua distribuição
entre as vozes individuais e pelos diversos níveis, apresentam sempre elevado
grau de imaginação e invenção rítmica.
Os níveis rítmicos superiores de Plus dure, no entanto, também participam
diretamente na vida rítmica. As durações de seções, frases e módulos são varia-
das: cada nível expressa, em suas próprias durações distintas, a proporção rítmi-
ca fundamental. As durações de frases e de seções não são meras molduras para o
ritmo, pois suas próprias variações expressam ativamente o ritmo.
O historiador da música Otto Gombosi percebeu a variedade da abordagem
rítmica de Machaut:

Existem, tanto quanto entendo, dois fatores principais que devem ser distinguidos nes-
te planejamento. Um deles se manifesta nos motivos rítmicos angulares e nervosos e
que se atritam em alternações regulares de unidades métricas desiguais de acento em
acento [...] O outro fator reside no ordenamento superior das unidades e linhas métricas
em um complexo sistema de simetrias. Neste nível, a conexão da música com a arqui-
tetura e com outras manifestações artísticas de menor relevância do período torna-se
imperativa. Através de outros meios, a música demonstra a mesma atitude básica em
relação à complexa simetria de elementos por si só assimétricos [...]1°

Trata-se de um enunciado extraordinário, na medida em que sugere a abrangên-


cia rítmica encontrada na música de Machaut. Freqüentemente, este compositor
é lembrado somente pelo isorritmo, que é apenas um dos aspectos de sua pro-
funda preocupação com a rítmica. Alguns aspectos de sua abrangente invenção
freqüentemente passam despercebidos, tais como:

- a modelagem plástica das partes de uma composição de maneira que


elas interajam com os níveis rítmicos superiores;
- a integração de texto com ritmo, linguagem musical e design, crian-
do uma unidade expressiva singular;
- a coordefiação e a superposição de atividades que ocorrem em vários
níveis, vozes e velocidades;
- o equilíbrio de diferentes freqüências de atividade, atingido através
do isorritmo.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 315


como Amen e Plus Machaut
neos) definiu os sobre os quais o
te os séculos posteriores, cristalizando algumas das possibilidades singulares
ritmo.

Estamos introduzindo o ritmo através do estudo de suas funções na música


medieval européia. Esta abordagem traz três vantagens:

1) permite a familiarização tanto com um repertório musical real-


mente atrativo quanto com os princípios que o sustentam, ambos
negligenciados por muito tempo;
2) auxilia a compreensão da origem de várias práticas rítmicas adota-
das posteriormente na música européia;
3) estabelece o contato com a música européia de uma época na qual
as preocupações e as estruturas eram explícitas, se não primordial-
mente rítmicas. Por conseguinte, torna-se possível fazer compara-
ções com outras músicas nas quais o ritmo também desempenha
um papel importante, como a música da África, Ásia e das Américas,
bem como de quase toda a música do século XX. Tais comparações
possibilitam a percepção de correntes inter-relacionadas de pensa-
mento rítmico, invenção e evolução.

Apesar de sua importância, o estudo do ritmo é difícil e tem sido negligen-


ciado. As dificuldades podem ser reduzidas a dois tipos principais:

1) impossibilidade de acesso a repertórios caracterizados por sua excelência


no tratamento do ritmo - o isolamento cultural, as inadequações na
notação (ou mesmo a ausência desta) e a natureza improvisatória
de muitas músicas dificultam a descrição de sua experiência rítmi-
ca. As notações utilizadas na música africana e asiática, assim como
na afro-americana, são tão raras e inadequadas como registro que
a dimensão rítmica se torna irreparavelmente prejudicada. De fato,
praticamente toda notação rítmica é inadequada quando se trata de
expressar as mais sutis variações de acento e duração.

316 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


~~~-·~~- é abrangente do esta
u,,_.,,_,__,,__ e surge de realmente se pouco sobre a
experiência da percepção do tempo nos seres humanos. O estudo da
experiência temporal, tanto de maneira isolada quanto em conexão
com a musica, é sutil. Mostraremos, a seguir, que o estudo psi-
cofísico do tempo tem implicações diretas na música; de fato, a mú-
sica levanta problemas fascinantes para este campo estµdo. Estes
problemas - dimensionalidade, proporcionalidade, variabilidade e
percepção do tempo - são difíceis e fascinantes, se não indecifráveis.

O tempo não é somente um meio musical, é um meio para toda existência


psicofísica. O "sentido temporal", ou seja, a maneira como os humanos percebem
a passagem do tempo ainda é um assunto rodeado de certo mistério. Em última
instância, uma teoria do tempo musical deve correlacionar-se com uma teoria
psicológica abrangente da percepção temporal. Embora uma teoria completa da
percepção temporal ainda esteja para ser proposta, os músicos não precisam des-
considerar o que já foi aprendido sobre a mensuração humana do tempo e sobre
as múltiplas maneiras como o som, o tempo e a mente humana interagem.
Uma das questões mais críticas refere-se ao julgamento de eventos tem-
porais: uma duração pode ser julgada independente dos eventos sensoriais que
ocorrem em seu transcurso, ou seja, a percepção do tempo constitui-se em um
processo independente ou em um processo condicionado à natureza do estímulo
sensorial associado? William James afirmou que o sentido de duração depen-
de da percepção dos eventos que ocorrem concomitantemente à duração. Entre-
tanto, uma série de estudos tem colocado esta hipótese à prova. A percepção de
intervalos de tempo, preenchidos ou não por sons, se dá de maneira igual. Par-
ticipantes de experimentos mostraram-se capazes de diferenciar eventos senso-
riais levando em conta somente a duração. O volume sonoro relativo dos eventos
ocorridos em intervalos de tempo, por exemplo, não influencia a percepção de
suas durações. A única influência do volume na estimativa do tempo consiste no
fato de que o início e o final de um som devem ser claramente audíveis para que
sua duração seja percebida. Isso justifica a necessidade de clareza de definição e

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 317


articulação e, onde for necessário, acentuação de inícios e finais de eventos musi-
cais importantes, como seções e frases.
Fatores externos ao som, como a temperatura do corpo, as drogas ou as
estimulações externalizadas afetam a percepção da duração dos sons (sinais de
luzes, por exemplo, podem causar a impressão que o tempo "passa mais rápido").
Além dessa qualificação, entretanto, a duração pode ser considerada como um
parâmetro perceptível em si mesmo. Embora possa ser coordenada com outros as-
pectos concomitantes à sensação sonora, a percepção do tempo não está sujeita a
esses aspectos.
Como qualquer outra forma de percepção humana, a percepção das dura-
ções apresenta limitações. Estes limites ainda não foram completamente explo-
rados e compreendidos. De fato, a música é um tipo de exploração contínua dos
limites humanos de percepção e inter-relacionamento de durações.
Em um contexto psicológico, Creelman propôs formulações importantes
que sugerem, pelo menos em um cômputo geral, a existência de limites na ca-
pacidade humana de discriminar durações. Seus estudos sugerem que a maio-
ria dos seres humanos podem distinguir consistentemente entre duas durações
que diferem em aproximadamente 10% (ou mais). 12 Seus testes foram realizados
com durações entre 0,02 e 2,0 segundos (MM 3000 - MM 30). Seu procedimen-
to consistiu em selecionar diversas durações de base entre estes limites e então
lhes adicionar incrementas mínimos, testando quais incrementas causavam mu-
danças perceptíveis em comparação com as durações básicas. Os resultados de-
monstraram que não é a velocidade absoluta da duração básica ou da duração com
incremento, mas sim a diferença relativa entre a duração básica e a duração com
incremento que determina se elas são percebidas como equivalentes ou distintas.
Quando a diferença chega a 10% ou mais, é regularmente percebida.
A partir desses resultados podemos determinar que:

A diferença entre j e j ~
'"--
A diferença entre CJ) e 'f·
é geralmente percebida. é geralmente imperceptível.
) =um oitavo de j (12,5%) ) = um doze avos de j (8,33%)
~a--'

quando j =MM 30, ~ =MM 240 quando j = MM 30, ) = MM 240


~a--'
(8X 30)
(12 X 30)
quando .J = MM 360, ~ = MM 2880
quando .J = MM 360, ) = MM 4320
~a--'
(8 X 360)
(12 X 360)

318 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Em um contexto no qual a duração básica é J= MM 30, o acréscimo de J1 (= MM
Jnão é perceptível. Entretanto, quando o contexto apres~ ~ta uma
3

360) a uma
duração básica J= MM 360, durações tão rápidas quanto = MM 2880 são per-
ceptíveis. Na percepção de durações, o contexto é fundamental.
Ainda não foi conclusivamente estabelecido se o mesmo princípio e válido
(ou inválido) para durações longas, além do limite de dois segundos estudado por
Creelman. Caso o mesmo princípio seja válido também para durações longas, a
diferença entre as seções de trinta e dois e trinta quatro compassos do Plus dure
de Machaut (Exemplos 3.1e3.2) é imperceptível, na medida em que esta diferen-
ça é de somente 9% (menos que os 10% geralmente perceptíveis). As seções são,
portanto, percebidas como iguais e simétricas em duração absoluta assim como
no número de suas frases.
O princípio de Creelman estabelece um padrão para a percepção de igual-
dades e desigualdades temporais - do mais breve pulsar às mais amplas dimen-
sões temporais. Esse princípio mostra a importância do contexto, responsável por
estabelecer o padrão a partir do qual igualdade e desigualdade são percebidas.
Quando o contexto de durações é estabelecido por j = 30, o acréscimo de
~3-'
~ = 360
não é perceptível. Esta duração menor pode, contudo, estabelecer um novo con-
texto, no qual ela própria estabeleça a escala a partir da qual as outras durações
serão percebidas. Portanto, as relações temporais (bem como as relações de altu-
ra) são, em última instância, avaliadas contextualmente.
Este princípio também explica os ínfimos desvios da regularidade metronô-
mica. Execuções, cujas pulsações são percebidas como regulares e iguais, freqüen-
temente estão longe de serem perfeitamente regulares se comparadas com um
padrão metronômico. Quando o desvio é de menos de 10%, não seriam normal-
mente perceptíveis sem o auxílio de um padrão metronômico. Devemos levar em
conta que nos referimos aqui aos desvios imperceptíveis da regularidade absoluta,
não aos desvios mais grosseiros e perceptíveis que ocorrem freqüentemente na
execução musical.
As implicações das formulações de Creelman são enormes e abrangem tan-
to os níveis mais elevados quanto os mais imediatos do fenômeno musical e tem-
poral. Espera-se que suas implicações sejam alvo de pesquisas mais abrangentes,
tanto na dimensão p~icofísica quanto na dimensão musical.
A psicofísica também revela uma relação entre a duração e a percepção das
alturas. A duração mínima necessária para a percepção de uma altura é, em mé-
dia, 0,013 segundo. Em durações mais breves, escuta-se um estalo sem altura

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 319


definida. Entretanto, a duração para a rw·irrº'"'
ficativamente em diferentes partes do espectro de freqüências audíveis.
mais aguda for uma altura, menor será o tempo necessário sua percepção,
aproximando-se da média de 0,013 segundo e então a ultrapassando. 13
128 cps (aproximadamente Dó 3) necessita de 0,09 segundos
256 cps (aproximadamente Dó 4 ) necessita de 0,07 segundos
384 cps (aproximadamente Sol4) necessita de 0,04 segundos
512 cps (aproximadamente Dó 6) necessita de 0,04 segundos

Em uma velocidade j = MM 60 = 1 segundo, certos valores rítmicos têm as


seguintes durações:

valor duração M

~ tC0,125 segundos) 480 (8 X 60)

~7
~3-'
~ (0,0833 segundos) 720 (12 X 60)

~ {6 (0,0625 segundos) 960 (16 X 60)

~~ ~3-'
ti (0,0414 segundos) 1440 (24 X 60)

Seguindo este princípio, nessa velocidade, algumas alturas anotadas em


valores rítmicos pequenos serão escutadas como ataques sem altura definida e
outras, como alturas definidas:

altura duração necessária valor da nota duração percebida como

128 cps
0,09 segundos ~ 0,125 segundos altura
(aprox. Dó 3)
~7
~3-'
0,0833 segundos estalo

~ 0,0625 segundos estalo

0,07 segundos ~ 0,125 segundos altura


256 cps
(aprox. Dó 4)
~
~3-'
0,0833 segundos altura

~ 0,0625 segundos estalo

320 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Estas não são de durações tão curtas a ponto de estarem fora
do das musicais. Em certos casos, dependendo da escolha do
tempo, algumas notas podem ser escutadas somente corno estalos sem altura
perceptível. Obviamente, tempos imprecisos na execução irão produzir, de vez
em quando, resultado contrário às intenções dos compositores. Um caso específi-
co é a "cena do assassinato" - ato cena II - da ópera Wozzeck de Alban Berg, na
14
gravação de Karl Boehm. Dr. Boehm conduz o clímax desta cena (que inicia no
compasso 101) em J = 76. Nessa velocidade, a~ dura 0,099 segundos; ,portanto,
as freqüências menores que 128 cps se tornam quase imperceptíveis. Quando Dr.
Boehm realiza o accelerando indicado, a produção destas freqüências inferiores
torna-se impossível. Ao invés de J = 76, o compositor especificou uma velocidade
de J = 50! No andamento especificado pelo compositor, mesmo com o accelerando
todas as alturas podem ser claramente produzidas.
Juntos, o pensamento musical e científico aprofundam a experiência hu-
mana do tempo e do som de maneiras distintas, porém inseparáveis. A psicofísi-
ca fornece informações importantes tanto sobre percepção das durações quanto
sobre as formas de interação entre o tempo e o som. A maneira como trabalha o
músico criativo - de forma intuitiva, porém testando constantemente suas cren-
ças através de verificação de suas conseqüências - resultou na exploração musical
das possibilidades temporais. Essas experiências estão sendo verificadas nova-
mente, agora de maneira científica. Esta reavaliação fornecerá, indubitavelmen-
te, novas idéias sobre o que já foi atingido musicalmente. Além disso, surgirão
desta reavaliação novas possibilidades em relação ao meio sonoro-temporal.
Levando em consideração esses conhecimentos psicológicos no estudo da
percepção temporal, retornaremos à investigação do tempo musical. Iniciaremos
este estudo a partir de outra fonte do ritmo medieval europeu - o canto grego-
riano - e prosseguiremos em direção às explorações contemporâneas do tempo.

EQUILÍBRIO DIMENSIONAL: CANTO GREGORIANO - VENI


CREATOR SPIRITUS (EXEMPLO 2.14)

O canto gregorÍano medieval é um dos mais antigos e significativos reper-


tórios da música européia. Embora o canto gregoriano tenha surgido no início da
Idade Média e apresente ligações com a música grega e judaica antiga, as versões

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 321


em notação musical que possuímos datam, em sua maioria, da Alta Idade Média.
O princípio básico dessa notação do canto é que a duração de cada nota é equivalen-
te, com duas importantes exceções:

1) um ponto dobra a duração da nota;


2) duas (ou mais) notas consecutivas da mesma altura sem uma mu-
dança de sílaba são unidas, duplicando (ou aumentando ainda
mais), portanto, a duração.

Controvérsias acadêmicas15 rodeiam a natureza rítmica do canto do início da Ida-


de Média:

- será que este canto utilizava uma maior variedade de valores


rítmicos?
- eram utilizadas divisões de compasso?
- a notação medieval tardia representa com precisão o canto do início
da Idade Média?

No meio dessa controvérsia, foi esquecido o posicionamento rítmico claro


e indiscutível dos compositores do canto e, de fato, até mesmo o reconhecimento
da existência de uma organização rítmica flexível e fascinante. Não somente a
controvérsia acadêmica impediu esse reconhecimento, mas também a persisten-
te definição do ritmo levando em conta somente seus níveis inferiores: compas-
sos, tempos e suas subdivisões. A ausência de subdivisão de compassos e tempos,
no ritmo do canto (pelo menos na notação do período medieval tardio) torna seu
estudo incompreensível em relação a estes aspectos. Conseqüentemente, o canto
tem permanecido quase totalmente fora do campo da discussão rítmica.
Guida d'Arezzo, um dos teóricos mais bem informados do período do canto
gregoriano, definiu a composição melódica quase inteiramente em termos rítmi-
cos. Sua concepção do ritmo englobava vários níveis superiores: agrupamentos de
notas em sílabas, módulos e frases. A repetição e a variação proporcional destes
agrupamentos constituem -se nos princípios fundamentais da estrutura rítmica:

- na métrica poética, as letras, sílabas, palavras, pés e versos são ele-


mentos distintos, e uma organização similar ocorre na música - o
elemento primário é constituído pelas alturas. Então, uma, duas ou
três delas formam uma sílaba (musical). Uma ou duas sílabas cons-
tituem um módulo, ou seja, parte de uma sentença musical. Por úl-
timo, um ou diversos módulos formam uma frase, que termina num
ponto conveniente para a respiração;

322 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


ser semelhantes e equilibrados, tanto
nn-u-.v·a

sons ou pela proporção de suas durações. Exemplos:


módulos iguais equilibram-se com módulos iguais ou, em outros ca-
sos, módulos desiguais em concordância mútua em uma proporção
3:2 ou 4:3, de fato, a música como arte sempre favorece a variação de
padrões musicais, porém sempre respeitando a proporcionalidade;
- as frases devem ter a mesma duração. Assim como os poetas líri-
cos uniram pés variados, também o compositor pode usar.módulos
variados na proporção devida. A variação é, portanto, proporcional
quando módulos e frases, moderadamente variados entre si, conti-
nuam a se equilibrar através de alguma forma de semelhança. Os
módulos substituem os pés, as frases e os versos. Os módulos podem
se apresentar como dactílicos, espondaicos ou iâmbicos e as frases
podem apresentar quatro, cinco ou seis pés. 16

Quais são as frases de Veni creator spiritus? De que maneira cada uma é defmida pelo
conteúdo musical e pela notação? Quais são seus módulos? Como esses se relacionam
com a evolução do espaço e da linguagem do canto? Qual é a função da pausa? Como o
Amen se relaciona ritmicamente com o resto do canto? Por que esta seção é necessária
para a música?

Os Exemplos 3.11 e 3.12 explicitam os diferentes níveis de estrutura rítmi-


ca do Veni creator spiritus:

frases
- duas frases, de vinte e dois e vinte e seis J\
respectivamente;
- cada frase assume metade da movimentação espacial-lingüística da
peça e conduz a um objetivo estrutural (Sol para Ré e Ré para Sol) - o
que Guido chama de "um ponto conveniente para a respiração";
- na primeira frase, a presença de uma pausa e o objetivo espacial-
-lingüístico (a nota Ré) indicam claramente que a frase termina nes-
te ponto;
- embora a segunda frase seja ligeiramente mais longa do que a pri-
meira, seu papel na estrutura espacial e lingüística é o de equalizar
e equilibrar (a variação é proporcional quando os módulos e frases,
moderadamente variados entre si, continuam a se equilibrar através
de alguma forma de semelhança).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 323


..
módulos amplos
- cada frase é subdividida exatamente ao meio, produzindo quatro
módulos amplos e equilibrados (11 )> + 11 )>) e (13} + 13 }). (Muitas
execuções acrescentam pausas no final do primeiro e do terceiro mó-
dulos. Essas pausas distorcem o equilíbrio de cada frase e destroem
a continuidade das movimentações Sol-Ré e Ré-Sol. Além disso, tais
pausas são contrárias às especificações da notação).

módulos breves
- cada estágio da movimentação linear ocorre em um módulo breve
(veja o Exemplo 2.12). Os módulos breves são caracterizados por
uma duração de sete} (como nas bordaduras sobre Sol e Ré na pri-
meira frase), embora em alguns casos sejam contraídos ou amplia-
dos em uma};
- na segunda frase, cada nota da movimentação descendente (Ré-Dó-
-Si-Lá-Sol) tem a duração de um módulo, ou seja, sete} (ou suava-
riante condensada, seis}); cada módulo inicia com uma ênfase em
sua nota linear específica: Ré-Mi, Dó-Ré, Si-Dó, Lá-Si;
- os módulos de sete } do Amen são necessários para completar esta
progressão em direção à nota Sol: ao iniciar pelas notas Sol-Lá e ela-
borar a nota Sol por sete }, a seqüência dos módulos breves em dire-
ção à nota final é completada (a elaboração da nota Sol durante sete
)l é obtida pelo módulo inicial, quando o hino repete outra estrofe
do texto).

As frases são, portanto, definidas por objetivos espaciais e lingüísticos pri-


mários. A atividade interior estabelece a duração dos módulos breves, isto é, sete
} que se repetem em cada estágio da movimentação linear. Mesmo a duração mais
longa da segunda frase é derivada da manutenção da duração modular em maior
número de graus melódicos. O Amen final repete tanto a célula lingüística que
circunda a nota Sol quanto sua duração modular de sete }.
A estrutura dos níveis rítmicos é extraordinariamente lógica e mesmo as-
sim flexível. Esta estrutura permite variantes de durações modulares e, ainda
mais importante, maior liberdade dentro dos módulos. O Exemplo 3.13 mostra
como o texto está distribuído no interior dos módulos. Por vezes, uma sílaba é
reiterada por uma única nota e, outras vezes, por grupos melismáticos de duas
ou três notas. Existe uma notável diversidade interior; em especial, a prolifera-
ção de sílabas melismáticas, compostas por duas ou três notas durante o canto,
o que confere maior fluidez ao ritmo da peça. Esta liberdade rítmica é atingida

324 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


atividade de nos níveis inferiores e apesar da
111 ,JUU."Á" nos níveis superiores. A estrutura rítmica dos módulos é ordenada e

equilibrada; entretanto, desenvolve uma variedade de detalhes internos. Em úl-


tima instância, sua ordem pode ser percebida na correspondência de seu módulo
de sete )l: o módulo ocorre sete vezes formando uma estrofe, o padrão inteiro é
repetido por sete estrofes e o canto finaliza com sete )l no Amen.

- Gráfico das frases e módulos em Veni creator spiritus

frases

módulos breves

Sol

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 325


Exen:1pl.o 3. 12 - Relação das frases e módulos na movimentação do Veni creator spiritus

líxen:1pJ.o 3.13 - Número de notas por sílaba em cada um dos sete módulos e no Amen

módulo
breve

326 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


E

Ao longo da história da música, uma grande variedade de denominações


tem sido utilizada para diferenciar agrupamentos tanto nos níveis superiores
quanto nos inferiores:
motivo sentença conseqüente
célula período parte
segmento cláusula seção
frase antecedente inciso*

Esta enorme quantidade de termos não resulta simplesmente de alguma confu-


são. Eles refletem diversas possibilidades de criação de hierarquias estruturais a
partir de pequenos elementos construtores, assim como, no mundo físico, as par-
tículas fundamentais se unem para criar estruturas moleculares relativamente
vastas e da mesma maneira como as células individuais se vinculam para formar
organismos vivos de maior ou menor complexidade.
A confusão é, entretanto, irrestrita. O que para um musicista consiste em
uma frase, para outro se trata de uma sentença, de um período ou até mesmo de
uma parte. Com muita freqüência, não fica clara qual a diferença resultante da
escolha de uma terminologia específica. Este livro tenta dissipar esta confusão,
tomando por base uma distinção musical crucial, com freqüência esquecida no
labirinto da terminologia. Esta distinção, explicada em termos simples, aponta
para os seguintes fatos:

1) existem unidades rítmicas que são definidas por interrupções na ati-


vidade musical do fluxo temporal:

- as seções são as unidades mais amplas e são definidas pelas


interrupções mais longas e nítidas;
- as frases são as unidades menores e são definidas por pon-
tos de respiração, pausas, ou alguma forma equivalente de
interrupção.

2) os módulos, por outro lado, não representam interrupções distintas


no fluxo temporal, pois ocorrem no interior deste fluxo. De menor
duração "do que as seções e frases, os módulos podem assumir diver-
sos tamanhos.

* N. T. Este termo não consta no original. Entretanto, nós o incluímos aqui por ser muito utilizado no Brasil.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 327


De acordo com esta classificação, um módulo é qualquer característica temporal
identificável que se repete. A semelhança entre os módulos pode se basear nas se-
guintes similaridades, entre outras:
- uma duração total (neste caso, o·);

de ataques

- um número específico de ataques (neste caso, 2);

módulo diminuição dimim.:ilções aumentação

- a razão entre as durações (neste caso, 1:2);

módulo razão 1:2 razão 1:2 Invertido 1:2 com deslocamento


métrico

De fato, os tipos possíveis de semelhança são enormemente variados, e novas


possibilidades ainda estão sendo descobertas.
Além disso, um módulo pode ser simultâneo com, ou ser parte de outro
módulo. O compasso cinco do Amen de Machaut oferece um exemplo interes-
sante. Esse compasso apresenta, em seu ritmo total e nas vozes individuais, seis
módulos rítmicos. Cada um destes módulos se repete em outros pontos da peça e
desempenha, como descrevemos anteriormente, uma função específica no fluxo
de atividade:
1) o· módulo da duração do compasso (distância entre os acentos);
2) J 0 módulo de duas notas na razão 1:2 (baixo II); equivale ao mó-
dulo 1 em sua duração total, e seu início também é marcado por um
acento;
3) j J diminuição (pela metade) do módulo 2 (tenor II);

328 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


j j reverso 3, os e
~·~,~,..no módulo 1 (tenor II);
j j j módulo do pulso do compasso, equivale ao módulo 1
em sua duração (tenor I e baixo I);
6) Jj j JJj a superposição dos outros módulos este "módulo
de ação"; ocorre neste compasso como o ritmo total e equivale ao
módulo 1 em duração.

conter todos esses módulos, que são cruciais de diversas maneiras para
a atividade rítmica da peça, este compasso também funciona como parte do mó-
amplo ~.· Através desta superposição de módulos, um evento rítmico muito
rico - que apresenta diversas associações rítmicas no Amen - foi formado em
um único compasso. Como os módulos são superpostos e vinculados, não ocorre
interrupção em seu fluxo. Os módulos se desdobram dentro do fluxo temporal.
As frases, assim como os módulos, compreendem durações que podem ser
semelhantes. A diferença entre uma frase e um módulo reside na maneira
separam ou articulam o fluxo musical. Uma frase conclui com algum tipo
de interrupção, pausa ou ponto de respiração. Tais interrupções não são meramente
rítmicas. O final de uma frase também é responsável pela coordenação entre os
objetivos espaciais e lingüísticos. Uma frase completa um estágio de uma movimen-
tação. O início de nova frase marca o início de nova evolução do design e/ou da
linguagem, assim como de atividade temporal.
Existem outras maneiras de criar a sensação de interrupção no fluxo tem-
poral, ou seja, existem diversas maneiras de terminar uma frase:

- parando, pelo uso de valores rítmicos mais longos e/ou de pausas;


- repetindo uma movimentação temporal, espacial e lingüística de
amplo alcance;
- iniciando uma atividade significativamente diferente.

Considerando mais minuciosamente estas possibilidades:

- a interrupção da atividade é a estratégia mais óbvia e freqüente na


definição de um final de frase. Todos os finais de frase de Veni creator
spiritus e de Plus dure de Machaut são formados dessa maneira. Na
música polifônica, a interrupção está por vezes parcialmente escon-
dida pela interrupção de todas as vozes exceto uma (veja o Exemplo
1.26 - a interrupção da textura total por quase dois compassos de-
fine o final de frase nos compassos 8-9, a voz que continua une as

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 329


.........____________ ............
~~~-

duas frases. O final da frase ocorre quando a movimentação espa-


cial-lingüística em direção a I, Mib, é alcançada);
- através das repetições do padrão isorrítmico total, são definidas três
frases distintas no Amen de Machaut. A sensação de interrupção é
causada pelo efeito de repetição contínua.

Este é um processo definido pela coincidência entre final e início por


sobre um mesmo ponto - uma técnica conhecida como elisão. A repe-
tição de padrões temporais de longo alcance não precisa ser necessa-
riamente tão exata como no Amen;
- no Exemplo 3.14, uma nova onda de atividade no compasso 17 mar-
ca o início de uma nova frase. O compasso 16 poderia ter sido o últi-
mo compasso de uma frase de 8 compassos, caso o fluxo tivesse sido
interrompido (como ocorreu na primeira apresentação da mesma
música, compassos 1-8 do movimento - ausentes nesse exemplo).
Entretanto, o final da frase elide com o início da próxima frase (com-
passos 16-27), que é dominada pela inédita atividade em )1. Esta
nova atividade tem o efeito de interromper o percurso da atividade
anterior.

Os finais de seções não são diferentes em gênero dos finais de frases. En-
tretanto, estas finalizações são mais fortes, extensas e nitidamente definidas.
Espaço, linguagem, cor e ritmo unem-se para delinear a conclusão de uma seção
e o início de outra. Com freqüência, duas técnicas de interrupção do fluxo (por
exemplo, a interrupção de uma movimentação e o início de uma nova atividade)
são utilizadas em conjunto.

Exemplo 3.14 - Ludwig van Beethoven: Sonata para violoncelo e piano, op. 69, terceiro mo-
vimento, compassos 9-27

330 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 331
E SEÇÕES

Os finais de frases e seções são responsáveis pela "respiração" da música.


Quando esta característica não é observada, tanto na composição quanto na exe-
cução, a "respiração" pode ser destruída de duas maneiras:

- quando o ritmo é entrecortado por inúmeras frases curtas e


engasgadas;
- quando o ritmo corre continuamente em uma torrente ininterrupta
e inarticulada.

Este problema não é de maneira alguma novo. No século XI, Guido d'Arezzo de-
monstrava já estar ciente disso:

A respeito destes elementos musicais, pode-se perceber que: o módulo, em sua totalida-
de, deve ser comprimido, tanto em sua notação quanto em sua execução e a sílaba mais
ainda. O sinal para estas divisões é o prolongamento do último som. No último som de
uma sílaba, a prolongação é insignificante; no final do módulo, ela é maior e, no final de
uma frase, ocorre com a maior intensidade. 17

O grau de separação (para Guido, isso ocorria por uma nota prolongada) correspon-
de ao nível rítmico: quanto mais imediato for o nível rítmico, menor a separação.

332 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


o sem experiência vezes,
u~•.ic~ revela uma visão de curto alcance dos ele-
mentos peça. é interrompido ao final de módulos ao invés
frases, afetando o equilíbrio de todo o fluxo espacial e temporal. As pausas, em
especial, função de interromper o fluxo nos finais de frase e seções
crucial, são indiscriminadamente alongadas ou subtraídas sem que seja le-
em conta sua função. É exatamente isso que acontece (como observamos
anteriormente) em muitas execuções do Veni creator spiritus. O mesmo, problema
ocorre também na interpretação de Leonard Bernstein da Terceira Sinfonia de
Mahler: 18 no quarto movimento, compassos 17 e 90-93, pausas de grande impor-
LcU•'-'ª nos finais das frases são encurtadas. De fato, nessa execução, os espaços

compostos no fluxo deste movimento para definir suas partes, são dis-
torcidos quase sistematicamente.
As notas longas, que muitas vezes desempenham função análoga na in-
terrupção do fluxo, são também freqüentemente distorcidas (novamente, veja
a execução de Bernstein da Terceira Sinfonia de Mahler). Na canção Wehmut de
Schubert (Exemplo 2.47), Elisabeth Schwarzkopf e Edwin Fisher19 executam os
últimos quinze compassos em cinqüenta e oito segundos, enquanto os primei-
ros quinze compassos ocorreram em oitenta segundos. As duas frases de quinze
compassos devem se equilibrar, porém a última frase é repleta de notas longas
que são erroneamente encurtadas. Será que esta distorção ocorre devido à falha
do intérprete em compreender a expressividade desta passagem - uma passa-
gem na qual notas longas e silêncios são dispostos durante um âmbito temporal
previamente mais ativo, expressando, portanto, um sentido de vazio e desinte-
gração? Em sua execução de Syrinx de Debussy, o flautista Jean-Pierre Rampal2°
mostra a mesma incompreensão - neste caso, em relação à nota aguda Dó~ longa-
mente sustentada nos compassos 6-7 (cuja importância discutimos na subseção
"Transformação lingüística" do Capítulo 2).
Como podem tais distorções ser evitadas? Três hábitos de pensamento, de
audição e de sensibilidade devem ser desenvolvidos para assegurar a projeção
clara do fluxo temporal:

1) a função das pausas e das notas longas devem ser compreendidas;


2) hesitações não especificadas não devem ocorrer no início, meio e final
dos módulos;
3) cada agrupamento de longo alcance - os módulos mais amplos, as
frases e as seções - devem ser sentidos direcionando-se ao seu ob-
jetivo definitivo, seja ele uma nota longa, seja uma pausa.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 333


A atividade conduzida pelos módulos deve fluir sem interferências indevidas. A
hesitação sobre o módulo inicial da Sonata para piano op. 31, n. 3 21 de Beethoven
na execução de Artur Rubenstein (ou na de Wilhem Backhaus) só traz resultados
negativos, pois impossibilita o ritardando e a fermata especificados por Beeetho-
ven nos próximos compassos (3-6). No momento do ritardando indicado, os dois
intérpretes aceleram o tempo, pois não podem diminuir ainda mais do que já
o haviam feito. Algumas vezes os intérpretes acreditam que estão "trazendo à
tona" uma idéia ou demonstrando a expressividade de uma passagem através de
tais hesitações. Freqüentemente, parecem desconhecer a expressividade compos-
ta no ff-uxo rítmico, que é comprometida no processo. O caso referido causa espe-
cial perplexidade. A idéia de relutância nas execuções de Rubenstein e Backhaus
é evidenciada por Beethoven em diversas repetições durante a composição. Qual-
quer um que não possa escutar esta idéia sendo ressaltada pela música de Beetho-
ven não será auxiliado pela interpretação de Rubenstein nem pela de Backhaus.
O custo deste procedimento é a subordinação de cada gesto deste movimento
(mesmo os mais importantes) a este simples detalhe e a total desorientação do
fluxo rítmico.
As características de pulsação e respiração do fluxo temporal são o coração
da obra musical. Um intérprete que atingiu um nível de compreensão preciso e
profundo desse fluxo em determinada obra pode comunicá-lo melhor através da
definição nítida de seus pontos importantes: os inícios e finais de seus membros,
tais como as seções e as frases. O cultivo efetivo dos três hábitos que sugerimos
anteriormente ajudará o intérprete a eliminar as distorções indesejadas que são
tão comuns e geralmente bastante destrutivas para as formações rítmicas.
Nossa visão dos níveis rítmicos visa favorecer duas virtudes que não são
habitualmente encontradas na execução musical:

1) a articulação clara do movimento e das interrupções do fluxo rítmi-


co de uma obra, dando especial ênfase aos pontos onde as interrup-
ções na atividade definem os níveis rítmicos mais elevados;
2) a definição dos níveis rítmicos, de maneira a auxiliar a compreensão
de obras em uma variedade de estilos, durante toda a história da
música.

Para demonstrar a segunda virtude, devemos prosseguir adiante com nossa in-
vestigação rítmica em obras que ainda não discutimos sobre esta ótica.

334 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Como as atividades de velocidades variadas estão superpostas? Podemos detectar pa-
drões de aumento e de diminuição de atividade? Como esta organização se compara com
a do Amen de Machaut?

Machaut relevou algumas das possibilidades de combinações de diferen-


tes velocidades de atividade, tanto em sucessão quanto por superposição. Essas
idéias férteis foram exploradas e ampliadas por sucessivas gerações de composi-
tores. No Capítulo 1, verificamos que toda a trama do "Benedictus" de Josquin é
criada por duas vozes, as quais apresentam a mesma linha, e que a voz inferior se
desenrola no dobro da velocidade da voz superior. Agora, procuraremos mais ma-
nifestações da razão 2:1, pois esta gera tanto as dimensões de cada seção quanto
as velocidades dos detalhes da atividade rítmica.
Como a voz inferior apresenta a linha canônica no dobro da velocidade da
voz superior, esta apresentação dura metade do tempo da voz superior. O final
da apresentação da linha mais rápida divide cada uma das três seções em duas
frases, delimitadas pelos seus pontos médios (compassos 9, 24 e 40). No ponto
médio de cada seção, o fluxo em ambas as vozes sofre uma interrupção antes de
retornar ao seu curso. No gráfico analítico do ritmo, apresentado no Exemplo
3.15, este compasso central é demarcado por linhas grossas. Este compasso assi-
nala a desaceleração marcante no ritmo total de cada seção, definindo o final de
uma frase e o início de outra. As duas frases englobam simetricamente, em cada
seção, o compasso mediano que pertence a ambas as frases. Conseqüentemente,
2:1 (em cada seção) é a razão dimensional da seção para a frase.
O conteúdo modular e a atividade interior das duas frases que compõem
cada seção é sempre diferente, porém de maneira consistente (o Exemplo 3.16a
mostra as várias formas do módulo). O módulo básico, m1, é o módulo usado pe-
las vozes superior e inferior de cada seção. Além disso, durante toda a peça, a voz
inferior utilizam~ e a superior m 2 • O módulo, portanto, ocorre em três velocida-
des - em sua forma básica (m1 ), pela metade (m~) e dobrado (m 2 ). As razões são
m 1 : m~ :: 2 : 1 ; e m 2 : m 1 :: 2 : 1. Portanto, embora o relacionamento das vozes
canônicas seja 2:1, a a;tividade modular efetiva dobra esta relação. A aumentação e
a diminuição do módulo geram toda a atividade rítmica da peça, reproduzindo as carac-
terísticas rítmicas do módulo em três freqüências distintas de velocidade.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 335


Observaremos agora a distribuição do módulo no interior das frases. voz
inferior da primeira frase de cada seção os básicos (m1 e
m~). Este material, duas vezes mais lento (m e então m ), ocupa canonicamente
2 1

a voz superior, durante toda a seção de duas frases:

seção I

baixo formasm 2 formas m 1


voz superior

baixo formas m 1 e formas m~ (variantes de m 1 em~)


voz inferior

Na combinação das vozes, a progressão de módulos lentos para módulos


mais rápidos (começando com m + m 1 e procedendo para m 1 + m~) forma cada
2

seção. Após a pausa no ponto médio, a segunda frase de cada seção sempre é for-
mada pelas formas mais rápidas do módulo (m1 em~).
Cada uma das três seções emprega este mesmo acréscimo modular de ativi-
dade em frases simetricamente equilibradas. Cada seção apresenta dez módulos
neste padrão de distribuição. As seções e suas frases revelam, portanto, profun-
das similaridades subjacentes. É interessante comparar esta organização de ati-
vidade rítmica com a do Amen de Machaut. As seções, frases e módulos de Jos-
quin são todas definidas com certa elasticidade. Como acabamos de constatar,
cada seção apresenta frases simétricas, conteúdo modular e incremento de atividade
similares; contudo, cada uma dessas seções tem duração total diferente (em pro-
porções 4:3 e 2:3, conforme demonstrado no Exemplo 3.16b). Em cada seção, o
módulo básico m 1 é levemente estendido, encurtado ou variado de outra forma,
como nos módulos de aumentação e diminuição. De forma análoga, cada frase
oferece uma combinação ligeiramente diferente dos módulos do plano da peça.
Embora a formação subjacente - as dimensões interiores e o recorrente acrésci-
mo de atividade - seja tão consistente e clara quanto na música de Machaut, é
possível perceber, na música de Josquin, maiores plasticidade e possibilidade de
variação em cada elemento.

336 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


e ritmo do "Benedictusn de Josquin

1--

i i 1

r
1
------ - - - - - - - - - - - - - - !l - - - - - - - - -

Ir r r rr 1
J

! f~
f ..
: f~
1,,

!J r r Ir r J í r

r-
contralto <>' <>'
1 1 1º
e
contralto

1 rr 1 J
1
-3 - - --

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 337


Ir

soprano

soprano
1
r· 'r i i r i e~
i r
m' m' J

r Ir i 1J r r ~ 1

li
- - - -------
!!
- - ----- - - -

'4.,

f~ f?

Ir r r i ll r i rí rr 1

i
Q o~ d o
1
e i r' Ir !' 1
rr; r 1
i r (!'
1
1 O. .......... _l_P............ '..o li

I~ J r 1i r Ir r r ~ Ir r r li
19
-- - - -

338 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


(
a) e dlminuição

comp. 1-3
::9tiE:~==,c=:~==t~=~=3 o módulo é definido rltmkamentc,
··---··--+----____,______... ~-----~ linear e interva!icamente

comp. 1-5

comp. 3-5
variantes de m 1 :
módulos são
variados através

comp. 18-21

b) das frases

seção I = 8 compassos l compasso 8 compassos


li = 6 compassos l compasso 6 compassos
seção IH 9 compassos 1 compasso 9 compassos
8:6::4·:3 6 9: 2.3

DIMENSÕES E ATIVIDADE (II): J. S. BACH - SUÍTE FRANCESA N.


4 EM Mih MAIOR, "ALLEMANDE" (EXEMPLO 1.8)

Quantos níveis de.pulsação existem? Dada a uniformidade do ritmo total, como a varie-
dade do ritmo é obtida? Quais são os módulos que criam esta variedade?

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 339


Assim como no canto gregoriano Veni creator spiritus, também na
de" de o ritmo total consiste em um regular
fluem em duas correntes contínuas de dez compassos cada. As pausas
na atividade contínua, nos compassos 10 e 20, demarcam as duas seções de
compassos da peça. A regularidade e a igualdade, no nível
encontram correspondência no nível mais elevado:

- no fluxo regular de do ritmo


- na duração simétrica de dez compassos das seções.

Será que o resultado musical se torna ritmicamente previsível e monótono? Exis-


tem acréscimo e decréscimo na atividade rítmica ou variedade no fluxo temporal?

MÓDULOS E PULSAÇÕES

Na "Allemande" de Bach, a movimentação regular de é superposta sobre


os módulos da voz inferior, cuja pulsação apresenta três níveis distintos e cres-
centes de velocidade, conforme demonstrado no Exemplo 3.17.

Exe~mpfo 3.17

para oroidu;dr
uma pu1sac:u1

O incremento de atividade do módulo de j para j e j) dobra a velocidade da pul-


sação com cada novo módulo. Portanto, o módulo A dos compassos 6-7 é idêntico
ao do início, porém quatro vezes mais rápido.

340 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Para efeito o 3.18 uma da
22
seção pelo mítico e afamado G. S. Essa re-
composição preserva muito conteúdo linear, harmônico e modular da versão
""'"·""u.,, porém os detalhes responsáveis variedade e pela evolução
Na versão de Bauch,* o incremento na atividade foi quase com-
pletamente eliminado (veja o asterisco no compasso 3).
Outra forma de aceleração está ausente na versão de Bauch: o aumento de
atividade dentro dos módulos de contínuas. A primeira apresentação destes
módulos em Bach (e Bauch) separa os dois módulos menores, isto é, a e b por uma
~. Entretanto, Bach quase imediatamente preenche (no compasso 2) a pausa de
maneira que a ocorrência de eventos modulares seja aumentada e acelerada. No
compasso 2, por exemplo, a nota vizinha (N), uma característica importante do
J
mód~lo a, ocorre três vezes em cada duração ao invés de uma, como ocorrera ini-
J
cialmente (Exemplo 3.19). Dentro de cada tempo existe aumento significativo
de conteúdo - uma multiplicação das características modulares que não ocorre
na versão de Bauch. Nessa versão, a forma original do módulo é rigorosamente
preservada.

* N. T. Trata-se de um trocadilho entre os nomes Bach e Bauch, que neste contexto significa pançudo
ou barrigudo, conotando um compositor sofrível.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 341


Por trás de sua superfície de igualdade e regularidade, a "Allemande" de
Bach, assim como o Amen de Machaut e o "Benedictus" de Josquin, apresenta
superposição de atividades de várias velocidades. Durante sua primeira seção, a
velocidade dos módulos menos ativos (módulo A) acelera e a densidade dos de-
talhes modulares aumenta. Todos os módulos que constituem a seção são trans-
formados com o intuito de produzir esta intensificação de atividade. Na versão
de Bauch, esta intensificação não ocorre. Ao invés do módulo ser transformado
de maneira a produzir aceleração, as formas originais do módulo são mantidas
tanto quanto possível, produzindo uniformidade e estagnação. O aumento pau-
latino de atividade na música de Bach produz um impulso propulsivo em direção
à pausa que termina a seção. Cada módulo amplo respira em uma pulsação mais
rápida, e é indispensável para o processo rítmico em curso. Na versão de Bauch,
este processo rítmico praticamente não existe. O final da seção meramente rati-
fica sua redundância e monotonia.

Exemplo 3.19

ao Invés de)

um;;i eu1,vo1-aça10
adicional

342 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


MÓDULOS AMPLOS

Os níveis superiores e inferiores da "Allemande" fon:{ecem uma moldura


regular de dimensões e atividades. No interior desta moldura, os níveis e veloci-
dades superpostas ocasionam eventos dinâmicos e transformadores. As mudanças
não surgem ao acaso e compartilham um objetivo comum: aumentar e acelerar a
atividade dentro da seção.
No início da "Allemande", o módulo de maior importância parece §er aquele
marcado pelas durações )1, ou seja, o a+ h do Exemplo 3.19, que é repetido ao
longo dos compassos 1-2. De fato, este breve módulo é combinado de diversas
formas e apresenta características que recorrem regularmente durante toda a
peça. Entretanto, em última instância, todos estes módulos breves se combinam
para formar os módulos amplos do Exemplo 3.17: A eknv. Estes módulos amplos
são, de fato, os módulos de maior importância, devido às funções que exercem:

- conduzem a movimentação espacial da peça (veja a subseção "Mul-


tilinearidade" até "Detalhes no interior de uma estrutura complexa"
do Capítulo 1);
- criam o aumento na atividade modular de Jpara j e J
Embora inicialmente menos aparentes do que os módulos menores, os módulos
amplos são revelados de maneira cada vez mais nítida como os principais res-
ponsáveis pela movimentação espacial e pela evolução de atividade. Esses são os
módulos que o intérprete deve comunicar mais enfaticamente para expressar o
sentido de contorno, ação e crescimento da peça.

DIMENSÕES E ATIVIDADE (III): A VASTA ABRANGÊNCIA


DA CHACONNE E DAS VARIAÇÕES GOLDBERG DE BACH

A CHACONNE PARA VIOLINO SOLO, DA PARTITA N. 2 EM RÉ MENOR

Até o momento, examinamos somente composições com durações entre um


e três minutos. Comp'osições com durações muito maiores, como a chaconne para
violino solo e as Variações Goldberg, ambas de J. S. Bach, que duram, respectiva-
mente, 15 minutos e uma hora, podem organizar suas dimensões e atividades de

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 343


forma similar. Em tais obras, a capacidade organizacional
prete e do ouvinte é ampliada em expansões temporais 'ª'un.u mais abrangentes.

3.20

Quadro A

número de frases de compassos

tema

seção - menor

acel.

acel.

acel.

acel.

Além da simetria das seções I e II, existe outro nível de dimensões proporcionais. Na seção II,
a menor parte se relaciona com a parte maior com uma razão 12:19; de maneira análoga, a
parte maior se relaciona com as seções com uma razão de 19:31. Essa relação proporcional
é conhecida historicamente como "seção áurea"23 e pode ser expressa numericamente como
aproximadamente 0,618.

344 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


as-

em conteúdo:

- ambas as frases abrangem quatro compassos;


- ambas da mesma forma;
- ambas apresentam o mesmo módulo rítmico que se re-
--~--

pete três vezes.

As características espaciais, lingüísticas e rítmicas das duas frases são a base das
variações subseqüentes.
Após a apresentação temática das duas frases iniciais, sucedem-se e
uma frases de variação, cada uma com quatro compassos (31 x 4 = 124 compas-
sos), que conduzem ao momento da mudança de Ré menor para Ré maior. Após
essa mudança, que subdivide simetricamente as variações em duas seções, mais
31 variações finalizam a obra. As duas seções são simétricas, conforme demons-
trado no Quadro A, que também detalha as dimensões interiores das seções.
A primeira seção é definida tanto pela linguagem da tonalidade prevalen-
te Ré menor quanto pelo crescimento de sua atividade rítmica. Essa atividade
forma uma movimentação rítmica unificada, que se caracteriza pelo aumento
contínuo de atividade durante vinte e oito frases (no final da primeira seção, esta
aceleração é brevemente interrompida por três frases, que retornam à velocidade
original de atividade para o início da segunda seção). Este aumento de ativida-
de, que consiste no crescimento regular de densidade rítmica, é demonstrado
graficamente no Exemplo 3.21. Constata-se não somente o aumento constante
na atividade do tema até a frase 28, mas também que a média de freqüência de
atividade se torna cada vez mais rápida. Com isso, cada frase requer mais tempo
e ênfase do que sua precedente:

- duas frases para o tema ( J )l J);


- quatro frases para o padrão , que dobra a velocidade de ativi-
dade do tema;
- dez frases para a próxima combinação de velocidades de atividade
(Ji e J1 );
- quatorze frases para as velocidades finais e mais rápidas de ativida-
de ( J1 e'~).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 345


Exemplo 3.21- Crescimento e diminuição de atividade no tema e na seção Ida chaconne
de Bach

O crescimento da atividade é avassalador; na primeira seção da chaconne, o com-


positor atinge uma das mais fascinantes evoluções de atividade rítmica na músi-
ca européia.
Na segunda seção, simétrica em relação à primeira, Bach explora outras
maneiras de aumentar a freqüência de atividade. Essa seção é formada por qua-
tro subseções, cada qual com uma atividade mais acelerada (veja o Quadro A)
(assim como na primeira seção, a segunda seção termina com uma breve desace-
leração). O aumento da atividade, na segunda seção, é atingido através de meios
mais sofisticados. A freqüência de mudança se acelera, assim como a velocidade
da atividade. Enquanto cada subseção da seção I mantém uma pulsação relati-
vamente constante, apresentando um único pulso ou combinação de pulsos, em
cada subseção da seção II a atividade progride rapidamente, em aceleração cons-
tante. Além disso, as próprias subseções tornam-se mais e mais breves: onze,
oito, cinco e cinco frases. Cada aceleração de atividade sucessiva ocorre em um
menor número de frases; conseqüentemente, as acelerações são cada vez mais
rapidamente realizadas. Portanto, embora as pulsações de atividade na seção II
r3~

sejam praticamente idênticas àquelas da seção I (somente a .h das frases 28-29 é


nova), o ordenamento da atividade forma uma poderosa seqüência de aceleração
de natureza absolutamente inédita.
Na chaconne, portanto, os eventos do fluxo temporal são ordenados de ma-
neira a formar estas duas significativas acelerações na trajetória simétrica, as

346 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


quais, conjuntamente, preenche'm de """-"·cu muito convincente os quinze mi-
nutos de tempo musical.

VARIAÇÕES

Esta obra para cravo é um dos mais ambiciosos ciclos de variações da músi-
ca européia. Estas variações são construídas a partir de uma ária de trinta e dois
compassos (Exemplo 3.22). Muitos comentaristas têm observado que a base para
a variação não é a linha melódica da ária, mas sim sua linha de baixo, sua pro-
gressão harmônica e sua estrutura rítmica. 24 Neste momento, vamos nos deter
no estudo de sua estrutura rítmica. Uma apreciação detalhada das características
rítmicas da obra seria assunto para um livro inteiro. Entretanto, esboçar uma
resposta concisa a certas questões pode esclarecer não somente o delineamento
rítmico da obra, mas também a organização de dimensões musicais e de ativida-
de em uma escala de tempo muito vasta.

Como uma breve ária dá origem a trinta variações que, por sua vez, parecem consistir
em peças individuais, ricamente variadas quanto aos andamentos, pulsações, contornos
e caráter? Podemos descobrir nesta peça princípios que permitem que uma hora de mú-
sica - escrita para um único instrumento, em uma única tonalidade e sobre uma única
linha de baixo repetida - se desenrole com um sentido de evolução contínua?

O tema da chaconne consiste em duas frases simétricas de quatro compassos,


enquanto a Aria das Variações Goldberg emprega uma construção similar, porém
em maior escala: trinta e dois compassos divididos simetricamente em duas seções
de dezesseis compassos que se repetem (Exemplo 3.22). Essas mesmas dimensões
são observadas em cada uma das variações (ocasionalmente, as dimensões são re-
duzidas pela metade, com seções de oito compassos). Mais marcante, entretanto, é
o fato de as trinta variações, somadas com a apresentação da ária no início e final
da obra, totalizarem trinta e duas peças. O número de peças da obra, portanto,
equivale ao número de compassos do tema e, assim como o tema, a obra é dividida
na décima sexta peça (Variação 15) em duas seções simétricas. Essa divisão simé-
trica é evidenciada pela posição da "Ouverture", que ocorre na Variação 16. Uma

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 34 7


é uma abertura e, nesse caso, abre a "''""'"'uuu.n seção O tema e
a obra inteira formam, idênticas no . "''-'" e no macrocosmos.

- J. S. Bach: Variações Goldberg, Aria

348 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Este planejamento simétrico, assim como muitas das características adicio-
nais relacionadas às atividades e dimensões da obra, é detalhado no Quadro B.
Esse quadro revela que é mais frutífero considerar a obra não como um conjunto
de variações, mas como três conjuntos de iguais proporções que se desenvolvem
simultaneamente:

conjunto I - variações de invenção e caráter

- invenções contrapontísticas semelhantes àquelas compostas em


três partes por Bach;
- peças de caráter diverso, incluindo uma abertura francesa, árias nos
modos maior e menor, uma pequena fuga e danças (uma forlana e
uma barçarolle).

conjunto II - variações de técnica e aceleração

- todas (com uma única exceção) na métrica~;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 349


-
- formadas por um par (ou mais) de módulos rítmicos que jorram em
cascata pelos dois teclados do cravo; emprego da técnica de mãos
cruzadas;
- estudos das possibilidades técnicas do executante e do instrumento,
dispostas em uma seqüência de aceleração similar à empregada na
chaconne.

conjunto III - variações canônicas

- variações que empregam formas e procedimentos contrapontísticas


canônicos: cânones e um quodlihet.

Ü SEGUNDO CONJUNTO CENTRAL DE VARIAÇÕES

Cada um dos três conjuntos de variações apresenta características rítmicas


bem pronunciadas. O conjunto central de variações (Exemplo 3.23) desempenha
um papel fundamental na evolução rítmica do ciclo completo de variações. A co-
luna central do Quadro B mostra as principais pulsações de atividade rítmica em
cada variação do segundo conjunto.
Na primeira seção de variações (Variações 5, 8, 11e14, mostradas no Exem-
plo 3.23), a unidade de atividade principal e mais rápida acelera de urna J1 para
'F e ) . Uma evolução similar acontece no âmbito da segunda seção (Variações
17, 20, 23, 26, 28 e 29). Entretanto, assim como na chaconne, durante a segunda
seção as acelerações ocorrem cada vez mais rapidamente no interior das variações
assim como entre elas, produzindo uma aceleração dramática na freqüência de
mudança da atividade rítmica (veja as Variações 20 e 23). As unidades mais rápi-
das, ·~~e ) , predominam na atividade das últimas quatro variações do conjunto
(23, 26, 28 e 29), de maneira que a rápida atividade rítmica e as rápidas mudanças
no interior dessas variações criem duas formas simultâneas na intensificação das
atividades.
Bach deixou muitas indicações sobre a unidade fundamental deste segundo
conjunto de variações:

- sua métrica comum, !; 25


- o emprego consistente dos dois teclados do cravo e da técnica de
mãos cruzadas necessária para utilizá-los;

350 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


- a existência outros de variações paralelas, especial-
mente as variações canônicas, que sempre são adjacentes a este con-
junto central.

Até onde sabemos, a unidade do segundo conjunto de variações e seu aumento


de atividade têm freqüentemente passado despercebidos. 26 Conforme observa-
mos anteriormente, o segundo conjunto é o conjunto central de todo o ciclo. Esta
afirmação é verdadeira não só porque cada uma de suas variações é a variação
central de um grupo de três (veja o Quadro B), mas também porque estas varia-
ções recebem ênfase especial à medida que a obra atinge seu ápice nas Variações
28 e 29 (a ênfase nas variações de aceleração no final produz um equilíbrio com
o caráter das variações iniciais, ou seja, Variações 1 e 2; mesmo neste detalhe, a
simetria do design é evidente). Essas variações caracterizadas pela aceleração na
atividade rítmica fornecem uma trajetória de ação temporal que se intensifica e
cresce no decorrer da obra - um núcleo estrutural ao qual as variações dos outros
dois conjuntos divergem.
Já estamos familiarizados com o princípio de aceleração na atividade da
chaconne de Bach. Este aumento de atividade assume um andamento comum no
segundo conjunto de variações, ou seja, um pulso uniforme que é subdividido
cada vez mais rapidamente pela atividade. Em um movimento contínuo como a
chaconne, essa premissa é natural (ainda que, mesmo neste caso, certos intérpre-
tes introduzam :flutuações de tempo erráticas que obscurecem a evolução rítmi-
ca). A escolha do andamento para as diferentes variações do ciclo Goldherg é, de
fato, um problema crucial de interpretação. O aumento de atividade incorporado
no segundo conjunto de variações será evidenciado somente se um único anda-
mento for mantido durante todo este conjunto de variações. Talvez Charles Ro-
sen e Wanda Landowska tenham intuído esse aspecto, pois, em suas gravações, o
tempo da maioria das variações do conjunto é quase uniforme. 27 Por exemplo, o
tempo de Rosen em oito das dez variações permanece aproximadamente j = 100.
O resultado de tal execução é o crescimento rítmico marcante durante o conjun-
to, que atinge o clímax nas variações mais rápidas e densas no final do conjunto.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 351


B

J. di.nonç: 2
5

em modo n1cnor

16

9
!l

27

:>O quod/fbet
4

ARl4

352 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


-As variações segundo conjunto das Variações Golberg

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 353


TERCEIRO CONJUNTO DE VARIAÇÕES

O terceiro conjunto de variações (Exemplo 3.24) - os cânones e o quodlibet


- tem (em contraste) sido reconhecido por muitos comentaristas. O historiador
da música Owen Jander demonstrou que cada peça desse conjunto se baseia em
uma combinação rítmica diferente de tempos e suas subdivisões em pulsações, 28
abrangendo todas as combinações possíveis de dois, três e quatro tempos e por sub-
divisões dos tempos por compasso:

tempos subdivisões cânone


2 X 2 à sexta
2 X 3 à nona
2 X 4 à quinta
3 X 2 à segunda
3 X 3 à oitava
3 X 4 à quarta
4 X 2 à terça
4 X 3 ao uníssono
4 X 4 à sétima

Os números dois, três e quatro são valores de atividade derivados da ária do tema:

- o número três representa o número de tempos por compasso; em


compasso i, dois e quatro são as subdivisões predominantes destes
tempos (nos compasso 28-23 por exemplo).

Cada um dos padrões apresenta uma combinação distinta de tempo e atividade


de pulsação. Em contraste com o segundo conjunto de variações, neste conjunto
não se constata métrica nem pulso unificado ou subjacente. Ao contrário, a di-
versificação sistemática é a idéia - uma variedade de ramificações que crescem a
partir de um tronco central fornecido pelo segundo conjunto de variações. A ati-
vidade rítmica intrínseca é ainda mais enfatizada pela ordem aleatória de apre-
sentações das várias métricas e subdivisões.

354 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


de variações

subdivididos em 4)

cânone sexta

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 355


Ü PRIMEIRO CONJUNTO DE VARIAÇÕES

No segundo conjunto de variações, observamos um incremento ordenado


de atividade sobre métrica e pulso constantes. O terceiro conjunto tem como ca-
racterística uma seqüência diversificada na qual o substrato rítmico de cada peça
é diferente, como resultado de diferentes combinações de tempos e subdivisões.
O primeiro grupo de variações (Exemplo 3.25-3.27) apresenta outro tipo de con-
traste rítmico, diferente do encontrado nos outros conjuntos. De fato, mais do
que nos outros dois conjuntos, sua natureza é o próprio contraste rítmico. Nas
variações individuais ou entre elas, as peças do primeiro conjunto exploram os
extremos rítmicos do conjunto completo de variações:

- os tempos mais rápido ou mais lentos;


- os mais longos pulsos ou os mais breves impulsos.

Esses extremos são justapostos nas variações deste conjunto. 29 Nesse aspecto,
a "Ouverture" francesa (Variação 16, Exemplo 3.25) é talvez a variação mais

356 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


e
'-ª·"''"'-''-"' a seção de
~ altamente subdivididos se contra a seção
fugal em~- O módulo mais característico da "Ouverture" é
uma nota longa pontuada seguida uma ou mais notas muito curtas (Exemplo
3.25, compasso 1 e 2). Módulos pontuados (com sua justaposição de durações lon-
e curtas) recorrem o primeiro conjunto de variações
(nas Variações 1, 7, 10, 13, 16 e 22; veja o Exemplo 3.26). O módulo pgntuado é,
sem dúvida, derivado do início do terna.

Uma abertura francesa consiste tipicamente de uma seção lenta com ritmos pontuados,
seguida por uma seção fugal rápida.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 357


O primeiro conjunto de variações incorpora, portanto, os mais intensos e
extremos contrastes rítmicos:

- o pulso da Variação 4 é o mais rápido de todas as variações; quase


nunca subdividido, seus tempos se sucedem com a maior rapidez
(Exemplo 3.27a);
- as Variações 13 e 25 apresentam os pulsos mais lentos - seus tempos
são subdivididos com tal complexidade e variedade que seu percurso
requer andamento lento (Exemplo 3.27b).

3.27 - Variações 4, 13 e 25 do primeiro conjunto

teclado

2 teclados

358 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Embora Bach não andamentos explícitos para as variações, o con-
de atividade das peças os define claramente. Tocar a Variação 4 com pulsos
lentos de criaria lapsos entre cada pulso de sua ação e quebraria seu módulo
recorrente: (Exemplo 3.27a). De modo oposto, a complexa sub-
divisão interna tempos nas árias (Variações 13 e 25) requer tempos suficien-
temente lentos para que sua subdivisão possa ser entendida em toda sua riqueza
(Exemplo 3.27b).
Constatamos que, no segundo conjunto de variações, andamento e pulso
comuns são necessários para trazer à tona o crescimento regular de atividade
desse conjunto. No primeiro conjunto, entretanto, um andamento comum entre
as variações é evidentemente impossível. Os andamentos variam do muito rápi~
do ao muito lento. Nos diversos andamentos e graus de subdivisão interna dos
tempos, o primeiro conjunto de variações manifesta o maior nível de contraste em
relação à velocidade e à atividade dos tempos.

RESUMO

Podemos começar a apreciar a riqueza da arquitetura rítmica das Variações


Goldberg. O conjunto de variações centrais impulsiona o ciclo em um curso de
aceleração que abrange toda a obra. As combinações rítmicas variadas do tercei-
ro conjunto fornecem pulsações subjacentes constantemente cambiantes para as
diversas peças canônicas. O primeiro conjunto define e explora as extremidades
do âmbito temporal de atividade. As características rítmicas básicas, a partir das
quais se formam os três conjuntos de variações, são:

- os ritmos pontuados do conjunto I;


- a métrica~ constante do conjunto II;
- os pulsos e subdivisões do conjunto III, que são agrupadas em dois,
três e quatro;
- as dimensões seccionais simétricas de cada variação;
- o plano dimensional 2 x 16 = 32 que permeia toda a obra em seus
micro e macrocosmo.

Todas essas características se originam da Aria. Juntas, estes aspectos ge-


.
ram a grandiosidade do ritmo arquitetônico no ciclo completo .

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 359


Até o momento, constatamos a existência de diversos níveis desde
os mais rápidos impulsos atividade às amplas dimensões, em um
to temporal que compreende desde milissegundos até horas. Os diversos níveis
existem meramente de forma estática; apresentam evolução, crescimento,
transformação e variação no interior de uma obra. Observamos que, em obras
como o Plus dure de Machaut e na "Allemande" de Bach, a regularidade nos níveis
rítmicos mais imediatos ou inferiores ocorre concomitantemente ao crescimento
e à variabilidade nos níveis superiores. Em obras como o Amen de Machaut e a
chaconne de Bach, a regularidade nos níveis superiores emoldura as extensivas
transformações de atividade nos níveis rítmicos inferiores. Além disso, em obras
como o "Benedictus" de Josquin, todos os níveis passam por transformações
significativas.
Estas propriedades foram desveladas em músicas que abrangem um milênio
de vivência rítmica européia. De fato, podemos perceber agora certas premissas
rítmicas implícitas nesta música, tais como a regularidade de pulsação e a simpli-
cidade aritmética na derivação de diversos pulsos e impulsos. A segunda assertiva
significa que os pulsos têm sido geralmente multiplicados ou subdivididos por
dois (ritmo duplo) ou três (ritmo triplo) para dar origem a pulsações relacionadas.
Essas mesmas razões aritméticas podem ser multiplicadas ou subdivididas em
diferentes níveis, propiciando, em última instância, a derivação de ampla gama
de atividades, cujas freqüências de pulsações se relacionam pelas razões 1: 2: 3 (e
seus múltiplos).
Alguns compositores cultivaram a exploração sistemática da diversidade que
pode ser obtida a partir deste grupo limitado de relacionamentos. O compositor
renascentista Jacob Obrecht investiu nesta diversidade em suas missas. 30 Mais
recentemente, Erik Satie alcançou, em sua obra Parade (1917), através dos mes-
mos procedimentos, um ritmo de surpreendente riqueza. A obra Parade é, sem
dúvida, uma síntese de toda a cultura rítmica européia e, como tal, constitui-se
em uma obra-prima surpreendente. 31
À medida que desviamos nosso foco de atenção em direção à música mais
recente, os procedimentos que encontramos não são necessariamente diferentes.
Entretanto, constatamos que a movimentação é mais dinâmica no interior das
obras destes compositores - tanto em estágios de transformação quanto em graus
de contraste. No processo, algumas das "simplicidades" dos períodos anteriores
- freqüente e prolongada repetição de pulso e limitação às relações aritméticas

360 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


um
de
novas e temporais
resultando na experiência de novas configurações.

DE -TRÊS
CORDAS, SEGUNDO MOVIMENTO

Quais são as velocidades de atividade no compasso 1 e nos compassos 4-5? Como a velo-
cidade da atividade nos compassos 15, 20-29 e 49 se relaciona com a velocidade inicial?
Em que elas diferem? Como a velocidade de atividade dos compassos 13, 17-19, 33-34,
52 e 54 se relaciona com as velocidades iniciais? Em que elas diferem? De que maneira as
diversas velocidades de atividade se inter-relacionam durante a obra?

No interior da primeira frase (compassos 1-6), duas velocidades de ativida-


de, com razão 3: 2, são justapostas:

compassos 1-3 MM j = 76 velocidade de atividade~~= 76 x 3 =MM 228


compassos 4-5 MM j = 76 velocidade de atividade~~= 76 x 2 = MM 152

A atividade rítmica de toda a peça apresenta duas camadas distintas. 32 As ve-


locidades de atividade de cada camada derivam de uma destas freqüências de
pulsações iniciais, MM 228 ou MM 152. No Exemplo 3.28, cada nível é impresso
contra uma cor de fundo diferente: MM 228 contra o branco e MM 152 contra o
cinza claro. Embora cada camada seja caracterizada por sua velocidade de ativi-
dade constante, isso não significa que as camadas sejam ritmicamente estáticas.
Ao contrário, cada velocidade de atividade dá origem a um conjunto inteiro de
transformações de pulsações que são unificadas pela pulsação subjacente regular
de cada camada.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 361


Exen:apl.o 3.28 - Stravinsky: Três peças para quarteto de cordas, segundo movimento

362 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 363
A CAMADA DA PULSAÇÃO MM 228

Nas seções subseqüentes, a pulsação MM 228 é transformada da seguinte


forma:

Seção I (compassos 1-12)

- 6 pulsações MM 228 subjacentes por compasso j = 76


( ) = 3 X 76 = 228)
~a-

- compasso 1, tutti

364 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


- as acentuações (poco sf) e, conseguinte, os pulsos ocorrem na
~·~·~·~·~~~ MM = 76 (cada

Seção II (compassos 13-24)

- 5 pulsações MM 228 subjacentes por compasso J = 76 ( Ji = 3 x 76 =


228)
compasso 15

- acentuações ocorrem na velocidade MM 114

Seção III (compassos 25-35)

- 4 pulsações MM 228 subjacentes por compasso J= 112-116 ( Ji =2 x


114 = 228)
compasso 25-26

- os tempos ocorrem na velocidade MM= 114 (indicado como j = 112-


116, pois o metrônomo convencional não registra este número).

Em cada uma dessas seções, a pulsação MM 228 é agrupada em compassos


cujas durações :ficam sucessivamente menores - de seis para cinco e quatro pulsos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 365


emMM228. mesmo tempo, novas pulsações são 228
em cada seção:

- na seção II, o pulso ocorre em sua freqüência original e também é


reduzido pela metade (MM 114);
- na seção III, o pulso ocorre em sua freqüência original, pela metade
(MM 114) e duplicado (MM 456).

Portanto, também a quantidade de pulsações MM 228 em cada seção e, especial-


mente, a relação estabelecida com o outro nível de pulsação MM 152 (veja a se-
guir) se modificam consideravelmente:

- na seção I, a pulsação MM 228 predomina, porém é brevemente in-


terrompida pela camada MM 152 nos compassos 4-5 e 9-10;
- na seção II, a pulsação MM 228 ocasiona interrupções na camada
mais contínua, MM 152 (compassos 13-14e17-19);
- na seção III, as pulsações MM 228 estão presentes durante cinco
compassos (25-29), sem serem interrompidas nenhuma vez pelas
pulsações MM 152.

No início da seção central (seção III), a pulsação MM 228 atinge sua presença
máxima, assim como sua mais diversificada transformação.

A CAMADA DA PULSAÇÃO MM 15 2

A pulsação MM 152 é transformada de maneira similar durante as seções


posteriores. No início, sua velocidade é duplicada (compasso 5, )1 = MM 304) e
reduzida pela metade (compassos 1-2, J = 76). Posteriormente, é quadruplicada
nas seções III e IV (compassos 36-48): ~ = 608.
Enquanto o desenrolar dos compassos de pulsação MM 228 torna-se cada
vez menor e mais breve, os módulos formados pelas pulsações MM 152 tornam-
-se mais extensos e mais longos:

- seção I - compassos 4-5 = módulo de 1 compasso (com anacruse);


- seção II - compassos 13-14 =módulo de 2 compassos;
- seção III - compassos 17-19 =módulo de 3 compassos;
- seção IV - compassos 32-35 = módulo de 4 compassos;
- seção V - compassos 36-48 =módulos contínuos formando uma fra-
se de doze compassos.

366 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


e prosseguindo para de
compassos, abrangem uma frase completa (e mesmo uma seção
- a seção IV - pulsação MM 288), esta camada emerge
da pulsação MM 228. Assim como a camada MM 228 atinge a plenitude de sua
presença na primeira metade da seção a camada MM 152 domina o restante
33
da seção e toda a seção IV.
Conforme acabamos de ver, embora camada seja unificada por sua pul-
sação básica, estas pulsações passam por uma variedade de transformq.ções:

- as durações das pulsações são multiplicadas ou subdivididas;


- as pulsações são agrupadas em módulos e compassos cada mais vez
longos (ou mais breves);
- uma camada e as transformações de pulso que a compõem são justa-
postas de maneiras distintas.

UM CALEIDOSCÓPIO RÍTMICO

A fissão do andamento MM 76, no início do quarteto em três pulsos (MM


228) e dois pulsos (MM 152), inicia, portanto, duas camadas distintas de ativi-
dade e evolução. Inicialmente, pode parecer que nossa descrição é desnecessa-
riamente complicada. Será que a atividade pode consistir somente de múltiplos
de MM 76, que serve como um único pulso comum? Musicalmente, isso não se
concretiza, pois a pulsação MM 288 gera uma camada de atividade na qual, fre-
qüentemente, nenhuma pulsação MM 76 é audível. Durante seções da peça basea-
das na pulsação MM 228 (compassos 25-30), o pulso MM 76 desaparece. Certas
pulsações no compasso 25-30, especialmente MM 114, não são múltiplos simples
de 76. Não existe, portanto, um pulso único durante o desenrolar da peça, com o
qual todos os outros se relacionam. A peça só pode ser relacionada às duas pulsa-
ções geradoras que acabamos de descrever - MM 228 e 152. 34
Conforme constatamos anteriormente, na música dos compositores ante-
riores ao século XX, a atividade rítmica de uma peça podia ser descrita levando
em conta as subdivisões e os múltiplos de um único pulso. O Segundo quarteto de
Stravinsky cristaliza uma situação freqüentemente encontrada no ritmo da mú-
sica européia do início do século XX: atividade rítmica baseada em um complexo
de pulsos (ou seja, um grupo de mais de uma pulsação) que não pode ser reduzido
a uma única pulsação. Composto por Stravinsky, logo após Le Sacre du Printemps
(''A sagração da primavera"), este quarteto refina sua descoberta (que também foi
feita por outros compositores neste momento preciso da história da música) do

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 367


complexos -uma um novo
enfoque no poder e expressivo
A deste quarteto e sua evolução são .~,-·,.-·~·~~.
peça é a elaboração conflito entre as freqüências de seus dois uma
gerando conseqüências posteriores em uma escala ampla. peça é um caleidos-
cop10 agitado de forma quase fato, com impressionante
rapidez - produzindo novas metamorfoses de seus fragmentos pulsações
dais. Cada metamorfose é uma nova variante de expressão Ao
cá-las diretamente através de transformações diversas de pulso, a peça torna-se
um tour de force rítmico. Este rico mundo de diversos tempos, pulsos e impulsos é
atingido não em uma hora, como nas Variações Goldherg de Bach, mas em menos
de dois minutos.
Nos Capítulos 1 e descobrimos que a ambigüidade organizada fornece
ricas possibilidades formativas no campo das alturas. Na peça para quarteto
Stravinsky, o desenvolvimento da exploração simultânea de duas camadas de ati-
vidade rítmica oferecem ambigüidade similar em relação ao campo rítmico ou
temporal. De fato, a análise das formações de alturas da peça revela numerosos
paralelos entre os processos de alturas e ritmo. Por exemplo:

- uma ambigüidade polar, Lá-Sh domina a peça; compare, por exem-


plo, o início e o final;
- as duas camadas apresentam diferenças de textura e registro: a
camada MM 152 contém gestos melódicos que abrangem diversos
registros e que também recebem dobramentos em vários registros;
já a camada MM 228 contém simultaneidades densas, em posições
muito fechadas e quase percussivas.

O complexo rítmico, portanto, também está refletido nos complexos espacial, lin-
güístico e de cor, reforçando seu significado.
Complexos de pulsos e suas novas implicações desempenham papel essen-
cial em boa parte da música do século XX. Mahler, Debussy, Sibelius, Schoenberg,
Ives, Bartók, Webern, Berg- todos foram, em alguma ocasião, desbravadores nes-
te campo. Entretanto, nem todos receberam o devido reconhecimento. Somente
Tovey parece ter atentado para esta característica em Sibelius:

Sibelius atingiu uma capacidade de mover-se como uma aeronave, seja contra ou a favor
do vento. Ele consegue mudar seu andamento sem quebrar o movimento. Os andamen-
tos de sua sétima sinfonia abrangem desde um genuíno adágio até um genuíno prestís-
simo. É impossível, entretanto, precisar como ou quando o andamento foi alterado. 35

368 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


de uma
Lcn_vc:0 rítmicas e sua evolução temporal total ocorrem

demandando, portanto, concentração de percepção e resposta


européia.

EXPLORAÇÕES os

peça de Stravinsky pode servir como porta de entrada ao estudo do rit-


mo da música do século XX, cuja prioridade conceitua! pode ser descrita como a
formação de complexos rítmicos ou de pulsos. Esclareçamos logo o que isso sig-
nifica. Pode parecer que a música anterior - com seus diversos níveis e freqüên-
cias de pulsos, suas variações e evoluções no interior de suas seções - também
forma complexos rítmicos. Entretanto, descobrimos uma diferença importante e
característica. Na música de Machaut, Josquin, Bach e de seus contemporâneos,
podem-se definir certos aspectos do ritmo de forma singular e exclusiva. Geral-
mente, em cada peça desses compositores, existe um único pulso; as pulsações
(e impulsos) diversas são subdivisões ou multiplicações desse mesmo pulso. Por
outro lado, vimos que nenhuma redução simples pode ser feita na peça de Stra-
vinsky para quarteto de cordas. Nessa peça, a redução fundamental origina duas
pulsações básicas, as quais não se relacionam mutuamente por subdivisões ou
múltiplos (como observamos anteriormente, as pulsações abrigam-se na pulsa-
ção MM 76, porém esta pulsação não serve como unidade comum, pois desapare-
ce musicalmente em pontos importantes). Uma única unidade rítmica subjacen-
te, consistentemente presente simplesmente não existe: a situação rítmica básica
consiste na interação de diversos pulsos; em outras palavras, em um complexo
de pulsos.
A organização contemporânea do ritmo encontra paralelos na organização
contemporânea da altura, que não é mais explorada somente através de uma al-
tura ou de um intervalo dominante, mas sim levando em conta a multiplicidade
de complexos intervalares que podem ser formados a partir da coleção de doze
notas. Além disso, essa organização engloba desde amplas distâncias intervalares
até as mais sutis nuC1J1ces entre alturas. De maneira análoga, no campo temporal,
a exploração se dá através de complexos de pulsos que incluem a gama completa
de durações perceptíveis pelo ser humano, das mais longas às mais breves.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 369


11•.- - - - - - - - - - - - -
Notamos anteriormente os primeiros ~~ .....,~~ sécu-
lo foram desbravadores no temporal.
século XX, diversos compositores - como Varêse, Sessions, Meassiaen, Carter,
Cage, Babbitt, Boulez e Stockhausen - demonstraram interesse no tempo e no
e, de fato, na crença que o uso criativo tempo e do ritmo constitui o
âmago da imaginação musical. As formas que os complexos assumem
em suas músicas e a experiência temporal que esses compositores propiciaram
seria assunto para um livro inteiro. Nesse momento, porém, al-
gumas das idéias desenvolvidas por esses compositores.

MODULAÇÃO DE TEMPO* (OU MÉTRICA)

Na modulação de tempo, uma pulsação comum a dois tempos diferentes fun-


ciona como elo no processo de mudança de um tempo para outro. O Exemplo
3.29 demonstra este tipo de modulação: a pulsação MM 228 é comum a = 76 eJ
j = 114. Quando essa pulsação é agrupada em três, o resultado é j = 76; quando
agrupada em dois, j = 114.

pu11saçí!o comum

Este exemplo mostra por que o termo modulação de tempo é preferível ao termo
modulação métrica, mais comum. A métrica (2/4) não precisa necessariamente ser
alterada já que é a velocidade do tempo que modula.
O efeito da :modulação de tempo já foi observado na segunda peça do quarte-
to de Stravinsky. O Exemplo 3.29 detalha a modulação de tempo que ocorre nessa
obra entre os compassos 1 e 25. A geração de dois tempos diferentes (MM 76 e
MM 114) é uma variante dentro da camada de pulsação MM 228. As composições

* N. T. No original, beat modulation.

370 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


de Sibelius, e exemplos anteriores do emprego
36
técnica. recentemente, ela vem sendo explorada sistematicamente
Elliott Carter, em obras que modulam tempos em impressionante variedade
de maneiras surpreendentes. 37 O Exemplo 3.30a mostra a modulação de tempo
inicial na "Introdução" do Segundo quarteto de cordas de Elliot Carter.

no tempo inicial j = 105, as se movimentam em MM 140. j = 140 passa a ser então o


tempo do novo andamento.

W5

i li i li

d)

li
= 2 140=280 =93. 3

A partir do compasso 4 da "Introdução", o segundo violino se movimenta


em). (ou J!:; ), preparando o pulso MM 140. Esse movimento antecipa e sugere a
modulação para MM 140, através de um pulso comum ao j =MM 140 que se suce-
derá. Quando o tempo modula para MM 140, no compasso 11, várias outras pul-
sações ocorrem na atividade rítmica. Essas pulsações estão marcadas no Exem-
plo 3.31. Observe que algumas delas se assemelham ao tempo inicial, j = 105
(compassos 17-18 e 21-22). Qualquer urna destas pulsações poderia, pelo mesmo
processo de modulação, tornar-se o novo pulso (como demonstrado no Exemplo
3.30b - 3.30d). Uma delas ( j = 112) é selecionada como a próxima modulação de
tempo (Exemplo 3.31, compasso 29).
A qualquer momento, várias pulsações podem ocorrer, sendo que qualquer
uma delas pode, a par,tir de urna modulação de tempo, tornar-se o pulso do próxi-
mo andamento (que gera um novo conjunto de pulsações próprias e uma modula-
ção de tempo subseqüente, portanto o processo pode se repetir indefinidamente).
Carter utilizou esse processo de modulação para gerar formas nas quais diversos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 371


ocorrem, desaparecem e passam
tações. Segundo quarteto con-
centrada vasta diversidade de mais
breves característico
11-12) às notas longas que os
extremos duração, ocorrem fl.ashes de vários tempos e pulsações
Exemplo 3.31). Estas se tornam as bases para as
posteriores da peça. As velocidades dos tempos modulados es-
tabelecem razões atividade - MM 105:140 (3:4); MM 140:112 (5:4) - as quais
produzem nova atividade durante o quarteto.

Ex:e:n1pllo 3,31- Elliott Carter: Segundo quarteto de cordas, "Introdução"


37 4 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE

:1
velocidades dos andamentos alc:anç:ad1Ds através
da de tempo

remi.niscêndas do tempo inicial

*Para as notas de execução, consulte o Exemplo 1.40.

Copirraite (1961) Associated Music Publishers. Reproduzido com permissão dos editores.

A atividade rítmica da peça em seu todo é um enorme complexo de pulsa-


ções, que abrange do breve tremor à sustentação prolongada de durações (por
exemplo, o longo Dó#5 - Sib3 da "Introdução", que discutimos nos Capítulos 1 e
2). Mais uma vez, co'nstatamos, nesta peça, a existência de uma clara analogia
entre a linguagem musical - com seu complexo formado por todos os intervalos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 375


possíveis (que discutimos no 2) - e a
plexo de diversos tempos e velocidades de pulsação.

DE ATIVIDADE E

Durante o da década de 1940, uma série de compositores, liderados na


Europa por Messiaen e na América por Babbitt, ampliaram para o tempo-
ral os procedimentos seriais utilizados no campo das alturas. Foi um momento
marcante na história do ritmo musical, na medida em que os complexos rítmicos
gerados através desses procedimentos apresentam características fascinantes.
O Exemplo 3.32 apresenta uma seção de "Ile de Feu II", dos Quatro estudos
de ritmo de Olivier Messiaen:

J
- a série rítmica consiste em doze durações diferentes (de a , com
cada duração uma )i mais curta do que a precedente);
- cada duração é associada com uma altura, dinâmica e tipo de ataque
específico.

Na apresentação serial, a série deve soar por completo antes que qualquer um
de seus componentes seja repetido, portanto nenhuma freqüência de pulsação
individual assume proeminência sobre as outras pulsações da série. Todas as pul-
sações ocorrem igualmente, soando uma única vez em cada apresentação da série
(ou de suas permutações, chamadas neste contexto de "interversões"). Essa série
é, portanto, um complexo de atividade rítmica formado por doze durações diferen-
tes que ocorrem e recorrem em igualdade. Assim como a modulação de tempo
elimina uma única pulsação contínua em favor de um complexo de pulsações si-
multâneas ou sucessivas, também a atividade serializada elimina a possibilidade
de uma única pulsação de atividade dominante em favor de um complexo mais
abrangente e mais variado - as doze diferentes durações da série.
Ao longo de toda a obra "Ile de Feu II", sempre estão presentes duas séries
rítmicas simultaneamente. Em conseqüência, além das duas séries rítmicas, existe
um ritmo total resultante de sua superposição (Exemplo 3.33). No ritmo total, a
anotação dos compassos e tempos são aspectos fictícios da notação, convenções
mantidas do repertório anterior para a conveniência do intérprete. No repertório
anterior, a substância musical definia os compassos através da freqüente ênfase em
seu início como ponto de ocorrência musical acentuada. Por outro lado, no Exem-
plo 3.33, geralmente nada ocorre no ritmo total do início da maioria dos compas-
sos. Em menos da metade dos compassos, podemos observar um ataque marcando
o início do compasso. Constata-se o mesmo no segundo tempo Jdos compassos.

376 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


caso, tem sua sobre
sem regulares nos compassos, ou
As durações encontradas no ritmo (demonstrado em uma tabela
no Exemplo 3.33) revelam uma diversidade de durações ( , J, J,
entre outras),
das quais recorrem em freqüências quase equivalentes. Portanto, além do
complexo de pulsações série de durações, existe um complexo de pulsações
(não tão rico quanto o da série de durações).

1:1.xeu•I"'·" 3.32 - Olivier Messiaen: "Ile de Feu II" (compassos 8-27), dos Quatro estudos de
piano)

et ferocc)

Interversão ll

Reimpresso com a permissão da Durand et Cie, Editeurs, Paris.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 377


,.,--------------------~~~-

interversão

interversão

interversão
JV

A série para as interversões contém doze durações (os números 1-12 correspondem à duração
em )1 ), doze alturas, quatro tipos de ataque e cinco dinâmicas. A interversão I inicia no meio
da série e depois se movimenta alternada e progressivamente em direção aos limites externos.
Cada nova interversão repete o processo. A duração, ataque e dinâmica de cada altura
permanecem constantes, conforme determinado pela série. As permutações na ordem das
alturas causam, portanto, também permutações na ordem das durações, ataques e dinâmicas.

Exemplo 3.33

ritmo
total

378 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


í

Dessa maneira, a serialização da atividade libera o ritmo de regularidades


de acentuação, tempos e pulsações. Trata-se de uma conquista fascinante, que
abre campo para novas possibilidades de experiência e consciência rítmica. A su-
cessão de eventos rítmicos cria uma sensação temporal livre e fluida com seqüên-
cias de ação surpreendentes, nas quais cada pulsação (independente de sua du-
ração) está imbuída de sua própria individualidade, na medida em que não pode
ser prevista a partir de um tempo regular ou das pulsações que imediatamente a
precedem. De acordo com os conceitos da teoria da informação, podemos consi-
derar que cada evento rítmico carrega uma informação inédita.
Entretanto, um dos problemas do ritmo serializado tem sido o de preservar
o nível de interesse na criação de formas rítmicas extensas. O interesse inicial
pode ser perdido caso a série seja meramente repetida, ocasionando a substitui-
ção da repetição de um pulso por uma repetição regular da série. De fato, a se-
rialização rítmica tem desafiado os compositores na busca de procedimentos que
equivalham, na música serial, às velocidades proporcionais, dimensões, varieda-
des e múltiplos níveis rítmicos utilizados nas músicas anteriores. Esta questão
tem levado a uma contínua invenção e a questionamentos na exploração da se-
rialização do tempo musical. Cage e Stockhausen serializaram dimensões e tempi
assim como a própria atividade. Boulez introduziu o conceito de registros de tempo
para indicar a repetição de uma série em diferentes escalas temporais.

ILUSÕES TEMPORAIS VERSO-REVERSO (PALÍNDROMOS)

Palíndromos rítmicos, complexos simétricos em relação a um ponto médio


e que criam a ilusão de se moverem adiante e depois para trás no tempo, consti-
tuem-se em uma das mais notáveis experiências temporais na música recente.
Ives, Berg e Webern foram pioneiros na prática de tais complexos; 38 Messiaen os
explorou extensivamente.
Na sinfonia op. 21 de Webern, a terceira variação do segundo movimento
movimenta-se "adiante" durante cinco compassos e meio (Exemplo 3.34, até a

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 379


e
""'-'-""~~,
verso") (Exemplo 3.34, após a
mudança instrumentação no último compasso.
tação verso-reverso, ocorrem

- diversos
dividuais (indicados pequenas setas no
SOS 35-37 e 41-43);

- o ritmo total também padrões menores de palíndromos (veja o


gráfico rítmico dos compassos 34-37, na segunda parte Exemplo
3.34).

Não somente o tempo parece mover-se em duas direções, para diante e para trás,
mas também esta movimentação ocorre em diferentes freqüências. Existe um
palíndromo mais extenso que se desenrola lentamente assim como outros de
menor duração. Essas diferentes freqüências e direções na elaboração temporal
ocorrem simultaneamente (como atesta a superposição de setas)!
Assim como em "Ile de Feu II" de Messiaen, a notação rítmica desta peça se-
gue uma convenção de pulsos e compassos, porém a substância musical do com-
plexo de palíndromos não define ou depende de pulsos e compassos. Por exem-
plo, o módulo (Exemplo 3.34, clarinete, compassos 35-38) ocorre em uma
subdivisão diferente do tempo em cada de suas quatro ocorrências. Esse módulo
não define o pulso através de uma relação fixa e, além disso, o pulso não define o
módulo. O sentido do módulo não está em seu relacionamento com os pulsos (ou
compassos), mas na relação com os vários complexos de palíndromos.
Messiaen (talvez com um toque de ironia) denomina os palíndromos rítmi-
cos como ritmos não-retrogradáveis, 39 na medida em que seu é idêntico
à forma original. Por exemplo, o retrógrado de
portanto, não existe retrógrado, pois o módulo rítmico já incorpora o retrógrado.
O Exemplo 3.35 comprova que Messiaen é também um mestre no uso dos ritmos
em padrão verso-reverso em diferentes velocidades. Esta passagem, também da
obra "Ile de Feu II", contém:

- o extenso palíndromo na mão esquerda, que abrange vinte compas-


sos (dos quais somente oito são mostrados);
- o padrão verso-reverso (palíndromo) menor na mão esquerda, no
qual cada uma de suas fases - verso ou reverso - define um com-
passo (a notação agora corresponde à nova estrutura: compassos de

380 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


como uma

em de Feu , complexos e
palíndromos são uucuL,aucv

viola _ _ __,,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 381


Da Sinfonia op. 31. Copirraite (1929) Universal Edition. Utilizada com permissão do editor Theodore Presser Company,
único representante nos Estados Unidos, Canadá e México.

-
--
Os compassos 41-44 criam uma detalhada movimentação em padrão verso-reverso, como nos
compasso 34-37.

382 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


área pode ser caracterizada uma quantidade média de ati-
rítmica. Outras áreas temporais podem ser definidas através da mudan-
ça desta média. Nessas áreas, não é a velocidade de qualquer evento ou módulo
(ou um grupo específico destes) que caracteriza a atividade, mas a média
da freqüência de atividade: a média de densidade de atividade sobre
um determinado período.
No Exemplo 3.36, cada área, A e B, é definida de quatro maneiras distintas (in-
dicadas pelas letras a até d). Cada área se caracteriza por uma freqüência de atividade
média: a área A apresenta 25 ataques a cada quatro segundos ou 6,25 por segundo;
a área B apresenta 13 ataques a cada quatro segundos ou 3,25 por segundo. A média
de atividade de uma área pode ser obtida pela utilização de um ou dois módulos (e
freqüência de pulsação) próximos da média, como na linha a, ou utilizando diferentes
impulsos que englobam ampla gama de velocidades, como na linha d. A ordem dos
eventos dentro de uma área é irrelevante, como demonstrado nas linhas b e e, que
revertem a ordem dos mesmos eventos rítmicos. A existência de tempos e compassos
também é irrelevante: sua função consiste unicamente em auxiliar na notação do
complexo, já que estes elementos não apresentam significado substancial.

Exemplo 3.35 - Olivier Messiaen: "Ile de Feu II" (excerto), dos Quatro estudos de ritmo
(para piano)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 383


'
~~~~~~~~~~~~~~~~~;~~~~~~~~~~~~~~~~~~~-
'
'

Reimpresso com permissão de Durant et Cie. Editeurs, Paris.

3.36

ÁREA

4l
li:
e)
:li
li:

384 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Os complexos estatísticos permitem urna enorme variedade interna e ao
mesmo tempo definem claramente uma freqüência (ou densidade) geral de ativi-
dade. Durações sucessivas podem apresentar contrastes (sutis ou gritantes) e po-
dem ser justapostas de diversas maneiras. Portanto, embora a taxa de atividade
média seja mantida, numerosas variações momentâneas e contrastantes podem
emergir. Durante todo este tempo, contrastes de larga escala são possíveis entre
diferentes áreas através da definição de diferentes médias de atividade.
O Exemplo 3.37 apresenta uma notável formação rítmica - o início do quar-
to movimento da Primeira sonata para piano de Charles Ives. Cada uma de suas
quatro frases pode ser considerada como um complexo estatístico:

[Tas e tempos pontos de ataque média de ataques por segundo

1 14 45 3,2
2 28 172 6,1
3 28 172 6,1
4 32 107 3,3

As frases centrais, 2 e 3, correspondem exatamente quanto à sua densidade mé-


dia de ataques, apesar de serem completamente diferentes em seus detalhes inte-
riores. As frases 1 e 4 também encontram correspondência quase exata em suas
médias de ataques de 3,2 e 3,3 por tempo, mas diferem entre si ainda mais do que
as frases centrais. Toda a seção apresenta um contraste entre duas freqüências de
atividade média, 6,1 ataques por tempo e 3,2-3,3 ataques por tempo.
Assim como no Exemplo 3.36, o interior de cada área de atividade do tre-
cho de Ives apresenta numerosas gradações e variantes de pulsações e durações.
Nas frases 2 e 3, por exemplo, a média de atividade de 6 ataques por tempo

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 385


nunca é expressa simplesmente pelo Sua mais comum é

(cujo ritmo total equivale a 6 de ataque, . Entre-

tanto, este módulo passa por transformações e variações contínuas:

- acentuações diferentes no compasso 8;


- decréscimo de atividade nos compassos 10-11 (4 ataques por tempo);
- aumento de atividade nos compassos 16-17 (8 ataques por tempo);
- variação modular interna cambiante nos compassos 22-26 (veja o
excerto a seguir).

M 1, m 2 , m 3 e m 4 são pequenas variantes do módulo, cada um apresentando uma velocidade de atividade diferente.

Na frase 4, a média de atividade de 3,3 ataques por compasso é produzida


pela superposição de dois módulos bastante dissimilares:

módulo de 3

módulo de 5 Jl

5 's etc.

386 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


{a fn1se ccmtim1a de mam:irn similar até o compasso

Copirraite (1954) Peer lnternãtional Coorporation. Utilizado com permissão.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 38 7


de

(a frase continua de maneira similar até o compasso

De fato, os detalhes das frases 1 e 4, que estabelecem uma média quase idêntica
de atividade, são extremamente diferentes.
Toda a seção é constituída por uma rede de correspondências e variantes
rítmicas, composta por associações, transformações e justaposições, cujo efeito
cumulativo é a formação de amplos complexos estatísticos que são, ao mesmo
tempo, contrastantes e correspondentes. Tendo pressagiado as modulações de
tempo (em "Putnam's Camp", da obra Three Places in New England) e os palíndro-
mos (em From the Steeples to the Mountains), nesta sonata, Ives iniciou a utilização

388 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Lv1cu1--'"c'~v"'
estatísticos foram,
e Iannis os con-
variadas de atividade e explorou suas fundações matemáti-
~~·~····~~-~~ e elevados. 41
natureza dos complexos estatísticos é Em à ativida-
estes complexos podem prescindir de tempos, compassos, direção e pulsos,
ou seja, seu sentido não depende de pulsações, agrupamentos ou ordenamen-
tos específicos e recorrentes nos detalhes da atividade. Estes complexos podem
englobar a mais extrema gama de durações de impulsos e seu requisito
reside no fato de que, juntos, eles devem criar uma média de atividade
significativa.

TEMPORAIS ABERTOS

A primeira metade de século XX presenciou o surgimento de um paradoxo.


A notação rítmica européia dos séculos anteriores era baseada em:

- tempos regulares e propulsivas;


- combinados ou subdivididos por limitadas operações aritméticas or-
ganizadas em pulsações e impulsos mais lentos ou mais rápidos, por
sua vez agrupadas em compassos, módulos, frases e seções similares.

No entanto, esta notação passou a ser utilizada para expressar o oposto


rítmico:

- complexos que apresentam diversas velocidades de pulsos ou mesmo


a ausência de um pulso regular contendo uma ampla gama de pulsa-
ções e impulsos - do mais longo ao mais breve - derivados através de
operações matemáticas cada vez mais complexas;
- e, em última instância, questionando a própria noção de direciona-
lidade do tempo.

Como conseqüência, um novo caminho de descobertas foi delineado: a explora-


ção de novas notações mais apropriadas a este novo sentido temporal. De modo
geral, as novas notações são baseadas mais na relação espacial visual do que no
sistema numeral aritmético ou em uma combinação de ambos em diversas ma-
neiras (veja o Exemp1o 3.38 e a Figura 6 no Capítulo 1).
Os campos temporais abertos foram introduzidos por Erik Satie e Charles
Ives (novamente) em obras que dispensam barras de compassos e, por conse-
guinte, compassos modulares baseados na acentuação regular. 42 John Cage (a

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 389


1952) foi o compositor a sistematicamente a
sentação visual do tempo e suas conseqüências rítmicas. Inúmeros composi-
tores propuseram suas próprias contribuições para esta inovação. Além disso,
a notação dos campos temporais abertos, ou notação gráfi_ca, utilizada tanto
para a notação do jazz quanto em pesquisas musicológicas (nos ritmos da músi-
ca africana) e, especialmente, para a notação cronométrica da música eletrôni-
ca. De fato, esse tipo de notação despertou a consciência a respeito das origens
da notação européia oriunda dos neumas gráficos hebraicos e medievais. Reve-
lou ainda a importância de notações similares (e de um sentido temporal aberto
similar) na música do Tibete, da Coréia e do Japão (veja Figura 4, Capítulo 1).
A notação dos campos temporais abertos atualmente é tão difundida e varia-
da que vários livros tratam exclusivamente do assunto (veja a lista de leituras
complementares no final deste capítulo).
O Exemplo 3.38 apresenta duas frases daMusic for Carillon 143 de John Cage:

duração número de ataques média de ataques


Frase 2 5 segundos 13 2,6 por segundo
Frase 7 18 segundos 157 8,7 por segundo

3.38 - John Cage: Music for Carillon I (trechos)

frase 2

frase 7

3 90 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Copirraite (1960) Henmar Press Inc. Reimpresso com permissão dos editores.

No gráfico, o tempo é representado horizontalmente e a altura relativa verticalmente. Um


quadrado grande equivale a um segundo; os três grandes quadrados verticais equivalem ao
âmbito total das alturas produzidas por um carrilhão; os quadrados grandes são subdividas
em três registros. Uma vez atacada, uma nota soa até o final de seu decaimento (ou até que
seja novamente atacada). Um intérprete pode usar o gráfico para fazer sua própria versão.

Cada uma destas frases, assim como cada frase da peça, é delimitada e defi-
nida por um segundo (ou mais) de ausência de ataque. A atividade das duas frases
é amplamente contrastante:

frase 2 frase 7

- uma das mais curtas (5 segundos); - uma das mais longas (18 segun-
- uma das menos densas em relação dos);
à atividade de ataque (média de 2,6 - uma das mais densas (média de 8, 7
ataques por segundo); ataques por segundo);
- uma das mais equilibradas na dis- - atividade concentrada principal-
tribuição de atividade pelos três mente nos dois registros mais agu-
registros: registro mais agudo - 4 dos: registro mais agudo - 76 ata-
ataques; registro médio - 4 ataques; ques; registro médio - 53 ataques;
registro mais grave - 5 ataques. registro mais grave - 28 ataques.

O Quadro C amplia esta análise para o restante da obra e revela como a fre-
qüência e a continuidade da atividade (ou sua descontinuidade, resultante da au-
sência de ataque) definem frases e seções. Cada seção tem sua conclusão marcada
por uma pausa que se· constitui na mais longa ausência de ataque até o momento.
A seção I é caracterizada pela média entre 2,1 e 4,5 ataques por segundo, todos
abaixo da média de atividade da peça, de 5,1 ataques por segundo. Por outro lado,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 391


a seção II é caracterizada por
segundos, acima geral
breves entre as frases seção III, esta seção é quase e não apresenta
interrupções nas atividades internas. Essa seção também tem como caracterís-
flutuações extremas de densidade de abrangendo médias entre 2,3 e
ataques em suas várias frases. seção IV é ainda mais contínua que a seção
III e possui somente uma única breve interrupção interna. Suas duas longas fra-
ses equilibram a atividade perto da média de 5,1 ataques: a primeira é um pouco
mais ativa, com média de 6,1 ataques. A segunda é um pouco menos ativa, com
uma média de 3,7 ataques. A média de ataques de toda a seção é 5,25 - muito
perto da média geral. Como conseqüência dessas variações na densidade de ata-
que, as seções I e II são enormemente contrastantes em relação à sua atividade de
ataque. A seção III atinge, nela própria, a intensificação desses contrastes. Como
culminação, a seção IV reduz e equilibra as tendências contrastantes quase
exatamente na média de ataque total.
Com a notação de campos temporais abertos, podem ser formadas áreas
temporais (frases e seções) com médias de atividade de ataque claramente defini-
das, como as que foram construídas anteriormente na notação métrica da Primei-
ra sonata para piano de Charles Ives. Music for Carillon I demonstra de modo vívido
que os complexos estatísticos não dependem de convenções musicais e de notação
tais como tempos e compassos nem de pulsos e acentuações recorrentes. A nota-
ção de Music for Carillon I revela muitas propriedades comuns a outras notações
de campos temporais abertos. Uma característica especialmente importante é a
eliminação de pulsações e acentuações regulares. Embora existam algumas regu-
laridades visuais (como a divisão do gráfico em segundos e quartos de segundo), a
substância musical não os confirma como eventos regulares no tempo. A grade é
puramente visual; o campo de tempo permanece aberto para a atividade temporal
da peça, que ocorre entre as divisões da grade. Dessa maneira, a atividade rítmica
se torna potencialmente aberta para quaisquer e todos os intervalos de tempo.
Tanto a distância entre os ataques quanto a duração das notas (que, em Music for
Carillon I, são sustentadas por períodos não especificados de tempo, até seu decai-
mento ao silêncio) não são influenciadas pelo sistema de notação.
Portanto, a notação de campos temporais abertos convida à formação de
complexos rítmicos compostos por uma vasta gama de impulsos variados. Na
obra de Cage, Music for Carillon I, os impulsos individuais levam, em última ins-
tância, à formação estatística de suas frases e seções e, então, para o complexo de
atividade claramente delineado e representado pela peça como um todo.

392 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


média de ataque ausência ataque final
seção I frase 1 10 segundos 4,1 por segundo 4 segundos
60 segundos frase 2 5 segundos 2,6 por segundo 4 segundos
frase 3 8 segundos 2,1 por segundo 2 segundos
frase 4 13 segundos 4,5 por segundo 1 segundo
frase 5 6 segundos 3,3 por segundo 1 segundo
frase 6 1 segundo 3 por segundo 5 segundos
'
seção II frase 7 18 segundos 8, 7 por segundo 5 segundos
51 segundos frase 8 5 segundos 8,8 por segundo 6 segundos
frase 9 10 segundos 5,6 por segundo 7 segundos

seção III frase 10 4 segundos 4,2 por segundo 1 segundo


68 segundos frase 11 3 segundos 5,7 por segundo 1 segundo
frase 12 5 segundos 5,6 por segundo 1 segundo
frase 13 10 segundos 2,4 por segundo 1 segundo
frase 14 5 segundos 11 por segundo 2 segundos
frase 15 6 segundos 6,2 por segundo 2 segundos
frase 16 4 segundos 2,3 por segundo 3 segundos
frase 17 10 segundos 7 por segundo 10 segundos

seção IV frase 18 31 segundos 6,1 por segundo 3 segundos


61 segundos frase 19 16 segundos 3,7 por segundo 11 segundos
duração total: 240 segundos
média geral de atividade: 5,1 por segundo

Assim como as obras musicais se constituem em uma movimentação atra-


vés da extensão de freqüências audíveis, isto é, um design entalhado neste espaço,
também configuram uma passagem pelo tempo, uma arquitetura de atividade
coalesce nas dimensões da experiência temporal. A invenção criativa ainda
está em curso, conforme demonstrado pelo nosso estudo do tempo e do ritmo
na música recente. Apesar da imensidade da vivência musical do homem com
o tempo e o ritmo, muito pouco é compreendido de forma explícita sobre esta
experiência. Neste capítulo, exploramos esta vivência na música européia e na
música norte-americana. É importante levarmos em conta, entretanto, que es-
tudos analíticos séri;s permanecem em estados iniciais, ainda que bastante re-
veladores. A música européia e norte-americana está lentamente se recuperando
fixação no parâmetro ditada pela harmonia tonal de Rameau, a qual se

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 393


estendeu séculos. Mesmo na esfera científica, o tempo permanece uma
facetas mais misteriosas do continuum tempo-espaço.
Neste capítulo, enfatizamos:

- a natureza multidimensional tempo ···~~··-~.. ,


- a diversidade de possíveis concepções, formações e experiências
temporais.

Acreditamos que o estudo desses aspectos abrirá portas aos nossos leitores para
a compreensão do fenômeno do tempo musical, à medida que seu significado
refinado tanto por compositores e intérpretes quanto por analistas, acadêmicos
e cientistas. Também abrirá novas portas que conduzirão à natureza profunda e
singular da arte cronológica da música.

LEITURA COMPLEMENTAR

BABBITT, MILTON. Twelve-Tone Rhythmic Structure and the Electronic Medium. Perspecti-
ves of New Music, Fall, p. 49-79, 1962.

BOULEZ, PIERRE. "Stravinsky Remains" e "Eventually...". Notes of an Apprenticeship. New


York: Knopf, 1968.

_ _ . Boulez On Music Today. Cambridge: Harvard University Press, 1971.

CAGE, JOHN. Defense of Satie. John Cage. ed. R. Kostelanetz. New York: Praeger, 1970.

_ _ . Notations. Cambridge: MIT Press, 1969.

CARTER, ELLIOTT. The Rhythmic Basis of American Music. The Score, June, p. 27-32, 1955.

COOPER, GROSVENOR; LEONARD MEYER. The Rhythmic Structure of Music. Chicago: Uni-
versity of Chicago Press, 1960.

DANIELOU, ALAIN. The Rãgas of Northern lndian Music. London: Barrie and Rockliff, 1968.

D'AREZZO, GUIDO. Micrologus. Chap. XV. trad. com comentários em J. W. A. Vollaerts, Rhyth-
mic Proportions in Early Medieval Ecclesiastical Chant. Leiden: Brill, 1958.

DE VITRY, PHILLIPE. Ars Nova. trad. Leon Plantinga. Joumal of Music Theory, November, p.
204-223, 1961.

GLOCK, WILLIAM. A Note on Elliott Carter. The Score, June, p. 47-52, 1955.

394 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


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1950.

JANDER, OWEN. Rhythmic Symmetry in the Goldberg Variations. Musical Quarterly, April,
p. 204-208, 1966.

JONES, A. M. Studies in African Music. 2 v. London: Oxford University Press, 1959.

KARKOSCHKA, ERHARD. Notation in New Music. Trad. R. Koenig. New York: Praeger, 1972.

KELLER, HERMANN. PhrasingandArticulation. NewYork: Norton, 1965.

KOCH, H. C. Versuch einer Anleitung zur Composition. Leipzig, 1782-93.

KOENIG, GOTTFRIED MICHAEL. Commentary. Díe Reihe, v. 8, p. 80-98.

KOLISCH, RUDOLF. Tempo and Character in Beethoven's Music. Partes I and II. Musical
Quarterly, April; July, p. 169-187; p. 291-312, 1943.

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metry, Rhythm. ed. Gyorgy Kepes. New York: Braziller, 1966.

LIGETI, GYORGY. Pierre Boulez: Decision and Automatism in Structure Ia. Die Reihe, v. I, 4,
p. 36-62.

MESSIAEN, OLIVIER. The Technique of My Musical Language. Paris: Leduc, 1942.

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Quarterly, October, p. 439-454, 1956.

SCHNEBEL, DIETER. Karlheinz Stockhausen. Die Reihe, v. I, 4, p. 122-35.

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Library, 1950.

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STOCKHAUSEN, KARLHEINZ .... how time passes ... Die Reihe, v. I 3, p. 10-40.

STRAVINSKY, IGOR, Poetics of Music, trad. A. Knodel and L Dahl. Cambridge: Harvard Uni-
versity Press, 1947.

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112-122.

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SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 395


l, John Cage, "Interview With Roger Reynolds" em Contemporary Composers on Contemporary Music
E. Schwartz e R Childs - New York: Rinehart & Winston, 1967, p, 340), Com npvnc,ie<
do editor,
2, Roger Sessions em The Musical Experience (New York: Atheneum, 1962, p, 11),
3, Igor Stravinsky em The Poetics of Music (trad, A Knodel e L DahL Cambridge: Harvard University
Press, 1947, p, 28),
4, Donald E Tovey emA Companion to Beethoven's Pianoforte Sonatas (London: Associated Board, 1931,
p, l),
5, A notação original de Plus dure (e do Amen de Machaut, que discutiremos posteriormente) não apre-
senta barras de compasso, Entretanto, o sistema de notação do período de Machaut, a Ars Nova,
claramente sugeria a organização em compassos, implementada em edições posteriores, A este res-
peito, o historiador da música Gombosi escreveu: "Eu enfatizo o termo acentuado, pois os compassos
e os acentos são forças importantes nesta música" (Otto Gombosi, "Machaut's Messe Notre-Dame"
em Musical Quarterly, 36, Outubro, p, 208, 1950),
6, Tomás de Aquino (por volta de 1265) sintetizou em sua Summa Theologiae o lema do período Gó-
tico, cronologicamente anterior ao de Machaut: "Os sentidos se deleitam nas coisas devidamente
proporcionadas, já que o sentido também constitui um tipo de razão", A sofisticada proporção das
partes caracteriza a arquitetura do período gótico tardio na França (veja Erwin Panofsky em Gothic
Architecture and Scholasticism, Cleveland: Meridian, 1957) e Otto von Simson, The Gothic Catedral
(New York: Harper & Row, 1956), A divisão ao mesmo tempo bi e tripartida da fachada é caracterís-
tica nas catedrais góticas francesas, tal como a de Rheims (veja a figura a seguir), na qual Machaut
serviu como clérigo,

396 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


7. Ars Nova foi o nome de volta de escrito
de Sua cuJL1u wcuc.o.v essencial foi a de mostrar que os valores das notas µvv.uuu

~""'''º·~ 1 ,
mas também por dois e de fornecer indicações de notaç:ao para
estas divisões. Este tratado contribuiu enormemente para o enriquecimento dos recursos rítmicos.
8. Esta edição doAmen é de Friedrich Ludwig (Guillaume de Machaut, Musikalische Werke, Vol. 4, ed. I-L
Bessler [Leipzig: e Haertel, 1957]).
9. Para aprofundamento do estudo da acentuaçào, veja Grosvenor Cooper e Leonard Meyer em The
Rhythmic Structure of Music (Chicago: Phoenix, 1960). Para observações muito interessantes sobre
acentuação, consulte Sessions, op. cit., p. 11-16.
10. Gornbosi, op. cit., p. 23-24. Compare o final desta citaçào com a nota 6.
11. Esta seção é fortemente influenciada por um importante artigo: C. D. Creelman, "Human Discrimi-
nation of Auditory Duration" no Journal of the Acoustical Society of America, 34, p. 582-593, 1962.
Somos eternamente gratos a Creelman, nào só por suas pesquisas, mas também por sua revisào
trabalhos anteriores sobre percepçào do tempo (que utiiizamos extensivamente).
12. O valor 10% é uma deduçào geralmente aceita dos dados de Creelman. Em alguns casos individuais,
a percepção foi um pouco mais (ou menos) refinada; 10% representa uma norma geralmente aplicá-
vel. Veja Leonard Doob em Patterning ofTime (New Haven: Yale University Press, 1971).
13, Carl Seashore em The Pyschology of Music (New York McGraw-Hill, 1938, p, 62).
14, Gravado em DDG 270723. A comparaçào deve ser feita com a gravaçào de Boulez (CBS 32210002),
na qual os tempos do compositor são respeitados.
15, Sumarizado em Willi Apel, Gregorian Chant (Bloomington,, Ind.: Indiana University Press, 1958, p,
126-32),
16. Guido d'Arezzo, Micrologus (por volta de 1030) Capítulo 15 ("O modo adequado de compor melodia")
traduzido em J. W. A. Vollaerts, Rhythmic Proportions in Early medieval Ecclesiasthical Chant (Leiden:
Brill, 1958), Para manter a consistência da terminologia, os termos "neuma" e "período" de Vollaerts
foram substituídos por seus respectivos sinônimos, "módulo" e "frase". O termo "sílaba" refere-se
aos módulos mais breves,
17 Ibid.
18. Columbia M2S-275.
19. Angel 35022.
20. Educo ECM 4001.
21. A execuçào de Rubinstein desta sonata está disponível em RCA LM-2311, Veja o Capítulo 1, nota 30.
22. G. S. Bauch (assim como antes, Diabolus), embora imaginário, é uma figura que tem sua presença
assegurada na vida real em todos os tempos e lugares.
23, Para mais informações sobre a seçào áurea, consulte Le Corbusier, Modular I (Lon<lon: Faber, 1951).
Para maiores informações sobre a importância desta na música de Bartók, veja Erno Lendvai, "Qua-
lity and Synthesis in the Music of Bela Bartók", em Module, Proportion, Symmetry, Rhythm (ed. G,
Kepes - New York: Braziller, 1966).
24. "Nào é a melodia da sarabanda, mas sim o baixo com todas as suas possibilidades harmônicas que Bach
elabora e desenvolve. Imutável, este baixo permanece a fundaçào a partir da qual Bach elabora suas
trinta variações" (Wan,.Ia Landowska em Landowska on Music - New York: Stein & Day, 1964, p, 215).
25. A Variaçào 11 (em~~) constitui uma exceçào; em todos outros aspectos ela encaixa-se neste conjunto.
26. O pianista Charles Rosen foi o que chegou mais próximo de perceber a existência de três conjuntos
de variações que constituem o ciclo, bem como seus diferentes papéis - no encarte da gravaçào J. S.
Bach: The Last Keyboard Works (Odissey 32360020),

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 397


27. Landowska gravou as Variações no cravo (RCA Vic LM-1080). A gravação de Rosen é citada na nota
anterior.
28. "Rhythmic Simmety in the Goldberg Variations", Musical Quarterly, p. 204-208, 1966.
29. Rosen, Zoe. cit., aponta para as diferenças de caráter das peças deste conjunto e observa que estas
contemplam "uma enorme diversidade de gêneros".
30. Veja Jacob Obrecht em Complete Works, v. 6-7 (ed. Van Crevel -Amsterdam: Alsbach, 1964).
31. Limitações de tempo e espaço nos obrigam a omitir muitos exemplos fascinantes de organizações
similares de atividade - por exemplo, o processo de aceleração nas variações que concluem a última
sonata para piano de Beethoven, op. 111. Para uma descrição parcial deste processo, veja Donald F.
Tovey em A Companion to Beethoven's Pianoforte Sonatas (London: Associated Board, 1931, p. 276-
279).
32. A estratificação foi reconhecida por Edward Cone como um Stravinskianismo específico. Veja E. T.
Cone, "Stravinsky: The Progress of a Method" em Perspectives of New Music (Fall, 1962, p. 18-26). A
ênfase de Cone é na estrutura de alturas, embora ele refira-se brevemente à estratificação rítmica na
Sinfonia para Instrumentos de Sopros de Stravinsky.
33. Na seção III, os compassos 30-32, no ponto médio exato da peça, constituem um momento singu-
lar. Seus gestos aparentemente "livres", quase rapsódicos, são, de fato, a fusão de todas as diversas
pulsações da peça.
34. Esta análise é uma prescrição para a execução da peça: a pulsação comum de cada camada deve ser
preservada, assim como seus relacionamentos proporcionais de velocidade. Quando esta pulsação
ou seus relacionamentos não são mantidos, (como na gravação do Claremont Quartet, Nonesuch
H-71186), a peça se desintegra em uma sucessão de fragmentos incoerentes (compare esta gravação
com a do Parrinen Quartet, Everest 3184).
35. Donald F Tovey em Essays in Musical Analysis, v. 6 (London: Oxford University Press, 1939, p. 91).
36. Examine, por exemplo, o segundo movimento da Quarta Sinfonia de Sibelius, ou "Putnam's Camp",
das Three Places in New England de Ives.
37. Veja Richard Franko Goldman, "The Music of Elliott Carter" em Musical Quarterly, 43, 1957, p. 151-
70.
38. Escute, por exemplo, a peça de Ives From the Steeples to the Mountains e o terceiro movimento da
Suíte Lírica de Berg.
39. Olivier Messiaen em The Technique ofMy Musical Language (Paris: Leduc, 1942, p. 12-13).
40. Alguns intérpretes utilizaram a complexidade rítmica de Ives como uma licença para a incoerência.
Infelizmente, isto acontece até na execução de William Masselos da passagem que acabamos de des-
crever (Odissey 32160059 ou RCA Vic LSC-29441). Ainda assim, não pretendemos diminuir seu
trabalho heróico em preparar as primeiras execuções desta peça (em comparação, escute Noel Lee,
Nonesuch 71169).
41. Veja John Cage, She Is Asleep (New York: Peters, 143), "Quartet for Twelve Tom-Toms" e "Duet".
Xenakis descreve "nuvens de sons" nas quais se assume um "número médio de pontos por unidade
de extensão" em "Stochastic Music", Gravesaner Blaetter, p. 173-7 4, 1962.
42. Escute, por exemplo, a Messe des pawres (Missa do pobre) de Satie e o terceiro movimento da Primei-
ra Sonata para piano de Ives.
43. A Music For Carri/ion Ide Cage pode ser escutada na gravação do 25º Year Retrospective Concert
(Avakian 1; disponível com George Avakian, Avakian Brothers, 10 West 33rd St., New York, NY,
10001).

398 TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE


Nos Capítulos 1 a 3, observamos como a música toma forma no tempo e
no espaço, definindo o processo) a linguagem musical. cada um dos
capítulos, nosso objetivo principal foi a observação de um aspecto, ou parâmetro,
específico da música - espaço, linguagem e tempo. As possibilidades e recursos de
cada aspecto foram sendo desta maneira revelados, e ressaltamos continuamente
a coordenação necessária desses parâmetros. Assim, aprendemos que:

- a disposição espacial e o movimento espacial das alturas definem ou


dão destaque aos elementos importantes de uma linguagem musical;
- de maneira análoga, a ocorrência de importantes movimentações
e elementos da linguagem demarcam as principais regiões do fluxo
temporal de uma obra musical.

Assim como o espaço relaciona-se com a linguagem, o espaço e a linguagem rela-


cionam-se com o tempo. De fato, todos os aspectos são inter-relacionados, exceto
quando um deles é totalmente eliminado (corno é o caso da linguagem musical
em algumas obras para percussão).
Neste momento, vamos nos concentrar na solidificação de nossas aquisi-
ções prévias de conhecimento. Iremos "caminhar ao redor" de uma obra musical,
levando em consideração cada um dos aspectos que ternos observado e, em espe-
cial, a maneira corno os parâmetros se inter-relacionam. A obra musical analisa-
da consiste em um amplo fragmento da Dança do búfalo dos povos indígenas Zuni
(Exemplo 1.1). Corno vamos considerar somente um parâmetro e suas inter-rela-
cões de cada vez, qu~lquer que seja o escolhido corno base servirá apenas corno
ponto de partida de nossa investigação. Nesse caso, iniciaremos com a linguagem
musical da dança.
-
Como podem ser definidas as principais coleções de alturas? Quais alturas predomi-
nam? Como estas se relacionam entre si e como se relacionam com a coleção principal?
Quais são os intervalos proeminentes?

Ex:e:n1pllo 1.1-A Dança do búfalo dos povos indígenas Zuni 3

J_go 18

19

402 INTERSEÇÃO
O chocalho e o tom-tom são sempre atacados simultaneamente, exceto quando são anotados
separadamente, como nos compassos 15-17.

As alturas e os intervalos de toda a passagem originam-se de uma única


coleção escalar, que ocorre em duas transposições à distância de um trítono (§):

1) Esta coleção predomina na área do primeiro andamento, J= 104

2) Esta coleção predomina na área do segundo andamento, J= 90


A mudança da transposição ocorre depois da primeira nota após a mudança de
andamento no compasso 18. A interseção de dois andamentos e duas transposi-
ções (compassos 17-18) está marcada pela justaposição direta das notas Si e Fá.
Por que as notas Si e Fá? Essas notas definem a relação do trítono entre as
duas transposições. Be fato, cada uma delas atua como nota prioritária dentro de
sua coleção. O Exemplo I.3 (que será discutido a seguir) demonstra que, nos com-
passos 3 e 14, a nota Si constitui-se no objetivo definitivo das movimentações
lineares de curto e amplo alcance que se desenvolvem no decorrer dos compassos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 403


ente1nent12, esta é a nota
nvr'1t1ao:iC>Llo:i 18-31, é

nos compassos 18-22;


-como um nos e 30-31.

áreas
ocorre a
notas ""~·~·~·~· Nesse único
a novas lingüísticas e rítmicas. Através nesta interseção
as notas Si-Fá a relação coleção
duas transposições.
trítono, Dó-Fá# (Soh), assume significativa das
duas transposições. Esse é comum a ambas as transposições. Ele também
sustenta uma relação especial de vizinhança com as notas Si e Fá:
uma relação de semitom (W) descendente (Exemplo L2a). Toda a linguagem mu-
sical desta dança é caracterizada ênfase nas alturas compartilhadas Dó-Fá#
(Solt,) e suas resoluções por semitom para as notas prioritárias relacionadas
trítono (Exemplo L2b).

l!xen1pllo 1.2 - O trítono Dó-Fá# (Sol~) e suas resoluções por semitom em direção ao Si e Fá

b)

O trítono Dó-Fá# (Soll,) constitui-se então em referência intervalar cons-


tante ao longo das mudanças de transposições. A linguagem geral pode ser des-
crita como uma rotação sobre esse trítono em duas direções diferentes, primeiro
em direção ao Si e depois em direção ao Fá. Nessa rotação, as duas notas deste

404 INTERSEÇÃO
como

notas

Si-Fá
- cada nota se destaca por ser a nota de uma
- cada nota é evocada ao longo uma ampla área dança;
- as notas são justapostas uma vez na interseção central
da dançaº

Dó-Fá# (Sol~)
- ambas as notas são apresentadas nas
transposições;
- ambas as notas formam laços comuns e fixos, u1Jtu1uv os
transposicionais distintosº

O som do trítono permeia e ordena os detalhes das alturas e dos intervalos da


linguagem musical da dançaº Assim como em outras outras obras que estudamos,
os relacionamentos de alturas e de intervalos escolhidos são expressados - pela
disposição espacial, repetição e reprodução - de maneira palpável e poderosaº
Examinemos agora a disposição espacial da dançaº Esta disposição nos re-
surpresas e ampliará nossa compreensão da linguagem musical da dançaº

Como as alturas e intervalos predominantes estão dispostos e conectados no espaço?


Quais são os papéis da linha e do registro neste processo? Quais são as conseqüências
espaciais de longo.alcance esboçadas nos primeiros três compassos?

O início da dança é espacialmente impressionante: os saltos nos compassos


2-4 impulsionam ascendentemente as vozes por praticamente toda a extensão

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 405


_................______________ ~~

dança, Si 2-Mi 4 . No início da dança (compasso 2), o salto Ré 3 -Dó 4 desloca o foco
do registro 3 para o registro 4, uma mudança surpreendente cujas conseqüências
descreveremos a seguir.
Esse início propõe um movimento linear descendente@: Ré 3 --+ Si 2 (Exemplo
I.3, compassos 1-3), logo interrompido pela mudança de registro. Toda a primeira
área movimenta-se no sentido de completar este movimento interrompido, o que
finalmente ocorre com o movimento descendente cromático no registro original
(Exemplo I.3, compassos 12-14): Ré 3 --+ Dó# 3 --+ Dó 2 --+ Si2 • O deslocamento
registro no início da dança propicia que a linha descendente seja expandida de
forma mais ampla do que o mero preenchimento local do intervalo@, Ré 3 --+ Si 2 •
Esta expansão atinge, em última instância, um âmbito que compreende Mi4 até
Si 2 . Durante seu transcurso, a linha melódica preenche não só o espaço aberto
pela mudança de registro, mas a extensão total da dança.
Esta linha descendente, interrompida e ampliada oferece oportunidade
para a reprodução de vários detalhes característicos do movimento da dança,
como por exemplo:

- o preenchimento adicional de intervalos @ nos compassos 4, 5, 6,


7-10 e 12-14 (os quais se encontram entre chaves no Exemplo 1.3);
- a lembrança - nos compassos 7-10 ao redor de um Fá# fixo - domes-
mo deslocamento de registro dos compassos 1-3 (Exemplo I.3).

Essas movimentações lineares, que conduzem primeiro ao Si3 e depois ao Si2, es-
tabelecem a prioridade do Si através de todos os compassos 1-14, a área da pri-
meira transposição da coleção escalar da dança. Na área da segunda transposi-
ção, os intervalos @preenchidos de forma semelhante conduzem linearmente
ao Fá, estabelecendo sua prioridade (Exemplo I.3, compassos 18-31). As notas Si
e Fá constituem-se, portanto, nos objetivos definitivos das movimentações espa-
ciais descendentes e, como observamos anteriormente, nas notas prioritárias das
duas principais áreas.
Existem outras conseqüências de longo alcance da disposição espacial do
início, que no compasso 2 claramente destaca o Dó 4 , a nota do deslocamento de
registro. Em relação à linguagem musical, concluímos que o trítono Dó-Fá# (Soll,)
e suas relações de semitons com as notas principais Si e Fá geram as característi-
cas lingüísticas básicas da dança. É precisamente a nota Dó inicial, no inesperado
registro Dó4, que traduz a importância do significado desta nota. A nota Dó 4 (e as
notas cromáticas ao seu redor, Dó# 4 -Rél,4 e Si3) cria um elo de longo alcance entre
a primeira área (Exemplo I.3, compassos 2-4 e 9-12) e a segunda área (compassos
23-26 e 28-30). 4

406 INTERSEÇÃO
Jl:IX,'l!H•i"'" L3 - Análise espacial e teínt:1oral da Dança do búfalo dos povos indígenas Zuni,
compassos 1-31

módulos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 407


í

408 INTERSEÇÃO
d'

É a partir dessas repetições do Dó 4 proeminente que as várias linhas des-


cendentes são conduzidas, movendo-se através de seus trítonos Fá# 4 (Solb4) (como
nos compassos 5-11 e 29-30) em direção aos seus objetivos definitivos, as notas
Si e Fá. O deslocamento de registro inicial, aparentemente interruptivo, de fato

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 409


chama a atenção para a característica de longo mo-
vimentação e da linguagem. O que inicialmente parecia ser uma se
transforma, a longo prazo, no elemento estrutural Assim que o trítono
Dó-Fá# é nitidamente apresentado pela configuração espacial do início, o resto da
dança pode explorar (com uma inventividade apenas nesse fragmento)
uma variedade de possíveis malabarismos e resoluções de seus elementos.
Existem, portanto, dois níveis de conexão espacial:

- as movimentações lineares locais e imediatas, como aquelas em di-


reção às notas Si3 (compassos 3-4), Si2 (compasso 14) e Fá3 (compas-
sos 26-27 e 30-31);
- a conexão de longo alcance entre as notas que são, ao mesmo tempo,
espacialmente proeminentes e de grande relevância lingüística (por
exemplo, a nota Dó 4 nos compassos 2-4, 10-11, 23-26 e 28-30).

COORDENAÇÃO DO ESPAÇO E DA LINGUAGEM

O Exemplo I.4 mostra, em um único modelo, a coordenação dos elementos


da movimentação e da linguagem que discutimos anteriormente:

- os dois trítonos Si-Fá e Dó-Fá# fornecem todas as notas que atuam


como objetivos de movimentações e (através de suas presenças con-
tínuas) determinam a sonoridade prevalente da dança;
- todas as notas da linha inferior são dobradas uma oitava acima.
Como elaboram a nota Dó, recebem uma apresentação birregistral
e enfática;
- as movimentações dos intervalos ® preenchidos emergem como
elaborações similares das notas dos trítonos principais.

Esses intervalos ® de terças preenchidos são interessantes também sob outro


ponto de vista. Assim como o padrão Ré-Dó-Si fornece a base linear para toda
a primeira área (compassos 1-14), sua transposição à distância de um trítono,
Láb-SolkFá, serve como base à segunda área (compassos 20-31). Neste caso, o
intervalo® preenchido inclui uma nota do trítono Dó-Fá# (Solb) e sua resolução
por semitom em direção a uma nota primária. O paralelismo se estende também

410 INTERSEÇÃO
no ~···~"·~~ posterior (Lá~-Sol-So}b-Fá, compassos 25-31) que
corresponde ao n-n,Pn cromático (Ré-Dó#-Dó-Si, compassos 1-31
e 13-14).
Um aspecto especialmente fascinante dessas passagens consiste na podero-
sa unidade orgânica dos gestos musicais que, em sua superfície, pareciam tão dis-
similares. As coleções de notas que aparentavam ser diferentes são, no entanto,
transposições à distância do trítono da mesma coleção. Esses detalhes lineares
refletem, além disso, uma única unidade linear subjacente, apesar das diferenças
de transposição, de nota prioritária e, como veremos na continuação, no anda-
menta e no ritmo.

Zuni

comp. 15 18 24 30 31

TEMPO E RITMO: DIMENSÕES E ATIVIDADE

De que maneiras podem ser comparadas as dimensões e a atividade das duas áreas de
diferentes andamentos? A que transformações são submetidos os módulos e as frases?
Em relação às dimensões e à atividade, o que o compasso 6 apresenta de notável?

Por mais reveladoras que sejam as formações de alturas, o detalhe mais


singular e impressiol}ante da dança é rítmico: uma tercina incompleta, ou inter-
rompida, que desloca o pulso rítmico no compasso 6 (Exemplo I.Sa). Um desloca-
mento idêntico ocorre no compasso 13 (Exemplo I.Sb). Na segunda área, os des-
locamentos recorrem, em apresentações sutilmente diferentes, nos compassos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 411


t;xen1u1.o I. - Os deslocamentos na atividade rítmica causados pelas tercinas truncadas
eª'-ª~'~~ com um*)

Este detalhe rítmico, assim como o trítono na linguagem musical e a mu-


dança de registro no espaço musical, não é importante por si só. Tal como nos
outros elementos citados, seu significado pleno emerge de suas relações com a
estrutura geral - nesse caso, com as dimensões temporais da dança. O Exemplo
I.3 sugere o número e a duração das seções e frases formam as áreas~ .... ~,
sionais da dança:

- seção I, primeiro andamento: j =104, quatro frases, compassos 1-14


frase de transição, compassos 15-19
- seção II, segundo andamento: j = 90, três frases, compassos 20-31

As frases da seção I, em detalhes, são formadas por:


2
a= 14 b = 10 / 3
2
a'= 13 b' = 13 / 3

(A frase de transição consiste de:


andamento J = 104, 5 J
andamento J= 90, 8 J
total = 13 J)

412 INTERSEÇÃO
sutil, é
as Ré-Dó#-Dó-Si,
com seu deslocamento registro característico) são rememoradas em a'.
As frases a, a' e b, são similares de outra maneira: todas elas duram de treze
J ou seja, todas apresentam a mesma aproximada (nesse
as pausas das vozes no início de a devem ser contadas; como em a', a
da voz de a ocupa o espaço de a duração de b difere
significativa: 10 %
a importância da duração mais curta da frase b? Observemos ''"'~"··
a conclusão de b se entrelaça com o início da frase seguinte, a', em uma
nota Fá# Caso essas duas j do Fá# contínuo fossem consideradas
b, então b teria duração de 12 ~ j, ou seja, a mesma duração aproximada das de-
frases. Conseqüentemente, entre b e a', nos compassos 6-7, existe uma elisão
(ou seja, uma sobreposição ou encontro). A nota Fá# é o de sobreposição
e desempenha dois papéis:

- no compasso 6, a nota Fá# conclui b com o ritmo de tercinas truncadas;


- no compasso 7, a nota Fá# inicia a, com a atividade de semínimas
repetidas característica da frase a (módulo y).

A nota Fá# contínua participa no ritmo de ambas as frases.


A elisão funde, na seção I, duas amplas partes simétricas em uma movimen-
tação contínua, tanto nas alturas quanto no ritmo, que prossegue em direção a
seu destino final, a nota prioritária Si2 no compasso 14:

O ponto médio estrutural da seção I é delimitado pela tercina truncada

no compasso 6 e pela frase b truncada. No parâmetro das

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 413


alturas, esse mesmo ponto central é delimitado pelo Fá# longo, integra o
trítono Dó-Fá# onipresente.
Para entender o objetivo da elisão, vamos compor uma versão alternativa
compasso 6. Nesta versão, o truncamento da tercina e da frase e, conseqüen-
temente, a elisão são eliminadas:

do compasso 6, dura 13 J.
Com essa substituição, toda a movimentação propulsiva, linear e rítmica da se-
ção I se distenciona. A conclusão da movimentação da nota Fá# 3 ao Si3 é retida
por muito tempo. Em contraste, a elisão confere à dança um ímpeto que direcio-
na suas movimentações lineares e rítmicas para suas terminações, a chegada no
Si2 no compasso 14. Nesse ponto de chegada, o equilíbrio rítmico, momentanea-
mente desordenado pelos truncamentos das tercinas e das frases no compasso
6, é completamente normalizado pela recorrência e reintegração de todos os
elementos rítmicos anteriores. Novamente, um pequeno detalhe da atividade -
o truncamento das tercinas - espelha uma ampla característica dimensional, o
truncamento de frase. Dessa forma, o truncamento da tercina é então absorvido
pela repetição e por outras transformações dentro da atividade rítmica da dança.
Esta fascinante junção no ponto central da seção I não é, de modo algum,
um exemplo isolado dentro da dança. Outro exemplo igualmente sutil consiste na
transição interligada no ponto médio mais amplo, entre as seções I e II. A frase de
transição que ocorre neste momento, nos compassos 15-19, funde os andamentos
e as coleções escalares de ambas as seções e justapõe diretamente, pela única vez
na dança, as notas prioritárias Si e Fá (além disso, sua duração equivale a 13 J).
Os paralelismos de duração da seção I também não são singulares. Aqueles
encontrados na seção II - três frases de: 12, 12 % e 12 % semínimas - são similares.
Para concluir, uma observação referente às dimensões e às atividades. A
duração da primeira frase da seção I (quatorze J, com J= 104) e da primeira frase
da seção II (doze J, com J= 90) é de oito segundos cada uma. Em tempo real, a
duração das frases é idêntica. 5
Que idéia maravilhosa! Áreas dimensionais de mesma duração são preen-
chidas com atividades relacionadas, porém sempre em novas roupagens:

414 INTERSEÇÃO
- dois UHU.UHH-LU.V0 j 104 e
=
-duas t-o-v·ont-oc de deslocamento por tercinas incompletas,

- um número reduzido de módulos, constantemente variados e rea-


grupados, como mostra o Exemplo 1.3.

Partindo de seções e frases em direção aos mais minuciosos e diminutos detalhes


da atividade modular, as durações formam uma rede de variações inter-relacio-
nadas, nas quais cada elemento gera uma corrente contínua de conseqüências
inéditas e inesperadas.

LINGUAGEM, ESPAÇO E TEMPO

A íntima conexão entre os parâmetros torna-se imediatamente aparente.


Comentamos anteriormente a constante interação entre linguagem e espaço. Ob-
servamos agora vínculos similares entre esses parâmetros e o tempo. Cada uma
das duas seções da Dança do búfalo apresenta:

- sua própria linha descendente, uma em direção à nota Si e outra em


direção à nota Fá;
- sua própria transposição da coleção escalar;
- suas próprias resoluções do trítono Dó-Fá# (Solb);
- sua própria nota prioritária;
- seu próprio andamento;
- suas próprias variantes dos módulos rítmicos.

Trabalhando conjuntamente, esses elementos atuam de maneira poderosa na de-


limitação de durações relacionadas, praticamente idênticas, das duas seções. Ao
mesmo tempo, a igualdade de duração atua de maneira poderosa para assegurar
o significado equivalente de:

- cada uma das duas linhas descendentes;


- cada uma das duas transposições;
-cada uma das duas resoluções do trítono;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 415


parâmetro reforça e
Todos esses vários
e, de maneira
transformações significativas. Na
pequenos, grande

- os intervalos ®preenchidos;
- o birregistral nota Dó;
- os deslocamentos rítmicos causados pelo truncamento das tercinas.

Esses aspectos são mantidos ao longo de ambas as seções. destes as-


pectos significantes assegura e a coerência formal estrutural). Procuran-
do a definição de forma adequada para todo pensamento e experiência contemporâ-
neos, o físico L. Whyte escreveu: "A forma é a continuidade reconhecível de
processo". 6 Aqui temos uma obra musical de incomum ordem formal e densidade: a
continuidade reconhecível de vários processos refletidos que colaboram entre
Posteriormente, no Capítulo Poslúdio, refletiremos ainda mais sobre as ma-
neiras pelas quais a continuidade dos processos musicais, como descritos neste
livro, cria a forma. Observemos apenas que esta coerência formal não tem
nada a ver com temas melódicos e suas repetições, como é tão freqüentemente
afirmado. Em nosso fragmento da Dança do búfalo, nenhum tema melódico recor-
re para unir as seções I e II. Ao invés disso, em cada nível, os processos formais da
linguagem, do espaço e do tempo realizam a interconexão das seções. Da superfí-
cie até a profundidade, cada uma das seções e cada um dos parâmetros refletem
totalmente a essência dos demais.

NOTAS

1. Claude Debussy em Monsieur Croche the Dilettante Hater (trad. B. N. Landgon Davies; reimpresso em
Three Classics in the Aesthetic of Music, New York: Dover, 1962, p.7).
2. Gyorgy Ligeti, "About Lontano", em notas de gravação para Heliodor-Wego 2549 011.
3. A dança foi gravada em Music of the American Indian, Everest 3450/3, gravação em disco 3, lado 2,
faixa 2. A transcrição é de Robert Cogan. A divisão em compassos é proposta apenas como auxílio
para a leitura; nenhum significado adicional deve ser lido na colocação das barras de compassos. O

416 INTERSEÇÃO
fragmento é quase um terço da em tempo reaL O compasso 31 foi escolhido como ponto final
porque imediatamente, no compasso 32, inicia-se uma nova idéia que recorre continuamente até 0
da dança, Sua ocorrência inicia um novo estágio no desenvolvimento da dança,
A contínua elaboração do Dó" por seu vizinho cromático, Dó#4 = Réb4, não deve ser ignorada (ver com-
passos 3, 10, 24 e 28), Junto com a crucial relação de Dó 4 com seu vizinho cromático, Si 3 , o resultado é a
inserção de Dó4 em um círculo cromático, Para outros exemplos do circulamento de Dó, ver Exemplo LS,
Isto também é quase verdadeiro em relação à duração das seções, A Seção I dura 29 segundos, e a
seção II, 28 segundos, Considerando a área coberta por um determinado andamento, a primeira
área de tempo equivale a 33 segundos e a segunda área de tempo (até o compasso 31) equivale a
34 segundos, Esses tempos são praticamente semelhantes, As pequenas diferenças encontram-se,
obviamente, circunscritas na margem de erro tanto de mensuração quanto de erro percentual (as
pequenas discrepâncias entre a cronometragem efetiva, dada aqui, e aquela resultante do cálculo do
número de tempos a partir da indicação metronômica resultam das aproximações necessárias para
se designar uma indicação metronômica),
The Next Development in Man (New York: Mentor, 1948, p, 15, Compare com a observação de que "a
forma é um resultado - o resultado de um processo" (Edgard Varêse, "Rhythm, Form and Content",
no Contemporary Composers on Contemporary Music, ed, E, Schwartz e R Childs - New York: Holt,
Rinehart & Winston, 1967, p, 203),

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 417


Reconhecem-se, no som, três qualidades: altura, timbre e intensidade. Até agora, o som
tem sido medido somente em uma das três dimensões nas quais se expande: naque-
la que denominamos altura. Dificilmente se têm até aqui realizado experimentos de
medi-lo nas outras dimensões e menos ainda tentativas de ordenar os resultados em
um sistema. A valorização da sonoridade tímbrica (cor do som), da segunda dimensão do
som, encontra-se, portanto, em um estágio ainda muito mais ermo e desordenado do
que a valoração estética destas harmonias nomeadas por último. Apesar disso, se ousa
tenazmente alinhar e opor sonoridades meramente conforme o sentimento, e ainda
não ocorreu jamais a alguém exigir de uma teoria que ela estabeleça as leis segundo
as quais se possa fazê-lo. Por enquanto, isso simplesmente não é possível. E, como se
pode ver, caminha-se sem isto. Talvez conseguíssemos perceber diferenças com maior
exatidão ainda se tentativas de realizar medidas nesta segunda dimensão já houvessem
alcançado um resultado palpável. Ou talvez não. Contudo, seja como for, está cada vez
mais alerta a nossa atenção aos timbres, e aproxima-se a possibilidade de ordená-los
e descrevê-los. Com isso, provavelmente virão também teorias restritivas. Podemos,
de momento, julgar o efeito artístico destas relações somente com o sentimento. Não
sabemos como se relacionam como a substância do som natural, e talvez nem ainda o
suspeitemos; escrevemos, porém, seqüências tímbricas, despreocupadamente, as quais
se arranjam de algum modo com o sentimento da beleza. Que sistema serve de base a
estas sucessões?

Não posso admitir, de maneira tão incondicional, a diferença entre timbre e altura tal e
como se expressa habitualmente. Acho que o som se faz perceptível através do timbre,
do qual a altura é uma dimensão. O timbre é, portanto, o grande território, e a altura,
um distrito. A altltra não é senão o timbre medido em uma direção. Se é possível, com
timbres diferenciados pela altura, fazer com que se originem formas que chamamos
de melodias, sucessões cujo conjunto suscita um efeito semelhante a um pensamento,
então há e também é possível, a partir dos timbres da outra dimensão aquilo que sem
mais nem menos denomina-se timbre, produzir semelhantes sucessões, relação en-
tre si atue como uma espécie de lógica totalmente àquela que nos satisfaz
na melodia de alturas. Isso parece uma fantasia futurística, e provavelmente o seja. Mas
se há algo em que acredito firmemente, é que ela se realizará. E acredito firmemente que
será capaz de elevar, de forma inaudita, os prazeres dos sentidos, do intelecto e da alma
que a arte oferece. Creio firmemente que nos levará mais próximo à miragem refletida
em nossos sonhos [...]

Melodias de cores de sons! Que sentidos refinados aqui se diferenciam! Que espírito
sublimemente desenvolvido pode encontrar prazer em coisas tão sutis! 3

A cor som talvez seja o mais


radoxo reside no contraste entre seu poder de comunicação e a
de histórica de ser compreendida crítica ou analiticamente. Uma teoria da cor
musical ainda está por ser criada. Este é singular, na medida em
tenta desenvolvê-la, praticamente primeira vez. Embora a psicofísica tenha
desenvolvido teorias e procedimentos de análise da cor sonora, essas teorias não
abrangem essa análise em um contexto musical. A análise musical da cor sonora
requer uma explanação sobre a escolha e a sucessão das cores sonoras em um
contexto musical. Uma análise deste deve explicar os princípios que
os diversos sons da obra analisada, ou seja, não pode limitar-se sim-
plesmente à descrição de sons individuais, não importando quão tecnicamente
sofisticada esta descrição possa ser. Portanto, embora a análise psicofísica parta
de sons individuais, precisamos ultrapassar este estágio e formular princípios a
partir dos quais as cores sonoras possam ser relacionadas em um contexto mu-
sical específico.
Para compreender a inovação desta abordagem, devemos nos lembrar que,
no passado, além de não ter sido analisada, a cor sonora não foi, de fato, anotada.
Ao invés de anotar a cor do som, os musicistas anotaram os meios instrumentais
pelos quais ela é produzida. Por exemplo, um intérprete é instruído a percutir
ou soprar um instrumento de uma determinada maneira. Tal procedimento é
análogo à notação de alturas nas tablaturas para alaúde e guitarra, que indicam
somente a posição dos dedos no instrumento: o intérprete sabe o dedilhado que
deve ser empregado, mas não qual será a nota resultante. Caso este procedimen-
to fosse amplamente adotado, o desenvolvimento de teorias de relações entre
alturas não teria sido possível, na medida em que estas relações dependem do
movimento e da distância entre as notas utilizadas (como constatamos nos Ca-
. pítulos 1 e 2) - e não do dedilhado necessário para produzi-las. Esta notação que

420 A COR DO SOM


desenvolvimentos atuais música européia e americana. De fato, um impor-
da evolução da música atual, que começa com Berlioz e chega até a
eletrônica, tem sido a descoberta de novas cores tonais e de formas
dependem de suas combinações. disso, os leitores que são instrumentistas
(ou seja, todos os leitores, a voz é um instrumento e a fala uma seleção de
determinados sons vocais) aprenderão fatos essenciais a respeito dos sons
pelos seus instrumentos.
É necessário, esclarecer desde agora
outro capítulo deste estamos lidando com os limites do
*As análises, reveladoras, freqüentemente se encontram ainda em
estágio inicial. A análise da cor sonora dos instrumentos, bem como as informa-
ções adicionais necessárias, ainda não existem na quantidade desejada ou em
um de sofisticação que nos completar as sugestões propostas neste
capítulo. Embora incompleta, a informação disponível é, contudo, de tal mag-
""·"~'~ que não pode ser ignorada. essas informações aos musicistas e
ouvintes significa privá-los de conceitos essenciais para a compreensão tanto de
musicais ancestrais quanto das mais atuais - conceitos que, de fato, são
fundamentais para a compreensão dos mais estimulantes trabalhos que estão
sendo feitos atualmente por músicos e pesquisadores do som. Ao propor certos
fundamentos da teoria da cor do som, esperamos possibilitar seu desen-
volvimento e capacitar nossos leitores a entender esses desenvolvimentos à me-
dida que ocorrem.

* N. T. A edição aqui traduzida é de 1976 (1 ªedição).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 421


O que cria a cor de um som? Helmholtz propôs em 1863 que: "as diferen-
ças de cor sonora surgem principalmente da combinação de diferentes parciais
com intensidades distintas". 4 Esta teoria marca o início da análise da cor sonora
(veja o Apêndice B - A psicofísica do som). A variação do número e da
dos parciais origina diferentes cores tonais a partir de uma mesma fundamental.
Cada parcial adicional (e a mudança de sua intensidade relativa) confere uma
nova nuance à cor da fundamental.
Os analistas de som têm feito algumas generalizações sobre as transfor-
mações de cor produzidas por cada um dos vários sons parciais. James Jeans
descreve-as da seguinte forma:

- o segundo parcial adiciona clareza e brilho;


- o terceiro parcial adiciona brilho, mas também características que
podem ser descritas como "ocas'', guturais ou nasais;
- o quarto parcial adiciona mais brilho e mesmo uma certa estridência;
- o quinto parcial adiciona uma qualidade plena que se assemelha ao
som da trompa;
- o sexto parcial adiciona uma delicada estridência de característica
nasal.

Esses seis primeiros parciais fazem parte da tríade maior da fundamental,


o que não ocorre no sétimo, nono, décimo primeiro e em outros parciais ímpares
ainda mais elevados. Estes parciais ímpares adicionam novas relações e podem
introduzir qualidades de aspereza ou rudeza. 5
Helmholtz aborda o mesmo problema de uma maneira um pouco diferente,
propondo várias classes de cores:

Primeira classe - ondas senoidais simples, como as do diapasão colocado sobre um res-
sonador ou um tubo de órgão com registro largo, cujo som é suave e agradável, livre de
qualquer aspereza, mas deficiente em força nas alturas graves.

Segunda classe - notas acompanhadas por uma série moderadamente intensa dos pri-
meiros seis parciais, como aquelas do registro médio do piano, do tubo aberto de órgão
e dos sons mais suaves da voz humana e da trompa; são sons harmoniosos e musicais,
ricos e cheios de esplendor se comparados aos sons simples e, ao mesmo tempo, doces e
macios, quando os parciais mais elevados estão ausentes.

422 A COR DO SOM


Terceira classe - sons que
apresentam apenas os ímpares, produzindo um som mais vazio e mesmo de
qualidade nasaL Quando o som da fundamental predomina, a qualidade sonora é rica;
quando a fundamental é fraca, a qualidade é pobre.

Quarta classe - notas dos instrumentos de arco, a maioria das palhetas do órgão, do
oboé, do fagote, do harmónio e da voz humana (certas vogais). A proeminência de har-
mônicos a partir do sexto parcial resulta em uma qualidade do som cortante e áspera. 6

Neste momento, devemos reconhecer que Jeans e Helmholtz estão genera-


lizando a respeito de questões muito complexas. Suas afirmações devem ser to-
madas como simplificações introdutórias, especialmente considerando que eles
ignoram a questão da quantidade de parciais necessária para que a cor do som
seja modificada. Ambos oferecem, entretanto, uma abrangente visão inicial da
mudança de cores realizada pela presença (ou ausência) de vários parciais.
A seleção de parciais presente no som de um instrumento e suas relativas
intensidades é chamada de espectro do som (os Exemplos 4.1 e 4.3 apresentam
os espectros de notas em vários registros do piano, executadas em diferentes
dinâmicas). A análise e a notação do espectro oferecem um meio de comparação
direta entre as cores sonoras. Nas páginas seguintes, iremos, entre outras coisas,
prosseguir esta análise e comparação em uma variedade de sons e combinações
instrumentais.

A COR SONORA DO PIANO

O psicofísico Harvey Fletcher, analisando a cor do piano oitenta anos de-


pois de Helmholtz, escreveu:

É verdade que a qualidade depende da forma da onda (ou espectro: os diferentes parciais
e suas respectivas intensidades, na concepção de Helmholtz), porém também depende
da altura, do volume sonoro, do decaimento e do tempo de ataque, da variação da in-
tensidade dos parciais durante o transcorrer do tempo, do ruído do impacto do martelo,
do ruído do pedal e também da terminação característica do som causada pelo feltro da
surdina, etc. 7

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 423


cor sonora um
racterística, mas consiste em uma mistura

quanto seu crescimento; o


ou um espectro com o a extinção do som (release),
decaimento, abafamento, o after-ring, ou outras """"''-'-'"'
Podemos reformular a descrição de Fletcher da cor
seqüencial, à que ocorre no tempo:

ataque - ruído de impacto


engloba tanto a intensidade a freqüência do ruído de
impacto. Um ataque forte implica não apenas um forte ruído de
impacto, mas também a inclusão de mais freqüências agudas
do que no caso de um ataque leve (Exemplo 4.1). O de
impacto de uma nota forte e aguda é relativamente mais forte
que o de uma nota forte e grave.
- tempo de ataque:
duração do ruído de impacto (entre 0,03 e 0,1 segundo),
dependendo do registro.

corpo - altura e registro:


os espectros dos sons do piano são diferentes em registros
distintos (Exemplo 4.2);
no registros mais grave, a fundamental é fraca e o número e a
energia dos parciais mais agudos são elevados. Nos registros
mais agudos, a fundamental é forte e o número de parciais é
pequeno.
-volume:
o número e as relativas intensidades dos parciais do espectro
variam com o volume e com o registro (Exemplo 4.1). Sons
mais intensos e agudos produzem maior quantidade de parciais
agudos e mais fortes;
o ruído do pedal (surdina);
variação com o tempo da intensidade dos parciais (Exemplo 4.3).

extinção - tempo de decaimento:


a velocidade da redução do som total em função do tempo. O
tempo de decaimento depende do registro, da dinâmica e do
tipo de pedalização utilizado (os tempos de decaimento em
diferentes registros estão indicados no Exemplo 4.2);
a terminação característica de um som produzida pelo abafador.

424 A COR DO SOM


Os espectro da nota Dó 2 (65 cps) produzida pelo piano em três dinâmicas diferentes. As linhas
verticais indicam o volume relativo dos parciais. As curvas abaixo das linhas verticais indicam
as regiões e o volume relativo do ruído de impacto. 8

Fletcher descobriu outra peculiaridade dos sons do piano: devido à rigidez


da corda em vibração, certos parciais (especificamente nas notas graves) são agu-
çados; esta pequena discrepância da entoação, longe de ser desagradável, produz
no som um elemento de "calor". Quando os espectros do piano são eletronica-
mente sintetizados com parciais afinados, soam "frios" e nem um pouco pareci-
dos com os sons do piano. Porém, quando as pequenas discrepâncias de entoação
são incorporadas nos parciais sintetizados (e, obviamente, com características
similares de ataque, corpo e extinção), espectros sintetizados tornam-se "caloro-
sos" e indistinguíveis dos sons verdadeiros do piano. Uma característica similar
é a necessidade de uma sutil desafinação entre duas ou três das cordas "idênticas"
que o piano apresenta para uma mesma altura. 9
As sutilezas da cor do som começam agora a se tornar aparentes. Uma al-
teração mínima transforma o timbre do piano de tal maneira que torna seu som
característico irreconhecível. Por exemplo, o fato de o ruído de impacto ser leve-
mente encurtado ou prolongado, ser mais suave ou intenso - ou mesmo o estrei-
tamento e extensão de suas bandas de freqüências - é suficiente para destruir a
sensação do timbre dp piano, mesmo se todas as demais características permane-
cerem inalteradas. As medições intuitivas do ouvido são, portanto, extraordina-
riamente sutis. Somente a partir do desenvolvimento de uma tecnologia eletrô-
nica sofisticada para lidar com a síntese e a análise de som, realizado durante os

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 425


cinqüenta anos, tornou possível 0-"-''"·'""'"'
nível dos mais minúsculos detalhes) e sua
vez, traz a possibilidade de uma compreensão
sutilezas, as primeiras formas de percepção as quais se
o mero reconhecimento de um som ou com o
mento da existência de parciais, podem nos parecer agora grosseiras.
Um caminho completamente novo de profunda percepção aberto com o
advento da sofisticada tecnologia eletrônica, que permite a abordagem do espec-
tro total de cada um dos sons musicais. Isso é de uma importância transcendente:

para tratar adequadamente o fenômeno da cor do som, devemos considerar o espectro


vibracional completo dos eventos sonoros e não apenas uma redução simplista do som
a uma fundamental (como na notação convencional e em quase todas as teorias ante-
riores), ou a descrição de uma instrumentação/orquestração (como o que, até agora, tem
passado por teoria da cor do som).

mimem do
5 15 20 25 30 35 45

3()

20
10
o
30
Dôs ft ""' 65/~
.o 20 Rtaque 0,00)
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decaimento ~ 1.,26
f!
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Dó., ~ 130,8

ataque " 0,003


decaimento = lr26
10
o
Dó 6 f, Hl46 Dó' f, ~ 2093
30
A 0,003 A 0,003
D~ 0,91 D ~O,B
20

10
o
10 l 2

426 A COR DO SOM


Os espectros das noras produzidas pelo piano. Cada ponto da linha dentada
representa um parcial (segundo Fletcher).

Os Exemplos 4.2 e 4.3 foram retirados de Harvey Fletcher, E Donnell Blackham e Richard Stratton, "Quality
of piano tones", Journal of the Acoustical Society ofAmerica (1962), p. 753-754. Reproduzido com permissão dos
autores e do American Institute of Physics.

tempo - sei:;:·mH:tos

O gráfico mostra a variação de intensidade no transcorrer do tempo dos parciais 1-6 da nota
Dó 4 . Ao término de um segundo, o som contém apenas os parciais 1-3 e a fundamental é
consideravelmente debilitada (segundo Fletcher).

Na profética afirmação citada no início deste capítulo, Schoenberg intuiu a suti-


leza da distinção sensorial da cor do som.
Como acabamos de constatar, uma mínima transformação de uma das vá-
rias características da cor do som tornará irreconhecível o som de um piano. En-
tretanto, essa é uma forma negativa de interpretar estas transformações. Pelo
lado positivo, tais transformações sutis oferecem oportunidades para a criação
de novos sons e cores, e sugerem a ampliação dos recursos na composição baseada
em cores sonoras. Essa composição envolve, então, a criação de um contexto no
qual tais transformações são significativas. Vamos abordar agora uma tradição
musical na qual tais riquezas são exploradas.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 427


certas """'-"'-ª"'
tamente desenvolvida.

este instrumento, é possível encontrar uma~~-~""-~~~


especificamente de execução, teoria e estética.
Enquanto a notação clássica européia u··~"-~ a o e as
sidades, a notação do ch'in para nota um símbolo que descreve o
meio de produzir sua cor sonora (oito duzentos
disponíveis são mostrados no Exemplo 4.4):

- a corda a ser usada (aberta ou abafada);


- a técnica de abafar a corda ou harmônica);
- a técnica de ataque, seja com a mão, com o dedo ou a
- a direção do ataque;
- leve atrito ou glissando;
- as várias formas de vibrato;
- múltiplos ataques;
- combinações de todos esses.

""''~m-nln 4.4 -Alguns tipos de toques do ch'in (segundo van Gulik, Levy e Tsar
Teh-yung) 11

San: cordas abertas, apenas mão direita


Shih: cordas abafadas
Fan: harmônicos, produzidos por um leve toque da mão esquerda no
lado oposto à cravelha, na corda indicada - "borboletas brancas
explorando flores"
T'o: o polegar da mão direita dedilha para fora - "uma garça dançando
no vento"
Mo: indicador da mão direita dedilha para dentro - "uma garça
cantando na escuridão"

428 A COR DO SOM


um o de um macaco
sobe em uma árvore"
Extraído de: BBC LP REGL 1 (Westminster WBBC-8003), Chinese Classical Music, notas escritas por John Levy.
Reimpresso com a permissão do autor.

'-'"'.,~um pesquisador de ch'in escreveu, mesma nota, em diferentes


apresenta uma cor diferente; a mesma corda, quando dedilhada pelo
, .... ""~~·J• ou pelo dedo meio da mão direita, tem um diferente. Somente
em relação ao vibrato, existem não menos que vinte e seis variedades".12 Através
destes recursos instrumentais, o envelope sonoro é modificado. duração
e freqüência do espectro de um ataque podem ser
dos através destes recursos, bem como o espectro e o volume do corpo, e mesmo
a própria altura, afetada pela utilização do vibrato e de glissandos (slides). Por
conseguinte, a extinção do som também é afetada por todas estas variações no
envelope sonoro.
Apesar destes sons ainda não terem sido cientificamente analisados - seu
elevado número, as diferenças sutis e o decaimento rápido tornam sua análise
uma tarefa realmente desafiadora - a análise precedente do som do piano pode
nos ajudar a perceber algumas distinções das cores sonoras do ch'in. Por exemplo,
as notas das cordas abertas graves (San, no Exemplo 4.4) são ricas em parciais su-
periores e apresentam decaimento lento se comparadas com as notas produzidas
pelas cordas abafadas (Shih). Os harmônicos (Fan) produzem ainda menos par-
ciais superiores. A intensidade do ruído de ataque depende da força do dedo que
dedilha e do nível de participação da unha no impacto do ataque. Um dedilhado
para dentro executado pela unha do polegar (chamada P'i) produz um intenso
ruído de ataque ao longo de uma ampla banda de freqüências, enquanto que um
glissando, a partir de uma nota previamente atacada, produz uma nova nota qua-
se que sem ruído de ataque.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 429


~-------------------~~

As seções 1 e 2 incorporam vários contrastes de espaço e cor sonora. Quais são eles?
Como esses contrastes dão origem ao design e às cores de toda a peça? Na seção 1, exis-
tem áreas com diferentes características de ataque. Quais são elas? Como essas diferen-
ças de ataque ocorrem no restante da peça?

No Capítulo 1, observamos (nas peças para piano de Beethoven e Schoen-


berg) que os contrastes de cores sonoras eram produzidos pela justaposição de
registros amplamente separados. Esses foram caracterizados da maneira mais
geral possível como contrastes de brilho-opacidade. A análise do espectro dos
sons do piano ajudou a esclarecer a natureza destes contrastes (Exemplo 4.2).
As características do espectro instrumental são diferentes em cada oitava. Os
registros amplamente separados no piano (entre Dó2 e Dó 5 , por exemplo) exibem
espectros radicalmente diferentes. É interessante ressaltar que, mesmo quando
não há mudança no espectro (como nos sons senoidais que consistem apenas de
uma fundamental sem a presença de outros parciais), a mudança da cor do som
entre os diferentes registros é ainda percebida. Isso se torna evidente quando
escutamos o som da onda pura (sem parciais) passando por todos os registros e
o associamos com certas vogais. Nos registros mais graves, associamos as vogais
"u" e "o" ao som; nos registros mais agudos, associamos a vogal "i" (estas regiões
correspondem às próprias formantes dessas vogais, veja o Apêndice B - A psico-
física do som). Portanto, mesmo quando o espectro é mantido, a mudança de re-
gistro significa também mudança de cor: movimentos registrais por si só criam
contrastes de cores tonais. 13

COR E REGISTRO EM PLUM BLOSSOM

Nas Três variações sobre Plum blossom, podemos discernir um plano do mo-
vimentação registral notável em sua abrangência e complexidade. Como sugere
Frederic Liebeman, "a forma é desenvolvida a partir de uns poucos motivos bá-
sicos e por contrastes entre os registros agudos (harmônicos) e graves".14 Essa
descrição, contudo, nos dá apenas uma pequena idéia sobre a efetiva capacidade
de invenção e complexidade do design registral.

*Atribuído a Huan I, dinastia Tsin, século IV a.D.; anotação da dinastia Ming, 1425.

430 A COR DO SOM


Exen1pllo 4.5 - Mei Hua San Nung [Três variações sobre Plum hlossom ("Ameixeiras em floração")],
cítara Ku-ch'in por P'u Hsüeh-chai

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 431


432 A COR DO SOM
o

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 433


,.......________________ ~~~

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.!::.

J .,104

[B] u

434 A COR DO SOM


SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 435
A peça contém dez seções, indicadas pelos números entre parênteses
no Exemplo 4.5. As duas primeiras seções expõem o contraste entre registros
iniciais:

- as cordas abertas do ch'in, registro 2, na seção 1;


- os harmônicos dessas cordas abertas soando nos registros 4-5, na
seção

A oposição de registros (2 contra 4-5) e de colorido (cordas soltas ricas em


parciais contra harmônicos com poucos parciais) iniciam uma evolução de movi-
mento e cores em múltiplos níveis, que é detalhada nos Exemplos 4.6 e 4.7. Nes-
ses exemplos, os elementos registrais das dez seções estão separados de forma
que o movimento de registro de cada elemento possa ser seguido. Existem três
elementos, representados no Exemplo 4.6 como A, x e y; cada um deles representa
uma configuração diferente de vários parâmetros musicais e desempenha uma
função diferente.
A movimentação principal da peça é desenvolvida pelo elemento A e compreen-
de sete seções distintas. Essa movimentação forma um longo desenho de arco,
cujo ápice ocorre na seção central de A, a seção 7. Esta é a movimentação que, na
seção 1, inicia nas cordas abertas, no registro 2; ascende nas seções 3 e 5 pelos
registros 3 e 4 até o seu ápice no registro 5 (seção 7) e depois submerge novamente
até o registro 2 (seção 10). Todo este movimento do elemento A está resumido no
Exemplo 4.6.

436 A COR DO SOM


As barras verticais mostram o âmbito de uma seção. Os lapsos nesse âmbito e a separação
registral também são mostrados.

elemento X elemento y

Compreende as seções 2, 4, 6 e os oito últi- Compreende o final das seções 5, 7, 8, 9 e


mos compassos da seção 10. os compassos 10-14 da seção 10.

Concentra-se nos registros mais agudos. É apresentado somente no registro mais


grave da peça, o registro 2.

Seus registros descendem em dois níveis, É completamente imóvel.1 5


iniciando nos registros 4 e 5 e terminando
na parte mais grave do.registro 3.

Apresenta uma ordem fixa de alturas, ritmo Apresenta semelhanças com a altura e rit-
e uma cor tonal específica (harmônicos). mo da última frase do elemento x.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 437


,......__________________ ~~

-A movimentação registra! formada pelos três elementos

Quando o elemento A se encontra no registro mais grave, o elemento x atua como


um refrão contrastante no registro agudo; quando A se movimenta em direção ao
seu registro agudo, y atua como um refrão contrastante no registro grave (Exem-
plo 4.7). Conseqüentemente, os refrões sempre contrastam em registro (e cor)
com o elemento A e também entre si.
À medida que a peça transcorre, o contraste de registros se torna um aspec-
to relevante, tanto nas próprias seções quanto entre elas. O gráfico no Exemplo
4.6 mostra também este aspecto do design espacial. As barras verticais do gráfi-
co, que representam a extensão total coberta em uma seção, estão divididas nas
seções 5, 6, 7, 8 e 9. Cada uma dessas seções é marcada por um intenso contraste
interno de registro. O Exemplo 4.8 oferece ilustrações detalhadas destes contras-
tes nas seções 5, 6, 7, 8 e 9. Na seção 7 (a seção do ápice), a separação de registros
é tão extraordinária que estes se movimentam consistentemente em dois níveis
separados, nos registros 2-3 e nos registros 4-5 (Exemplo 4.6). A seção 9 repete
essencialmente a mesma passagem da seção 7, mas reduz a separação dos níveis
para uma oitava, dando início a um processo de redução dos contrastes e das se-
parações de registro, o qual caracteriza o final da peça (seções 9 e 10).

438 A COR DO SOM


- Deslocamentos registro de notas, células e frases nas seções 4, 5, 6, 7 e 9

Enquanto a seção 4 (apresentada a seguir) apresenta notas repetidas, a se-


ção 6 (acima) apresenta as mesmas notas (que estão circuladas no exemplo), po-
rém com deslocamentos de registro.

Na seção 7, os deslocamentos sistemáticos de registro das células e notas


criam duas regiões registrais separadas, nos registros 4-5 e 2-3.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 439


a registral superior seção 7 é uma

A movimentação principal inicia no registro mais grave, o registro 2, e as-


cende :firmemente em seções sucessivas até o seu ápice. Ao mesmo tempo, con-
tinua sendo apresentada no seu registro original, consolidando, no decorrer das
seções, a característica birregistral. De maneira cada vez mais direta e intensa,
as seções incorporam dentro de si o contraste registral inicial, aquele entre a pri-
meira seção e os refrões que se sucedem nos harmônicos agudos. A seção 7 apre-
senta o mais abragente contraste de registro e constitui-se no ápice do movimen-
to ascendente principal. Essa seção cobre a maior extensão espacial e justapõe, de
maneira contínua, as extremidades registrais. Após a seção 7, as distâncias entre
os registros e o contraste diminuem.
Portanto, durante o decorrer desta peça, o contraste entre registros opera
em diversos níveis e de maneiras notavelmente variadas:

- entre a movimentação principal e os refrões;


- entre os próprios refrões;
- entre o início da movimentação principal, seu ápice e sua conclusão;
- na mudança entre duas apresentações sucessivas de passagens simi-
lares, tanto da movimentação principal (como as seções 7 e 9) quan-
to dos refrões (como as seções 2 e 4);
- na separação entre os dois níveis de uma única seção (como na
seção 7, 8 e 9);
- nas apresentações contrastantes de uma única célula ou nota
(Exemplo 4.8).

Notas, células, frases e seções inteiras são refletidas incessantemente na mudan-


ça de colorido dos registros contrastantes, à medida que a peça desenvolve seu
grandioso design espacial.

440 A COR DO SOM


O contraste cor essas registrais é
entre sons graves ricos em parciais e sons agudos (abafados ou
com quantidade de parciais. Dentro desta distinção básica
de cor sonora, ocorre grande variedade de matizes sutis. Observe estes indícios,
exemplo, na cor mais opaca da única nota não é produzida em corda solta
2
nos primeiros onze compassos (Lá no compasso 5), na alternância de duas cores
diferentes no Fá 2 nos compassos seguintes (12-17) e na alternância de
harmônicos em uma mesma altura (compassos 1-6 da seção 2).
Até o momento, mencionamos:

- o plano registrai com alto grau de organização desta obra;


- a maneira pela qual este design propicia a ocorrência multirregistral
(e, conseqüentemente, multicolorida) de notas, células, frases e se-
ções da peça;
- a evolução da movimentação principal, que parte do registro grave,
com suas cores ricas em parciais nas cordas soltas, em direção ao
registro agudo, cujas cores apresentam menos parciais, e posterior-
mente retorna à qualidade original;
- a maneira pela qual este contraste é antecipado e variado sob outra
roupagem pelas cores dos refrões, que contrastam com aquelas da
movimentação principal e entre si.

Relembremos duas observações anteriores:

- à medida que a movimentação principal se encaminha para seu ápi-


ce, a característica de contraste é aguçada e intensificada: nas seções
5, 6 e 7, os contrastes de registro são temporalmente imediatos, po-
rém de longo alcance em relação ao espaço e à cor. Nestas seções, as
notas e células ressoam em diversos registros e a música salta entre
diversos níveis contínuos. Os contrastes, que no início da obra eram
separados por várias seções, neste momento se alternam e se suce-
dem diretamente, em uma passagem de tirar o fôlego!
- após a seção do ápice, a movimentação não apenas descende à região
original do movimento principal, mas - unido pela variação mais
grave de x no final e pela ocorrência contínua de y - produz um efei-
to total de fusão nos registros 2 e 3, que por fim unifica os diversos
elemenros. Por conseguinte, as tensões das separações anteriores de
registro e cor são superadas na seção final.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 441


A progressão de longo alcance desta peça é uma progressão registros e
cores. Durante essa progressão, uma forma impressionante é concebida.
a música européia foi concebida durante séculos por teoristas - de Zarlino a
Schenker e Hindemith - como um movimento linear de alturas adjacentes, uma
obra musical que utiliza outros tipos de movimentações - sucessões de registros
e cores - pode nos parecer de certa forma radical, ao invés de meramente diferen-
te e igualmente válida. Observe quão distintos são o som e os princípios formais
das Três variações sobre Plum blossom ("Ameixeiras em floração") em relação à
música européia contemporânea, à sua composição: o canto Veni creator spiritus,
Plus dure de Machaut e "Benedictus" de Josquin.
As Três variações sobre Plum blossom incluem uma multiplicidade de nuan-
ces de cores sonoras, cuja importância se evidencia no cuidado e na precisão com
que foram indicadas, algo sem paralelo na música européia do período (e mesmo
dos séculos posteriores). Nessa época, o espaço musical e o colorido eram delibe-
radamente restritos pelas limitações do sistema modal na Europa. De fato, antes
do século XVII não era comum um compositor europeu indicar a instrumentação
pretendida para uma composição, tampouco os detalhes de sua execução. No iní-
cio deste capítulo, observamos que a notação de cores sonoras indica como pro-
duzir cores instrumentais, ao invés dos elementos que a constituem (espectro,
ruído de ataque e assim por diante). A mesma observação pode ser feita para a
notação do ch'in, que, entretanto, desenvolveu este tipo de notação em um nível
de sofisticação sem paralelo.
Cada tradição musical produziu seus portentos: as redes lineares e multili-
neares da Europa; as jóias multirregistrais e multicoloridas da Ásia. Não podemos
mais adiar o necessário reconhecimento dos recursos expressivos e inventivas da
estrutura dos registros e da cor sonora, pois estes recursos e valores, já incorpo-
rados nas Três variações sobre Plum blossom, difundiram-se, em tempos recentes,
a partir da China e de seus vizinhos, para todo o mundo musical.

442 A COR DO SOM


Nas Três variações sobre Plum blossom ("Ameixeiras em floração"), as cores
sonoras são também produzidas pelas diferentes qualidades de ataque. Assim
como a primeira seção apresenta um contraste entre as cores das cordas abertas
e abafadas, também organiza áreas com características contrastantes de ataque
(Exemplo 4.5):

compassos 1-12 uma nota um ataque


compassos 12-19 uma nota vários ataques
compassos 20-25 várias notas um ataque, sendo que a maioria das alturas
são introduzidas por glissandos ao invés
de diferentes ataques.

Além disso, dentro dessas frases, o ataque freqüentemente varia sutilmente de


nota para nota. Os principais sinais de ataque da seção 1 são:

dedo médio da mão direita, ataque para dentro


indicador da mão direita, ataque para fora
unha do polegar da mão direita, ataque para dentro
indicador da mão direita, ataque para dentro
indicador da mão direita, ataque para fora sobre várias cordas em uma
sucessão rápida

Após serem introduzidos na seção 1, esses ataques diferentes formam a base para
a justaposição dos ataques contrastantes que ocorrem durante as seções da movi-
mentação principal (A) em toda a peça. Áreas de ataques repetidos são consisten-
temente confrontadas com áreas de glissandos:

- na seção 3, os compassos 1-2 se opõem aos compassos 2-6;


- na seção 5, os compassos 1-5 se opõem aos compassos 5-10.

Portanto, outro aspecto da riqueza do colorido inserido no início das Três


variações sobre Plum blossom torna-se então evidente. Esse aspecto inclui dife-
rentes densidades de ataques (um ataque por nota, vários por nota ou várias no-
tas por ataque), assim como também diferentes espectros (produzidos por cordas
soltas, abafadas ou "harmônicos"), apresentados em registros distintos. Já vimos
como as justaposições amplamente espaçadas (de ataque, espectro e registro) do
início entram em confrontação cada vez mais direta (até a seção 7) e depois são

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 443


e
U.U>U.CL0 desenvolvimento destes contrastes
tos registro, espectro e ataque a e
elaboração das cores.

A notação do ch'in é talvez a notação da cor som mais explícita desen-


volvida até o século XX. Na tradição européia, a cor do som anotada em um
grau muito menor. Como apontamos anteriormente, até o início do século XVII,
a instrumentação de uma obra musical nem era especificada pelos compositores
anteriores a Gabrieli e Monteverdi. Antes deles, a maioria dos compositores es-
creveram anotações resumidas ou forneceram partituras vocais, sendo a música
concebida como a soma de várias linhas vocais. A distribuição das partes entre
vozes e instrumentos era um dos aspectos de improvisação característicos da exe-
cução medieval-renascentista européia. Uma partitura poderia ter várias realiza-
ções vocais e instrumentais, dependendo das forças performáticas disponíveis e
da imaginação dos intérpretes. 16 Entretanto, entre 1600 e 1950, a cor do som na
Europa tornou-se cada vez mais específica, tanto em sua concepção quanto na
notação dos compositores. Por volta de 1750, era norma escrever para um instru-
mento ou combinação instrumental específica. Desde essa época até os dias de
hoje, a notação de ataques, dinâmicas, releases (extinção do som), transformações
e combinações de cores sonoras têm se tornado cada vez mais específica.
O Exemplo 4.10 mostra os estágios dessa evolução. No Exemplo 4.10a, o
instrumento solista é especificado, mas a parte acompanhadora do contínuo
pode ser realizada de várias maneiras. Com freqüência, dois instrumentos, um
harmônico e um melódico, unem-se para realizá-lo: as harmonias sugeridas pelos
números deverão ser executadas por um davicórdio, harpa ou órgão e a linha do
baixo pode ser executada por qualquer um dos diversos instrumentos de cordas
graves ou por instrumentos de sopros. A tradição desse período sugere conside-
rável improvisação na execução da parte do solo e do contínuo, por isso tanto
a instrumentação. quanto os detalhes específicos de cor sonora foram deixados
incompletos na composição original.
O Exemplo 4.10b representa o próximo estágio, aproximadamente cem anos
depois. Uma instrumentação específica, violino e piano, é determinada pelo com-
positor, assim como várias características da cor do som, tais como qualidades

444 A COR DO SOM


col legno (gerissen): som do arco.
harmônico.
Am Griffbrett: no braço instrumento.
Am Steg: no cavalete.

som

a) Arcangelo Corelli: Sonata para violino e contínuo, op. 5, n. 2 (1700)

b) Ludwig van Beethoven: Sonata para violino e piano, op. 47, "Kreutzer" (1803)

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 445


e) Anton Webern: Quatro peças para violino e piano, op. 7, n. 2 (1910)

Trecho de Quatro peças para violino e piano, op. 7. Copirraite (1922) Universal Edition. Utilizado com a permissão
do editor, Theodor Presse Company, único representante nos Estados Unidos, Canadá e México.

No século XX, a composição e a notação européias da cor tonal começaram a se


aproximar da riqueza de detalhes da notação do ch'in.
Na notação européia, a manipulação instrumental é freqüentemente espe-
cificada na produção de cores sonoras. As cores sonoras têm sido obtidas prin-
cipalmente através de combinações instrumentais, as quais em suas combinações
de ataque, corpo e extinção produzem cores. A análise das cores sonoras de tais
combinações apresenta problemas ainda mais difíceis que a análise da cor tonal
de um único instrumento. Apenas agora podemos começar a analisar e formu-
lar novas notações para as combinações de cores sonoras tendo em vista seus

446 A COR DO SOM


u,__ .... ~~
sonoros, como com os sons Dessa
estaremos a vivenciar a qualidade efetiva som, a entender a cor
de um ou das misturas que ocorrem-17
Para transmitir esta compreensão, adicionaremos agora, ao nosso estudo,
as características das cores sonoras de vários instrumentos individuais, para de-
pois examinarmos as características das misturas instrumentais. Em última ins-
tância, nosso objetivo consiste na análise de sonoridades combinadas, as quais
formam o design sônico do movimento completo da música.

CARACTERÍSTICAS DA COR SONORA


INSTRUMENTOS DE SOPRO

Durante a primeira metade do século XX, D. C. Miller, Carl Seashore, Harvey


Fletcher, Melville Clark e outros pesquisadores revolucionaram o conhecimen-
to sobre o som dos instrumentos musicais pela introdução de modos completa-
mente novos de análise sonora. Como vimos anteriormente, o processo analítico
baseou-se inicialmente na teoria da cor do som de Helmholtz, que tinha por base
a medição mais precisa possível da quantidade relativa de parciais de um som
instrumental - seu espectro. Contudo, mais e mais varíaveis sonoras foram se
evidenciando: cada som instrumental apresenta características de ataque, corpo
e release (extinção), como Fletcher demonstrou em sua análise sonora do piano.
Além disso, cada instrumento origina diversas cores sonoras, já que muitas carac-
terísticas da cor instrumental podem ser transformadas através da modificação
do registro, das dinâmicas, dos ataques e de meios como pedais, abafadores, de-
dilhados alternativos e até mesmo da mudança de localização da fonte sonora
em relação ao ouvinte (instrumentos individuais, executantes e salas também
alteram a cor resultante, embora às vezes de maneira sutil). Para ser completa, a
análise da cor tonal deve incluir a análise da complexa diversidade de caracterís-
ticas tímbricas.
A análise da cor do som tem revelado muito sobre os elementos das cores
sonoras instrumentais. Mesmo assim, algumas características essenciais de co-
res comuns ainda precisam ser esclarecidas e a análise de sons menos comuns
mal começou. Além disso, os pesquisadores não têm usado métodos e sistemas
consistentes de análise, de maneira que não só a variedade de cores sonoras (e
seus elementos) seja abordada, mas também a variedade de formas de análise.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 44 7


mais estar

Os Exemplos a 4.18 apresentam análises de


mentos de sopros (flauta, oboé, clarinete, fagote, corneta, trombone e
18
realizadas por Seashore e sua equipe. Os espectros de notas selecionadas
ao longo âmbito de cada um desses instrumentos são analisados em duas
nâmicas: piano e forte. Em cada espectro, é mostrado o número de parciais, bem
como a porcentagem da energia de todo o espectro que se origina em cada
Esses estudos estão entre os mais úteis deste período inicial da análise da cor
sonora e revelam claramente as diferenças resultantes da mudança de registro e
de dinâmicas nos espectros de cada instrumento. Estes estudos especificam pre-
cisamente o que é medido: o percentual de energia de cada parcial (entretanto, a
energia de um pardal não corresponde exatamente ao seu volume sonoro, o que
gera algumas dificuldades na comparação com outras análises ou na utilização
destas informações para analisar a cor sonora de combinações instrumentais).

4.11-A flauta

Fa-1397

n
100
Si-494 14

Sol-392
s
parciais 5

Reproduzido de Carl & Seashore, The Psychology of Music (New York: The McGraw Hill Book Company, 1938).
Reimpresso com permissão dos editores.

448 A COR DO SOM


-O

94
Ult-932 70
70
Sol-784 90
95 extensão
Ré#-622 93
99 1
U#-466 l8 o 10 o 10 7
66 2 12 1
Sol-392 o 36 1 o
p: 71 l 26 l
Ré#-311 27 o 47 5 3 2 3
p: o 6
LH-232 63 19 o 10 o 2
J1: 73 o 15 o 3 o 2 o 5
Sol-195 67 o o l8 l
86 o 3 o B
Ré#-155 35 o 6 o o 2 o o
p.· 5 o 7

5 6 7 8 10 H 12 15

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 449


4.14 - O fagote

Mi-163

1
1

2 3 4 5 6 7 13

Jix,emplo 4.15 -A trompa

Sib-466 90 9
86
Lâ-440 99 l
extensão usual
26 73
Fá-349 66 29
94 6
U-220 26 31 9 2
p: 77 6 14 2
Fá-173 14 32 46 7
10 43 36 9
Dó-130 1 19 21 48 5 2
9 30 26 30 5 l
u-no 2 22 34 6 21 3
11 34 4 25 1l 9
FiH!7 l 43 22 19 3 6
o 12 7 lO 15 15 27 3 "
4

2 3 4 5 6 7 8 9 10

450 A COR DO SOM


2
5

Sol-194

2 12

94
100
21 5
82 extensão usual
57 4 l
94 3 2
8 47 32 l 8 o o
21 50 4 l
Fá-173 5 31 12 6 .31 o 6 o
26 12 33 o 12 .2
Rê-146 16 l 4 7 37 9 4 o o o o l
p: o1 30 10 7 1 o l
6 5 27 o 9 5 5
5 19 o 17 18 o 5 l 2
F1Hl7 1 19 8 3 3 6 l 2
2 3 o 2 17 10 4 o 3

2 10 H 12 13 14 15 17

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 451


-A tuba

Reconhecendo nosso débito com Seashore e outros, observemos algumas


das características desses instrumentos.

flauta de todos os instrumentos orquestrais, a flauta produz o som


mais parecido ao som senoidal puro. Em seu registro mais agudo,
a fundamental representa 100% da energia. Miller observou
que, mesmo quando um som de flauta não é de qualidade pura,
seus primeiros parciais de números pares (2 e 4), que duplicam a
fundamental, predominam. A esse fato, Miller atribui a "simplicidade
e doçura" do som. 19 O som da flauta é caracterizado também pela
intensa amplitude de modulação (o vibrato no qual as flutuações não
são da altura, mas de volume sonoro). 20

oboé o som do oboé possui duas regiões formantes fortes, uma em 1000-
1500 cps e outra em 3000-4000 cps. A ressonância intensa nessas
regiões realça os parciais mais elevados e enfraquecem a fundamental.
Conseqüentemente, os sons harmônicos são muito fortes do
segundo ao quinto parcial. Por isso, o oboé freqüentemente parece
soar em um registro mais agudo do que aquele em que realmente
está e pode literalmente se sobressair em uma textura instrumental
(como no "Prelúdio" de Tristão e Isolda de Wagner, compassos 66-

452 A COR DO SOM


agudas
o registro

a extensão do clarinete, há predominância da fundamental


e dos parciais ímpares; não existem regiões formantes
Quanto mais suave o som, mais este se do som oc.HvJ.u.,:u
mais maior é o número e a relativa intensidade
dos parciais agudos. ausência dos pares na
do som "oco" do clarinete. A presença e a quantidade dos
cinco, sete e nove é responsável pelo som esganiçado e
brilho e aspereza de certas cores intensas do clarinete. Em
comparação com outros instrumentos, a forma da onda pode
manter-se particularmente constante em sons sustentados, sem
modulação do espectro, amplitude ou freqüência.

fagote as regiões formantes estão em 550 cps e 1000-1200 cps. Quanto


mais grave a fundamental, menor é o nível de nos
parciais. Nos registros agudos, o som do fagote se aproxima ao som
senoidal puro. Ruídos acessórios e elementos não-harmônicos são
proeminentes nos sons fortes. O volume efetivo de uma nota "forte"
é apenas um pouco maior do que o de uma nota "suave". Notas fortes
produzem maior quantidade de parciais elevados e estes produzem
grande intensidade, criando a ilusão de maior volume sonoro.

trompa a região de ressonância estende-se de 200 a 600 cps. A distribuição


ampla e bem equilibrada dos parciais dentro dessa região produz o
som rico e doce que é característico da trompa. Nas regiões abaixo de
150 cps, a fundamental é praticamente ausente.

corneta* em todas suas regiões, os sons são ricos em parciais. O espectro é


bastante uniforme em todos os registros, apenas os sons mais graves
apresentam o primeiro parcial mais fraco em comparação com os
demais registros. Nos sons de maior volume sonoro, a energia
concentra-se nos parciais mais agudos (o espectro característico do
trompete é similar a esse, mas o trompete é, de fato, ainda mais rico
em parciais).

trombone a região de ressonância se estende entre 200 e 1000 cps. Existe

* N. T. Para Walter Piston em Orchestration (1955), cornet e trumpet são dois instrumentos diferentes
(veja o Exemplo 4.19).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 453


um de ressonância entre 250 e 500 cps, abaixo as
fundamentais são fracas. Assim como a corneta e o .,.vr,~~
sons intensos a energia concentra-se nos parciais agudos.

tuba a região de ressonância está entre 100 e 300 cps. Existe marcante
contraste entre a primeira metade (mais grave) de sua extensão,
na qual a energia se concentra do segundo ao quarto parcial, e a
segunda metade (mais aguda), em que os sons se aproximam de
sons senoidais puros (esses sons puros são bastante incomuns para
instrumentos orquestrais na região entre 100 e 250 cps).

Podem-se constatar algumas características compartilhadas pelos espec-


tros desses instrumentos:

- nas regiões mais agudas da extensão de um instrumento, vários es-


pectros se assemelham ao som senoidal puro (flauta, clarinete, fago-
te, trompa, trombone, tuba);
- o aumento de volume sonoro freqüentemente concentra a energia
nos parciais mais agudos, criando novos parciais e intensificando
aqueles parciais agudos já presentes. Assim, o incremento do volu-
me sonoro não implica necessariamente (ou mesmo geralmente) um
incremento do som fundamental;
- nas regiões mais graves da extensão de um instrumento, a funda-
mental tende a ser fraca (constituem-se exceções a flauta e o clarine-
te na dinâmica piano);
- a área formante dos instrumentos de palheta dupla (como o oboé e o
fagote) encontra-se nas regiões mais agudas de sua extensão, o que
privilegia os parciais superiores em detrimento da fundamental;
- cada instrumento de metal tem uma região de ressonância que cobre
aproximadamente os dois terços mais agudos da sua extensão. Abai-
xo dessa região, as fundamentais são fracas; dentro dessa região, as
fundamentais são fortes e têm uma rica propagação de parciais. No
topo da região de ressonância, os sons apresentam semelhança com
o som senoidal puro. As similaridades entre os metais levaram os
analistas Luce e Clark a concebê-los como um "único tipo de instru-
mento", cujo envelope característico é apresentado em cada instru-
mento em uma diferente parte da extensão. 21 Embora essa concep-
ção apresente algumas inconsistências, este modelo ainda é válido.
O ataque dos sons dos instrumentos de metal revela um "clique"

454 A COR DO SOM


como um estalo momentâneo e ir-
antes que o c:n,prt-rri alcance seu estado estável.

Munido desse conhecimento, o leitor está preparado para entender a ra-


zão de muitas semelhanças e diferenças nas cores sonoras dos instrumentos. Por
exemplo, os metais (especialmente a corneta, o trompete, o trombone e a tuba)
constituem uma família que compartilha várias características de espectros e de
ataque, diferente das madeiras, que não são um grupo uniforme. As madeiras
podem ser divididas em três famílias: os instrumentos de palheta dupla (oboé,
corne inglês e fagote), as flautas (pícolo, flauta e flauta contralto) e os clarinetes
(em Mib, Sib e em Lá, assim como os clarinetes baixo e contrabaixo). Tendo em
vista estas característcas espectrais, os leitores estarão aptos a aprofundar sua
apreciação dos sons instrumentais que escutam.
Anteriormente, ressaltamos a enorme quantidade de cores sonoras produ-
zidas por cada instrumento e a quantidade de características que se combinam
para formar uma única cor sonora. Tendo em vista toda esta riqueza sonora dis-
ponível, a informação analítica existente ainda é limitada. Os quadros de espec-
tros analisam o som instrumental produzido de uma única maneira. A vasta pos-
sibilidade de transformação nas cores ainda não foi totalmente explorada nas
pesquisas sobre o som instrumental. Nos instrumentos de madeira, por exemplo,
freqüentemente existe grande variedade de dedilhados para uma única nota, re-
sultando cada um deles em uma nuance diferente na cor tonal. Além disso, o som
dos instrumentos do naipe de metais pode ser extensivamente modificado e en-
riquecido pela ampla variedade de abafadores.
Existem poucas análises sobre os efeitos dos abafadores no som dos instru-
mehtos de metal. A análise realizada por Ancell compara os espectros de uma
corneta aberta com os de uma abafada. 22 As curvas espectrais produzidas pelo
som da surdina straight, cup, Harmon e solo-tone são mostradas no Exemplo 4.19.
Esses abafadores atuam como filtros sonoros. Comparando as curvas entre si e
com aquelas produzidas pela corneta aberta, podemos visualizar as regiões exa-
tas de parciais que cada abafador filtra. O abafador Harmon produz a transfor-
mação que talvez possa ser considerada a mais radical, suprimindo quase todos
os parciais mais graves (70 db são alcançados somente a partir de aproximada-
mente 1200 cps) e apresentando intensidade relativamente alta em três regiões
de parciais agudos - em torno de 1500, 3000, e 4500 cps. Esse abafador atua
como um eficiente filho passa-altas (high pass), suprimindo os parciais mais gra-
ves e mantendo os parciais mais agudos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 455


a) Média dos espectros de uma corneta em Si\,. A altura de qualquer parcial se encontra em
sua freqüência na curva. A curva do trompete apresenta uma forma e regiões de atuação
similares - e é medida de acordo com uma escala diferente de dinâmicas.

90

Dó""~ 247 cps


-, 277
50
cps
o
415 cps
40
8 2 4
2 5000
1000

b) Com surdina straight

90

40 247
277
350 cps
3()
Slé - 415 çps

456 A COR DO SOM


e) Com surdina cup

HJO

"
2 8 6
100 1000 51JOO
freqfü!nda - cps

d) Com surdina solo-tone

100
!J a
90'

s
"" b
m
" .o
"O

'"•n"'" oo
!:! o
!f'i

70
Cl.. d
" .oi'.l
"O

";.: 'O 60
"

2 2
100 1000
freqü~nda cps

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 457


e) Com surdina Harmon

90

E 70
a
'71 $
a .e
v ::L
60.
"'
o
CJ
e:
o
~
v 50
0 -"'
.?;:::
e
"'
40

30

20
2
100 1000 5000
freqüênda - :cps

Gráficos de J. E. Ancell, "Sound Pressure Spectra of a Muted Cornet", Journal of the Acoustical Society of America,
37, 1965, p. 857-860. Reimpresso com a autorização doAmerican Institute of Physics.

CARACTERÍSTICAS DA COR SONORA


DOS INSTRUMENTOS DE CORDAS

A análise mais completa do espectro dos instrumentos de cordas atualmen-


te disponível é a realizada por Fletcher e sua equipe (Exemplos 4.20 a 4.23). 23 Ao
invés de medir a energia dos parciais, esta análise compara a intensidade de cada
parcial com a intensidade do parcial mais forte (o qual se encontra no gráfico em
O db). O gráfico mostra, conseqüentemente, quantos decibéis a menos um parcial
apresenta em relação ao parcial mais forte (a dinâmica dos sons utilizados não
foi especificada nem foram realizadas medições a partir de diferentes dinâmicas
e modalidades de golpes de arco. Além disso, as diversas transformações do som
possíveis nos instrumentos de cordas não foram testadas).

458 A COR DO SOM


sons do violino

40
0~1;;:-~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

SoJ6 - 1568
lO

30
41)

1) 2 8 lO 12 14 16 18 20 22 24 26 28 30 32 34 36
número do

Gráficos reproduzidos de H. Fletcher, E. D. Blackham e O. N. Geertsen, "Quality ofViolin, Viola, Cello and Bass-
Viol Tones:!", Journal of the Acoustical Society ofAmerica, 37, 1965, p. 857-860. Reimpresso com a autorização do
American Institute of Physics.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 459


- Espectros dos sons da viola (os pontos não preenchidos mostram os par-
ressonância do som)

o 10

460 A COR DO SOM


sons

392

o 2 8 Hl 12 30 32 36

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 461


li

40
o
10
20
)Cl
"V
30
o'
:>
';:l 40
"E"' o
'"
'~
Q
10

10

30

40

o
Sol4 - 261
10

20
30

o 2 6 10 12 14 18 20 22 26 28 30 32 34 36
número do

Em sua totalidade, os espectros dos sons de corda são caracterizados pela


riqueza de parciais. Apesar de todos os instrumentos de cordas mostrarem di-
minuição na riqueza dos parciais à medida que a freqüência da fundamental au-
menta, mesmo os sons mais agudos freqüentemente apresentam ao menos dez
parciais, e as notas mais graves, de vinte e cinco a quarenta parciais.
Algumas das muitas possibilidades de transformação dos sons dos instru-
mentos de cordas são realizadas através da fi-ltragem de sua estrutura rica em
parciais. O Exemplo 4.24 mostra o efeito de um abafador nos sons das cordas
soltas de um violino. 24 A linha pontilhada delineia o contorno dos parciais no
som do violino sem abafador, ao passo que a linha superior nas áreas sombreadas

462 A COR DO SOM


os parciais ocorrem no som do violino abafado. O abafador
como um filtro passa-baixas (low-pass) eficiente, passando somente o terço mais
grave parciais e, destes, somente aqueles mais graves mantêm a plenitude de
sua potência. Por outro lado, tocar os instrumentos de cordas sobre o cavalete (sul
ponticello, em italiano e am Steg, em alemão) funciona como um filtro passa-altas.
A fundamental fica de tal maneira reduzida que as notas tocadas sobre o cavalete
produzem, às vezes, a ilusão de estarem soando uma oitava acima do anotado,
sendo que muitos parciais agudos se agregam a este som. 25

Outro procedimento que atua como uma espécie de filtro consiste em tocar
uma nota em uma corda diferente da usual. O Exemplo 4.25 mostra que a nota
Dó 5 (aproximadamente 523 cps) produzida nas cordas Lá, Ré e Sol2 6 apresenta
diferenças marcantes em seus espectros. O Dó 5 "normal" na corda Lá tem dez
parciais, ao passo que apenas oito parciais soam na corda Ré e cinco na corda Sol.
Nas cordas Ré e Sol, a diminuição na quantidade de parciais ocorre simultanea-
mente à irregularidade na intensidade dos parciais.
Nos instrumentos de cordas, as notas denominadas "harmônicos" re-
presentam outro conjunto de sons altamente filtrados produzidos por esses
instrumentos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 463


A cor sonora dos instrumentos de cordas ser
pela alteração do ataque:

- arco pra cima ou arco pra baixo


- arco longo ~.,_ ou e arco ou . .
- as diversas variedades de pizzicato;
- ataque com a madeira do arco, longo ou golpeado (col legno tratto ou
col legno battuto).

Exemplo 4.25 - Espectro do Dó 5 (cerca de 523 cps) produzido nas cordas Sol, Ré e Lá do
violino (mf, arco para cima)

çorda Sol

Reproduzido de Carl Seashore, The Psychology ofMusic (NewYork: McGraw-Hill, 1938), p. 216-217. Reimpresso
com a autorização dos editores.

Além da variedade de formas de ataque, a maneira mais comum de modular


o som de um instrumento de cordas é através do vibrato. Esta técnica introduz
nuances sutis de freqüência, intensidade, ritmo e espectro. Para criá-la, o execu-
tante realiza flutuações rápidas em torno de uma altura fixa. A norma aproxima-
da consiste na flutuação de um sexto de tom, seis vezes por segundo. 27 Análises
mostram que, geralmente, o volume flutua na mesma velocidade que a altura.
Embora os parciais sigam a flutuação da fundamental quanto à sua freqüência, se
comportam, contudo, independentemente em relação ao volume. Alguns pardais
se tornam relativamente mais fortes ou fracos em um ponto específico de cada
breve ciclo do vibrato. Estas mudanças de intensidade nos parciais causam pe-
quenas e recorrentes modificações nos espectros - variações de cor sonora sutis,

464 ACORDO SOM


com a utilização vibrato, os detalhes cor so-
de acordo com um padrão extremamente
também variações individuais entre executantes, que afetam
a velocidade, a amplitude e a localização do vibrato em relação à altura princi-
Além disso, os intérpretes freqüentemente seu vibrato por propósitos
musicais específicos. Os compositores indicam, em determinadas seções de uma
musical, passagens com ou sem vibrato; eles podem também especificar a
velocidade e a amplitude do vibrato que desejam ou mesmo sua ausência.
Os instrumentos de cordas são, portanto, extremamente ricos em possi-
bilidades de transformações. A análise sonora destas transformações ainda se
encontra em estágio inicial de exploração e detalhamento.

DE C INSTRUMENTAIS:
INSTRUMENTOS SOPROS - ARNOLD SCHOENBERG -
PEÇAS PARA ORQUESTRA, OP. 16, CORES

Quando os sons de vários instrumentos ocorrem simultaneamente, seus es-


pectros individuais interagem, resultando em um espectro da combinação sono-
ra. Utilizando as informações das seções anteriores, podemos estimar e comparar
alguns desses espectros de combinações sonoras. Portanto, podemos entender,
de maneira nunca antes alcançada, as propriedades das combinações de cores
sonoras. Ao mesmo tempo, ficam nítidas as limitações de nosso conhecimento
atual, evidenciadas em dois tipos de problemas. O primeiro é causado pelas di-
ferentes formas de análises de sons instrumentais, quais sejam, a análise das
porcentagens de energia dos parciais realizada por Seashore e a análise da inten-
sidade relativa dos parciais feita por Fletcher e outros. Não existe (até o momento
da redação deste livro)* nenhum método padrão de escalonamento. O segundo
problema surge do cálculo das diversas formas de interação que ocorrem quando
os sons instrumentais são combinados. Devemos reconhecer as mudanças nos
espectros combinados causadas pela mudança de instrumentação, registros e
dinâmicas. Além disso, vamos constatar mais adiante que, a partir das combi-
nações instrumentais, surgem novas características causadas pela interferência

* N. T. Afirmação válida para a época da 1 ªedição do livro. Aconselhamos que o leitor procure conhecer
programas de computador voltados para a análise do espectro sonoro.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 465


(tais como os batimentos acústicos e o mascaramento). A seção revela
tanto a extensão quanto os de nosso conhecimento
Como primeiro exemplo da análise de sons combinados, utilizaremos a
sonoridade inicial dos instrumentos de sopro do terceiro Cores, das
Cinco peças para orquestra, op. 16 de Schoenberg (Exemplo 4.26). O Exemplo 4.27a
apresenta o gráfico da primeira sonoridade, mostrando, em quatro colunas, os
espectros dos instrumentos individuais. A quinta coluna do Exemplo 4.27a apre-
senta uma estimativa do espectro combinado através da sobreposição dos espec-
tros individuais. Os espectros dos instrumentos são derivados das análises de
Seashore, e certas aproximações foram efetudas para o gráfico:

o espectro de cada instrumento desta sonoridade corresponde ao espectro da altura


mais próxima encontrada nas tabelas de Seashore;
os espectros foram utilizados tendo por referência a dinâmica p. 28

.txenipl.o 4.26 - Schoenberg: Cinco peças para orquestra, op. 16, Cores (terceiro movimento,
compasso 1)

Copirraite (1952) Henmar Press Inc., 373, ParkAvenue South, New York, 10016. Permissão concedida pelo editor.

Ainda que o gráfico do som combinado seja uma estimativa grosseira, ele
nos revela um importante aspecto da primeira sonoridade. A energia está con-
centrada nas fundamentais dessa sonoridade, particularmente nas notas Si3 - Mi4
- Lá 4 (a única exceção é o Sol# 3 , cuja energia está em seu segundo parcial). Cada
um desses sons se aproxima de um som puro em caráter - para citar Helmholtz,
"bastante suave", "livre de qualquer aspereza", "deficiente em força nas alturas
graves". Esta característica de unidade está vinculada também à limitação do re-
gistro: a energia está concentrada no espaço restrito compreendido entre Si3 e
Lá4 . Pelos padrões de cores sonoras de espectro e registro, a unidade da cor so-
nora é claramente definida: prevalece a qualidade do som senoidal no registro 4.

466 A COR DO SOM


4.27 - Schoenberg: Cores

bi

fagote d-arlnett flauta fümta prim~:dnisonoridade segunda


dos sopreis sonoridade
dos SOpE"'OS

ppp

um quadrado verth:::a! um semitom


11111 quadm holiwnt"I 25~1 da. energia do ç:;:s:pe'Ctro
de um instrumento
fundamental
;;;e parda~ que: n.ào a fund:amenm!
~ z {nos 't'-Speetros combinados) 2 pardais da tne.smM
alturu, eiujas energias s.âo represcrttucht.s por (hm:& Unhas; horizontais

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 467


O Exemplo 4.27b apresenta o mesmo tipo de análise na segunda
dade desse movimento (sua estimativa foi ainda mais difícil de ser realizada, já
que grande parte dessa sonoridade consiste em sons não analisados por Seashore
- metais com abafadores e o corne inglês. As estimativas dos metais com abafa-
dores derivam de informações fornecidas por Ancell). Apesar das aproximações
necessárias para a confecção do gráfico, foram reveladas diferenças marcantes
entre a primeira e segunda sonoridade do movimento:

primeira sonoridade segunda sonoridade

a energia está concentrada nas a energia está concentrada no


fundamentais; segundo e no terceiro parciais;
a concentração de energia ocorre na a concentração de energia ocorre
região entre Si 3 e Lá 4 ; na região entre Sol#4 e Mi 6 (mais
a extensão total dos parciais abrange de uma oitava acima da primeira
até o registro 7. sonoridade);
a extensão total dos parciais abrange
até o registro 8 (uma oitava acima
da primeira sonoridade).

A ênfase no segundo e terceiro parciais confere à segunda sonoridade sua rela-


tiva "clareza" e também a qualidade "quase nasal" e "vazia" que, segundo Jeans,
constituem-se na contribuição desses parciais. Na segunda sonoridade, ocorre
marcante deslocamento ascendente na constituição dos parciais. Os parciais mais
intensos estão localizados nos registros 5 e 6, mas seus traços ampliam-se até o
registro 8.
O leitor pode testar o quanto a análise de espectro corresponde à realida-
de sônica através da audição cuidadosa destas sonoridades. Para facilitar esta
audição, estas sonoridades podem ser gravadas e reproduzidas na metade da ve-
locidade, de modo a tornar os elementos espectrais mais nítidos. Apesar desta
repodução soar uma oitava abaixo da escrita, o deslocamento ascendente de uma
oitava entre a concentração espectral da primeira e da segunda sonoridades ain-
da pode ser percebida de maneira incrivelmente vívida - tão vívida que a segunda
sonoridade parece estar uma oitava acima da primeira! O foco mais elevado e
toda a extensão do segundo espectro combinado contribui para seu relativo bri-
lho em relação à primeira sonoridade. A comparação dos espectros revela os ele-
mentos que criam os contrastes entre as duas sonoridades. O contraste é muito

468 A COR DO SOM


marcante as as mesmas na
mesma

SEGUNDO NTO

Mesmo à primeira vista, a sonoridade inicial do segundo movimento do


Concerto para violino de Beethoven (Exemplo 4.28) é distinta: somente os violinos
da orquestra estão abafados, ao passo que as violas, violoncelos e contrabaixo não
estão - um arranjo verdadeiramente fora do comum na música de Beethoven.
o motivo dessa disposição? O Exemplo 4.29 mostra a estimativa dos espec-
tros cada uma das cinco notas da primeira sonoridade, seguida pela estimati-
va do espectro combinado. As duas últimas colunas do Exemplo 4.29 mostram os
espectros dos violinos sem surdina, para efeito de comparação com os espectros
dos violinos com surdina. O relativo brilho das cores não abafadas é resultado
dos parciais que se elevam para além do Fá# 7 dos violinos em surdina, abrangen-
do uma oitava e meia a mais, até o Dó# 9 •

passo 1

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 469


As primeiras cinco colunas do Exemplo 4. 29 derivam das análises de Fle-
tcher de sons dos instrumentos de cordas (Exemplos 4.20 a 4.23):

- as análises de Fletcher das notas do contrabaixo e do violoncelo fo-


ram meramente reproduzidas em nosso gráfico;
- como Fletcher não analisou a nota Ré 4 da viola, utilizamos como
modelo o Sol4 de sua análise;
- para as notas do violino com surdina, foram escolhidos como mo-
delos os espectros mais aproximados nas análises de Fletcher (Sol3
e Sol4).

Foram necessárias modificações extensivas nos espectros para simular o efeito


de surdina sobre os espectros do violino. De acordo com o modelo do Exemplo
4.24, apenas o terço mais grave dos parciais sem surdina foi utilizado, e deste um
terço, os dois terços mais agudos foram reduzidos em 10 db. Dessa maneira, as
caracteríscas do abafador - o corte nos parciais agudos e a redução do volume dos
outros parciais - foram simuladas.
O espectro combinado no Exemplo 4.29 mostra a riqueza de parciais carac-
terística do som dos instrumentos de cordas. As fundamentais nesse espectro
são fortes. Os parciais mais fortes são quase todos sons da tríade de Sol maior.
A nota da melodia, Sol4 , é especialmente forte, não apenas como fundamental
dos violinos I, mas também através do reforço adicional das cordas graves. Por
causa dos vários dobramentos de oitavas e de notas da tríade, a sonoridade é
menos densa e turva do que seu espectro sugere. A riqueza e a força dos parciais
dissipam-se rapidamente a partir do Ré 7 - que é o sexto parcial da fundamental
mais aguda, a nota Sol4 do violino I. A sonoridade total, portanto, se enquadra na
segunda classe de cores de Helmholtz, pela qual as fundamentais fortes produ-
zem riqueza de qualidade e uma série de parciais agudas moderadamente fortes
até o sexto parcial produz uma qualidade "harmoniosa e musical".
A substituição dos violinos com surdina por violinos sem surdina adicio-
na, através da presença de uma oitava e meia adicional de parciais agudas, uma
ponta de brilho à sonoridade (e algumas outras qualidades que serão discutidas
depois). Esse brilho adicional seria inapropriado no início do movimento, já que
a realização deste brilho (e os registros que o expressam, 7 a 9) é o objetivo das
variações subseqüentes (compassos 11-30). Caso este brilho e os registros mais
agudos tivessem sido utilizados no tema inicial, não haveria razão - e, de fato,
nem variação - para as variações que ocorrem a seguir. 29 O interesse do movi-
mento posterior depende justamente da aplicação da surdina nos violinos nos
compassos 1-10.

4 70 A COR DO SOM
Concerto para violino, segundo movimento

:prlmidrn víoiir::o H vio!ino I


sonoridade e/ s.u.rd. c/ surd,
das-cordas Si> So!4

Otlb t,5 quadrndos hortzcmtais}"" o parc!~1 m2ús it'l!'t.::nso


de um lnstru.mentn
qu.ad.mdos; harizofllt.mls de 10

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 4 71


Quando os espectros estão combinados, ocorrem fenômenos de
eia responsáveis pela criação de cores totalmente novas. Os batimentos, o efeito
coral e o mascaramento são três fenômenos causados pela interferência.

BATIMENTOS

Os batimentos resultam de ondas simultâneas cujas freqüências apresen-


tam pequenas diferenças. O Exemplo 4.30 superpõe ondas de 7 e 8 cps, com o
propósito de ilustrar este fenômeno. No ponto A, o ápice das ondas ocorre simul-
taneamente, e a amplitude total causada pela combinação dos ápices é o dobro
de um ápice individual. No ponto B, onde um ápice e um vale coincidem, eles se
cancelam mutuamente, produzindo amplitude zero, ou seja, um silêncio momen-
tâneo. A alternância entre o aumento e a diminuição da amplitude - uma dupla
crista seguida por um silêncio - é ouvida como um batimento. Nesse caso, a fre-
qüência do batimento é de 1 por segundo. A freqüência do batimento (batimentos
por segundo ou bps) é sempre a diferença entre as freqüências de duas ondas (8 cps - 7
cps == 1 bps).

lix.en1pJ.o 4.30 - Batimentos resultantes de ondas com freqüências minimamente


diferentes

7 cps

cps

A B A

seg. l
batimento$ crista silêncio

Os batimentos são produzidos quando parte do mecanismo de audição que


responde a uma certa região de freqüências é estimulado ao mesmo tempo por duas
freqüências muito próximas. 30 A resposta de uma mesma região do mecanismo da
audição a dois estímulos simultâneos gera interferência de batimentos. A partir

4 72 A COR DO SOM
estimulam partes
conseguinte, em batimentos.
A separação entre as freqüências que
diversas partes da extensão. Nos registros graves, uma separação de 40 cps
entre as alturas é muito ampla para causar batimentos; em compensação, nos
registros agudos, os podem ser causados por uma separação de até
400 cps. O Exemplo 4.31 sintetiza o potencial produção de batimentos nos
31
intervalos em diversas partes da extensão. A coluna 4 do Exemplo 4.31 mostra
que os batimentos são produzidos por diferentes intervalos em partes diversas
da extensão. Nos registros 1 e 2 (96 cps e abaixo), quartas, terças, segundas e
separações ainda menores causam batimentos. A do registro 7, somente
intervalos menores que (1,5) causam batimentos.
A teoria amplamente difundida segundo a qual os intervalos consonantes
são aqueles que não produzem batimentos e os intervalos dissonantes, aqueles
que os produzem, não está de acordo com a realidade da produção de batimentos.
Para que essa afirmação seja adequada à realidade, consonâncias e dissonâncias
deveriam ser concebidas de maneira distinta em registros diferentes (e, como ob-
servou Helmholtz, também em instrumentações específicas) de acordo com as
informações anteriormente mencionadas.
Em combinações de sons compostos ou complexos, os batimentos resultam
da proximidade não apenas das fundamentais, mas também dos parciais. Os
parciais vibrantes produzem freqüentemente várias velocidades e intensidades
diferentes e simultâneas de batimentos. Além do mais, mesmo uma única nota
não combinada pode produzir batimentos, caso seu espectro inclua vários parciais
agudos muito próximos. O batimento de parciais próximos é responsável pela
qualidade de "aspereza" nos sons graves do piano, do fagote, do contra-fagote,
dos metais graves e das vozes masculinas graves.
Os batimentos soam de maneira diferente, dependendo de sua extensão e
freqüência. Os batimentos mais lentos (1-15 bps) são ouvidos com nitidez, po-
rém as alturas que os produzem não podem ser distinguidas. À medida que a
freqüência do batimento aumenta, os batimentos não podem mais ser percebidos
individualmene, mas sim como uma textura "áspera", "vibrante", ou "tremulan-
te": os batimentos individuais tornam-se cada vez menos diferenciados, ao passo
que as alturas que os produzem se tornam cada vez mais perceptíveis. Em partes
distintas da extensão audível, diferentes freqüências de batimentos têm máxima
proeminência, como'indicado na segunda coluna do Exemplo 4.31. O ponto de
proeminência máxima dos batimentos é em 40% da distância na qual os bati-
mentos não podem mais ser ouvidos (em uma altura de 96 cps, os batimentos

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 4 73


desaparecem cerca de 41 cps acima, ou seja, em 137 cps; 40% cps = 16 cps.
O batimento mais perceptível de um som de 96 cps é causado por uma de
112 cps: 96 + 16 = 112 cps).

4.31-A produção de batimentos em diferentes partes da extensão

Número de batimentos por


segundo (bps) em que: Intervalos
Freqüência do
entre os quais
diapasão I batimentos batimentos não os batimentos
emcps são mais podem mais ser aparecem
proeminentes ouvidos

registro 2 96 16 41 @

registro 3 256 23 58 ©
registro 5 575 43 107 @

registro 6 1707 84 210 @

registro 7 2800 106 265 @

registro 8 4000 - 400 @

O diapasão I soa continuamente em uma altura fzxa (som puro), e o diapasão II inicia em
uma altura fzxa e ascende continuamente. A segunda coluna lista a separação, em cps, entre
os diapasões que produzem os batimentos mais proeminentes e a terceira coluna lista a
separação a partir da qual os batimentos desaparecem.

A sonoridade inicial da peça orquestral Cores de Schoenberg (Exemplo


4.26), cujos espectros combinados foram examinados no Exemplo 4.27, cria ba-
timentos que constituem mais um elemento essencial do seu colorido. Em todo
o movimento, a cor cintilante produzida por diversas velocidades e intensidades
de batimentos é uma equivalência musical do cintilar da luz refletida na água. Em
uma edição, Schoenberg intitulou esta peça Summer morning by a lake ("Manhã de
verão em um lago"), chamando a atenção para a cor oscilante de seus batimentos.
O Exemplo 4.32 reproduz os espectros combinados das duas primeiras sonori-
dades do movimento. As chaves adicionais indicam parciais nos espectros que
são suficientemente próximos para criar batimentos. Na primeira sonoridade, a

474 ACORDO SOM


adjacência Sol# 4 -Lá4 (415 e 440 cps) cria um batimento particularmente
de batimentos da segunda sonoridade são
mais agudos e esmaecidos (por exemplo, entre o Lá5 -Si 5 , 880 e 988 cps,
existe um batimento de 108 bps). As áreas batimentos diferentes das duas
sonoridades (registro 4 e registro 5) enfatizam novamente o contraste registrai
de opacidade-brilho das sonoridades. Ao mesmo tempo, os batimentos criam um
outro contraste de cor: os batimentos mais lentos (25 bps) da primeira sonorida-
de produzem um forte pulso latejante, distinto das agudas e tímidas tremulações
dos batimentos rápidos da segunda sonoridade (em torno de 108 bps). Tais con-
trastes de registro, velocidade e proeminência dos batimentos permeiam toda a
peça. Cada sonoridade lateja ou cintila com seus batimentos característicos. Pre-
sença, extensão, velocidade, e intensidade de batimentos representam, portanto,
outra possibilidade de cor nos sons combinados.
Durante muito tempo, costumava-se considerar o batimento como uma ca-
racterística musical indesejada. Se o trítono historicamente representou o dia-
bolus in musica, os batimentos representavam o próprio diaboli. Os batimentos
eram considerados conseqüência de uma entonação inexata e responsáveis pela
dissonância. Com o tempo, ficou claro ser insustentável esse ponto de vista. A
necessária discrepância de entonação no piano (a pequena diferença de afinação
entre as cordas "idênticas" de uma nota; a diferença de entonação nos parciais
devido à rigidez das cordas; a distorção da chamada afinação "pura" por causa do
temperamento igual) produz batimentos em determinadas velocidades e quan-
tidades que fazem parte da qualidade sonora usualmente desejável de um piano.
Como vimos anteriormente, Fletcher descobriu que julgamos os sons sintetiza-
dos de piano sem esses batimentos como "frios" ou mesmo irreconhecíveis. Os
batimentos são, portanto, elementos indispensáveis na sonoridade do piano.
Agora compreendemos o suficiente sobre o complexo fenômeno dos batimen-
tos para perceber que o entendimento negativo sobre os batimentos difundido ao
longo da história é insustentável. Urge que os pesquisadores realizem observações
mais cuidadosas (como as que Fletcher realizou sobre o som do piano, e como aque-
las que começamos a fazer aqui no contexto musical da obra Cores de Schoenberg)
sobre o papel freqüentemente necessário e construtivo dos batimentos. 32

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 4 75


ExenipJ.o 4.32 - Os batimentos nas primeira duas sonoridades Cores de Schoenberg

dos sopros

EFEITO CORAL

Vários instrumentos tocando em uníssono produzem um som caracterís-


tico chamado efeito coral. Exceto por coincidência, os instrumentos não tocam
em uníssono físico absoluto. Em um uníssono, as afinações são somente aproxi-
madas. Se dois violinos tocam um Dó 4 afinados em 262 e 263 cps, produzem um
batimento por segundo. Entretanto, seus fortes segundos parciais (524 e 526 cps)

476 ACORDO SOM


cordas, esse é ccu,cu.a
o vibrato, o que que contínua
e independentemente cada altura em vários cps. físico Backus descreveu o efei-
to de dez tocando uma mesma altura como: "dez
minimamente diferentes ao mesmo tempo, dez segundos parciais fa-
zendo o mesmo e assim por diante". 33 A pequena distância de cada freqüência e
a variedade resultante dos batimentos relativamente lentos são os elementos do
efeito coral em qualquer situação em que aconteça um dobramento.
O som de conjunto de violinos tocando uma mesma nota é freqüentemente
considerado como mais caloroso do que a mesma nota tocada por um único violino.
Como nos sons do piano, o que entendemos por "calidez" consiste em pequenas
dispersões da freqüência básica, que resultam em batimentos. Desde o século XVIII
até o século XX, esta qualidade sonora tem sido prevalente na música européia, na
qual o piano, o naipe das cordas e as vozes em uníssono produzem as cores instru-
mentais predominantes. A razão da existência do naipe das cordas (e do conjunto de
vozes em coros) tem sido, principalmente, mais a de imbuir o som com o efeito coral
do que a de incrementar seu volume [como demostrado no Apêndice A (Classifl.cação
de registros e intervalos), o aumento do volume é menor do que o esperado].
No Exemplo 4.33a, o espectro combinado da sonoridade das cordas no Con-
certo para violino de Beethoven é apresentado novamente. As chaves adicionadas
indicam as parciais que produzem batimentos. Devido à densidade dos parciais,
são poucos os parciais próximos o suficiente para produzir batimentos. As fun-
damentais não produzem nenhum batimento, esses se iniciam com uma faixa de
parciais no registro 5 (Fá#, Sol, Lá e Si) que produz aproximadamente 44 bps. Na
faixa seguinte, da nota Fá 6 ao Fá# 7, alguns parciais estão suficientemente próxi-
mos para produzir batimentos cujas velocidades abrangem desde 86 até mais de
166 bps. Nenhum desses batimentos, entretanto, é produzido pelas parciais de
maior intensidade relativa. Estes batimentos entre as parciais constituem, por-
tanto, um fenômeno subjacente ao invés de um fenômeno imediato.
Além desses batimentos, há também aqueles produzidos pelo efeito coral.
Existem dois tipos de efeito coral. O primeiro tipo é aquele em que o espectro
apresenta diversas d.uplicações de alturas, principalmente das notas da tríade de
Sol maior. Por exemplo, a nota Sol4 é um parcial dos contrabaixos, dos violon-
celos e dos primeiros violinos. É provável que cada Sol4 soe em uma freqüência
um pouco diferente. Portanto, mesmo em um quinteto de cordas, o efeito coral

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 4 77


~-------------------~~
resultaria da pequena diferença entre os parciais de diversos instrumentos.
desse tipo de efeito coral, existe aquele produzido pelo ,u.Á.,,,_,.~
cada parcial pelos instrumentos de toda a seção de cordas. Este tipo efeito co-
ral é ainda mais intensificado pelo vibrato. Esta multiplicidade afeta cada parcial.
Sendo assim, suas características - a ligeira dispersão de cada freqüência básica e
os "calorosos" batimentos lentos - se fazem sentir de forma muita presente.
Para efeito de comparação, o Exemplo 4.33b mostra as mudanças de espec-
tro (a partir do registro 6) que seriam produzidas por violinos não abafados. O au-
mento da intensidade e o número de parciais agudos cria diversas justaposições
adicionais de parciais próximos que apresentam fortes batimentos. De fato, pra-
ticamente cada semitom dos registros 7 e 8 é preenchido por parciais, que por sua
vez criam batimentos. Esta mudança por violinos sem surdina produziria não
só maior número de batimentos, mas também batimentos mais fortes e rápidos
do que aqueles resultantes da sonoridade parcialmente abafada. Além dos lentos
batimentos "calorosos" do efeito coral, a sonoridade não abafada seria caracteri-
zada pelos batimentos mais rápidos, ásperos e altamente brilhantes dos parciais
mais agudos. Como vimos anteriormente, esta ênfase demasiada nos fenômenos
que ocorrem no registro mais agudo é inapropriada, tendo em vista o movimento
posterior da peça em direção a estas características.

MASCARAMENTO

O terceiro fenômeno de interferência sonora, o mascaramento, é a capaci-


dade de um som cobrir outro, tornando-o inaudível. Na vida cotidiana e em toda
música podemos constatar inúmeros exemplos desse fenômeno. Todavia, a teoria
musical tem negligenciado o mascaramento como um aspecto fundamental do
som. Consideremos a superposição de dois sons senoidais com freqüências de
400 e 1200 cps. Quando esses soam simultaneamente e a intensidade do som
de 400 cps é gradualmente aumentada, este irá mascarar (cada vez mais) o som
de 1200 cps. Entretanto, quando a intensidade do som de 1200 cps é aumentada
contra um som estável de 400 cps, não ocorrerá mascaramento. De maneira geral,
os sons graves mascaram os sons mais agudos, mais do que o contrário.

478 ACORDO SOM


Ex1emp10 4.33 - Os udL111u:u primeira sonoridade do segundo movimento do Concer-
to para violino de Beethoven

h} t'Spcctro
St'.ffil surdüna

cps bps
157

cps = l.:31 bps


6

RB
83

violino !! violino 1
sem sem surd.
Sol'I

prlmc~ra
som:irid"de
das çorda:s

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 4 79


- Curvas de mascaramento para um som mascarador de 400 cps

o o o o oo o
o
o C•
o oo o•O o
o
o o º' o ·-o o
o 00
""
N
"!'
"' N
'""' '°
""' N !'.'."II N M M ~

do som mascaraclo -

O Exemplo 4.34 mostra graficamente os efeitos do mascaramento de um


som puro de 400 cps em diversas dinâmicas sobre outros sons. 34 A escala ver-
tical do lado esquerdo do gráfico indica quanto o limiar de audibilidade de uma
freqüência (o nível na qual esta pode ser inicialmente percebida) é aumentado na
presença de um som de 400 cps de determinado volume. O ponto máximo das
curvas se localiza na região tanto ao redor quanto acima de 400 cps. Isso indica
que o mascaramento ocorre em freqüências próximas e acima da freqüência mas-
caradora. Quando a freqüência mascaradora é relativamente suave, como nas
curvas de 20 e 40 db, o mascaramento acontece apenas em freqüências bastante
próximas do som mascarador (os declives em cada curva perto dos 400 cps são
conseqüência de freqüências que, por serem tão próximas do som mascarador,
resultam em batimentos e tornam possível a audição de um som que de outra

480 A COR DO SOM


seria a HH.~"-V"''~~~~
aumenta os sons agudos são ele
uma intensidade de db, o som de 400 cps mascara
outros sons em sua própria e por várias oitavas acima e também, em urna
cn.c.._,,...,u.~ bastante alguns sons mais graves.
As conseqüências musicais do mascaramento são surpreendentes. De fato,
uma história das técnicas composicionais ser escrita a do ponto de
35
das implicações do rnascaramento. Para início de conversa, nos depara-
mos com a textura encontrada em diversas músicas que se caracteriza por eleva-
peso na região aguda, ou seja, concentração de várias vozes e muita atividade
na parte superior de uma textura, com menos vozes e atividade na parte inferior
(veja os Exemplos 1.1, 1.8, 1.18 e 2.2). Todos esses exemplos apresentam uma
distribuição de três ou quatro vozes na oitava mais aguda da textura contra ape-
nas uma única voz por oitava nos registros mais graves. Caso esta distribuição
fosse invertida, a densidade das vozes graves poderia mascarar as vozes agudas.
isso, a distribuição "tradicional" permite a coexistência de diversas vozes
e minimiza o perigo, representado pelo mascaramento, de as vozes graves so-
brepujarem as vozes agudas. Nas texturas orquestrais, as linhas agudas e idéias
mais importantes (por exemplo, melodias predominantes) são freqüentemente
dobradas por diversos instrumentos e registros. Tal dobramento garante que as
partes graves não irão mascarar idéias primárias que são apresentadas nas partes
agudas da extensão.
O mascaramento é uma força que pode ser considerada tanto de maneira
positiva quanto negativa. No Exemplo 4.35, o início de Le spectre de la rase ("O
espectro da rosa") do ciclo de canções orquestrais Nuits d'Été ("Noites de verão")
de Berlioz, a linha melódica é apresentada em uma cor especialmente frágil -
uma cor "espectral", apropriada ao texto poético - caracterizada pela flauta solo
e pelo clarinete dobrados em oitava, cada um destes no seu registro mais doce,
leve e próximo da produção de sons puros. Essa é uma configuração perigosa,
pois pode ser facilmente mascarada até se tornar inaudível. Todas as partes que
Berlioz compôs contra a melodia da flauta e do clarinete foram calculadas para
evitar o mascaramento, principalmente aquele causado pelos sons graves. A parte
mais grave consiste em um único violoncelo com surdina e mesmo este instru-
mento deixa a região dos sons graves quando a melodia surge no compasso 2,
de maneira que a entrada da melodia não seja mascarada pelas notas graves. Os
demais instrumentos da frase - violas com surdina em divisi que sustentam vozes
harmônicas intermediárias e ocasionais interpolações pelos violinos com surdina,
em um nível de dinâmica inferior - são controlados (por registro, abafamento,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 481


divisão em seções e silêncio) de maneira a o mascaramento
cor melódica. Os instrumentos cordas mais graves (os contrabaixos e o
de violoncelos), assim como as madeiras e metais graves são omitidos nesta passa-
gem. Ainda que o colorido da passagem, fantasmagórico em sua vibração
e intensidade, apresente elementos claramente delineados, constitui-se em uma
passagem singular, imaginativa e tecnicamente perfeita.
Os aspectos técnicos do mascaramento são complexos. Os efeitos de mas-
caramento em combinações musicais específicas e na formação de cores sonoras
são assuntos pouco pesquisados. Nas combinações de espectros, o efeito de mas-
caramento de cada parcial sobre os demais parciais deve ser considerado, pois os
parciais, e não as notas fundamentais anotadas, são os responsáveis pelo mas-
caramento e estão sujeitos a este fenômeno. Portanto, são os parciais graves e
não as notas graves que mascaram os parciais mais agudos. Além disso, como
podemos ver no Exemplo 4.34, o efeito de mascaramento é diferente de acordo
com o volume sonoro.
O estudo completo e preciso do mascaramento em uma situação musical
necessitaria da análise do espectro de cada uma das notas instrumentais em ní-
veis absolutos de intensidade, ao invés da análise de espectro relativa apresenta-
da neste capítulo. Somente a partir desta análise poderíamos estudar a intera-
ção de mascaramento entre todos os parciais. Em última instância, os músicos
(auxiliados pelos computadores) irão realizar estes complexos estudos. Mesmo
sem o auxílio de computadores, os efeitos gerais de mascaramento podem ser
examinados:

- nossos gráficos espectrais mostram a intensidade relativa dos par-


ciais componentes. Para estimar o mascaramento, a dinâmica abai-
xo de cada coluna deve ser levada em consideração: parciais fortes
em dinâmicas suaves mascaram apenas em suas próprias regiões,
enquanto em dinâmicas fortes, mascaram parciais tanto em sua re-
gião quanto acima dela;
- parciais mais graves, fortes e intensas resultam no maior efeito de
mascaramento, enquanto as parciais mais agudas, no menor.

As complexidades do mascaramento merecem ser estudadas com profun-


didade, pois, sem a devida atenção, seus efeitos podem obliterar os parciais que
caracterizam o colorido instrumental e podem inclusive obliterar todo o som de
determinados instrumentos e alturas.
Alguns compositores demonstraram um domínio intuitivo destas ques-
tões complexas, como Berlioz (conforme constatamos anteriormente), Mahler

482 A COR DO SOM


e Stravinsky. um texturas complexas de cores
em registros relativamente agudos) nas quais o masca-
ramento, poderia prejudicar a transparência linear e a individualidade das
cores instrumentais (ou vocais), é evitado.

RYen1nJlo 4.35 - Hector Berlioz: Nuits d'Été ("Noites de verão"), Le spectre de la rase ("O
espectro da rosa"), compassos 1-5

un poço lento e do.Ice

O Exemplo 4.36 apresenta o início da Sinfonia n. 1 de Mahler. A nota Lá é


verticalmente expangida por sete registros (Lá1 -7 ) e sustentada na maioria desses
registros durante toda a passagem. O efeito resultante é o de um imenso espaço
registral aberto. Nessa passagem, quase todos os eventos são muito suaves (p,
pp e ppp, trompetes distantes do palco e trompas abafadas) e cada gesto e cor

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 483


soam com o máximo clareza contra as notas
t es, 1J or12m nunca mascarando outros sons.
Como o mascaramento é evitado e a
Aprendemos que, para evitar o mascaramento, devemos tomar um
com as notas graves, e (particularmente) com os ~~.L~·~·u
nos registros mais graves são cada uma:

- executadas por um terço de uma seção, pelos ou


contrabaixos;
- executadas como harmônicos, exceto pelo Lá1, o som fraco pro-
duzido por um instrumento de cordas e o mais aproximado da
cuidade da qualidade do som puro;
- executadas sempre em ppp, exceto pelos primeiros cinco compassos
de Lá1, nos quais a dinâmica indicada é pp.

Apenas o Lá6 e o Lá7 são executados pelo naipe completo das cordas, também
através de harmônicos em dinâmicas ppp. Contudo, essas notas são tão agudas
que não podem mascarar os eventos que se seguem. Nos momentos em que pode-
ria existir perigo de mascaramento dos parciais agudos de outros instrumentos
(os oboés nos compassos 15-16 e os trompetes no compasso 22) e a conseqüente
distorção da cor, o compositor temporariamente omite estas notas. O domínio
perfeito sobre como evitar o mascaramento torna possível a realização destapas-
sagem de refinada utilização do espaço e do colorido.
Outras maneiras de evitar o mascaramento incluem:

- Encurtamento de sons potencialmente mascaradores. Algumas vezes,


por exemplo, o espaço mais grave de uma textura de Mahler é defi-
nido apenas por notas curtas e amplamente separadas, em pizzicato
nas cordas ou dedilhadas na harpa. Dessa maneira, as notas graves
que são potencialmente mascaradoras são encurtadas. Isso introduz
"ar" na textura, permitindo que os parciais agudos soem livremente.
- Movimentação de sons potencialmente mascaradores. Um movimento
rápido em um registro grave é de certa forma mais perigoso, porém
ainda possível com a utilização de técnicas para evitar o mascara-
mento. Não é possível evitar todos os mascaramentos nos sons agu-
dos, porém os parciais mascarados flutuarão com o movimento. Em
algumas ocasiões (como no Prelúdio da ópera Parsifal de Wagner, ato
III, compassos 32-35), uma única cor "tremulante" resulta de vários
parciais agudos que desaparecem e reaparecem como conseqüência

484 A COR DO SOM


mascaramento e
e dos graves.

na

urna positiva do mascaramento,


da tentativa de evitar seus possíveis perigos, como enfatizado nos exem-
anteriores. No clímax Fidelio Beethoven (ato II), duas
chamadas de trompete soam em uma torre situada em um canto no fundo do
palco (Exemplo 4.37) (o cenário retrata a cena masmorra subterrânea de Flo-
restan e as torres da prisão surgem ao redor. As chamadas de trompete devem ser
ouvidas na masmorra como se vindas de certa distância). A primeira chamada é
acompanhada em toda a sua duração pelo Sib 3 · 5 grave executado pelas cordas. A
segunda chamada é realizada sem acompanhamento e recebe de Beethoven a se-
guinte indicação na partitura: "o trompete é ouvido mais fortemente".
O Exemplo 4.38 mostra o espectro do Sib 4 (466 cps) do trompete, a nota
fundamental e predominante da do trompete. Os primeiros dois parciais
são os mais fortes, ao passo que o terceiro e o quarto são notavelmente menos
intensos. Os parciais seguintes, até o de número 12, são ainda menos intensos.
Durante a fanfarra, os violinos I e II sustentam o Sh3 (cujo espectro é similar ao
SoP do Exemplo 4.20). O parcial grave mais forte deste Si~3 não é a fundamental,
mas sim o segundo parcial - o mesmo Sib 4 que é o primeiro parcial mais forte do
trompete. A forte nota Sib4 produzida por todos os violinos na orquestra mascara
(em certo nível) o som do trompete. De fato, os espectros de todos as notas Sib
executadas pelas cordas, ricos em Sib, Ré e Fá em diversos registros, mascaram
de certa forma a chamada do trompete - seja ao mascarar no mesmo registro,
seja abaixo dele. Sem esse mascaramento das cordas, a segunda chamada do
trompete (sem acompanhamento) soa (como indicou Beethoven) mais forte que
a primeira. A relativa "fraqueza" da primeira chamada do trompete e sua sensa-
ção de distanciamento resultam do efeito de mascaramento composto na própria
orquestração da música. A remoção do mascaramento na segunda fanfarra confere
a ela destaque especial. Portanto, podemos observar que Beethoven intuitiva-
mente percebeu e empregou composicionalmente o fenômeno do mascaramento
na composição dessa passagem. 36

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 485


Hi;::en:tpllO 4.36 - Gustav Mahler: Sinfonia n. 1, primeiro movimento, compassos 1-22

vlo!lno

violino

viola

violoncelo

a três

zu drel
glelcl:!en Theilen

contrabaixo

zu drel
glelcl1e11 Tliellen

486 A COR DO SOM


mosso rit.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 487


Reproduzido de Eulenburg pocket socre (E570) com a autorização do editor, Ernst Eulenburg Ltda. Copirraite
(1967) Henry Litolff's Verlag. Único agente de vendas: C. F. Peters Corporation, 373, Park South Avenue, New
York. Reimpresso com autorização concedida pelo editor.

488 A COR DO SOM


Fidelio, ato II

e.xecutada sem as cordas.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 489


o

200 400 600 800 2000 4000 6000


cps 1000

As linhas verticais, da esquerda para a direita, mostram a intensidade relativa dos doze
parciais do Si!, do trompete, espectro de 466 cps.

DESIGN SÔNICO: CLAUDE DEBUSSY -


NOTURNOS PARA ORQUESTRA, NUVENS

Até o momento, revelamos os seguintes os elementos da cor sonora:

registro - tanto o colorido intrínseco dos registros (revelado pelo som puro
em vários registros) quanto as mudanças das cores instrumentais (espectros,
batimentos, ruídos de ataque e assim por diante) em diferentes registros;
espectros de um único som e da combinação de sons - levando em consideração as
variações dos espectros durante o tempo em diversas dinâmicas e registros;
ruídos componentes - tal como o ruído de ataque e os ruídos incidentais;
fenômenos de interferência - tal como os batimentos, o efeito coral e o
mascaramento;
modulação sonora - através da alteração da altura e da dinâmica, como no
vibrato.

490 A COR DO SOM


Através da separação e de trechos musicais, revelamos a natureza bási-
ca desses elementos tanto em sons individuais quanto em combinações sonoras,
tornando possível a comparação analítica entre os sons. Entretanto, abordamos
a análise do design sônico de apenas uma obra completa, as Três variações sobre
Plum blossom ("Ameixeiras em floração"). Apesar da complexidade, da força de seu
design e da sutileza de detalhes do colorido, as Três variações sobre Plum hlossom
não apresentam os problemas presentes nas combinações sonoras. Então, nos
dedicaremos agora ao desafio mais fascinante: analisar o design sônico de uma
obra musical que combine, simultânea e sucessivamente, todos os elementos já
abordados. O design sônico consiste na coordenação de vários elementos do som,
aparentemente desconexos, em uma única entidade composicional discernível.
Um design sônico deve necessariamente coordenar dois níveis de fenôme-
nos musicais. O primeiro nível é constituído por elementos extraordinariamente
minuciosos ou efêmeros:

- os diversos parciais dos espectros sonoros, vibrando em dezenas,


centenas ou millhares de ciclos por segundo;
- ruídos breves e fugazes, como nos ataques;
- batimentos, que também ocorrem em velocidades de dezenas ou
centenas por segundo;
- flutuações e modulações infinitesimais de altura e volume sonoro.

Ao mesmo tempo, o design sônico depende também das mais amplas movimenta-
ções e distribuições espaciais dos sons, que abrangem vários registros do espaço
e longas durações. É possível organizar tanto as forças de larga escala quanto
os mais diversos detalhes de uma obra musical de maneira que, conjuntamente,
criem um sentido de totalidade coerente, fazendo com que uma formação de lar-
ga escala, tal como as que encontramos no espaço, linguagem e tempo musicais,
seja delineada. A peça Nuvens de Debussy representa um exemplo particularmen-
te vívido deste desenho sônico totalizante.
Em Nuvens, assim como nas Três variações sobre Plum blossom, existe uma
movimentação espacial (e de cor) principal. Essa movimentação é sempre conduzi-
J
da em no início da obra, por exemplo, pelos clarinetes e fagotes dobrados em
oitavas (Exemplo 4.39). Esta movimentação através do espaço e suas mudanças
contínuas de cores sonoras instrumentais delineiam a essência do design sônico
de toda a obra:

fase I, estágio 1: uma distribuição relativamente restrita que inicia


nos registros 4 e 5.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 491


descendente,

estágio 5-Sb: movimento descendente em

peça (1-3).

Esse movimento de três fases se desenvolve em estágios, que são


nos Exemplos 4.39 e 4.40 (o exemplo mostra graficamente o
das Cada estágio cobre uma expansão e apre-
37
senta um colorido instrumental
O Exemplo 4.41 apresenta a análise espectral estimada de cada uma das
sonoridades característica dos oito estágios oitavo e espectros
são estimados devido à mudança de cor presente neste estágio). O Exemplo 4.42
integra o movimento das fundamentais com o movimento dos
completos. As três fases do movimento total de espaço e cor então ser
percebidas com bastante nitidez:

- na fase I, o espectro relativamente puro e próximo do som senoidal


preserva a distribuição restrita de espaço nos registros 4-5. Essas
limitações de espaço e cor permitem que vários outros registros e
cores sejam explorados na evolução posterior da peça (estágio 1);
- na fase a constante expansão nos registros graves e (especialmen-
te) nos agudos é realizada pela movimentação de fundamentais e
pelos espectros instrumentais de crescente amplitude, riqueza e
complexidade (esta fase cobre os registros 3-9 e estende-se até o fi-
nal do estágio 4, no compasso 42);
- na fase III, ocorrem constante movimento descendente e limitação
das fundamentais e dos espectros totais. Os dobramentos de oitavas
e as ressonâncias espectrais desaparecem, permanecendo somente
as fundamentais e os espectros dos registros graves (registros 1-4;
estágio 5-Sb, final).

492 ACORDO SOM


e dos oito
referem-se ao Exemplo 4,40)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 493


violinos
divididos em

494 A COR DO SOM


j. violinos li
0

:; l· dMdidos em
u

ient

e.st~IJ?io 8b
97

4 contrabaixos

Os instrumentos de corda
sempre tocam com surdina.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 495


- A movimentação Nuvens

496 A COR DO SOM


O gráfico apresenta o espaço registrai coberto pela movimentação principal em seus oito
estágios. Cada retângulo destacado no gráfico equivale ao espaço total coberto entre as
extremidades agudas e graves de cada estágio (no final de alguns estágios, ocorre a dissolução
de registro - nos compassos 1-10, 14-20 e 30-32. Essas dissoluções de registro antecipam ou
servem de transição para futuros registros e foram omitidas deste gráfico).

A passagem grafada em linhas pontilhadas relembra e sintetiza o movimento apresentado


até este ponto. Ao mesmo tempo, esta passagem conduz a música ao segundo episódio
contrastante. Como esta passagem desempenha somente as funções de síntese e transição,
não apresenta nenhuma novidade ao movimento principal.

Como o Si é a nota primária e freqüentemente define os limites dos registros em Nuvens,


nesse e nos gráficos seguintes, a numeração dos registros inicia um semitom abaixo do normal,
ou seja, na nota Si ao invés da nota Dó. Portanto, o registro 4 inicia no Si abaixo do Dó central
e assim por diante.

estágio 1) compassos 1-6 estágio 5) compassos 43-48


estágio 2) compassos 11-13 estágio 6) compassos 49-50
estágio 3) compassos 21-29 estágio 7) compassos 51-56
estágio 4) compasso 42 estágio 8) compassos 94-98

Em cada estágio, não apenas as alturas fundamentais, mas também a ins-


trumentação e as dinâmicas foram especificamente selecionadas de maneira a
criar este design do espectro total. Por exemplo:

estágio 1
o espectro inicial do dobramento fagote-clarinete situa-se quase exa-
tamente no meio da extensão do espectro total da peça (veja os Exem-
plos 4.41 e 4.42). Esta localização permite as expansões ascendentes
e descendentes que ocorrem a seguir. Outra instrumentação possível
da mesma passagem - por exemplo, oboés substituindo os clarinetes
ou instrumentos de cordas no lugar do dobramento de sopros - teria
preenchido prematuramente os registros agudos do espectro, eliminando
estas possibilidades de evolução.

estágio 2
como o abafamento dos instrumentos de cordas remove os parciais
agudos, o dobramento de três oitavas nos violinos abafados (compassos
11-14) muda as fundamentais para os registros agudos (registros 4-6)
sem ativar muito a região de ressonância do registro 8. Os violinos não

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 497


abafados ativado intensamente esta região uso dos
abafados permite o compositor construa espectros combinados na
amplitude e no alcance exatos desejar, adição de quantos do-
bramentos de oitavas desejar). Através da expansão dos dobramentos e
da movimentação ascendente, os registros mais agudos são gradualmente
ativados.

estágio 3-4
o mesmo pico de parciais que é ativado no estágio 3, até o registro 9,
é ativado no estágio 4, mesmo que suas fundamentais se localizem uma
oitava abaixo. Os registros agudos no espectro do estágio 4 resultam
da dinâmica f e das vozes agudas nos instrumentos de madeira, espe-
cialmente os oboés. Estes ápices espectrais da movimentação da peça, o
compasso 29 no terceiro estágio e o compasso 42 (do breve estágio 4)
apresentam dinâmica forte. Como as dinâmicas intensas ativam par-
ciais agudos, a dinâmica forte e a instrumentação são cruciais na cria-
ção dos picos espectrais alcançados nesses pontos.

estágio 8
o abafamento do violoncelo e do contrabaixo elimina (novamente) os
parciais mais agudos, tornando possível a" descida espectral" que com-
pleta o design sônico.

O design sônico resulta, portanto, da coordenação precisa do movimento


de fundamentais com as transformações das dinâmicas e dos espectros instru-
mentais. Outras escolhas de instrumentação e dinâmicas poderiam destruir este
design espectral.
Nuvens apresenta impressionante movimentação de espaço musical e cor,
criada pelo trabalho conjunto das fundamentais e dos espectros durante a peça.
No contorno geral deste movimento, existem vários detalhes e desvios que de-
vem ser percebidos. Como nas Três variações sobre Plum blossom (''Ameixeiras em
floração"), a evolução principal da cor sonora é interrompida por vários episódios
que, mediante contrastes, enfatizam e intensificam os estágios dessa evolução:

compassos 33-41
as linhas inferiores do clarinete, fagote e cordas no início deste episó-
dio propiciam um contraste de registro com as cores puras e agudas
do início da movimentação principal. Esse contraste é atingido atra-
vés do emprego dos mesmos instrumentos em registros diferentes.

498 A COR DO SOM


as flauta, da e das cordas solistas contrastam
com as cores cada vez mais escuras da fase da movimentação
principal.

A natureza episódica destas passagens é reforçada pela linguagem musical. En-


quanto a movimentação principal deriva das escalas menores e octatônicas cons-
truídas a partir da nota Si, os episódios apresentam outras origens lingüísticas.
O design total da peça incorpora outra característica singular: uma linha es-
tática no solo do corne inglês (Exemplo 4.43), que é repetida sete vezes. Esta linha
estática, formada por notas que se encontram exatamente no meio das extremida-
des espaciais do movimento (Exemplo 4.43), estabelece um centro espacial fixo em
torno do qual transcorre todo o movimento e a transformação de cor.
O design sônico apresenta ainda outro aspecto importante. Além dos espec-
tros aumentarem em amplitude e riqueza (fase II) e depois em profundidade (fase
III), aumentam também em interferência e ruídos de ataque. Esse crescimento é de-
talhado nos Quadros A e B, que mostram como os dobramento e ataques se acumu-
lam, criando estas interferências e ruídos. As interferências aumentam durante a
fase II (expansão espectral), ao passo que o ruído de ataque é adicionado quando o
movimento principal alcança sua mais ampla expansão e prossegue descendente-
mente (fase III). Especificamente, o aumento da interferência (por exemplo, pelo
aumento de dobramentos que criam o efeito coral) leva, nos compassos 42-43, à
introdução de ruídos de ataque (por exemplo, pelo pizzicato das cordas), que, por
sua vez, são incrementados com regularidade. Os espectros também participam
ativamente neste aumento da interferência que resulta em ruídos: nos estágios
1 ao 4, os espectros aumentam em densidade e adjacências (como mostrado no
Exemplo 4.41), criando desta maneira batimentos que conduzem aos ruídos - a
mais densa distribuição sonora, impregnada por batimentos - com os ataques pi-
zzicati do estágio 5.
O movimento parte do espaço limitado, espectralmente puro, livre de ruídos
e batimentos e se amplia para espectros enriquecidos que geram quantidades cres-
centes de batimentos. O uníssono e os dobramentos de oitavas adicionam outros
batimentos causados pelo efeito coral, e a quantidade e intensidade crescente dos
ataques aumentam o nível de ruído. No final da peça, os constantes ruídos de
ataques (pizzicati, tremoli e rufares) e as interferências quase aniquilam as alturas
fundamentais. Essas características dominam as cores conclusivas de Nuvens.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 499


500 A COR DO SOM
- Resumo e espectros

As alturas Fá e Si constituem não só as extremidades da linha do come inglês, mas de


toda a peça.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 501


- Fenômenos de intede:rênda lC<lU:sa,dois

metade dos violinos


metade dos vlollnos
(dois violinos por

violinos divididos em
violinos divididos em
divididas 2
divld!doo em
ou Instrumentistas por

2 oooés, clarinetes
3 trompas
I, divididos em 2
\iíolinos II. divididos em 2
vlola, divididas em 2
cetll
(6 cordas por linha, dobradas
menos, mn instmmento

5 violinos diVididos 2-6


vfollnos divididos em
viola, divldidas em 4
celli, divididos em
co1im1ba.bto1s, divididos em
mll1lll~11os dobramentos
das
as cordas sempre abafudas)

A cor inicial desta peça apresenta um espectro relativamente puro e também relativamente
(Tio, sem a presença de interferências por batimentos, tanto aqueles causados pelo efeito
coral quanto aqueles produzidos pelas (Teqüências adjacentes nos espectros. A ausência de
batimentos é resultado da escolha de registros, intervalos e espectros instrumentais. Os estágios
subseqüentes da movimentação principal produzem cada vez mais interferência, à medida que
o número de instrumentos, a densidade das sonoridades e o número de dobramento de oitava
aumenta. O incremento sistemático dos dobramentos (em uníssono ou oitava), detalhado
no quadro, cria o efeito coral. A maior densidade intervalar dos últimos estágios produzem
batimentos adicionais, causados pelas 'fundamentais e pelos parciais adjacentes (embora os
estágios iniciais utilizem apenas duas classes de altura simultâneas por semínima, a partir
do compasso 21, quatro classes de alturas simultâneas por semínima tornam-se a norma). Os
estágios anteriores evitam estas adjacências de alturas que criam batimentos, ao passo que os
últimos estágios as incluem.

502 A COR DO SOM


1-3,

violino

43-50

viola

tre.moli mrn cordas graves

cello
ci::mtrabruxo
PP

8 rufar do ti111pimo 94--98

Cada nova característica de ataque (cordas em detaché, pizzicati, tremoli, rufar do tímpano)
aumenta a quantidade e intensidade dos ruídos de ataque até o momento (nos tremoli e no
rufar dos compassos 94-98) em que a injeção de ruído de ataque se torna contínua e onipresente.

A notável transformação da cor produzida por esta evolução não é simples-


mente uma questão de "orquestração". A progressão das cores sonoras gera todos
os aspectos desta obr.a:

- sua movimentação espacial;


- suas combinações de alturas;
- suas dinâmicas;

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 503


- suas escolhas instrumentais;
-suas transformações som
com o arco ou pizzicato, legato, detaché e tremo li);
- suas combinações instrumentais.

A movimentação em direção aos registros graves, cujos espectros são mais ricos e
nos quais os complexos sonoros produzem mais adjacências e, conseqüentemente,
mais interferências, é crucial para a formação das interferências, que são HL'~H.v
importantes na progressão das cores do movimento. O início relativamente agu-
do, suave e esparso executado no clarinete e no fagote apresenta sons individuais
que se aproximam do som puro e combinações deficientes em interferência.
Esta também é uma característica importante no movimento, assim como cada
uma das características espaciais, intervalares, instrumentais e as dinâmicas no
transcorrer da peça. O design sônico compreende toda esta ampla movimentação
através do espaço, durante a qual são efetuadas profundas alterações na cor so-
nora. Este design inicia nitidamente com a primeira nota do clarinete e do fagote
e termina com o último Si grave impregnado de ruído executado pelas cordas em
pizzicati e com o tremolo dos tímpanos.

CONCLUSÃO

A análise do design sônico adiciona uma nova dimensão ao entendimento


musical. Esta análise proporciona uma explicação racional para características
como a instrumentação e a orquestração e para a utilização de registros e dinâ-
micas - aspectos cruciais da música que, anteriormente, não tinham sido inves-
tigados analiticamente. O design sônico é um modo de análise que leva em conta
a totalidade sonora da música. Esse modo de análise reconhece vários elementos
do som que extrapolam a notação e que são importantes, porém via de regra
ignorados nas concepções anteriores da música. Tais elementos, que podemos
considerar como "supranotados" na partitura, incluem os espectros, ruídos de
ataque, ruídos incidentais, os fenômenos de interferência e a modulação sonora.
Esta concepção musical supera muitos preconceitos culturais e teóricos di-
fundidos e consolidados, tanto do passado próximo como do distante. Os fenô-
menos de interferência (especialmente os batimentos), a modulação do som e o
ruído, freqüentemente vistos no passado de forma negativa ou como proprieda-
des irrelevantes do som, são agora compreendidos como características necessá-
rias e positivas da experiência sonora. De fato, esses são elementos fundamen-
tais na construção da música, suscetíveis a muitos processos sutis de elaboração e

504 A COR DO SOM


os AH~·~~
estes "supranotados" e o som mú-
sica são e, freqüentemente, equivocados. Estas limitações analíticas es-
pecíficas constituem o ponto da teoria musical européia nos dois milênios
antecedem Schoenberg.
Vastos repertórios musicais têm permanecido inacessíveis e verdadeira-
U"·'"·~ incompreensíveis por causa de molduras e referências intelectuais e cul-
turais que omitem a cor sonora e o design sônico. Entre essas músicas, estão as
magníficas culturas da música clássica da China, Indonésia, Japão, Coréia e do
Tibete, que dependem da exploração da modulação do som e das transformações
de cores sonoras; a música do final do século XIX e do século XX, com suas ricas
texturas e sucessões de cores sonoras; a arte musical afro-americana; as novas
estruturas de som da música eletrônica. O design sônico oferece uma maneira
conceber e compreender obras musicais que exploram os sons e as relações
sonoras, em especial aquelas obras que não seguem os procedimentos anteriores
notação e análise. Este modo de análise abre as portas para o entendimento
de uma estrutura musical capaz de organizar toda a abrangência do fenômeno
sonoro em uma totalidade coerente, como a estrutura descoberta na peça Nuvens
de Debussy, cuja arte musical demonstra enorme força e complexidade sônica.

LEITURA COMPLEMENTAR

BACKUS, JOHN. The Acoustical Foundations of Music. New York, Norton, 1969.

CHOU, WEN-CHUNG. Towards a Re-Merger in Music. Contemporary Composers on Contempo-


rary Music. ed. E. Schwarts e B. Childs. New York: Holt, Rinehart & Winston, 1967.

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FLETCHER, HARVEY. Speech and Hearing in Communication. Princeton, New York: Van Nos-
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FLETCHER, HARVEY; D. BLACKHAM; STRATTON. Quality of Organ Tones. Journal of the


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SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 505


FLETCHER, HARVEY; D. BLACKHAM; STRATTON. Quality of Viola, Cello and Bass-
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FLETCHER, HARVEY; LARRY SANDERS. Quality of Violin Vibrato Tones. Journal of the
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por Alexander Ellis. New York: Dover, 1954.

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WINCKEL, FRITZ. Music Sound and Sensation. New York: Dover, 1967.

NOTAS

1. Hector Berlioz em Treatise Upon Modem Instrumentation and Orchestration (trad. M. C. Clarke - Lon-
don: Novello, 1958, p. 243).
2. Citado em Leon Vallas, The Theories of Claude Debussy (trad. Marie O'Brien - New York: Dover, 1967,
p. 9).
3. Arnold Schoenberg em Harmonia (tradução de Marden Maluf - São Paulo: UNESP, 2001).
4. Hermann von Helmholtz em On the Sensations of Tone (traduzido da quarta edição alemã de 1877

506 A COR DO SOM


por Alexande Ellis - New York: Dover, 1954, p, 65), Helmholtz desenvolve esta teoria da cor sonora
primeiramente nos Capítulos 1 a 4 deste livro,
5, James Jeans em Science and Music (New York: Macmillan, 1937, p, 86-87),
6, Helmholtz, op, ciL, p, 118-119,
7, R Fletcher, E, D, Blackham e R, Strattom, "Quality of Piano Tones", Journal of the Acoustical Society
of America, 34 (p, 749-761, 1962), Os Exemplos 4,2 e 43 derivam deste artigo,
R Jeans, op, cit,, p, 96,
9, "Surpreendentemente, constatou-se que quando as cordas são afinadas precisamente na mesma fre-
qüência para soar em uníssono exato, o som não é bom" (John Backus em The Acoustical Foundations
ofMusic, NewYork: Norton, 1969, p, 241-245),
10, A importância da tradição do ch'in é sugerida por Chou Wen-Chung em "Towards a Re-Merger in
Music", Contemporary Composers on Contemporary Music (ed, E, Schwarts e R Childs - New York:
Holt, Rinehart & Winston, 1967, p, 309-315),
11, John Levy, "Some of the Basic Ways of Touching the Ch'in" no encarte de BBC LP REGL 1 (Westmin-
ster WBBC-8003),
12, R R van Gulik, The Lore of the Chinese Lute; citado por Levy, loc ciL
13, "Mach, Engel e Stumpf podem ser considerados os primeiros defensores da idéia que, além da altura,
os sons simples (senoidais) apresentam também timbre (cor sonora), Para denominar este atributo
nos sons simples, o termo brilho parece ser o mais apropriado, Nos sons puros, existe uma relação
unidimensional entre a freqüência e o timbre: sons graves soam opacos e sons agudos soam brilhan-
tes" (R, Plomp em Experiments On Tone Perception, Soesterberg: Institute for Perception RVO-TNO,
1966, p, 131-133),
14, Encarte da Anthology of the World's Music, AST-4000 "The Music of China, VoL 1", p, 2, A peça Três
variações sobre Plum biassam ("Ameixeiras em floração") pode ser ouvida nesta gravação,
15, As seções 5 e 10 incluem fugazes transições de registro que foram omitidas devido à sua brevidade e
por sua função meramente transitória,
16, "Os primeiros regentes atuavam simultaneamente como seus próprios arranjadores,,, Eles tinham
que adequar a partitura do compositor às forças vocais e instrumentais disponíveis" (Frederik Do-
rian em The History of Music in Performance, New York: Norton, 1942, p, 62-63), "Durante boa parte
do século XVII, instrumentos de tessituras e agilidades similares foram considerados como mais
ou menos intercambiáveis,,," (Thurston Dart em The Interpretation of Music, London: Hutchinson,
1954, p, 127),
17, "[,,,] som vivo [,,,] eu quero estar no material, parte da vibração acústica", (Edgard Varêse, citado em
Gunther Schüller, "Conversation With Varêse", Perspectives of New Music, 3, n, 2, Spring-Summer,
1965, 36),
18, Carl Seashore em The Psychology of Music (New York: McGraw-Hill, 1938, p, 190-197),
19, Dayton C Miller em The Science of Musical Sounds (New York: Macmillan, 1916, p, 190-193),
20, W, Strong e M, Clark, Jr, em "Synthesis of Wind-Instrument Tones", Journal of the Acoustical Society
of America, 41, (January, 1966, 47),
21, D, Luce e M, Clark, Jr, em "Physical Correlates of Brass-Instrument Tones", Journal of the Acoustical
Society ofAmerica, 42 (~une, 1967, 1243),
22, J, E, Ancell em "Sound Pressure Spectra of a Muted Cornet'', Journal of the Acoustical Society ofAmeri-
ca, 32 (September, 1960, p, 1101-1104),
23, R Fletcher, E, D, Blackham e O, N, Geertsen em "Quality ofViolin, Viola, Cello and Bass-Viol Tones:
I", Journal of the Acoustical Society ofAmerica, 37 (maio, 1965, p, 857-860),

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 507


24. E. Leipp em Les Paramêtres Sensibles des Instruments à Cardes (Paris: Thesis, 1960),
25. "Se o instrumento é tocado com o arco perto do final da corda no cavalete (sul pontícello), a proporção
de parciais agudos é geralmente maior e o som é mais 'brilhante'. Da mesma forma, se é tocado com
o arco mais perto do espelho do instrumento (sul tasto), a proporção de parciais agudos é reduzida ..."
(Backus, op. cit., p. 169).
26. Seahore, op. cit, p. 216-217.
27. H. Fletcher e L. Sanders em "Quality of Violin Vibrato Tones'', Journal of the Acoustical Society of
America (junho, 1967, p. 1534-1544).
28. Esta combinação dos espectros supõe que não exista nenhuma diferença de intensidade entre dois
instrumentos tocando no nível máximo de intensidade. Como as dinâmicas de todos instrumen-
tos são semelhantes neste trecho (ppp), a afirmação é aproximadamente precisa. No gráfico, não
é levado em consideração o mascaramento (veja a discussão sobre este assunto que é apresentada
mais adiante neste capítulo). Neste nível de dinâmica tão suave, o mascaramento é um fator menos
importante do que seria em um nível de intensidade maior. Para alcançar uma precisão absoluta, as
diferenças de volume sonoro e do efeito de mascaramento deveriam ser calculadas.
29. O solo de violino na primeira variação (compassos 11-20) estende-se por todas as regiões mais agu-
das (registros 7-9) que são eliminadas no tema pelo abafamento dos violinos da orquestra. In tato,
a sucessão e variedade de coloridos do movimento é marcante. Para alcançar tal variedade, são uti-
lizados muitos recursos instrumentais (o abafamento dos violinos e das trompas da orquestra, os
registros extremos do violino solo, as especificações fora do comum de cordas do violino solista, e
assim por diante).
30. Isto é conhecido como largura de banda critica. Esta largura é diferente em várias partes da extensão
audível, mas geralmente varia entre um quarto ou a metade de uma oitava. Os batimentos foram
pesquisados por Helmholtz, op. cit., Capítulos VIII-XI.
31. Jeans, op. cit., p. 50.
32. "Os dois pares de instrumentos são propositalmente desafinados entre si para produzirem batimen-
tos acústicos" (Robert Brown no encarte de Music for the Balinese Shadow Play, Nonesuch H72037).
33. Backus, op. cit., p. 105.
34. Harvey Fletcher em Speech and Hearing in Communication (Princeton, New York: Van Nostrand,
1953, Capítulo 10). O Capítulo 11 demonstra como calcular o efeito do mascaramento nos parciais
de sons complexos em diferentes dinâmicas. Por causa dos efeitos do mascaramento (entre outros),
a cor de um som complexo é diferente em vários níveis de dinâmicas: em diferentes dinâmicas, dife-
rentes parciais (ou nenhuma) serão mascaradas. Citando Fletcher: "Podemos deduzir que a sensação
produzida por um som complexo é diferente tanto em caráter quanto em intensidade, à medida que
um som tem sua intensidade aumentada". Por essa razão, as dinâmicas são consideradas neste livro
como um elemento importante e determinante da cor do som, ao invés de um fator por si só. Isso
não diminui sua significância e relevância, mas revela seu verdadeiro alcance.
35. Veja Abe Pepinsky em "Masking Effects in Practical Instrumentation and Orchestration", Journal of
the Acoustical Society ofAmerica, 13, (1941, p. 405-408). Infelizmente, a tentativa inicial de Pepinsky
não teve prosseguimento.
36. Esta versão aparentemente simples da chamada do trompete foi atingida por Beethoven somente
após uma recomposição substancial depois das primeiras apresentações da ópera sob o título de
Leonore. Será que ele aprendeu alguma coisa sobre o mascaramento no teatro de ópera? (Na Abertura
Leonore n. 3, também recomposta muitas vezes, as mesmas duas passagens recorrem quase exata-
mente como na versão final da ópera. Entretanto, como a mudança de perspectiva auditiva não é

508 A COR DO SOM


desejada ou especificada, o acompanhamento de cordas é utilizado nas duas chamadas do trompete.
Esse fato proporciona novas provas que o "desmascaramento" da segunda chamada na ópera ocorre
para proporcionar o sentido de proximidade e intensidade crescentes). Ingenuamente, poderíamos
pensar que a passagem das cordas mais trompete fosse mais forte que a passagem do trompeto so-
zinho, quando na verdade ocorre justamente o contrário!
37. A fim de acompanhar completamente a transformação de cores sonoras de Nuvens, o leitor deve
consultar a grade orquestral da peça.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 509


Este capítulo está dividido em duas partes. A primeira descreve como os
músicos constroem totalidades musicais inteligíveis, expressivas e unificadas,
utilizando os processos que estudamos: o espaço musical, a linguagem, o tempo e
a cor. A segunda apresenta um exemplo final deste processo como um todo.

FORMA

Os Capítulos 1 a 4 deste livro descrevem os processos de criação da forma


na música, ou seja, como uma obra musical:

- dispõe e movimenta seus elementos pelo espaço musical escolhido;


- explora e cristaliza recursos intervalares de alturas agrupadas em
sonoridades e coleções;
- desenvolve uma variedade de níveis e freqüências da atividade
rítmica;
- estabelece expansões temporais inter-relacionadas e dimensionadas;
- transforma seus sons para intensificar ou reduzir, de maneira or-
ganizada, seus espectros e outras propriedades psicofísicas da cor
sonora.

Como observamos na.Interseção (citando o físico L. L. Whyte), a forma é "a conti-


nuidade de todo e qualquer processo". Esses são os processos contínuos da música.
Todos os da música assumem seu significado a
que desempenham desses processos espaço,
+-~~-~~ e cor sonora. Os processos formais fornecem os contextos, a
quais eventos detalhados ou gestos são medidos. Um evento é agudo ou grave,
denso ou esparso, comum ou raro, breve ou ou escuro - às vezes
até mesmo perceptível ou imperceptível (conforme demonstrado no estudo da
percepção durações no Capítulo 3) - por de seu relacionamento com
estes processos formais.
Em outras palavras, percebemos e entendemos eventos de maneira diversa
em contextos formais distintos. exemplo:

no sistema modal, um intervalo @ (uma décima) era a distância espacial mais ampla
disponível para a movimentação de uma voz. Nas obras musicais desse sistema, este
intervalo era considerado uma distância muito ampla. Os cantos modais que estudamos
no Capítulo 2, Veni creator spiritus ou Kyrie Deus sempiterne, mal abrangem uma oitava
(um intervalo@) do espaço total. Seus saltos mais amplos perfazem um intervalo<:/) e
mesmo assim são uma raridade. Apenas em 1638, no apagar das luzes do sistema mo-
dal, Monteverdi pode ousar:

(Extraído da peça "Hor che'l ciel e la terra", do Oitavo Livro de Madrigais, para voz de tenor).

o salto Q;~;, que aparece ilustrando as palavras son lunge ("estão longe"), é surpreenden-
te mesmo no contexto propiciado por Monteverdi. Esta mesma distância Q"§) também
representa os limites (Sib3 e Dó# 5 ) das áreas estáticas, campos A e C da "Introdução"
do Segundo quarteto de cordas de Carter, analisado no Capítulo 1. Entretanto, na for-
ma espacial de Carter, esta distância é percebida como reduzida e, naquele contexto, a
amplitude é definida pelas mais de cinco oitavas do campo B. Em uma obra cujas fun-
damentais transcorrem toda a extensão audível de dez oitavas, mesmo o espaço mais
amplo utilizado por Carter pode parecer restrito.

512 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


como observamos no Capítulo 2, as sonoridades das classes intervalares (j) e @ são
raras tanto no Plus dure que un dyamant de Machaut quanto no "Benedictus" de Josquin.
Nas poucas ocasiões em que ocorrem, são resolvidas imediata e discretamente nos in-
tervalos mais proeminentes. Não obstante, no primeiro movimento das Variações para
Piano op. 27 de Webern, estas sonoridades são predominantes e determinam a sonorida
da música. O intervalo @ que tão claramente governa a linguagem musical da Dança
do búfalo não desempenha nenhuma função importante em Veni creator spiritus e a so-
noridade das (D paralelas, predominante na sonoridade de Plus dure que un dyamant,
simplesmente não ocorre em Mãos cruzadas de Bártok.

Cada contexto determina o significado de seus intervalos. Para compreender


todo e qualquer detalhe de uma obra musical é necessário entender seu papel
dentro dos processos formais de espaço, linguagem, tempo e cor sonora da obra.
uma composição, os detalhes só assumem significado no contexto desses pro-
cessos. Cada obra analisada neste livro (mesmo aquelas situadas em um mesmo
sistema musical geral) constitui, de alguma maneira, uma manifestação singular
no tratamento destes processos. Esta singularidade providencia uma nuance dis-
tinta ao significado dos gestos de cada obra.

ESTRUTURA

Os processos formais evidenciam um nível ainda mais elevado de integra-


ção. Desde nosso primeiro exemplo, o Prelúdio op. 28, n. 20 de Chopin, até o últi-
mo, Nuvens de Debussy, observamos como esses processos formais se refletem e
são reciprocamente esclarecedores. Eles são complementares ao invés de separa-
dos e distintos. Na Dança do búfalo dos povos indígenas Zuni (veja a parte Interse-
ção), cada seção apresenta dimensões de igual duração. Essas seções, entretanto,
também são definidas por:

- sua tranpposição da coleção de alturas e sua nota principal;


- sua linha descendente no espaço;
- seu andamento e seus detalhes da atividade rítmica.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 513


As seções durações equivalentes não
pausas na atividade definem suas mas também por es-
tágios distintos nos processos formais complementares de espaço e linguagem,
bem como por outros níveis temporais.
Cada elemento da linguagem (por exemplo, cada nota e cada
transposição da coleção escalar) adquire substância e importância após ocorrer,
de maneira predominante, por um certo tempo. Além disso, cada nota prioritá-
ria é apresentada de forma proeminente no espaço. As características essenciais
da linguagem musical são então ressaltadas, através de suas disposições comple-
mentares no tempo e no espaço. Os processos formais são integrados de maneira
a se esclarecerem mutuamente.
O resultado desta coordenação de processos formais é o que o compositor
contemporâneo húngaro Ligeti denomina "complexo unificador ainda mais ele-
vado". 2 Chamaremos esta coordenação de processos formais de estrutura. Esta
integração estrutural produz na obra musical um núcleo comum de característi-
cas expressadas vividamente por todos os seus processo formais. Cada evento ou
gesto participa em uma ou mais etapas do processo formal, que é coordenado de
maneira a se focalizar no núcleo de características principais. O núcleo de carac-
terísticas representa, portanto, o coração da integridade estrutural de uma obra
musical. Por exemplo, na Dança do búfalo as principais características são:

- o trítono;
- o intervalo @preenchido pela movimentação linear;
- o deslocamento rítmico causado pelas tercinas truncadas;
- a natureza binária de cada um dos processos formais.

Estas características emergem da coordenação dos processos formais de es-


paço, linguagem e tempo. São as impressões digitais da obra.
De maneira similar, em Nuvens (Capítulo 4), a linguagem musical - consti-
tuída de escalas menores e octatônicas construídas a partir da nota Si - e a ati-
vidade rítmica - marcada por sucessões de J- coordenam-se com o movimento
espacial e com os detalhes do colorido. Todos os processos formais convergem em
uma coordenação estrutural para projetar a transformação do colorido espacial
descrito no Capítulo 4:

- da cor sonora do início da peça, relativamente pura, livre de ruído e


de batimentos nos registros 4 e 5, à cor sonora da sua conclusão, com
diversos ruídos e batimentos nos registros 1 e 2.

514 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


Chegamos, como os elementos musicais são
combinados e que são as obras musicais.
Estas totalidades formal e estrutural surgem do trabalho conjunto dos mais am-
plos elementos musicais - disposição do espaço e da movimentação, dimensões
das áreas dimensionais - e dos elementos mais minuciosamente decisivos - in-
tervalos, detalhes da atividade rítmica e detalhes psicofísicos do colorido.

Chegando a este ponto, precisamos, por um momento, examinar com aten-


ção um postulado teórico muito difundido sobre a unidade em música. De acordo
com esta teoria, existe um processo específico de criação de formas e unidades
que difere dos processos de espaço, linguagem, tempo e cor que apresentamos.
Este processo é o tematicismo melódico.
De acordo com essa teoria, uma obra musical é criada a partir de temas
melódicos que são organizados em padrões ou moldes baseados na semelhança
e no contraste. Os padrões são construídos de maneira que um tema melódico
recorrente unifique o padrão. Entre os padrões mais comuns estão:

tema e variações: A, A1, A 2 , A 3 e assim por diante,


A é um tema melódico e A1-Axsão variações que transformam
seu caráter;

forma canção: ABA,


na qual B contrasta tematicamente com A;

forma rondá: ABA C A e assim por diante,


uma expansão da forma canção com contrastes temáticos
adicionais que são alternados com o tema melódico principal;

forma sonata: exposição de A B desenvolvimento recapitulação de


deA e/ou B AB
na qual A e B são temas contrastantes.

Novamente, estamos diante de uma teoria amplamente difundida, ainda


que tenha sido alvo de intensa crítica nas últimas décadas do século XX. Mesmo

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 515


um
temas não ~,,,.,,,rn rlc.t-o·vL11.uuu

Se os temas não podem determinar a lógica da música, uma única figura também não
pode realmente formar a "idéia" de todo um movimento ou seção ... Assim como é errado
identificar uma "idéia", partindo de uma única figura recorrente, afastar-se ou dar por
terminada a ação da primeira sentença aparentemente completa, antes de ter certeza
que o problema proposto pelo seu contexto não é essencial para a sua compreensão,
configura-se como erro semelhante. 3

Para Tovey, a essência é nos processo


guagem musical e do tempo:

Os temas não apresentam conexões mais íntimas com as proporções musicais de larga
escala do que as cores dos animais com os seus esqueletos. No estilo sonata, três ele-
mentos são fundamentais e fornecem apoio para questões tais corno o equilíbrio e a
proporção. Estes elementos fundamentais consistem no sistema de tonalidades e de
frases, que podem ser submetidos a uma análise técnica e adequação drarnática. 4

Em comparação, Schenker considerou as obras musicais tonais como um


único movimento harmônico linear em direção à tônica final Este movi-
mento é denominado, na teoria nível estrutural profundo ou básico,
e é responsável pela unidade da música tonal. 5 A unidade estrutural depende,
portanto, do desenvolvimento coordenado dos processos de movimento espacial
e da linguagem tonal. A existência dos temas não é estritamente necessária e,
quando estes existem de fato, podem assumir diversas funções:

- podem conduzir ou elaborar membros da movimentação linear-har-


mônica subjacente;
- podem fazer referências intervalares a este movimento;
- podem apresentar seus principais contornos em velocidades mais
rápidas, isto é, em um processo conhecido por diminuição.

Estes "artifícios temáticos" podem ser considerados como a superfície, o nível


imediato ou primeiro plano. Dessa maneira, o plano estrutural pode gerar detalhes
do nível imediato (primeiro plano) que aparentam ser temáticos. Não obstante,
é o nível estrutural fundamental, ou seja, são o desenvolvimento no espaço e a

516 POSLÚDIO GESTO, FORMA E ESTRUTURA


com a com-

na temáticos encontraram
ressonâncias no pensamento de compositores do século
"Atematicismo" e aberta", ou seja, a não consiste em padrões
temas definidos e recorrentes, são algumas das palavras-chaves na do
século

Deve-se admitir, por fim, que a teoria dos moldes temáticos não é adequada
como uma teoria geral da forma, embora tenha seus méritos. No entanto, suas
virtudes podem ser rapidamente absorvidas na teoria da forma entendida como
processos espaciais, temporais, de linguagem e de cor sonora. Simultaneamente,
esta teoria pode esclarecer a compreensão da música e de fenômenos musicais
fora do âmbito da teoria dos moldes temáticos.
Este livro está, de fato, repleto de exemplos musicais cuja unidade é incom-
preensível ou questionável, segundo os preceitos da teoria dos moldes temáticos,
mas que pode ser compreendida como processos nos parâmetros espaço, lingua-
gem, tempo e cor. A ausência de conexões temáticas, nas duas primeiras seções
da Dança do búfalo, causa a sensação de falta da unidade? Ao contrário, a maneira
como o compositor lida com espaço, linguagem e tempo revela diversas e pro-
fundas conexões que unem as seções. A introdução de Du bist die ruh de Schu-
bert (Exemplo 2.49) carece de um tema melódico. Será, portanto, que esta seção
não está unificada com o resto da canção? Pelo contrário, esta seção origina uma
movimentação linear-harmônica - um processo em espaço e linguagem - que
recorre como base estrutural de cada uma das seções posteriores da canção. Des-
cobrimos, no Capítulo 2, que cada novo aspecto da canção nada mais é do que a
transformação de algum membro desta movimentação recorrente.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 517


relação às variações de a e as
Variações Goldberg, observou-se amplamente a ...-.. ~·-·~ temática não
as variações. Esta unidade é atingida pela movimentação ,.,,~~u
baixo e especialmente pelas durações na atividade rítmica e no dimensio-
Além disso, o sentido de unidade é obtido pela aumentação destas durações
iniciais de atividade e dimensão em grandes extensões de atividade e dimensões
que abrangem toda a obra.
Nuvens de Debussy pode parecer temática. De modo inequívoco, um carne
inglês executa, sete vezes, uma linha descendente Fá-Si. O foco nessa caracterís-
tica recorrente em nada contribuiria, entretanto, para a compreensão da
Conforme aprendemos no Capítulo 4, a essência estrutural da peça não reside na
linha descendente do carne inglês, mas sim nas modificações que ocorrem em seu
contexto, ou seja, nas transformações de espaço e cor que englobam o material
do corne inglês. Este padrão recorrente é como a pilha de feno ou a Catedral de
Rouen nas pinturas de Monet. Tanto a pilha de feno como a catedral são pretex-
tos para estudo das transformações contínuas da luz e da cor nas quais estão
imersas. O sujeito consiste na luz e no colorido total; as transformações destas
luzes e cores constituem-se na essência estrutural da peça.
Os moldes temáticos também não obtêm êxito ao esclarecer as obras de
Schoenberg, Ives, Stravinsky, Bartók, Webern, Messiaen, Carter, Cage e Babbit,
encontradas neste livro. Concluímos, portanto, que a unidade de uma obra musi-
cal emerge, como demonstramos, através de seus processos nos parâmetros espa-
ço, linguagem, tempo e cor - e, posteriormente, através da integração estrutural
destes processos.

MOLDES TEMÁTICOS COMO PROCESSOS

Freqüentemente, podemos reinterpretar os moldes temáticos como proces-


sos. Por exemplo, o elemento A recorrente em um padrão A B A pode ser tanto
uma extensão dimensional idêntica quanto áreas de atividade rítmica similar
ou áreas que apresentam similaridades na utilização do espaço musical ou em
sua linguagem musical. A similaridade pode unir, de fato, vários destes aspectos
simultaneamente. Certas obras musicais adotam, portanto, os moldes temáticos,
porque eles são apropriados a um ou mais processos formais. O molde ajuda a
expressar o processo formal; todavia, o molde é um sintoma do processo formal,

518 POSLÚDIO ·GESTO, FORMA E ESTRUTURA


sua essência. É o que e não o

exemplo consideremos o tema e as variações. A origem des-


ta forma pode ser encontrada na música européia do século no processo de
divisões, como era denominado na Inglaterra: subdivisões progressivamente mais
rápidas (e freqüentemente improvisadas) da atividade, elaborando uma melodia
temática ou uma harmonia subjacente de dimensões fixas. Na França, uma varia-
ção similar era denominada double. Como os termos divisões e double sugerem, o
processo caracterizava-se por um aumento na atividade rítmica, medida a partir
de certas constantes formais: movimentação linear, relacionamentos lingüísti-
cos básicos e, especialmente, um plano dimensional fixo. O aumento da atividade
rítmica é, pois, um processo que serviu como base formal para as variações desde
William Byrd até Elliot Carter. Este processo se encontra subjacente a esplêndi-
das variações como a chaconne e as Variações Goldberg de Bach, e a "Arietta" da
Sonata para piano op. 111 de Beethoven.
O molde temático mais evidenciado na literatura tem sido a descrição tida
por apropriada para a forma sonata (consulte a seção "Moldes temáticos"). Em-
bora muitos esquemas de sonata correspondam a esta descrição de padrão temá-
tico, outros tantos não se enquadram. Em um momento anterior (na seção "O
sistema tonal" no Capítulo 2) citamos a observação de Tovey:

Se as práticas de Haydn, Mozart e Beethoven forem tomadas como guia (a quais outros
recorreríamos?), as regras passíveis de serem descobertas da forma sonata são definiti-
vas, em relação à distribuição de tonalidades, e absolutamente indefinidas, em relação
ao número e à distribuição de temas nessas tonalidades. 6

O processo fundamental da forma sonata não é temático, mas sim tonal e


lingüístico.

seção I (exposição)
estabelecimento de I - modulação para V ou outro nível tonal relacionado,
tornando necessária a momentânea erradicação de I.

seção II (passagem)
movimentação que passa por regiões mais distantes da linguagem tonal e,
em última instância, prepara o retorno para I, geralmente através de V.

seção III (recapitulação)


restabelecimento e confirmação de I.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRU TURAS SONORAS 519


áreas na em
justaposição origina outras justaposições, como:

- áreas dimensionais;
- atividade diversificada;
- linha e registro;
- dinâmicas e cor sonora.

Na forma sonata, a justaposição primária mais comum é tonal e lingüística. As


outras justaposições desenvolvem-se de maneira distinta em cada movimento
sonata, de acordo com os processos específicos de cada movimento. Vimos isso
no movimento da Sonata para piano op. 31, n. 3 de Beethoven, com suas
justaposições sistemáticas de registros.

PROCESSO

O restabelecimento da teoria processual no lugar da teoria dos moldes te-


máticos traz muitas conseqüências benéficas. A teoria do molde temático assu-
me implicitamente que toda a música é melódica e temática e que seus moldes
podem ser aplicados universalmente. Entretanto, é nítido que nenhuma destas
suposições se sustenta. Vimos anteriormente numerosos exemplos nos quais os
processos de espaço, linguagem, tempo e cor revelam ordem e unidade, enquanto
o tematicismo nada revela.
As concepções da teoria dos moldes temáticos acabam por excluir de sua
consideração grande parte da música espalhada pelo mundo como, por exemplo,
músicas que se concentram no ritmo e que exploram intensivamente os proces-
sos temporais. De fato, um dos padrões mais difundidos não é temático, mas
constitui-se em um processo rítmico denominado (pelos japoneses) Jo-Ha-Kyú:

Jo Ha Kyú
lento mais rápido correndo
introdução dispersão conclusão

520 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


O conceito tem sua aplicação restrita a uma única frase. Este conceito
pode ser aplicado em amplas de uma peça (referindo-se à música do teatro Nô),
em uma coleção de peças ou em arranjos baseados em récitas completas de peças apre-
sentadas.7

Estes padrão e processo ser aplicados também às três partes


8
provisação indiana: Alãp-Jor-Jhãlã. É possível compreender obras musicais
como processos temporais e também (quando aplicável) espaciais, de linguagem
e cor. Quando essas obras apresentam temas melódicos, é possível compreen-
dê-los como elementos vitais nos processos formais que se desenrolam. pre-
sença de ternas e moldes temáticos não é, entretanto, um requisito para a forma,
unidade e sentido musical:

Deve-se enfatizar que as improvisações melódicas (na música clássica do norte da Ín-
dia) não são variações da própria composição, mas elaborações das diferentes caracte-
rísticas do rãg(a), fraseadas contra a métrica do tãl(a). 9

Na música européia, a ênfase crescente no tematicismo, durante o século


XIX, distorceu sutilmente os conceitos de variações e da sonata. As variações,
que surgiram como um processo rítmico de divisões, passaram a ser consideradas
corno variações de caráter, cujo tema melódico incorporava certo caráter poético.
mais fácil atribuir caracterização poética a temas melódicos do que a dura-
ções dimensionais ou movimentações lineares-harmônicas do baixo. Explica-se,
dessa forma, a preponderância da abordagem temática. As variações eram trans-
formações do caráter poético de um tema. Qual o processo que determina as va-
riações de caráter? Enquanto o processo de divisão aponta diretamente para, pelo
menos, um processo formal, o rítmico, a variação de caráter não sugere nenhum
processo específico. Esta se constitui menos em um processo do que em uma idéia
literária (e de certa maneira, mística).
A sonata foi alterada de maneira similar, e sua segunda seção, em especial,
passou por mudanças conceituais. O nome original em alemão para esta seção é
durchführung ("passagem"). O termo sugere novamente um processo de linguagem
musical: o percurso de harmonias mais distantes da tonalidade original, a partir
da dominante, e um regresso posterior à tônica. Em inglês, este termo tornou-
-se desenvolvimento - desenvolvimento dos temas da exposição. O tematicismo,
nessa redefinição, se torna fundamental. Entretanto, "desenvolvimento" não su-
gere um processo formal explícito, assim como o termo variações de caráter. Um

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 521


processo específico novo obscurecido
esta razão, adotar o termo passagem ao de desenvolvimento.
Essa redefinição das variações e da sonata acarretou mudanças significa-
tivas em todo o ato compreensão musicaL Este ato se tornou uma busca
fragmentos semelhanças uma obra. Mais
mente, tornou-se fácil esquecer a existência de processos de larga escala
que abrangem toda a obra musicaL A variação característica enfatiza as mudan-
ças locais e imediatas no caráter da peça, o que, por sua vez, se em
convite para a propagação de conceitos distorcidos. Por exemplo, a modificação
de andamento é um meio eficiente para operar mudanças de caráter em uma
variação. A chaconne de Bach é freqüentemente executada como um mosaico
diversos andamentos sobrepostos em uma obra que não os especifica nem tam-
pouco os permite. Mudanças de andamento causam mudanças de caráter entre
as variações. Essas mudanças, entretanto, também podem destruir o crescimen-
to contínuo da atividade rítmica e as proporções dimensionais que formam o
magnífico processo de variação rítmica entranhado na obra. Mudanças locais de
caráter são obtidas em detrimento de processos formais mais amplos. Dessa ma-
neira, tais processos freqüentemente tendem a desaparecer da percepção imedia-
ta. Os intérpretes, não conscientes destes processos, não os expressam em suas
execuções. Os ouvintes, que não escutam sua expressão em uma execução, nem
desconfiam de sua presença - ou mesmo de sua ausência.
Cada tema é um detalhe, um gesto, uma parte de um todo maior e, como tal,
pode ser sintoma de um amplo processo formaL Estes detalhes podem ser:

- uma parte de uma linha ou campo, ou uma única linha ou campo,


entre outros;
- uma ou mais células lingüísticas;
- um ou mais módulos de atividade rítmica;
- uma duração dimensional específica;
- um conjunto específico de características espectrais, ou outras ca-
racterísticas relacionadas à cor sonora.

Um tema pode ser composto de vários desses gestos. Por mais rico que um mo-
mento seja, e este momento pode ser incrivelmente pleno, o gesto temático ainda
se constitui em um detalhe inserido em um processo formal mais amplo. Seu pa-
pel e significado, como vimos, são definidos por estes processos e não o contrário.
De maneira análoga, não interessa o quão imaginativo sejam as transformações
de um gesto temático, tais transformações só podem ser entendidas como um
passo adiante no desenrolar dos processos formais e estruturais.

522 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


Vistos dessa os temas e os temáticos podem oferecer
"'''·"'-·"valiosas o dos processos formais e estruturais. Apesar
destas informações serem válidas, a compreensão musical não se limita somente
a estes tipos particulares de evidências ou padrões. Os moldes temáticos, portan-
to, não se justificam por si só, mas conduzem a uma concepção mais profunda da
forma e da estrutura, apropriada a uma ampla variedade de músicas.
O entendimento dos processos formais e estruturais torna possível aden-
trar na substância singular de cada obra musical. Ao mesmo tempo, a compara-
ção e a descoberta de similaridades e contrastes entre diferentes obras musicais
tornam-se possíveis. Observamos um paralelo fundamental entre a peça da an-
tiga China - Três variações sobre Plum blossom ("Ameixeira em floração") - e Nu-
vens de Debussy: a movimentação dos registros é elaborada de maneira a formar
uma ampla transformação de espaço e cor em cada obra. Este paralelo enseja
uma visão imaginativa e compartilhada que transcende culturas, séculos e mol-
des temáticos. Apesar dos diferentes moldes, um processo similar de atividade foi
encontrado tanto no Amen de Machaut (um moteto isorrítmico) quanto no "Be-
nedictus" de Josquin (um cânone). Este processo consiste em ondas recorrentes
de atividade que partem do repouso para a ação, equilibradas sobre um nível de
atividade mediana. É possível ir ainda mais adiante e perceber relativa liberdade
e plasticidade na maneira como Josquin lida com a idéia.
Igualmente interessante é a revelação de diferentes processos formais e es-
truturais obtidos de moldes temáticos aparentemente similares. Tanto o "Bene-
dictus" de Josquin quanto o segundo movimento das Variações para piano op. 27
de Webern são cânones. O cânone de Josquin apresenta uma linha de extraor-
dinário alcance, sem precedentes na música européia anterior. O cânone de We-
bern cria campos simétricos fixos, todos praticamente com a mesma dimensão e
disposição de registro. Os quatro campos apresentam súbitas mudanças simétri-
cas de ênfase interiorizadas ao invés de movimentos e mudanças exteriorizadas.
Nessas obras, a semelhança canônica conduz aos mais diversos processos espa-
ciais imagináveis.
De Veni creator spiritus e Três variações sobre Plum blossom ao Segundo quar-
teto de cordas de Carter e Music for Carillon I de John Cage, nos concentramos no
reconhecimento dos recursos e resultados no campo formal da música. Para ter-
minar, examinaremos um último exemplo da integração dos quatro parâmetros
- espaço, linguagem, .tempo e cor - em uma única expressão estruturada.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 523


E LINGUAGEM

Originalmente denominada Cores e, posteriormente, Manhã de verão no


o movimento das Cinco peças para orquestra (1909) de (Exem-
plo 1) só encontra em algumas passagens Sagração da Primavera
de Stravinsky. Ambas representam o que de
música européia do início do século XX. A incorporação da idéia
melodia formada cores sonoras diversos composito-
res como Berg, Webern, Varêse, Carter, Ligeti e Stockhausen, para nos determos
apenas nos representativos. 11 mesmo esta idéia seu
mistério, permanecendo analiticamente impenetrável. Em
cor sonora, não existiam meios de compreender a
baseados na manipulação de suas cores.
Nossa discussão de Cores não irá investigar exaustivamente todos os as-
pectos desta obra, mas sim sugerir os processos principais cada parâmetro
e, sobretudo, sua integração em uma única totalidade estrutural. Discutire-
mos também como suas transformações da cor sonora resultam de processos
de manipulação do espaço, linguagem e tempo coordenados com processos
específicos de cor.

P0.1 - Arnold Schoenberg: Cores, redução para piano

524 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


s------- ------- -- ..
'

SOM E MÚS!CA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 525


30

526 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


Copirraite (1952) Henmar Press lnc., 373, ParkAvenue South, New York, 10016. Permissão concedida pelo editor.

O Exemplo P0.2 delineia as alturas fundamentais do movimento em três


campos espaciais distintos. O mais importante deles é o campo principal - o nível
central do Exemplo P0.2, anotado em mínimas. Esta é a área definida e engloba-
da pela movimentação principal da peça:

- esta movimentação é formada por uma sonoridade de cinco vozes


em movimento paralelo;
- todas as vozes desta sonoridade se movimentam através de um úni-
co padrão celular: um intervalo CD ascendente seguido por um inter-
valo Q) descendente;
- através ·das seqüências da célula G)-Q), as vozes e a sonoridade
gradualmente ascendem dos seus pontos de partida até seus ápices
uma quarta acima, para então retornar rapidamente à sonoridade
inicial da célula. As seqüências ascendentes, compassos 15-28, são

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 527


QJ; as
Q);
- cada seqüência ascendente
se (compassos 15 e 24) e também o retorno ao
so 32} Nas seqüências, a é sutilmente variada.
compassos 15-21, o Q) - Si-Dó no
repetido antes Ql descendente,
~,.._."',_,.~ P0.1). Nos compassos 32-44 a célula é '~'ra"-"'

Lá-Lái,-Sii,

Q) descendente Ql ascendente

- o espaço total de cada voz compreende somente um - por


4 5
exemplo, Lái, -Ré no soprano. O âmbito geral das cinco vozes é um
pouco maior que duas oitavas: Si2-Ré 5 • A movimentação principal
concentra-se predominantemente e por fim se espalha pelos regis-
tros 3 e 4 (Exemplo P0.3).

Durante o desenrolar da movimentação principal, o movimento das cinco vo-


zes apresenta-se em defasagem temporal. Isso causa uma ilusão de cânone e stret-
to, 12 assim como a presença momentânea de outras sonoridades (Exemplo P0.4).
Em última instância, entretanto, as vozes se encontram novamente, pois o movi-
mento paralelo e a sonoridade principal são características predominantes na obra.
Além do campo principal, o Exemplo P0.2 também delineia um campo su-
perior e inferior. Nesses dois campos, elementos do campo principal são refleti-
dos em direção aos extremos, ascendente e descendentemente. Algumas vezes,
isso ocorre pelo descolamento direto de registro das principais notas e sonori-
dades da movimentação principal. Ocasionalmente, novas formas da célula são
derivadas das formas originais através de deslocamentos de registro, conforme
demonstrado no Exemplo P0.5. As mudanças de registro, tanto as diretas quanto
as derivadas, são indicadas por setas no Exemplo P0.2.

528 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


-As organizadas em três campos espaciais

- O âmbito dos trítonos de cada voz da movimentação principal

pn~e!l1cn1men1to cromático cotnpJeto


entre as notas indicadas

Juntos, definem o campo principal. Entre seus limites, Si 2 e Ré5, somente Fá#3 está ausente.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 529


E:x:en11pi(! P0.4 - Movimentação defasada e justaposta da célula G) - Q) nas cinco vozes da
principal

Ex:e:n:ipllo P0.5 - Derivações refletidas da sonoridade principal e a célula em uma, duas,


três e quatro vozes

as notas

posições espaçlais

530 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


os registros 4-7, e o campo inferior, cobrindo
os registros os gestos da movimentação ao dispô-los
de maneira espaçada sobre vastas áreas espaciais abrangendo diversos registros.
Por exemplo:

- na frase I, a movimentação principal inicia no ponto mais grave de


toda a peça (as mais graves disposições da célula e da sonoridade
principal - por exemplo, Lá4 -Si~4 -Lá~4 no soprano) para em segui-
da ascender. O emprego deste registro relativamente grave do início
é intensificado pelas inflexões descendentes de registro durante os
compassos 7-11;
- na frase II, a ascensão da movimentação principal é intensificada por
inflexões ascendentes de registro nos compassos 16-17 e 20-21;
- na frase III, a movimentação principal caracteriza-se pelo clímax
gerado pela justaposição próxima dos pontos lineares superior e
inferior (compasso 28-29). Esse fato encontra correspondência na
justaposição de inflexões de registro que, nos compassos 30-31 (Dó1-
-SoF), formam as extremidades de registro da peça.

Dessa maneira, os mais ínfimos gestos lineares do campo de movimentação


principal são intensamente magnificados através da reflexão em campos infe-
riores e superiores, que abrangem todo o âmbito de sete registros da peça. Esta
sonoridade de cinco vozes e sua célula se transformaram através de seqüências
lineares e inflexões de registro nesta grandiosa movimentação de linhas e cam-
pos que inclui todas as alturas da peça.

TEMPO

Esta peça parece iniciar de maneira muito simples tanto no tempo quan-
to no espaço. De fato, as lentas pulsações alternadas do início da peça parecem
eternas. Quase imperceptivelmente, entretanto, uma moldura é criada para um
processo temporal fora do comum em sua sutileza.
Nos compassos 1-30, ou seja, do início da movimentação principal até o
retorno ao nível original, ocorre um aumento constante de atividade em diversos
níveis temporais. Mesmo o início, aparentemente simples, superpõe três níveis
distintos de atividade, todas relacionadas por uma razão 2:1:

j -a distância entre ataques nas cordas solo


d- a distância entre ataques nos instrumentos de sopro

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 531


o - a extensão de

flautas
clarinetes
fagote fagote

Podemos fazer observações a respeito destas freqüências


pulsações sobrepostas, ou módulos rítmicos:

- são definidas mais pela mudança de cor sonora (ataque e


tação) pela mudança de
- a justaposição consistente de ataques e releases obscurece a iuciuc:"'
dos "contornos" temporais;
- apesar dos contornos obscurecidos a conseqüente possível
teza sobre a duração exata de qualquer evento), seu relacionamento
permanece claro: dois ataques nas cordas para cada ataque nos
trumentos de sopro e dois ataques nos sopros para cada repetição
padrão instrumental.

No da peça, constatamos também a presença de outro módulo impor-


tante: nove o. Essa é a duração necessária para o desenrolar do movimento ca-
nônico da célula G)- CD nas cinco vozes da sonoridade principal (Exemplo P0.6).
Na frase em comparação, o movimento canônico necessita somente de metade
deste tempo: nove d, metade da duração do módulo original. No final da frase III,
compassos 28-29, o mesmo movimento necessita somente nove . Comparado
com o início, este movimento foi radicalmente acelerado (Exemplo P0.6).
Nos compassos 28-29, na frase cada nível atinge sua atividade rítmica
mais rápida. As distâncias entre os ataques e as mudanças de cores, que começa-
ram na frase I em freqüências de J de o, aceleram nos compassos 28-29 para e
De fato, o tremolo constante nas cordas leva a freqüência de ataque à plenitude
de sua velocidade máxima.

532 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


G) - @nas frases I, e III, nove

Em muitas obras musicais, a atividade apresenta acelerações. Cores é espe-


cialmente interessante devido à quantidade de níveis nos quais esta aceleração
ocorre e, por conseguinte, no número de diferentes velocidades simultâneas que
incorpora. Até o momento, observamos os seguintes níveis:

- a distância entre os ataques;


- a distância entre as mudanças de cores;
- a distância entre as apresentações da célula.

Existe, entretanto, outro nível que ainda não foi abordado: a distância entre os
inícios de frase (e as dimensões das frases). Essas dimensões são mostradas, em
um modelo gráfico, no Exemplo P0.7.
De maneira fascinante, as dimensões das frases revelam as mesmas carac-
terísticas de aceleração presente em suas pulsações internas de atividade. As duas
frases internas, II e III, duram quase exatamente o mesmo que a primeira frase. 13
Isso caracteriza, de novo, uma diminuição na razão 1:2. Além disso, cada uma das
três frases iniciais é ~ucessivamente menos extensa - quase pela mesma razão:

14 9 6
(14:9 :: 64 9:6 :: 66)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 533


.1:!x:en1p110 PO. 7 - As frases de Cores e suas dimensões

Os algarismos arábicos indicam o número de compassos por frase. Um asterisco indica uma
ampliação sutil em sua duração ocasionada pela !":\. As áreas sombreadas nos fl-nais da frase I
e início da frase IV indicam justaposições.

À medida que a distância interna entre ataques, mudanças de cor e apresentações


da célula tornam-se cada vez mais concentradas nas três primeiras frases, o mes-
mo ocorre com a duração de cada frase. Tanto a atividade quanto a dimensão ace-
leram. Em todos os níveis, os eventos tornam-se sucessivamente mais rápidos.
Seria possível construir um sistema matemático que produzisse corriquei-
ramente tal resultado. As operações verificadas nesta peça passam, entretanto,
longe da banalidade. As acelerações nos níveis iniciam em pontos diferentes de
tempo e ocorrem de maneiras distintas. De fato, como acabamos de ver, cada uma
se sujeita a justaposições e tem seus contornos obscurecidos. O mesmo aconte-
ce com as frases. Quase imperceptivelmente (nas áreas sombreadas do Exemplo
P0.7), seus gestos são modificados (células, atividades e instrumentação), justa-
pondo as características de uma frase à outra. 14 As características de justaposi-
ção, bem como a aceleração, são preservadas em cada nível temporal e tornam-se
audíveis na justaposição:

- de ataques e releases do som;


- de grupos instrumentais e cores tonais;
- da célula Q) - Q) em diversas vozes;
- nos inícios e finais de frases.

A seguir, veremos como essas características temporais se estendem até os


ínfimos detalhes da cor sonora.

534 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


SONORA

em conta a disposição das alturas e dos ritmos fundamentais des-


crita anteriormente, estudaremos agora a composição da cor sonora da peça.
movimentação no campo principal não é apresentada por uma instrumentação
:fixa, mas sim por uma instrumentação que flutua no decorrer da obra. No Capí-
tulo 4, a alternância de instrumentação que persiste durante a frase I, foi
analisada em seu espectro e batimentos. Descobrimos que:

- o espectro combinado da primeira sonoridade (duas flautas, clarine-


te e fagote) concentra sua energia no registro 4, apresentando traços
ocasionais de parciais superiores;
- em contraste, na segunda sonoridade (duas palhetas duplas e dois me-
tais com surdina) existe uma modificação marcante em direção aos
parciais mais agudos. Os parciais mais intensos estão localizados nos
registro 5 e 6, podendo chegar ocasionalmente até o registro 7.

As mesmas fundamentais ativam, nas duas instrumentações, duas configurações


diferentes de parciais.
Descobrimos também que, no interior de cada sonoridade instrumental,
existem pulsações causadas por batimentos e por modulações de amplitude:

- na primeira sonoridade ocorrem batimentos proeminentes de 25


bps. Esses são unidos pela forte modulação de amplitude das duas
flautas, na média aproximada de 6 bps;
- na segunda sonoridade, os batimentos são mais rápidos e difusos,
sendo de 108 bps o mais proeminente. Não ocorrem modulações de
amplitude.

As duas instrumentações novamente criam um contraste de cor sonora: a vibra-


ção pronunciada e relativamente vagarosa dos batimentos (entre 6 e 25 bps) da
primeira sonoridade dissipa-se na segunda.
Essas diferenças de espectros, batimentos e modulações tonais, reiteradas
pela constante alternância de instrumentação da frase I, são distintamente audí-
veis, e se constituem na base das transformações contínuas de cor que ocorrem
nesta peça. Por exemplo, os batimentos e modulações tonais de velocidades e in-
tensidades diversas qiam um "tremor" flutuante de som, análogo à luz na água
aludida pelo segundo título da peça, Manhã de verão no lago. Estas duas sonoridades
instrumentais iniciais, que apresentam as mesmas alturas fundamentais, dinâmi-
cas e durações idênticas, pressagiam, nos registros cambiantes e em seu espectro,

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 535


estas sonoridades pressagiam o
no espaço e no tempo. fato, toda a
será analisada agora através de suas transformações posteriores.
invés de analisar cada em os espectros
5
restante peça de acordo com uma escala espectral.1 O Exemplo de-
monstra as bases para tal escala. Extrairemos da informação no Capítulo
4
4 o espectro de uma nota e dinâmica, Sol em piano, em diversos
instrumentos. No Exemplo P0.8, nos esquerda para a a
energia espectral ascende aos parciais superiores e as cores trans-
formam-se de opacas em brilhantes. este processo, podemos
uma escala de todos os instrumentos utilizados na apresentação movimenta-
ção principal.

grupo
1 harmônicos de cordas (violas, violoncelos, contrabaixos)
2 flautas
3 clarinetes
4 metais (trompa, trompetes, trombones e tuba)
5 cordas com surdina, solo
6 cordas com surdina, seção
7 metais com surdina
8 palhetas duplas (oboés, corne inglês, fagote, contrafagote)
9 cordas sem surdina, solo
10 cordas sem surdina, seção
11 cordas, sul ponticello (no cavalete)

Nessa escala, o grupo 1 representa a concentração espectral mais baixa de ener-


gia: um som senoidal característico e ausência de parciais superiores significati-
vas. O grupo 11 representa os sons mais agudos e brilhantes. Esses apresentam
semelhança, em termos auditivos, com os sons os quais passam por um filtro
passa-altas, que elimina a fundamental e os parciais mais graves, permitindo a
permanência somente dos parciais mais agudos.

536 POSLÚDIO GESTO, FORMA E ESTRUTURA


T
So~ir--~------+-·~-----~-----·---~-~~--1----···----~-~---··~----·· --1

;,;.i9 ·r----- -t·--········~--+----1---·-··--.----+------+----~--- ------1

O Exemplo P0.9 realiza uma análise, de acordo com esta ""''-ct1-ct,


sonoridade instrumental faz parte da movimentação

frase I
A alternância entre uma sonoridade mais opaca e outra mais
monstrada no Capítulo 4 foi reescrita de acordo com esta escala
Podemos notar agora como a sonoridade inicial é sombria em
com as sonoridades posteriores. Esta sonoridade inicial é
dialmente pelos grupos mais inferiores da escala, 2 e 3. A segunda ú~A.A~A
de, em contraste, utiliza-se dos grupos 7 e 8. Esta alteração permeia a

frase II
A adição dos grupos 9 e 10 (cordas sem surdina, em seções e solo) aos grupos
8 e 7, utilizados na frase I, confere maior brilho à totalidade cor sonora

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 537


na frase É relembrar que, nesta frase, a direção linear da mo-
vimentação principal e as reflexões por deslocamento de registro também
se dirigem para o agudo. De fato, tanto as inflexões registrais ascendentes
quanto as mudanças de direção ascendentes dos parciais ativam os mesmos
registros através das fundamentais e dos parciais. As reflexões ascendentes
tornam os parciais mais vívidos e nítidos. Existe, portanto, uma coordena-
ção entre movimentação principal, reflexões e espectros que confere brilho
à cor tonal. Nota-se também que a presença das cordas aumenta a quanti-
dade de batimentos (por efeito coral) e de modulação tonal (pelo vibrato).

frase III
Na movimentação principal desta frase, as fundamentais atingem as extre-
midades e se justapõem rapidamente, preenchendo os espaços compreen-
didos entre si. Além disso, reflexões ascendentes e descendentes ocorrem
concomitantemente de maneira a magnificar, através de registros contras-
tantes, a justaposição de extremidades. Os espectros desta frase também
originam as combinações mais intensas e complexas da peça. Cores agudas
e brilhantes são combinadas neste momento com cores graves e opacas. No
final da frase (compassos 28-31), as características espectrais extremas são
justapostas. Por exemplo, o grupo 11 (o espectro mais agudo) no compasso
28 é oposto ao grupo 1 (o espectro mais grave) nos compassos 30-31. No-
vamente, três níveis - movimentação principal, reflexões e espectros - são
sincronizados. Cada um deles maximiza sua complexidade e seus contras-
tes, atingindo, por conseguinte, a maior intensificação de cor tonal.
Em outros aspectos, as cores desta frase são também as mais complexas.
Essas cores não mudam lentamente, mas sim de forma bastante rápida.
Pela primeira vez, apresentam ruídos de ataques significativos, incluindo os
tremoli nos compassos 28-29. Além disso, são preenchidas com vibrato (por
exemplo, da seção de cordas) e com batimentos (gerados tanto pela grande
quantidade de dobramentos como pelas mais densas superposições da mo-
vimentação principal e de suas reflexões). De fato, todos esses elementos,
no ponto de sua máxima intensidade (compasso 29), conferem à cor a com-
plexidade do ruído branco. O contraste direto entre esta sonoridade, que se
parece com o ruído branco, e a sonoridade semelhante a uma onda senoidal,
que ocorre a seguir (nos compassos 30-31, consistindo exclusivamente de
cores do grupo 1 e sem ruídos de ataque, batimentos ou vibrato significati-
vo), marca o clímax da obra. Esta justaposição sintetiza toda a gama disponível
de contrastes de cor tonal: em um extremo, o ruído branco e, no outro, a onda
senoidal.

538 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


frase IV
A evolução fundamental de cor tonal da peça ocorre nas frases I-IIL Para
~~,"~'~" a peça, a frase IV regressa ao estado inicial da cor tonal. A comple-
xidade e a intensidade das cores são atenuadas, de maneira que, nos com-
passos finais (43-44), tanto o espectro mais agudo (grupos 9-11) quanto o
mais grave (grupo 1) são quase completamente eliminados. É possível tra-
çar um paralelo entre o retorno ao estado inicial e a movimentação inicial,
que, por retrogradação, regressa pela sonoridade inicial e pela sua célula
inicial de movimentação.

Exemplo P0.9 -Análise pela escala espectral da movimentação principal de Cores

ll m IV

comp~

grupo
11

9
8~~.-...,,..,_,,--~-~-~~-1-~
7
6
.5
4
3
2

Constatamos novamente, portanto, que é possível analisar o desenrolar da


cor sonora de uma peça. Descobrimos que as diversas implicações de movimento
e transformação incorporadas nos elementos de cor das duas primeiras sonori-
dades instrumentais - a ascensão e o descenso registral de suas concentrações
espectrais e a aceleração da flutuação interna causada por batimentos e modu-
lações tonais - pressagiam o curso da evolução da cor tonal durante a peça. Essa
evolução se caracteriza pela ascensão de concentrações espectrais brilhantes e
pela aceleração de atividade dos mais ínfimos elementos de cor sonora durante
as frases II e III, antas do descenso definitivo dos espectros, assim como outros
elementos de cor sonora na frase IV. Durante todo este padrão de transforma-
ção, a pulsação alternante de eventos locais contrastantes em cor estabelecida no
compasso 1 é mantida.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 539


na
é uma um reflexões ascendentes e
um reforço significativo - e
processo cor sonora, ou seja, a sucessão espectros cambiantes, ~~~····-··
modulações e ataques, constitui o florescer, o macrocosmo rea-
.,~-~~-~ sônica e estrutural. Esta estrutura só pode ser percebida através reco-
nhecimento de todo o de elementos sônicos deixados à margem pelos
postulados teóricos anteriores.

Tentamos apresentar os recursos e conquistas no campo formal da música


em cada página deste Abordamos, da maneira mais próxima possível, os
elementos que permeiam a concepção e a percepção musicais. Que um gesto mu-
sical seja sujeito a várias ordens de concepção e percepção - espacial, lingüística,
temporal e colorística - constitui-se em indicação do enorme poder misterioso
da arte, não uma arte meramente no sentido da audição, mas sim uma que, atra-
vés do sentido de audição, atua (muitas vezes simultaneamente) em diferentes
modalidades do sistema humano de percepção. 16 Vista dessa maneira, a música
engloba propriedades fundamentais de todas as artes:

- design;
- relacionamentos de linguagem;
- ritmo;
- cor.

540 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


a interação
novas obras

~~·,~·~são os imensos recursos técnicos~,,,~,,,,,


"'ªª'·'"''~" para e analíticos.
ras e períodos históricos anteriores, nossa HUM"',.

encontra
deixa ao nosso alcance
ser analisado em níveis de
de capacidade nos

- a relação entre os diversos fenômenos de visão, do som e de


outros sentidos;
- a pesquisa como a rede de comunicações psicofísi-
cas funciona.

Dessas explorações, surgirão novas experiências sônicas. Neste final de tar-


de do outono tardio, na medida em que escrevemos ao som do vento e da sono-
ridade do tráfego pouco intenso, entre memórias das cigarras do verão e de Ma-
chaut, que vibrações inesperadas passarão através de janelas abertas, ouvidos,
nervos e de nossas mentes que tanto percebem, e que ainda tanto têm a perceber?

1. R. Buckminster Fuller em Operating Manual for Spaceship Earth (New York: Clarion, 1969, p. 59-60).
2. Gyõrgy Ligeti em "Abotit Lontano", encarte da gravação Heliodor-Wergo 2549 011.
3. Donald F. Tovey em The Main Stream ofMusic and Other Essays (Cleveland: Meridian, 1959, p. 278-
79).
4. Ibid., p. 275.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 541


5. Veja Allen Forte em "Schenker's Conception of Musical Structure", Journal of Music Theory, 3
(1963), p. 1-30.
6. Tovey, op. cit., p. 14.
7. William Malm em Music Cultures ofthe Pacific, The Near East, andAsia (Eaglewood Cliffs, N. J.: Pren-
tice-Hall, 1969, p. 143-144). Veja também Shigeo Kishibe em The Traditional Music of Japan (Tokyo:
Kokusai Bunka Shinkokai, 1969, p. 24).
8. Ravi Shankar no encarte da gravação Angel 35468.
9. N. A. Jairazbhoy em The Rags of North Indian Music (Middletown, Conn.: Wesleyan University Press,
1971, p. 30).
10. Consulte o Capítulo 4 -A cor do som.
11. Consulte: Alban Berg, Wozzeck, ato III, cena 2, compasso 109-121; Anton Webern, Symphony, op.
21, primeiro movimento; Edgar Varése, Hyperprism, Integrales e Déserts; Elliott Carter, Eight Etudes
anda Fantasy, Etudes 3 e 7; Gyõrgy Ligeti, LuxAeterna e Lontano; Karlheinz Stockhausen, Stimmung.
12. Stretto é a justaposição de diversos cânones, cada um destes iniciando antes do término do cânone
precedente.
13. A primeira frase dura 14 compassos (mais a duração da fermata); tanto a segunda quanto a terceira
frases duram 15 compassos. A diferença é tão pequena que se torna imperceptível. Conseqüente-
mente, a segunda e a terceira frases desenvolvem-se na mesma extensão de tempo que a primeira.
Esta mesma duração governa também a quarta frase (15 compassos mais uma fermata "curta").
14. Em relação à cor sonora, a frase II inicia no compasso 12, mas somente no compasso 14 esta segunda
frase é integralmente confirmada por todos os parâmetros. Esse fato irá influenciar a discussão feita
nas próximas páginas.
15. Devemos muito a John R. Francis pelos Exemplos P0.8 e P0.9, que mostram em detalhes uma es-
cala espectral e a aplicação nesta peça. Uma escala tão simples só é possível quando a mudança de
registro e dinâmicas é mínima, como na movimentação principal de Cores. De outra maneira, um
instrumento pode se encontrar em diversas posições da escala, dependendo das diferenças no espec-
tro causadas por diferentes registros e dinâmicas. Mesmo nestas circunstâncias, entretanto, a escala
deve ser compreendida como um modelo que se aproxima da realidade, e não como uma realidade
absoluta. Como sugerimos no Capítulo 4, um meio genérico de verificar a análise espectral é escutar
cuidadosamente uma gravação tocada na metade (ou até menos) da velocidade original. Num futuro
ideal, estas aproximações repletas de imperfeições serão enormemente refinadas.
16. Esta constatação é apoiada por uma descoberta recente de Thomas Bever e Robert Chiarrelo segun-
do a qual (ao menos nos músicos) a música ativa tanto o hemisfério direito quanto o esquerdo do
cérebro, que utilizam diferentes modos de percepção. Veja o artigo "Cerebral Dominance in Musi-
cians and Non-Musicians", Science, 185, p. 537-539, 1974.

542 POSLÚDIO - GESTO, FORMA E ESTRUTURA


E

Registros e intervalos são subdivisões extensão de freqüências audíveis.


Os registros dividem esta extensão em amplas áreas que abrangem uma oitava
cada. 1 Os intervalos são uma medida mais exata da distância entre pontos ao
longo da extensão audível.

REGISTROS

Os registros são atualmente enumerados de acordo com o padrão interna-


~,~u~, de terminologia acústica. No piano de hoje, o Dó mais grave (32,7 cps) é
numerado como Dó1 . Cada Dó sucessivo é representado por um número
(Dó 2 , Dó 3 e assim por diante) e dá início a um novo registro:

O "Dó central" é o Dá4 . Seu registro inclui também a nota Lá4 , 440 cps, cuja
cidência do número 4 auxilia sua memorização. Os seres humanos geralmente
podem escutar um registro abaixo das notas mais graves do piano Dóº, 16
cps) e pelo menos dois registros acima da nota mais aguda do piano, Dó 8
Dó10 ,
16.744 cps). Este sistema de numeração de registros sem
toda a extensão audível dos seres humanos e pode ser facilmente ampliado de
maneira a cobrir qualquer distância desejada.
A contagem dos registros, a partir da nota Dó, é uma escolha arbitrária.
Em alguns contextos musicais, é preferível iniciar a contagem dos registros em
outra nota. Em uma peça musical na qual Si a nota mais importante,
movimentações em direção a esta nota - como uma escala (Fá#, Mi, Ré#, Dó#, Si)
- provavelmente serão formadas com regularidade. Quando a nota Si (ou qual-
quer outra) define regularmente as áreas musicais, esta nota deve ser escolhida
como o limite dos registros. Em tais situações, consideraremos todos os registros
como situados um semitom abaixo. Nos exemplos e discussões, sempre faremos
menção a este fato.

INTERVALOS

As culturas, sistemas e obras musicais subdividem posteriormente a exten-


são audível em determinados pontos. Estas divisões são as notas (ou alturas) por
elas utilizadas. A distância entre as notas são os intervalos disponíveis nesta cul-
tura, sistema ou obra. Praticamente todas as culturas realizam sua própria sub-
divisão do espaço musical, de maneira que esta ofereça uma gama singularmente
constituída de intervalos disponíveis.
Neste livro, numeramos os intervalos de duas maneiras. Apesar deste mé-
todo parecer desnecessariamente complicado, corresponde a duas situações his-
tóricas e musicais muito distintas. De fato, a utilização de somente duas numera-
ções já consiste em uma simplificação.

1) Os intervalos são medidos principalmente de acordo com o número de


semitons entre suas notas:

Dó-Dó Dó-Ré~ Ré-Dó Dó-Mb Dó-Mí Dó-Fâ Dó-Faifr

546 APÊNDICES
Os intervalos são produzidos pelo mesmo grupo de notas (Dó-
-Dó, Dó-Réi, e assim da primeira porém estão distribuídos de
maneira mais espaçada (entretanto nunca ultrapassando uma oitava). Esses in-
tervalos são chamados de complementos de oitava (ou simplesmente complemen-
tares) dos intervalos mais reduzidos.* A soma de um intervalo com seu comple-
mentar sempre equivale a 12 ((Q) + ÇÇ?;; <J) + :tp e assim por diante). Um intervalo e
seu complemento compartilham muitas características similares e são freqüen-
temente utilizados como equivalentes. A terceira linha mostra os intervalos pro-
duzidos pelas mesmas notas, contudo em uma distribuição espacial ainda mais
espaçada que a anterior. Todos os intervalos formados a partir de um mesmo par
de notas nominal constituem uma classe intervalar. Os intervalos Çf9;, <it @! e @!
integram a mesma classe intervalar. Em uma análise musical, é comum conside-
rar que os diversos intervalos de uma classe intervalar apresentam proprieda-
des similares. Geralmente, estes intervalos são identificados pela forma espacial
mais reduzida (ou pela forma mais comum) assumida pela classe intervalar em
uma obra - por exemplo, a classe intervalar ::J) - englobando os intervalos (1), <@,
@! e assim por diante.
Para propósitos de diferenciação:

- um intervalo formado por notas sucessivas apresenta um circulado


simples Ú);
- um intervalo formado por notas simultâneas apresenta um circula-
do duplo@;
- um intervalo que ocorre de ambas as formas (ou meramente a idéia
abstrata do intervalo) apresenta um circulado pontilhado <J).

2) O sistema anterior é relativamente mais simples e seu emprego ocorre


na música do século XX (da qual se originou) e em outras obras musicais que não
utilizem os preceitos do sistema tonal europeu. Na música tonal, outra contagem
é utilizada. Os intervalos tonais são especificados por palavras ("segundas", "ter-
ças" e assim por diante). Esse sistema talvez seja mais complicado, porém deve
ser aprendido, pois faz parte da linguagem de um importante período musical.
Mesmo a mais simples teoria tonal se tornaria incompreensível sem o conheci-
mento deste sistema.
A classificação dos intervalos tonais é baseada em sílabas que designam as
sete notas (alturas) da escala tonal: Lá, Si, Dó, Ré, Mi, Fá, Sol. Na explicação mais
simples, um intervalo é meramente o número de sílabas compreendido entre

* N. T. No Brasil, costuma-se denominar tal processo de "inversão intervalar".

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 54 7


e

os com as outras no-


tas de sua escala

sétíma ma.ior

[notas idênticas (Dó-Dó) =uníssono]


notas adjacentes (Dó-Ré) = uma segunda
notas abrangendo três graus da escala (Dó-Mi)= uma terça
notas abrangendo quatro graus da escala (Dó-Fá)= uma quarta
notas abrangendo cinco graus da escala (Dó-Sol) = uma quinta
notas abrangendo seis graus da escala (Dó-Lá) = uma sexta
notas abrangendo sete graus da escala (Dó-Si) = uma sétima
notas abrangendo oito graus da escala (Dó-Dó) =uma oitava

Existem duas dimensões de segundas, terças, sextas e sétimas, ou seja,


tem duas formas apresentadas para cada um destes intervalos nas escalas maio-
res (e também nas menores). Por exemplo, a segunda Dó-Si (segunda menor) con-
tém um intervalo C~), ao passo que a segunda Dó-Ré (segunda maior) contém dois
intervalos e~:::. o primeiro tipo de intervalo é denominado menor e, o segundo,
maior. Terças, sextas e sétimas também apresentam formas maiores e menores.

548 APÊNDICES
mae

quarta perfeita = 5 semitons


quinta

uníssono perfeito = O semitons


oitava justa = 12 semitons

A destes intervalos "normais", do relacionamento


tônica com outras notas das escalas tonais, pode ser acrescida ou reduzida em
um Quando acrescida, o resultado é um aumentado;
reduzida, o é diminuto.

terça terça
menor

Em todas as escalas maiores, o intervalo formado pelos quarto e sétimo


graus da escala (Fá-Si na escala de Dó maior) é anormal, comparado com as ou-
tras quartas e quintas, pois abrange 6 semitons, ao invés de 5 ou 7. Esse intervalo
é denominado de tritono (6 semitons = 3 tons inteiros) Outra característica sin-
gular é que seu complemento apresenta a mesmo dimensão (6 semitons; 6 + 6 =
12). Dependendo de seu direcionamento e escrita, pode representar tanto uma
quarta aumentada quanto uma quinta diminuta.

quarta Dó

O que um nome revela? A maneira como um sistema denomina ou enumera


seus intervalos revela muito sobre suas funções neste sistema. O sistema tonal,
ao medir seus inten;alos através de sílabas que designam notas da escala tonal,
revela que esta escala é o principal parâmetro de todos seus relacionamentos
(veja o Capítulo 2). O mesmo fato, entretanto, torna a numeração de um sistema

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 549


inadequada para outro. No Capítulo 2, descobrimos freqüentemente obras de
outros sistemas fazem distinções cruciais entre segundas maiores e menores ou
entre terças maiores e menores. Seguir o hábito do sistema tonal de agrupar to-
das as segundas (ou outros intervalos) indistintamente acarreta perda preci-
são e clareza e leva ao obscurecimento das distinções vitais inerentes ao sistema
na qual são formadas. Restringimos, portanto, a utilização dos intervalos tonais
ao repertório do sistema tonal.

NOTA

1. A extensão da gama audível dos seres humanos e a natureza singular da oitava são discutidas no
Apêndice B.

APÊNDICE B- PSICOFÍSICA DO SOM

Você sabe que a nota não é algo simples, mas sim algo complexo!
Anton Webern1

Movimentações em ondas são comuns na natureza, tais como as familiares


ondas dos líquidos. As ondas eletromagnéticas são responsáveis por muitos fenô-
menos naturais e podem apresentar tamanhos tão distintos quanto os das ondas
de rádio e das ondas das várias cores de luz (de 16 a 38 milionésimos de uma
polegada, ou serem ainda menores: raios-x, raios gama e raios cósmicos (Exem-
plo B.1). O som também inicia com uma movimentação de onda gerada por cor-
pos vibrantes tais como cordas, membranas e palhetas. Suas vibrações causam
movimentações em ondas no ar e em outros meios que transmitem sons, como
líquidos e sólidos. As ondas aéreas resultantes produzem vibrações ondulatórias
no tímpano do ouvido e em outras partes do aparato auditivo do ser humano. O
impulso da onda é, em última instância, transmitido ao cérebro, que o decifra. O
som resulta, conseqüentemente, da interação do estímulo físico da onda com o
aparato receptor e decodificador do ser humano. Eis, portanto, a razão do termo

550 APÊNDICES
psicofísica. Durante o (e mesmo antes), intensas especulações e
pesquisas no psicofísica desvendaram alguns dos mais diminutos e
invisíveis processos sonoros e de audição. 3

raios
cósmicos

ralos
gama foto-

rnio-x

ultravioleta
visual

infravermelho

radio

20.000
pressão
15.00 da

o '
cps

A ONDA SONORA

A onda sonora mais simples está representada no Exemplo B.2. Essa onda
é conhecida como onaa sinusoidal ou senoidal e pode ser produzida por um corpo
vibrante, como um diapasão ou corda.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 551


Duas ondas senoidais

Este exemplo é mais facilmente compreendido se as ondas forem lidas como se vibrando
interna e externamente, em um plano paralelo à superfície da terra, ao invés de cima para
baixo.

das duas ondas senoidais mostradas no -··-··· B.2 revela


duas propriedades variáveis das ondas sonoras:

- geralmente em períodos ou ciclos por segundo


(cps, também denominados hertz, em sua forma abreviada: Hz. Um
quilohertz (1 kHz) equivale a 1000 cps). Freqüências mais baixas ge-
ralmente correspondem aos sons mais graves e, as freqüências mais
altas, aos sons mais agudos.
- amplitude - a altura (ou pressão) da onda. Menores amplitudes cor-
respondem geralmente a sons de menor sonoro e, amplitu-
des maiores, a sons de maior volume.

Conseqüentemente, a onda do Exemplo B.2a apresenta menor freqüência (altura)


e amplitude (volume) do que a onda do Exemplo B.2b.
Uma voz soprano cantando a vogal "u", uma flauta no registro agudo e a
produzida por um diapasão são exemplos de ondas senoidais; tais ondas
são chamadas de ondas senoidais, sons puros ou sons simples. 4 As ondas senoidais,
que podem ser produzidas por geradores eletrônicos (denominados osciladores),
constituem, muitas vezes, a base das sonoridades da música eletrônica. Ainda

552 APÊNDICES
cons-

Embora as ondas senoidais sejam as ondas mais simples, elas nunca são
encontradas em estado puro na natureza ou na música. A razão disso é que os
corpos vibrantes tendem a vibrar por inteiro e em suas partes separadas ao mes-
mo tempo. Qualquer pessoa que já sacudiu uma corda observou um fenômeno
similar ao do Exemplo B.3a. Ao invés do contorno simples de urna onda senoidal,
a onda resultante é muito mais complexa e multifacetada. A totalidade do corpo
vibrante e cada urna de suas partes geram uma freqüência distinta. A onda do
Exemplo 3a pode ser compreendida como urna soma de diversas ondas senoi-
dais diferentes (Exemplo B.3c), sendo considerada, portanto, uma onda compos-
ta. Cada uma das ondas senoidais do Exemplo B.3c apresenta freqüência distinta,
durante o período desta onda composta: uma onda senoidal soa três vozes, outra
duas vezes e uma terceira somente uma vez. Dessa maneira, as partes de um
único corpo vibrante produzem um som composto constituído por diversas fre-
qüências simultâneas.
Muitos sons, mesmo aqueles que parecem ser um som único e simples, são
de fato compostos por uma grande variedade de freqüências. Quando tomamos
conhecimento da natureza composta das alturas, se torna fácil escutar muitos
sons diferentes em uma única nota grave do piano. Às vezes - por exemplo, no
som de um grande sino - podemos escutar facilmente as várias freqüências que
resultam de um único toque. Três grandes pesquisadores da natureza matemáti-
ca e física das ondas - Fourier, Ohm e Helmholtz - possibilitaram a compreensão
das complexidades das ondas sonoras e da natureza composta do som musical.
O princípio básico foi formulado por Helmholtz em seu livro On the Sensations
of Tone (1863), que estabeleceu o alicerce para o estudo psicofísico do som e da
audição: "A sensação de uma nota musical é composta por sensações de várias
notas individuais". 5

SOM E MÚSICA: A NATURF.í'.A DAS ESTRUTURAS SONORAS 553


B.3 -Análise de uma onda composta em suas ondas senoidais componentes

b)

a)

O exemplo B.3a mostra o período de uma onda composta. No Exemplo B.3c, são mostradas
as três ondas senoidais simultâneas que produzem o Exemplo B.3a. O Exemplo B.3b mostra a
soma das duas primeiras ondas (escritas em linhas sólidas) do Exemplo B.3c. O Exemplo B.3a
é a soma das três ondas senoidais.

554 APÊNDICES

·---~~·--.~.·-------------'------....;. ___
VIBRAÇÃO EM

Segundo recentes pesquisas na área da física, os sons aparentemente sim-


ples são, de fato, compostos sonoros. Neste momento, examinaremos detidamen-
te este assunto. A partir desta investigação, examinaremos ainda a razão de sua
aparente singularidade.
Quando um objeto vibra em partes iguais - metades, terços, quartos, quin-
tos e assim por diante - produz uma série de freqüências denominadas série de
parciais (ou também, série harmônica). Conforme vimos no Exemplo B.3c, as fre-
qüências geradas dessa maneira são duas, três, quatro, cinco (e assim por dian-
te) vezes a freqüência do todo. A freqüência do todo é denominada fundamental
(ou primeiro parcial). As freqüências das partes são os parciais superiores (também
chamadas de harmônicos). O Exemplo B.4 mostra a série de parciais (até o vigési-
mo parcial) da fundamental Dó 3 (131 cps). Os parciais superiores são produzidos
pela subdivisão da fundamental, desde duas até vinte partes iguais (2 X 131 até
20 X 131). O intervalo entre dois parciais da série pode ser manifestado em uma
razão. Por exemplo, as freqüências dos parciais 1 e 2 apresentam uma razão 1:2
(131:262 cps), ao passo que os parciais 2 e 3 apresentam uma razão 2:3 (262:393
cps), e assim por diante.

Exemplo 8.4 - Vinte parciais de Dó 3

p~rclal v
l l! 5 6 7 8 !l Hl n 12 l!I 14 1!i 115 11 Ul l!I
1!11 262 ll!lll 6!i5
!124 786 !117 1048 H 79 l!lHI 1441 1572 1711!1 UilS4 1!16!l 2096 2227 2!1!18 2489 2620
Dó> 1)64 Sol4 Dó!l Mi> So!5 S!l,5 Dó6 Réô M.ló Fá.#6 Soló Lá6 S!~il Si.6 067 06#7 Ré7 Ré#7 MF
l!ll 262 !192 52!1 659 7114 !12!1 IM6 1175 l!H!l .14!!0 l!i68 171ill 185!1 1!116 2003 2218 2!14!1 2489 26!17

A linha (a) mostra as freqüências dos vinte parciais obtidas através da multiplicação de 131
pelos números 1 a 20. A linha (b), para efeito de comparação, lista as freqüências das notas
mais próximas destes parciais no sistema de afinação temperado (veja Exemplo B.12).

O gráfico de unia onda que produz vinte parciais não é, de maneira alguma,
simples. Essa onda poderia assemelhar-se à onda do Exemplo B.5, cuja freqüência
fundamental de vibração é indicada pela recorrência dos períodos fundamentais.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 555


parciais

Oscilógrafos mostram o formato da onda de um determinado som. Quando


a onda é complicada, como no Exemplo B.5, a análise exata da onda em todos os
seus parciais componentes é difícil. Então, o método normal para determinar o
conteúdo dos parciais um som composto consiste na utilização de fi.ltros de
freqüência ao invés de ler o padrão da onda. A filtragem de uma determinada
freqüência pode revelar se um som composto contém esta freqüência específica.
Embora esse também seja um processo trabalhoso, ele foi utilizado nos últimos
cem anos em grande variedade de sons musicais, lingüísticos e ambientais. Es-
tas análises revelam a freqüência e a intensidade de cada um dos elementos dos
sons compostos. Sua significância para o estudo do som pode ser comparada à
análise atômica na física ou à análise celular na biologia. Estas análises revelam
a detalhada e anteriormente desconhecida subestrutura sônica que determina
diretamente a natureza do som percebido.
Portanto, quando um corpo vibrante produz uma altura distinta, gera uma
fundamental e (geralmente) diversos parciais superiores que resultam das vibra-
ções parciais. Normalmente, quando denominamos uma altura (Dó 3 , por exem-
plo), nos referimos à sua fundamental. A quantidade e a intensidade dos parciais
presentes em uma fundamental podem apresentar enormes variações. Nos regis-
tros médios e graves de vozes ou instrumentos especialmente vibrantes, podem
estar presentes mais de vinte parciais. Portanto, uma nota vibrante não preenche
somente o ponto na extensão audível representado por sua fundamental, mas
também configura uma atividade na extensão de espaço musical coberta por seus
parciais.
Embora a onda do Exemplo B.5 não seja simples, sua recorrência periódi-
ca regular determina sua freqüência fundamental. Apesar da presença de mui-
tos parciais, nada no padrão contínuo contradiz as recorrências da fundamen-
tal. Ao contrário, a fundamental é regularmente reforçada, já que seu período

556 APÊNDICES
mesma ~··~~· ~u.o~u."~" o com-
~~UUHQ

essa razão, percebemos uma altura cuja freqüência é a

Deve ser observado, no que, quando percebemos uma única


em um som composto, estamos realizando uma redução (ou interpretação) in-
formações físicas complexas. Essa redução ou interpretação não é absolutamente
necessária. A influência de uma cultura pode predispor à percepção de alturas
individuais ou de informações físicas complexas. Uma cultura (ou obra) musical
pode dirigir seu foco para qualquer um destes aspectos ou mesmo para ambos
(veja o Capítulo 4 para exemplos).

ÜNDAS COMPLEXAS OU RUÍDO

Assim como sons aparentemente simples são compostos de muitas alturas,


sons que aparentemente não apresentam uma altura definida - freqüentemente
chamados de ruídos - são de fato complexos de muitas alturas. Mesmo que um
som não apresente uma única altura reconhecível, pode apresentar uma região
de alturas característica. Por exemplo, o som gerado pelo arranhar do giz em um
quadro negro é agudo. O reboar do trovão inclui elementos de alturas graves, que
derivam de ondas sonoras mais estendidas e lentas e, conseqüentemente, mais
graves. O motor de um avião a jato produz um ruído que cobre uma imensa ex-
tensão de sons graves e agudos.
A distinção entre sons cuja altura pode ser claramente percebida daqueles
cujas alturas não podem ser reconhecidas é consideravelmente tênue. Essa dis-
tinção depende do contexto e mesmo do indivíduo que os percebe. Um dos pri-
meiros pesquisadores do som, Dayton C. Miller, percebeu que se diversas varetas
de madeira ressonantes e afinadas (como as de um xilofone) caíssem no chão,
uma de cada vez, alturas específicas ou mesmo fragmentos melódicos poderiam
ser escutados. Caso caíssem simultaneamente, se escutariam ruídos. "Ruído e som
são meramente termos de contraste, em casos extremos claramente distintos,
mas em outros momentos mesclados. A diferença entre ruído e som é [apenas]
uma questão de grau". 6
Quais são as características das ondas sonoras que criam esta ilusão de re-
lativa ausência de altura à qual denominamos ruído? Qualquer som de duração
suficientemente curta (menor do que um milésimo de segundo) é escutado como
um estalo, ou seja, como um evento essencialmente rítmico. Diversos ciclos de
uma onda são necessários para que uma altura possa ser definida com precisão.

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 557


Harry Olson considera que são necessanos, em média, treze milissegundos
(0,013 segundos) para que esta definição ocorra.7
A maior parte dos ruídos, contudo, é resultado de ondas sonoras extrema-
mente complexas. Como descrito anteriormente, uma única altura definida é per-
cebida em uma onda senoidal simples ou em uma onda que preserva um único
período fundamental de vibração dentro do qual ocorrem vibrações parciais. O
Exemplo B.6 mostra duas ondas. A primeira (Exemplo B.6a) é o barulho estri-
dente e agudo proveniente do um diapasão atacado impetuosamente por uma
baqueta de madeira. Nesta onda, Miller assinalou que "a relação da onda menor
com a onda maior que inicia no ponto x recorre somente a partir da quarta onda
sucessiva, em y". 8 Conseqüentemente, a freqüência da onda componente, menor
e mais aguda, é de aproximadamente 6,25 vezes o da fundamental (25/4). Nes-
se exemplo, a distância entre pontos aparentemente comparáveis da onda - por
exemplo, os pontos mais baixos - é sempre diferente, ao passo que, no exem-
plo B.5, a distância de qualquer ponto em um período da onda ao mesmo ponto
na próxima onda sempre reproduz o período fundamental. Por conseguinte, no
Exemplo B.6a, o período fundamental não é reforçado, mas sim obscurecido por
esta relação irregular. O resultado é um som metálico estridente, ao invés da ine-
quívoca projeção de uma altura definida.

Hxenipl.o B.6 - Ondas de dois ruídos diferentes (segundo Miller)

Reproduzido de Dayton C. Miller, The Science ofMusical Sounds (New York: The Macmillan Company, 1916).
Reimpresso com permissão da Case Western Reserve University.

558 APÊNDICES
A onda sonora B.6b é produzida por um sino. Como Miller ob-
servou: "não existe um comprimento de onda [ou período fundamental] aparente
[recorrente] nesta curva, e uma análise [matemática] de qualquer porção desta
onda provavelmente resultaria em uma equação contendo um número infinito
de termos". 9 O som resultante é um complexo que apresenta um vasto número de
diferentes freqüências, das quais nenhuma reforça a fundamental. Estes comple-
xos de alturas são denominados sons "sem altura definida" ou "ruídos".
O Exemplo B.7 mostra, de outra forma, o relacionamento entre altura e ruí-
do, através da comparação da nota Lá 4 (440 cps) tocada em um trompete com a
nota produzida somente por seu bocal. O trompete constituído de todas as suas
partes produz a fundamental, os próximos três parciais superiores e traços pos-
teriores de parciais até o décimo parcial. O bocal do trompete produz um som
mais complexo, cuja relação com a fundamental é de menor consistência. A linha
ondulada no quarto parcial indica uma freqüência que só aproximadamente é o
que esperaríamos (4 x 440 = 1760 cps). No décimo parcial, ao invés de harmôni-
cos simples, encontramos bandas de freqüências (indicadas pelos sombreados).
Essas não são meramente múltiplos da fundamental, mas se relacionam de ou-
tras maneiras com esta fundamental, sem que haja seu reforço. Estas bandas de
freqüências muito agudas (no âmbito de 4-7 khz, 4000-7000 cps), somadas aos
parciais aproximados 4 a 10, criam o ruído externo (o ruído da passagem do ar,
por exemplo) que integra o som de Lá4 tocado no bocal do trompete.
A maior parte dos ruídos resultam, portanto, de complexos de alturas. O
mais complexo desses é o ruído branco, um som que contém todas as freqüências
da gama audível em igual intensidade. O nome é derivado por analogia com a
luz branca, que contém todas as cores. Como som mais complexo, representa o
oposto sônico do som senoidal. Os ruídos coloridos são ruídos brancos que cobrem
somente uma banda limitada de freqüências (por exemplo, 500-2000 cps). Sons
de ondas do mar, da banda de rádio FM entre as estações e, em algumas línguas,
de chiados como shh são semelhantes aos ruídos brancos e coloridos.
Fica esclarecida, portanto, quão distinta é a realidade do som, revelada
através da análise cuidadosa, em relação às nossas concepções corriqueiras des-
ta realidade. Assim como a realidade física do livro que estamos lendo contém
moléculas e átomos, também os sons emergem como compostos e complexos de
elementos que não eram reconhecidos anteriormente. Os ruídos são sons espe-
cialmente breves ou complexos ao invés de eventos que carecem de uma altura
definida. É possível incorporar em um som aparentemente simples, como o Lá4
produzido pelo bocal do trompete, tanto elementos de ruído como de alturas de-
finidas. Os instrumentos produzem, com freqüência, ambos os elementos: por

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 559


exemplo, o som arco ou o som
passagem de ar na os ataques instrumentais - golpes língua em
instrumentos de sopro ou a ação dos plectros cravo e dos martelos do
são ruídos que se unem às na produção inicial do som. A linguagem falada
é uma combinação dos ruídos de ataque e releases das consonantes e com a altura
das vogais. Alturas ser discernidas em ruídos mecânicos ou ambientais.
Como notamos anteriormente, o limite entre a percepção do e a da altura é
vago. A música, ou seja, a formatação do som, pode ser realizada tanto com ruí-
dos complexos quanto com simples alturas definidas. De fato, não existe como
separar os dois elementos, estes formam um continuum inseparável, englobando
dos mais simples aos mais complexos padrões de onda sonora.11

7000

6000

50000

4000

3000

2000

o
bocal do
trompete trompete

Figura e excertos reproduzidos de Waves and the Bar, Willem A. van Bergeijk, John R. Pierce e Edward E. David,
Jr. Copirraite (1960) Doubleday & Company, Inc. Copirraite (1958) John R. Pierce e Edward E. David, Jr. Repro-
duzido com permissão da Doubleday & Company, Inc. e Heinemann Educational Books Ltda.

A GAMA AUDÍVEL: O QUE EFETIVAMENTE ESCUTAMOS

A audição dos seres humanos é variada. Pode ser afetada, por exemplo, pela
cultura: alguns africanos escutam sons que, para norte-americanos urbanos do

560 APÊNDICES
capazes escutar UAV"~'
somos bastante ignorantes em
relação e ambiente no e nas . . ~,_,~,_,'-,~
da audição a a seguir, não é neces-
sariamente uma descrição de humanos absolutos - estes nem sempre são
""·'-'-·''-'-'-'"' - mas sim uma descrição dos limites atualmente nas
culturas americanas e européias.
Nos mais jovens, a gama de freqüências audíveis estende-se de aproxima-
damente 16 cps até 25000 cps. Especialmente em freqüências a partir de 1000
cps, a audição declina progressivamente com a idade, resultando, portanto, em
diminuição significativa desta gama a dos 40 anos. No passado, as cul-
turas musicais geralmente selecionaram regiões distintas da extensão audível
para serem exploradas. Tais escolhas são complexas, afetadas por fatores tão di-
versos como a instrumentação disponível e o alcance da imaginação e
sônica. Por exemplo, tanto na Europa medieval quanto no Tibete budista, foram
desenvolvidas tradições de cantos vocais religiosos. O canto do Tibete freqüenta
as extremidades da gama audível: as vozes masculinas em registros surpreen-
dentemente graves (1-2) são ocasionalmente combinadas com címbalos e gongos
tremulando nas regiões mais agudas da extensão audível (registros 7-9). Os par-
ciais superiores das vozes e a percussão preenchem o espaço entre essas extre-
midades.12 O canto europeu, em contraste, movimenta-se em uma região média
e restrita (registros 3-5) - de maneira que possa ser cantado por quase todos - e
limitado de maneira que a música não desvie a atenção do foco principal, o texto
litúrgico. 13 As regiões audíveis mais graves não são exploradas e, embora as vozes
produzam alguns parciais superiores, as regiões mais agudas (4000 cps) geral-
mente também não são utilizadas. 14 Cada cultura é caracterizada pela região que
escolhe explorar. De fato, somente com a tecnologia eletrônica atual dispomos,
pela primeira vez, de uma instrumentação capaz de explorar de maneira criativa
toda a gama de freqüências audíveis de maneira equilibrada, ou seja, sem que a
instrumentação favoreça uma ou outra região desta gama por causa de suas limi-
tações intrínsecas.
Embora não seja possível examinar o mecanismo de audição do ouvido
em detalhes, devemos mencionar algumas conseqüências do processo de audi-
ção. Estas conseqüências afetam a diferenciação tanto de freqüências como de
intensidades. O ouvido escuta de maneira diferente nas várias regiões da gama
de freqüências audíveis. A pesquisa psicofísica descobriu que, à medida que a
freqüência aumenta, o ouvido torna-se cada vez mais sensível às mudanças de
freqüências. O Exemplo B.8 traça em uma curva o número total de diferenças

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 561


minimamente perceptíveis na altura através da extensão audível. Na 62-
2 3
152 cps Dó até Dó ), existem 30 gradações perceptíveis; na
oitava 1000-2000 cps (aproximadamente Dó 6 até Dó7 ), existem 280 gradações
perceptíveis. No registro 6, o ouvido pode perceber nove vezes mais alturas dife-
rentes do que no registro 2. O total de alturas perceptíveis é considerado aproxi-
madamente 1400, comparado com as 120 alturas produzidas escala cromá-
tica do sistema de afinação temperado em sua extensão de dez oitavas audíveis. 15
É interessante notar que os seres humanos podem diferenciar entre alturas em
grau mais elevado do que o necessitado pela maioria dos sistemas de afinação já
desenvolvidos, o que constitui um potencial inexplorado até o momento.

1400

1200

1000

800

..@;j 600

º'------===:i=::'.=-L-~L-~..L_~..L.~..L.~..L.~...1.--.~.L.........
16 31 62 125 250 500 1()00 2000 4000 8000 16000
~ 00 00 w ~ w ~ w ~ w ~

trec1ull!r1cl11 em ciclos por seguncio

INTENSIDADE E VOLUME SONORO

Além da gama de freqüências, o ouvido também é capaz de escutar uma


ampla gama de intensidades. A sensação de volume resulta da pressão da onda
sonora, representada por sua amplitude. Entretanto, o ouvido responde à pressão

562 APÊNDICES
correlação direta e simples entre a pressão
e a a seguir, examina o caminho percorrido desde a
pressão da até a percepção e a comparação de seu volume.
Decibéis (db) são uma medida de pressão exercida por (ou, para dizer de ou-
tra forma, o poder elétrico disponível uma onda sonora. Tecnicamente, o ter-
mo para tal pressão ou poder é intensidade, o decibel é a medida de intensidade. A
gama de intensidades audíveis tem sido caracterizada da seguinte forma:

- em O db de intensidade (por definição), não escutamos quase nada;


- o das folhas em uma brisa suave produz uma intensidade de
10 db. A mesma intensidade é produzida por um sussurro ou mur-
múrio a um metro e meio de distância;
- um murmúrio médio distante pouco mais de um metro produz 20 db.
Este é também o nível de pressão de um jardim quieto em Londres;
- em uma rua quieta de Londres durante a tarde, quando não há tra-
fego, o nível de pressão é de 30 db;
- os barulhos noturnos de uma cidade podem apresentar nível de
aproximadamente 40 db;
- um automóvel pouco ruidoso, à distância de mais ou menos três me-
tros, produz ao redor de 50 db;
- os compradores em uma loja de departamentos produzem um nível
de 60 db; o tráfico muito movimentado produz 70 db. Uma conver-
sação corriqueira, à distância de um metro, é realizada entre 60 e
70 db, situando-se entre o nível de pressão dos compradores e o do
tráfego muito movimentado;
- um fluxo muito intenso de tráfego, incluindo passagens de níveis
(viadutos), produz um nível de pressão de 80 db. No ponto mais in-
tenso das cataratas do Niágara, o nível oscila entre 80 db e 90 db, e
uma britadeira automática a três metros também produz um nível
de 90db;
- uma máquina de ar comprimido, a dez metros de distância, produz
quase 100 db; o martelar em uma chapa de aço, a meio metro de
distância, produz 115 db, assim como a turbina de um jato em 1600
rpm (revoluções por minuto), a somente 5 metros de distância. Essas
pressões se localizam quase no limiar da dor e da percepção. 16

Os níveis de intensidade de várias vozes e instrumentos musicais são de-


monstrados no Exemplo B.9.17

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 563


- Gamas de intensidade para diversos instrumentos musicais à
. de t res
um pouco mais ' me t ros 18

saxofone

oboé

lmrmõnka

tuba

voz masculina

feminina

caixa-dara
címbalo

db o 20 40 80 mo 120

Para um som de 1000 cps (que serve como uma referência padrão de fre-
qüência), O db de pressão produz um som praticamente inaudível. O aumento
de pressão que produz um som de O db é incrivelmente pequeno: 0,0002b de um
microbar de pressão do ar. O microbar equivale, aproximadamente, a um milio-
nésimo da pressão atmosférica normal. Três pontos na escala db têm significado
especial:

O db - o limiar da audibilidade (em 1000 cps)


40 db - o limiar da inteligibilidade (em 1000 cps)
120 db - o limiar da dor (em 1000 cps)

564 APÊNDICES
curva
um os sons
outros de maneira a serem inteligíveis (na u•"'"-~-~

A curva inferior é o limiar da audibilidade; a mais alta representa o limiar da dor.

Reproduzido de Harvey Fletcher, Speech and Hearingin Communication. Copirraite (1953), reimpresso com per-
missão da D. Van Nostrand. Co.

Na medida decibel, a adição de 3 db a qualquer medida de pressão (em db)


duplica a pressão. A adição de 10 db resulta em uma pressão dez vezes maior que a
original. Portanto, começando com 10 db:

13 db = 2 vezes a pressão de 10 db
16 db = 4 vezes a pressão de 10 db
19 db = 8 yezes a pressão de 10 db
20 db = vezes a pressão de 10 db
22 db = 16 vezes a pressão de 10 db

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 565


db = vezes a pressão
(ou 100 vezes a pressão de 10 a pressão de 10

A pressão de 120 db é 1.000.000.000.000 (um trilhão) de vezes a pressão de O


db. A escala de decibéis é concebida para estas figuras inconvenientes, que
representam a enorme gama de resposta à pressão do ouvido.
A intensidade (a pressão física medida em db) não é idêntica ao volume
sonoro percebido.* A complexa resposta do ouvido à intensidade menciona-
da anteriormente. O ouvido reage de maneira distinta em regiões diferentes da
gama audível. As curvas do Exemplo B.10 mostram a quantidade de pressão (nú-
meros de db) necessária para produzir impressões de igual volume (ou nível de
volume sonoro) através da gama audível. Essas curvas são denominadas curvas de
percepção igualitária de volume (ou isofônicas). Em qualquer ponto destas curvas, o
nível de volume percebido é idêntico.
Para medir o nível de volume sonoro, é utilizado um outro termo: o fon. Na
freqüência de referência, 1000 cps, o número de fons e decibéis é sempre equiva-
lente. As curvas de percepção igualitária de volume são, portanto, curvas de fons.
O número de fons para cada curva é indicado na coluna em 1000 cps.

Na curva de 60 fons:
são necessários 72 db para a freqüência 100 cps, ao invés dos 60 db
necessários para 1000 cps.

Na curva de 10 fons:
são necessários 45 db para 100 cps, ao invés dos 10 db necessários
para 1000 cps.

Essas curvas mostram que, nas regiões mais graves da gama audível, bem como
nas regiões mais agudas, para produzir determinado nível de intensidade, é ne-
cessária maior pressão (e, às vezes, uma pressão muito maior) do que na região
ideal de resposta do ouvido - entre 1000 e 4000 cps. Esta última região é a mais
sensível do ouvido e a que requer a menor pressão para registrar determinado
nível sonoro.
As medidas fons não são puramente físicas. As curvas de percepção igua-
litária de volume são o resultado de avaliações em testes binaurais (em ambos
os ouvidos). Nesses testes, um sujeito utilizando fones de ouvido escuta duas

* N. T. No original, loudness. É importante frisarmos a distinção entre intensidade, como medida física
(relativamente) absoluta de pressão (ou energia), e o volume, medida que se relaciona à percepção
subjetiva da intensidade.

566 APÊNDICES
uma em ouvidoº Após o sujeito em vo-
percebidos como suas intensidades (pressões) são medidas e
comparadasº Inicialmente desenvolvidos, em 1930, por Fletcher e Munson, estes
testes e curvas têm sido continuamente refinados desde entãoº
A importância da medida fan deve ser ressaltadaº Essa medida torna possí-
vel a pressão física com o volume sonoro percebido, eliminando erros
causados ao considerá-las como idênticas. Contudo, mesmo com os fans, um im-
portante aspecto do volume ainda não é medido. Fans indicam volumes equiva-
lentes, porém quando estes são desiguais, os fans não medem o grau de diferença
entre os volumes. Qual a diferença de volume entre 70 e 60 fons em 1000 cps? A
medida fan não pode nos fornecer esta resposta e os decibéis somente indicam a
diferença de pressão e não o quanto esta se traduz em volume percebido.
Para medir diferenças de intensidade percebida, um terceiro termo é utili-
zado: o sane. Sanes são concebidos como uma escala de volume percebido. O ob-
jetivo da escala sane é refletir precisamente o grau de diferença entre diferentes
volumes sonoros. Citando um dos pioneiros neste campo, "quando o número de
unidades nesta escala é duplicado, a magnitude da sensação (o volume percebido)
vivenciada por observadores típicos será duplicada". 20 Dois sanes soam no dobro
de volume sonoro de um sane.
Por definição, um sane equivale a quarenta fans. Um sane se localiza, por defi-
nição, no limiar da inteligibilidade. Foram realizadas pesquisas para determinar
qual nível de volume sonoro é percebido como o dobro de volume de um sane (ou
quarenta fans). Chegou-se à conclusão que, em quarenta e nove fans, o volume é
percebido como dobrado; conseqüentemente, quarenta e nove fans equivalem a
dois sanes. Cada nova adição de nove fans duplica novamente o volume percebido.
O Exemplo B.11 mostra, em um gráfico e em uma tabela numérica, a correlação
entre fans e sanes (no Exemplo R11b, observe que, em um volume sonoro menor
que um sane, a quantidade de fans necessários para reduzir o volume percebido
pela metade é irregular).
Diversos testes foram feitos para estabelecer e confirmar estes valores. O
mais simples consistia em reproduzir, primeiro somente em um ouvido e depois
em ambos, um som de intensidade fixa e medir o nível de volume em cada situa-
ção. Diversas verificações confirmaram que o volume sonoro registrado pelos
dois ouvidos, em comparação com o registrado em somente um, concorda com
a percepção de duplicação de volume. Na medida em que a escala sane resulta de
avaliações subjetivas: não pode ser considerada absoluta. Existe um âmbito de
variação, devido (inicialmente) às sutis diferenças na acuidade de escuta entre
dois indivíduos. Por causa dessas ligeiras diferenças e com o propósito de manter

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 56 7


a o fons necessários o é
considerado às vezes dez, ao invés de nove.
Para o estas diferentes escalas revelam sobre a pressão e
o de volume sonoro? revelam que um aumento de pressão na
ordem de dez vezes é necessário para duplicar o percebido:

1 sone == 40 fons == 40 db em 1000 cps


2 sone == 49-50 fons == 50 db em cps
(50 db == dez vezes a pressão de 40 db)

Comparemos o seguinte:

100 cps a 52 db == 20 fons == aproxidamente 0,125 sones


1000 cps a 50 db == 50 fons == aproximadamente 2,0 sones

a)

10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 no 120
volume sonoro em fons

Reproduzido de Harvey Fletcher, Speech and Hearing in Communication. Copirraite (1953), reproduzido com
permissão da D. Van. Nostrand. Co.

568 APÊNDICES
67

O som de 1000 cps com menor contagem de db é na realidade percebido


com um nível de volume sonoro 16 vezes maior que o do som de 100 cps com
maior contagem de db (2 = 16 X 0,125). Medidas de pressão em db podem ser
bastante falhas em relação ao volume sonoro efetivo, a não ser que o efeito da
resposta do ouvido na região específica seja compensado. Caso estes sons de 100
e 1000 cps fossem dois parciais (o primeiro e o décimo) de um som composto cuja
fundamental fosse 100 cps, o décimo parcial seria percebido com um nível de vo-
lu.me 16 vezes maior do que a fundamental, apesar da pressão do décimo parcial
ser quase a metade da pressão da fundamental (já que uma mudança de 3 db du-
plica ou corta pela metade a pressão). Em sons compostos, pequenas quantidades
(em termos de pressão e db) de parciais superiores podem desempenhar um papel
sônico desproporcional à contagem em db. 22
É importante levar sempre em consideração estes fatores. Medidas de pres-
são em decibéis são facilmente realizadas; a instrumentação necessária encontra-
-se disponível há muitas décadas. A maioria das análises sonoras, especialmente
as de sons instrumentais, tem sido escritas em db (veja o Capítulo 4). Somente na
década de 70 do século XX, foi, pela primeira vez, experimentalmente desenvolvi-
do um dispositivo para medir a percepção de volume (incorporando todos os fato-
res necessários para.corresponder às complicadas respostas do ouvido humano).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 569


ENTRE INTENSIDADE E VOLUME SONORO

Até este ponto da discussão sobre intensidade e volume, nos detivemos em


mensurações e comparações de intensidade ou volume sonoro de sons individuais.
Para concluirmos nossa discussão sobre a intensidade e a pressão, examinaremos
agora o que acontece quando diversos sons são combinados.
Se um som de 1000 cps é reproduzido a 70 db (ou 70 fons), dois sons idênti-
cos juntos produziriam 73 db (ou 73 fons) - pois constatamos anteriormente que
a duplicação de intensidade adiciona três decibéis. 23 O gráfico do Exemplo B.lla
mostra que 70 fons equivalem aproximadamente a 10 sones; 73 fons equivalem
aproximadamente a 12 sones. A duplicação da pressão produz somente um pe-
queno incremento no volume sonoro efetivo. Estabelecemos anteriormente tam-
bém que a pressão deve ser multiplicada por 9 ou 10 (ou seja, um acréscimo de
nove ou dez db ou fons) para duplicar a percepção de volume.
Conseqüentemente, dois violinos tocando uma nota em uma determinada
dinâmica apresentam volume apenas ligeiramente maior do que o produzido por
um único violino. Somente quando nove ou dez instrumentos são combinados,
o volume é duplicado! O quadro a seguir24 mostra o incremento exato de volume
obtido através do dobramento em uníssono.

percentual de ganho de volume


número de instrumentos em relação a um instrumento
1 o
2 30
3 47
4 59
5 69
6 77
7 84
8 90
9 95
10 100
Em contraste, o Exemplo B.9 mostra que o âmbito de intensidades de um
único violino cobre 55 db, de 40 db a 95 db. O violino soa principalmente na re-
gião em que o ouvido apresenta uma resposta otimizada, na qual decibéis e fons
são equivalentes. Sua gama de dinâmicas cobre, portanto, de 40 a 95 fons -1-64
sones, de acordo com o Exemplo B.11. Em volume percebido, o som mais forte é
64 vezes mais intenso que o mais suave. Em outras palavras, ao aumentar sutil-
mente sua intensidade de execução (e utilizando somente uma pequena quanti-
dade de seu âmbito de dinâmicas disponível), um único violinista pode realizar

570 APÊNDICES
no que o obtido por dez violinos tocando juntos.
contrário do senso comum, o dobramento em uníssono de instrumentos (ou
vozes) semelhantes e o uso de amplas seções instrumentais não são os meios
primordiais para obter acréscimo no volume sonoro. 25
Confrontemos então um aparente paradoxo. Se um som de 100 cps a 70
fons ocorre simultaneamente a um som de 1000 cps a 70 fons:

100 cps em 78 db = 70 fons = aproximadamente 10 sones


1000 cps em 70 db = 70 fons = aproximadamente 10 sones
volume total = aproximadamente 20 sones 26

A adição de um som de 100 cps de 10 sones a um som de 1000 cps com volume
equivalente produz 20 sones; o volume dobra. Nesse caso, o volume, ao invés da
pressão, é duplicado.
Em que situações o ouvido responde à pressão adicionada ou ao acrésci-
mo de volume? O ouvido responde às combinações sonoras de duas maneiras
distintas, dependendo do quão próximas ou separadas estão as freqüências. Se as
freqüências estão próximas (entre aproximadamente meia oitava ou menos), 27 os
impulsos adicionados aumentam a pressão na mesma região geral da membrana
do ouvido interno. Quando as freqüências estão mais amplamente separadas,
atuam em regiões diferentes da membrana do ouvido interno, possibilitando que
cada região desenvolva sua resposta plena ao volume sonoro. Nesse caso, além da
pressão, os volumes também são somados. A adição de sons de volume equivalen-
te em freqüências amplamente separadas produz um volume total muito maior
do que a adição de uma pressão equivalente em uma mesma freqüência.
Resumindo, em muitos aspectos o mecanismo de audição dos seres huma-
nos responde de maneira distinta às freqüências graves, médias e agudas. Nas
freqüências mais graves, o ouvido é menos sensível à mudança de freqüência e
intensidade. Nas extremidades da gama de freqüências, é necessária mais inten-
sidade para produzir um determinado volume do que em qualquer outra parte
da extensão audível. Além disso, o ouvido responde às freqüências amontoadas
de maneira distinta do que em relação às amplamente espaçadas. Portanto, as
gamas audíveis de freqüências e intensidades afetam-se mutuamente de diversas
maneiras. Embora o equipamento de recepção do ser humano seja incrivelmente
sensível à diversidade tanto de freqüência quanto de intensidade, ele não é um
mero gravador passiyo. Elementos como o impulso da onda, o aparato receptivo
do ouvido, a freqüência e a intensidade interagem entre si para determinar a per-
cepção final da altura e intensidade.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 571


DE

discutirmos a gama audível, comparamos o de alturas


tíveis com as alturas resultantes da disposição escala de 12 sons
da gama de freqüências audíveis. disposição leva a cabo
sos comuns à dos séculos e XX:

1) a divisão da gama audível em oitavas;


1) a subdivisão de cada oitava em 12 semitons iguais (intervalos :j));

Examinaremos agora esses processos.


Retornando ao Exemplo B.4, observamos que os dois primeiros parciais -
Dó (131 cps) e Dó 4 (262 cps) - formam uma oitava; suas freqüências estão re-
3

lacionadas pela razão Essa relação está presente nos parciais 1, 2, 4, 8, 16 e


assim por diante. As freqüências de cada oitava sucessiva encontram-se na razão
1:2 (2:4, 4:8, 8:16). Desde os tempos antigos, a especulação sobre o fenômeno
marcante da oitava (a aparente recorrência de qualquer nota em diversos pontos
do âmbito disponível) concentrou-se na razão 1:2 de suas freqüências. Esta razão
pode ser de fato responsável pelo fenômeno da oitava; entretanto, raciocínios
mais recentes oferecem outras explicações. Como vimos, um som composto cria
um contexto que consiste em uma fundamental somada a diversos parciais supe-
riores. Nesse contexto, as oitavas são (quase invariavelmente) o intervalo predo-
minante, especialmente entre os primeiros parciais, mais freqüente e fortemente
produzidos por instrumentos e vozes (veja a análise do espectro instrumental na
seção "A cor sonora"). Entre os primeiros dez parciais, ocorrem cinco oitavas (no
Exemplo B.4: Dó 3 -Dó 4 , Dó 4 -Dó 5 , Dó 5 ~Dó 6 , Sól4 -Sól5 e Mi 6 -Mi6) - quase o dobro de
ocorrências do que em qualquer outro intervalo. Conseqüentemente, no contexto
criado por um som composto (formado por seus parciais mais fortes), predomi-
nam a relação e a sonoridade da oitava. A relação de oitava é fortemente reforça-
da por suas múltiplas ocorrências. A oitava, em conseqüência, é tão intimamente
associada à fundamental que elas compartilham uma identidade única. Esta ex-
plicação é consistente com o conceito contextual da linguagem musical apresen-
tado no Capítulo 2. Além disso, oferece uma explicação alternativa do significado
especial da oitava à explicação derivada das razões entre as freqüências.

572 APÊNDICES
sistema de afinação temperado por 10 oitavas, em ciclos

277

1047

L ~·
a:m 8870

Os decimais foram arredondados. A linha pontilhada demarca a extensão do piano.

Seja por causa da predominância contextual na série de parciais dos sons


compostos ou pela razão 1:2 de suas freqüências, a oitava desempenha um papel
singular em muitos dos sistemas musicais espalhados pelo mundo. Nesses sis-
temas, uma nota e sua oitava são consideradas, de certa forma, como idênticas
- um fato surpreendente, tendo em vista a separação espacial e as conseqüentes
diferenças de cor das notas separadas por uma oitava.
O sistema de afinação da música européia dos séculos XVIII a XX, o sistema
de temperamento igual (ou sistema temperado), que Bach celebrou em seu Teclado
bem temperado, divide a oitava em 12 intervalos de semitom equivalentes CCD).
As 120 freqüências do sistema temperado são mostradas no Exemplo B.12. As
freqüências de cada semitom se relacionam pela razão 1:1,0595. Entretanto, cada
intervalo, não somente o semitom, relaciona-se por uma razão única e constante.
Por exemplo, todas as quintas justas (C)_)) encontram-se na razão 1:1,4983.
O Exemplo B.4 mostrou 20 parciais de Dó 3 (131 cps). Nesse exemplo, es-
tão presentes dois conjuntos de números de freqüências. Os números da linha a
foram calculados como parciais da fundamental (1 a 20 X 131), eles são as fre-
qüências das parciais resultantes. As figuras na linha b são as freqüências mais
próximas encontrad·as no sistema de afinação temperado. Ao comparar o quinto
parcial de Dó 3 (655 cps) com o Mi 6 do sistema temperado (659 cps), constata-se
uma diferença de 4 cps, ou seja, o quinto parcial de Dó 3 é 4 cps mais grave que o
Mi 6 temperado. Quando um instrumento afinado no sistema temperado (como

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 573


o piano) toca Dó 3 e Mi 6 simultaneamente, existe uma discrepância de afinação
entre os dois Mis - aquele que origina seu e o outro Mi faz da
afinação temperada do instrumento. Dessa discrepância, resultam batimentos
acústicos - neste caso, quatro por segundo. 28
Não devemos automaticamente presumir que tais discrepâncias de afina-
ção e os batimentos resultantes sejam uma desvantagem ou uma propriedade
indesejável em si mesmo. No Capítulo 4, examinamos em detalhes o papel cons-
trutivo dos batimentos no som instrumental e na cor musical. A variabilidade (e
discrepância) da afinação existe em todos os sistemas de afinação. Esta variabili-
dade não só é necessária como pode ser transformada em algo vantajoso.

A TEORIA DE CONSONÂNCIAS E DISSONÂNCIAS SEGUNDO AS RAZÕES


INTERVALARES

Encontramos diversas fontes de intervalos musicais: a série de parciais ou


os sistemas de afinação concebidos pelo ser humano. Vimos (no Exemplo B.4)
que os intervalos da série de parciais podem ser expressos em razões de números
inteiros, assim como os da oitava (1: 2):

:3
3
3 5

terça maior ;5

terça menor 5:6

sétima menor .7 1en•tretanto, Mi~Ré apresenta uma razão


tritono 5 1entrei:an1bo Fil#-Dó1 apresenta uma razão
sexta menor 5:8 apresenta uma razão
segundla maior 7:8 (en1tretanto, Dó-Ré uma razão

sêti.ma maior : 11

11 12

e assim por

574 APÊNDICES
Diversos significados a estas razões entre as freqüências, desde
os tempos antigos o presente. Uma tentativa especialmente disseminada
a de derivar princípios de consonância e dissonância destas razões. De Pitágoras a
30
Rameau 29 e as razões entre as freqüências têm sido o fundamento
de abrangentes especulações teóricas. O fato desta especulação ter sido tão pre-
dominante (porém, ao mesmo tempo, tão inconclusiva e contraditória) represen-
ta motivo para minuciosa investigação.
Observemos que muitos dos intervalos (em nossa compreensão atual do ter-
mo) são expressos por diversas razões diferentes na série de parciais - na lista de
razões intervalares, isso pode ser constatado em todos os intervalos, exceto nos
dois primeiros ((!) e (~)). Se fôssemos identificar um intervalo com uma razão, não
poderíamos saber ao certo qual das diversas razões na série de parciais deveria
ser escolhida, ou seja, por que uma razão seria escolhida em detrimento de outra.

lixenn:»!.o B.13 - Uma tentativa de determinar as características de consonância e disso-


nância das várias razões de intervalos (segundo Malmberg)

12

11

10

8
g
.·.:., 7
Ei
o
v
6
e
"''"o
"t:l
5

o
razão 2 3/2 5/3 514 413 8/5 615 36/25 9/5 9/8 15/8 27/25

intervalo 7 5 2
''
Reproduzido de Harry F. Olson, Music, Physics and Engineering (New York: Dover Publications, Inc., 1952), p. 260.
Reimpresso com permissão do editor.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 575


Freqüentemente, toma-se verdadeira a
ou mais "complexas", porém e comple-
xidade não são definidas. Entretanto, mesmo é feita uma tentativa de
definição destes termos, surgem problemas. A lista mostrada no Exemplo B.13
foi construída por Malmberg e citada com aprovação por "Constata-se que
a ordem de mérito (consonância) diminui à medida que a razão entre
ros aumenta". 31 Um rápido olhar nas razões mostrará que isso não é consisten-
temente verdadeiro. Tampouco é explicado por que isso deveria ser verdadeiro,
nem qual intervalo musical é representado por algumas das razões: 27:25 - o
intervalo "qj)" , nem por que um intervalo (o (1)) é omitido ou por que alguns
intervalos são representados por uma de suas razões ao invés de outra. A defini-
ção de consonância e dissonância apresentada tanto por Malmberg quanto por
Olson é inconsistente e, de fato, não corresponde à descrição de Olson nem a de
outras tentativas similares. Em suma, não está demonstrado que essa definição
corresponde a qualquer música existente.
Só podemos concluir que estas razões não originaram nenhum princípio
razoavelmente adequado das consonâncias e dissonâncias. Isso não significa que
nossa audição dos intervalos não seja influenciada pelos parciais. Seria surpreen-
dente que estes relacionamentos sônicos tão pertinentes não afetassem nossa
resposta ao som. Entretanto, para compreender os relacionamentos sonoros, de-
vemos (novamente) estudar não somente a numerologia, mas também o fenôme-
no sonoro efetivo. Os teóricos da teoria de consonância e dissonância em função
das razões intervalares não analisaram fatores psicológicos cruciais tais como
as diferenças de espectros instrumentais (tanto a quantidade e a intensidade
dos parciais presentes), a efetiva (ao invés de assumida) presença de batimentos,
a influência do espaçamento - somente para citar alguns destes fatores. 32 Uma
análise que leve em conta estes fatores (como nos Capítulos 1, 2 e 4 deste livro)
revela a natureza complexa da informação sônica e indica que esta não pode ser
reduzida à numerologia simples.
No Capítulo 2, propusemos que o contexto musical efetivo define os papéis
dos intervalos - sua consonância e dissonância, bem como seus outros signifi-
cados - para este contexto. Como acabamos de ver, a predominância contextual
explica fatos (tais como a natureza da oitava) que têm sido geralmente explica-
dos pelas razões intervalares. A abordagem contextual é consistente com as con-
cepções voláteis de consonância e dissonância encontradas ao longo da história
da música. À medida que os contextos musicais mudam, os intervalos assumem
novas funções. Alia-se à visão contextual a necessidade de analisar precisamen-
te o funcionamento psicofísico efetivo dos intervalos (em termos de espectros,

576 APÊNDICES
visão.

SONORA

Vamos relembrar nosso ponto de onda sonora, como constata-


mos, inicia nossas percepções de altura ou de sua ausência e de intensidade.
mholtz foi o primeiro a o papel das características da forma da onda na
determinação da cor sonora (também conhecida como timbre ou qualidade sonora),
tanto de instrumentos como de vozes, quer na música, quer na linguagem fala-
da. 33 Embora esta teoria tenha sido bastante refinada e reelaborada posterior-
mente, sua publicação, em 1863, representa o marco inicial da moderna investi-
gação científica do som.
De acordo com Helmholtz, as diferenças na cor tonal resultam principal-
mente da "combinação de diferentes sons parciais de intensidades distintas". 34
Na onda do Exemplo 5, podemos ver que as pequenas ondas parciais dentro
do amplo período fundamental apresentam diferentes amplitudes. Portanto, os
parciais apresentam diferentes intensidades e volumes sonoros. Além disso, uma
fundamental pode produzir poucos ou muitos parciais. Por conseguinte, uma
única fundamental pode gerar (em princípio) um número infinito de "receitas",
ou espectros. Estes espectros podem apresentar muitos ou poucos parciais, que
por sua vez apresentam diferentes combinações de intensidade. São esses espec-
tros distintos que, segundo Hemlholtz, produzem a cor sonora característica dos
sons instrumentais e vocais.
O Exemplo B.14 mostra uma das primeiras análises (realizada por Miller)
dos espectros de Dó 4 produzidos por uma voz soprano e por outros quatro instru-
mentos. Embora os parciais sempre obedeçam à ordem de apresentação da série
de parciais (em relação à freqüência), cada cor sonora possui uma quantidade
diferente de parciais, soando em intensidades distintas. Como Helmholtz ressal-
tou, existe uma conexão direta entre o espectro e a cor tonal: a fraqueza da voz
soprano nesta nota grave é demonstrada pela falta de intensidade na fundamen-
tal. A pureza do diapasão é mostrada em seu espectro. O som pleno e arredon-
dado da trompa resulta de um espectro que apresenta uma fundamental forte e
uma gradação regul.ar que se estende por vários parciais.
Devemos acrescentar, de imediato, que praticamente nenhum instrumen-
to produz o mesmo espectro o tempo inteiro. Os vários registros de um mes-
mo instrumento produzem espectros notavelmente diferentes. Além disso, as

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 577


dinâmicas e outros aspectos execução o
forma ou

nx.~.u•v•1u B.14 - Espectros para Dó 4, produzido por uma voz soprano e quatro instrumen-
dos triângulos representa a intensidade relativa 35

11 13 15
12

As mudanças de espectro nos diferentes registros foram explicadas pela


teoria das formantes. De acordo com essa teoria, os instrumentos apresentam
ressonância especialmente forte em determinadas áreas de sua extensão. A res-
sonância instrumental reforça o som instrumental em geral e, particularmente,
as regiões formantes. No Exemplo B.15, os espectros de três notas do fagote são
comparados com as áreas formantes do instrumento. A primeira área formante
localiza-se na região de 550 cps e a segunda na região de 1000 cps. Em cada es-
pectro, os parciais nas áreas formantes são especialmente fortes. O resultado é
um espectro notavelmente distinto para notas executadas em três registros do
instrumento. No registro mais grave, a fundamental, SoF (98 cps) é tão fraca
que quase não aparece no espectro, e por outro lado, o espectro é muito rico nos
parciais superiores que se localizam nas áreas formantes Em contraste, o Dó 5
(523 cps), a primeira nota do famoso solo de fagote no início da Sagração da pri-
mavera de Stravinsky, apresenta um espectro cujos dois primeiros parciais são

578 APÊNDICES
exatamente no meio das áreas
uma característica instrumental mar-
cante até havia passado despercebida).
Os espectros de um instrumento são, portanto, multifacetados. De
fato, o conceito cor sonora de um instrumento deve ser substituído pelo con-
ceito de cores sonoras. Um instrumento é um recurso de cores tonais disponí-
veis. No Capítulo 4, as possibilidades musicais deste potencial de cores sonoras
são sistematicamente exploradas e a análise espectral é abordada com mais
profundidade.
O uso especialmente rico dos recursos de cor sonora de um instrumento
comum, a voz pode ser observado na linguagem falada. Cada vogal pode
ser considerada como uma cor tonal distinta com regiões formantes específicas,
demonstradas no Exemplo B.16. Embora os espectros de homens, mulheres e
crianças para uma determinada vogal sejam diferentes, as formantes são idênti-
cas, mesmo em um sussurro.
Quando a fundamental de uma voz masculina é grave, uma determinada vo-
gal produzirá um parcial superior forte na área formante desta vogal. Sem este
parcial, a vogal não pode soar. 38 Como Helmholtz revelou, existe uma escala de bri-
lho-opacidade para as vogais, que depende do nível da formante (Exemplo B.16). 39
As vogais aproximam-se dos sons compostos (compostos por uma funda-
mental e parciais superiores) em sua onda sonora. As formas complexas e tran-
sitórias das ondas das consonantes são similares àquelas associadas aos ruídos.
Entretanto, mesmo as consonantes (como o ruído) não deixam de apresentar
características gerais de altura. Algumas consonantes produzem bandas de fre-
qüência relativamente agudas, outras apresentam bandas relativamente graves.
Algumas produzem bandas limitadas e outras, bandas mais amplas. As relativas
concentrações de freqüências para as consonantes são demonstradas grafica-
mente no Exemplo B.17.
Ao aprender uma linguagem, os seres humanos aprendem a diferenciar co-
res sonoras tanto em alturas quanto em famílias de ruídos. Os seres humanos re-
velam, em sua linguagem, a capacidade de responder com precisão a uma ampla
gama de sinais de cores sonoras sutilmente variadas. 40

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 579


- Os espectros de três notas de um fagote (segundo ~,.,~""!

cps

cps

secundária

oo o o
o oo oo
o
'l-01 N o o o
N 00 ;:::

Reproduzido de Harry F. Olson, Music, Physics, and Engineering (New York: Dover Publications Inc., 1952), p. 255.
Reimpresso com permissão do editor.

580 APÊNDICES
vogais na - estas
HiluL,,uc1;:, (segundo Winckel) 37

Duas Pagais, "u" (took) e "::i" (tgck), foram omitidas. A Foga/ "u" precede "o", e";;," precede "a"
na escala de formantes das 17ogais.

Reproduzido de Fritz Winckel, Music, Sound and Sensation (New York: Dover Publications Inc., 1967), p. 14.
Reimpresso com permissão do editor.

Exemplo B.17 -As bandas de freqüências relativas das consoantes (segundo Potter, Kopp
e Kopp) 41

Reproduzido de Ralph K. Potter, G. A. Kopp e H. G. Kopp, Visible Speech (NewYork: Dover Publications, Inc.,
0

1966), p. 281. Reimpresso co m permissão do editor.

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 581


Até o os princípios relativos às formas onda (e os espectros
resultantes) de sons instrumentais, vozes e ruídos abordados.
acrescentar agora ao nosso estudo uma mídia recente: a
eletrônica.
Tipicamente, a música eletrônica de hoje produz seus de onda
através de osciladores de corrente alternada. Tais oscilações são análogas às cris-
tas e vales das ondas produzidas por instrumentos. A corrente alternada pode
ser controlada através da manipulação de voltagem para oscilar em qualquer
qüência dentro da extensão audível (bem como em freqüências além desta gama)
e, em princípio, em qualquer intensidade dentro da gama de volumes sonoros
perceptíveis. Conseqüentemente, pela primeira vez na história da música, toda
a gama de alturas e de níveis de volume audíveis está totalmente disponível. As
extremidades auditivas e todos os recursos sônicos entre essas extremidades se
encontram disponíveis para a exploração.
Por conveniência, os sintetizadores de música eletrônica geralmente produ-
zem uma ou mais formas de ondas simétricas ou regulares, que podem soar em
qualquer parte da extensão audível. As mais importantes formas de ondas simé-
tricas são as ondas senoidal e dente-de-serra.* No início deste apêndice, introduzi-
mos a forma e o espectro do som senoidal, que consiste unicamente do primeiro
parcial. Sons senoidais são muito importantes na síntese sonora eletrônica, não
somente por sua cor sonora, mas também por que podem ser combinados em
sons compostos ou complexos.
Diferentemente da onda senoidal, a onda dente-de-serra geralmente pro-
duz um som com um espectro muito rico em parciais (Exemplo B.18). De fato,
a onda produz, teoricamente, uma série infinita de parciais, cujas intensidades
diminuem de maneira regular a partir do primeiro parcial. Na prática, a partir de
certo ponto, os parciais situam-se abaixo do limiar de audibilidade e ultrapassam
a gama de freqüências audíveis, impedindo a audição posterior das parciais. O
ponto de corte exato depende da intensidade e da freqüência da onda: quanto
mais grave a freqüência e maior a intensidade, auditivamente mais perto da in:fi-
nitude a série de parciais poderá chegar.
A onda senoidal, com seu único parcial, e a onda dente-de-serra, com sua
quantidade teoricamente infinita de parciais, podem ser consideradas como
opostos extremos das ondas simétricas. Além dessas ondas sonoras antagônicas,

* N. T. No original, sawtooh.

582 APÊNDICES
os sintetizadores de
se encontram em entre os extremos: formas ondas quadradas
e triangulares (Exemplo 19). Alguns sintetizadores também produzem ondas
retangulares, ou pulsantes (pulse). Quando um sintetizador apresenta a capacidade
produzir ondas retangulares de amplitude variável, os espectros resultantes
apresentam variações na quantidade e relativa intensidade dos parciais, embora
sejam sempre compostos a dos integrantes da série de parciais.
Além dessas formas de onda, que oferecem sons senoidais e uma variedade
de sons compostos, os sintetizadores possuem tipicamente um gerador de ruído
branco, que produz sons complexos.

l
o
2

4
5
6
7 8
10

Reproduzido de Harry F. Olson, Music, Physics and Engineering (New York: Dover Publications, Inc., 1952), p. 260.
Reimpresso com permissão do editor.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 583


- Onda quadrada e triangular e seus espectros. Os são similares,
porém suas intensidades diferem (segundo Olson) 43

fmt1i.H!ncia em

b)

584 APÊNDICES
t-

r-

-20 r

r-
7

9
1-

r'
.)

15
r-

J.. J.. J. l .! .1
100 400 1000 :moo
ddos por

Reproduzido de Harry F. Olson, Music, Physics and Engineering (New York: Dover Publications, Inc., 1952), p. 260.
Reimpresso com permissão do editor.

Além destes recursos sônicos, os sintetizadores também oferecem uma va-


riedade de dispositivos e meios para modificá-los. A filtragem é especialmente
importante: determinadas regiões de freqüências podem ser parcial ou comple-
tamente suprimidas através de filtros, alterando, conseqüentemente, seus espec-
tros e cores sonoras. O mesmo processo permite que o ruído branco seja modifi-
cado de maneira que adquira as diferentes qualidades dos ruídos coloridos. Dessa
maneira, os sons compostos podem ser transformados e se aproximarem da qua-
lidade dos sons complexos (ou ruído): por exemplo, através da filtragem da fun-
damental e dos primeiros parciais de um som composto, os parciais superiores
são relativamente intensificados. Por outro lado, ao estreitar (ou centralizar) as
bandas de ruído colorido através da filtragem, estas bandas de freqüência podem
produzir alturas praticamente exatas. O continuum do qual a altura e o ruído são
conceitos opostos pode ser, de tais maneiras, preenchido, aproximando cada vez
mais os opostos. Essa possibilidade se torna viável com a utilização de sintetiza-
dores com processos de filtragem cada vez mais precisos.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 585


Devemos sempre entre as
teóricas ilimitadas síntese efetivas de
sintetizador classe sintetizador) exemplo, a '°"''-V''-'
das sonoras simétricas ou regulares como base de som
na de precisão sônica. formas de
qüentemente associadas a certas características sonoras:
o som das cordas e dos metais. A soa ""'"·'ª'
44
rinete tocando suavemente em um registro grave". fato, as ondas e os es-
pectros dos Exemplos B.18 e B.19 são estímulos físicos. Os meios pelos quais
eles são percebidos em sons efetivos serão examinados agora. A de então,
poderemos decidir se formas de ondas semelhantes produzem sons similares ou
dissimilares (e em qual grau).
Consideremos inicialmente a influência da gama freqüências audíveis.
Na medida em que existe um limite superior de freqüências audíveis, uma onda
dente-de-serra em um registro muito agudo (fundamental no registro 8, por
exemplo) produzirá pouquíssimos parciais, e se sua intensidade for baixa, somen-
te um. Em contraste, uma onda dente-de-serra de intensidade substancial cuja
fundamental se localize no registro 1 poderá produzir um espectro resultante
com centenas de parciais que se estendem por diversos registros. O espectro so-
noro efetivo da primeira onda seria parecido com o da onda senoidal, ao passo
que o som da segunda seria semelhante ao de um ruído devido à enorme com-
plexidade de seus parciais. Dependendo do registro de sua fundamental, uma
mesma forma de onda sonora pode gerar as mais diversas possibilidades sonoras,
ao invés de sons similares.
Os espectros de todos os sons compostos em registros graves são afetados
pela fraca resposta do ouvido ao estímulo de sons graves. Enquanto o espectro
dos Exemplos B.18 e B.19 apresentam diminuição regular da pressão dos parciais
mais graves aos mais agudos, a resposta irregular do ouvido afeta a percepção
do volume das parciais. Fundamentais graves podem ser significativamente en-
fraquecidas ou mesmo desaparecer por completo. A localização de uma forma de
onda em um registro muito grave resulta sonicamente na filtragem de seus par-
ciais mais graves! Novamente, constatamos que as formas de ondas similares são
sonicamente distintas, dependendo do registro em que se localizam. 45
Mesmo os sons senoidais são afetados. Nos registros mais graves, estes
sons são raramente gerados ou reproduzidos com pureza. Geradores e sistemas
de reprodução adicionam impurezas, como parciais superiores. Em altos níveis
de volume sonoro, o ouvido também acrescenta muitos parciais subjetivos, de

586 APÊNDICES
corresponde à sonora
mensurável externo ao corpo que o percebe).
o registro e a intensidade afetam substancialmente o som
produzido por forma de onda. Poderia se argumentar que as diversas
situações anteriormente citadas são todas excepcionais. Entretanto, a dispo-
nibilidade destes recursos, antes excepcionais ou mesmo impossíveis de serem
obtidos, constitui o dramático avanço da música eletrônica. Freqüentemente, o
resultado da produção de sintetizadores e da música eletrônica tem sido oferecer
possibilidades previamente inalcançáveis e, ao mesmo tempo, diminuí-las por
causa da imprecisão e da inflexibilidade do equipamento - eletrônico ou humano.
Quando um sintetizador suficientemente preciso e flexível está nas mãos de um
compositor que se coloca à serviço dos fatos psicofísicos fundamentais do som,
o potencial teórico da música eletrônica é realizado. Uma gama inteira de sons e
relacionamentos sonoros, previamente inatingíveis, torna-se então possível.

CONCLUSÃO

A capacidade humana de distinguir sons é surpreendente. As caracterís-


ticas de freqüência variam da simplicidade absoluta do som senoidal à com-
plexidade maciça do ruído branco. O âmbito de resposta à pressão é enorme. A
variedade e a sutileza das cores sonoras disponíveis são incríveis, praticamente
infinitas. Cada linguagem verbal consolidou meios de comunicação através deste
vasto potencial. Os recursos têm sido explorados em diversas linguagens e dis-
cursos musicais, cada um refletindo a fascinação do ser humano por certas carac-
terísticas e possibilidades oferecidas pela material sonoro em seu estado bruto.
A música constitui-se na elaboração e na inter-relação de determinadas facetas
deste recurso sonoro. Assim como existe uma profusão de linguagens verbais,
cada uma singular e inteligível, também existem diversas linguagens e culturas
musicais, das quais nenhuma consegue absorver totalmente nem monopolizar
estes recursos.
Neste apêndice, abordamos de maneira superficial o mundo sonoro. Muitas
características importantes do som e da audição foram necessariamente negli-
genciadas. No Capítulo 4, examinamos as propriedades psicofísicas do som sob
uma nova ótica: como base da cor tonal musical, não somente as cores produzidas
por instrumentos i~dividuais, mas também as combinações instrumentais que
criam a cor de obras musicais. Muitas idéias introduzidas aqui são estendidas e
refinadas naquele Capítulo (leituras complementares sobre a psicofísica do som
são listadas no :final do Capítulo 4).

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 587


1. Anton Webern em The Path to New Music, trad. L Black (Bryn Mawr, Pa.: Presser, 1963, p. 12). Edição
inglesa, 1963, Theodore Presser Company. Reproduzido com a permissão da editora.
2. R. Buckminster Fuller em Inventory ofWorld Resources, Human Trends and Needs, Doe. 1 (Carbondale,
ili.: Southern Illinois University Press, 1963, p. 12).
3. Muitos dos fenômenos sonoros discutidos aqui podem ser escutados nas gravações produzidas por
Bell Laboratories denominadas The Science of Sound, Folkways FX 6007 (um disco duplo) e FX 6136
(disco único).
4. Uma determinada onda sonora, tal como uma onda senoidal, soa diferente em registros distintos.
Ao escutar um oscilador produzindo onda senoidais em todos os registros audíveis, o ouvinte perce-
berá a mudança de sons que se assemelham à vogal u nos registros mais graves para sons que se as-
semelham à vogal i nos registros mais agudos. À exceção dos registros mais agudos, ondas senoidais
são relativamente foscas e arredondadas.
5. Hermann von Helmholtz em On the Sensations ofTone, trad. da quarta edição alemã, de 1877, por
Alexandre Ellis (New York: Dover, 1954, p. 56).
6. Dayton C. Miller em The Science of Musical Sounds (New York: Macmillian, 1916, p. 21).
7. Harry Olson em Music, Physics and Engineering (New York: Dover, 1967, p. 250).
8. Miller, op cit., p. 188.
9. Miller, op cit., p. 188.
10. W. A. Van Bergeijk, J. R. Pierce e E. E. David, Jr. em Waves and the Bar (Garden City, N.Y: Doubleday
Anchor, 1960, Figura 3.10).
11. Os termos simples, composto e complexo adotados por Helmholtz são de vez em quando reduzidos
na literatura psicofísica para simples e complexo: todos os sons à exceção da onda senoidal são con-
siderados complexos.
12. Os monges tibetanos têm desenvolvido uma técnica vocal singular, que produz parciais superio-
res tão audíveis que eles parecem estar cantando "diversas notas simultaneamente". Esta técnica,
acompanhada de uma análise acústica, pode ser escutada na Antologia AST-4005, The Music ofTibet.
13. Consulte os cantos Veni creator spiritus e Kyrie Deus Sempiterne no Capítulo 2.
14. Em oposição ao ideal ascético cristão-medieval, situa-se o ideal tântrico da Índia e do Tibete: "Todas
as faculdades os sentidos, a emoção e o intelecto - devem ser encorajadas e despertadas ao seu
mais elevado grau". Philip Rawson, Tantra (London: Thomas and Hudson, 1973, p. 21). Será que es-
tes ideais opostos não estão refletidos nas diferentes escolhas da gama de freqüência audível nestes
dois tipos de música?
15. Carl Seashore em The Psychology of Music (New York: McGrah-Hill, 1938, p. 60-61). O número 1400
é dado como média; a acuidade de percepção varia de pessoa para pessoa.
16. Derivado de Van Bergeijk, Pierce e David, op. cit., p. 32-33.
17. O restante desta seção e das três seções seguintes é técnico. O leitor leigo pode omitir estas seções e
seguir para a seção intitulada "Cor sonora".
18. Olson, op. cit., p. 231.
19. Harvey Fletcher em Speech and Hearing in Communication (Princeton, N. J.: Van Nostrand, 1953, p.
188).
20. Ibid., p. 189.
21. Fletcher, op. cit., p. 193.

588 APÊNDICES
22. Urna análise deste teria que levar em conta ainda outro fator: o mascaramento.
Este aspecto não constitui um fator crítico para os propósitos da presente ilustração.
23. Portanto, db não são aditivos: 70 db + 70 db = 73 db, não 140 db!
24. De Siegrnund Levarie e Ernst Levy, Tone: A Study in Musical Acoustics (Kent, Ohio: Kent State Uni-
versity Press, 1968, p. 62).
25. Para saber os resultados efetivos do dobramento instrumental, veja o Capítulo 4.
26. Diferente dos decibéis, sones são aditivos.
27. Na literatura psicofísica, esta distância é denominada largura de banda crítica.
28. Batimentos acústicos, que resultam de adjacências muito próximas de alturas, são discutidos em
detalhes no Capítulo 4, A cor do som, na seção "Fenômenos de interferência". O número de batidas
por segundo (bps) é a diferença entre as freqüências muito próximas.
29. Jean-Phillipe Rameau, Cénération Harmonique.
30. Paul Hindemith em The Craft of Musical Composition (New York: Associated Music, 1937, Livro I,
p. 14-86). Além das razôes numéricas, Hindemith fundamenta sua teoria das consonâncias e dis-
sonâncias no fenômeno da combinação dos sons. O psicofisicista Plomp concluiu, entretanto, que
"sons combinados são, na prática, inaudíveis em relação aos níveis usuais de audição da fala e da mú-
sica". Por conseguinte, é "bastante improvável que sons combinados representem uma base consti-
tutiva da consonância musical, como Hindemith declarou". R. Plomp, Experiments on Tone Perception
(Soesterberg: Institute for Perception RVO-TNO, p. 44).
31. Olson, op. cit., p. 260.
32. Hemlholtz reconheceu (em 1863) que os intervalos podem mudar de significado em diferentes ins-
trumentaçôes e espaçamentos; Helmholtz, op. cit., p. 205-11.
33. Ibid., Capítulos I e II.
34. Ibid., p. 65.
35. Miller, op. cit., p. 171.
36. Olson, op. cit., p. 234.
37. Fritz Winckel, Music, Sound and Sensation, trad. T. Binckley (New York: Dover, 1967, p. 14).
38. Quando uma fundamental encontra-se sobre uma área formante, não há como uma determinada
vogal ser produzida. Por exemplo, as mulheres não podem cantar um "u" puro muito acima do Mi4
formante para esta vogal. Existem formantes secundárias; a partir destas, uma aproximação da vo-
gal pode ser atingida, porém não nos registros mais agudos das vozes femininas.
39. Hemlholtz, op. cit., p. 110.
40. Informaçôes mais detalhadas sobre as características da fala (masculina e feminina, sussurrada ou
falada, vogais e consoantes) podem ser encontradas em Fletcher, op. cit., Capítulos 1-5 e 18; R. K.
Potter, G. A Kopp, e H. G. Kopp, Visible Speech (New York: Dover, 1966); e Bertil Malmberg, Fonetics
(New York: Dover, 1963).
41. Potter, Kopp e Kopp, op. cit., p. 110.
42. Olson, op. cit., p. 212. Exemplos dos sons eletrônicos que discutimos podem ser escutados em The
Nonesuch Cuide to Eletronic Music (Nonesuch HC-73018).
43. Olson, op. cit., p. 213-214.
44. Paul Beaver e Bernard. Krause, o encarte da gravação The Nonesuch Cuide to Eletronic Music, p. 5 (No-
nesuch HC-73018).
45. Estes mesmos problemas são discutidos sob outro enfoque por Wayne Slawon, "Vowel Quality and
Musical Timbre as Functions of Spectrum Envelope and Fundamental Frequency", Journal of the
Acoustical Society of América, 43, p. 87-101, 1968.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 589


cantou um rãga

Krishnãnanda Vyãsa1

Os dois sistemas remanescentes do rãga - Hindustani (norte da Índia) e


Karnatic (sul da Índia) - provavelmente originaram-se, na antiguidade, de fontes
comuns. Ainda que divergente em seus detalhes, estes sistemas compartilham
várias premissas gerais. A terminologia e os exemplos apresentados pertencem
principalmente ao sistema do norte. 2 Esta apresentação altamente condensada
pretende definir algumas importantes semelhanças e diferenças entre o sistema
modal europeu e os sistemas de rãga, freqüentemente considerados modais.
Nos primórdios da antiguidade da Índia, três registros de oitavas eram reco-
nhecidos, mesmo no ato de cantar: "Na prática, existem três (oitavas ao cantar), a
inferior (ressoando no peito), a média (na garganta) e a superior (na cabeça). Cada
uma constitui-se no dobro da outra". 3 Enquanto o sistema modal europeu dividia
seu limitado espaço em uma única coleção de notas, os sistemas rãga dividem seu
espaço multirregistral em uma quase infinita diversidade de coleções de notas.
A idéia do rãga, de fato, parece ser a de descobrir cada nuance perceptível, comu-
nicável e disponível através das diferentes subdivisões do espaço. Tradicional-
mente, a teoria do rãga subdivide cada oitava em partes extremamente pequenas
(chegando até a sessenta e seis divisões dentro de uma oitava), a partir das quais
serão selecionados sons específicos para cada rãga. Posteriormente, através de
glissandos freqüentes e variados, todo o espaço interior do âmbito é percorrido e
ativado. O espaço musical é tratado como um continuum fluido, do qual cada rãga
é uma divisão temporária.
Ao descrever as subdivisões internas dos sistemas de rãga, pretendemos
minimizar as relações matemáticas na derivação dos intervalos. O sentido de
variedade intervalar contido em uma oitava pode ser compreendido sem o apro-
fundamento extensivo na matemática das dimensões intervalares. Isso se torna
especialmente desejável levando em conta que as relações matemáticas da deri-
vação intervalar (tanto a subdivisão teórica da oitava em sessenta e seis notas
quanto a subdivisão mais comum em vinte e duas) são descritas de formas va-
riadas, de acordo com as diversas fontes disponíveis sobre a música indiana. Em

590 APÊNDICES
•. u•.•U-HJ. ""'"'"··ª"'uv que as descrições
.,_, • • ~~. . u graus de precisão simplesmente nunca
4
na
Iniciemos com as sete notas básicas, que correspondem às notas do modo
•v•u~v europeu, também denominado ""''-cu.a

Sa Re Ga Ma Pa Dha Ni
Dó Ré Mi Sol Lá Si
(antigamente: Si~)

Entre essas notas, existem bemóis e sustenidos cromáticos. Além disso, pratica-
mente todas as notas sustenidas e cromáticas possuem diversas formas possí~
veis, sutilmente mais agudas ou graves. A seguir, a divisão em 27 notas sugere o
tipo de subdivisão da oitava geralmente utilizado nos rãgas do norte:

- Lá
60

Sol Lã b- Lá ~ Lã b+ Lá Lã + S! ,-- SI' - SI b Si+ Dó


' Si
80 20 80 40 20 20 80 80
e. e.

uma oitava 1200 cents


um comma = 20 cents
de

= grau cmmático na afinação Plt!l!lói·!ca

111 11.m com.ma abaixo


o dois commas abaixo
um comma acima

Uma nota, Ga (Mi), por exemplo, é concebida como uma área dentro do espaço de
uma oitava, ao invés '1.e um único ponto fixo. Não é possível limitar exatamente o
número ou as afinações das variantes disponíveis.
Nitidamente, esta não é uma subdivisão da escala em partes iguais. Certas
áreas do espaço são densamente subdivididas e outras não. As alturas amontoam-se

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 591


nam a formação
a seguir, se no século e
5
XVIII, talvez seja a mais Cada rãga
notas ou tetracardes. notas limites são
(ou alternativamente Dó e Fá#) e as notas superior, Sol e Dó. Os espa-
ços entre as notas limites são preenchidos duas notas adicionais.
demonstrado no Exemplo C.1, estas duas notas adicionais podem ser qualquer
uma (e, em última instância, todas) das combinações de duas notas disponíveis
na coleção cromática. Obtêm-se dessa maneira seis tetracardes inferiores dife-
rentes, cujas disposições intervalares podem ser duplicadas no tetracarde supe-
Da combinação de cada tetracarde inferior do Exemplo C.1 com cada um dos
tetracardes superiores, surgem 36 rãgas que apresentam sete notas diferentes.
Substituindo a nota Fá por Fá# em cada um destes rãgas, mais 36 são formados. 6

Ex:en:i.pllo C.1- Todos os tetracardes Dó-Fá e Sol-Dó possíveis

Estes 72 rãgas básicos são então sujeitos a procedimentos de alteração, que


produzem ainda outros rãgas:

- as notas que preenchem um tetracarde podem ser afinadas de acor-


do com as possibilidades de afinação descritas anteriormente (por
exemplo, Réb pode ser Réb Réb !,., ou Réi, b+). Cada variação de afi-
nação produz um novo rãga;
- algumas notas de preenchimento podem ser omitidas, embora em
nenhuma circunstância um rãga contenha menos do que cinco notas;
- as metades inferior e superior de um rãga podem conter mais do
que quatro notas, de maneira que um rãga totalize mais do que sete
notas;

592 APÊNDICES
- tetracordes inferiores com a nota Fá e Fá# ser combinados;
- em casos raros, mesmo as notas limites tetracarde nArlú>'n

ser alteradas ou omitidas;


'-uma ordem específica de apresentação (diferente da sucessão escalar
direta) pode ser prescrita.

Como resultado dessas operações, a quantidade de diferentes rãgas torna-se pra-

Em um rãga, as notas não são iguais: existem sons predominantes e subor-


dinados. Existem três funções enfatizadas:

1) A nota inicial e :final, Sa (Dó).


2) A nota predominante ou sonante (vãdi) "A nota sonante é a mais
usada durante a execução; esta nota é o (da melodia)". 7
3) consonante (samvãdf). Em um tetracarde no qual a sonante está
ausente, a consonante produz o mesmo relacionamento com o
tetracarde que a sonante realiza com seu tetracarde; geralmente,
encontra-se um intervalo @ ou <J) distante da sonante. "A samvãdf
sustenta a impressão criada pela vãdi, assim como os ministros exe-
cutam a ordem do rei". 8

nota inicial e final, Sa, pode atuar como sonante, consonante ou nenhuma des-
tas. Essa nota não está presente somente no início e no final, mas de maneira
contínua, como um bordão (drone note) permanente de acompanhamento, que é
característico da música indiana. Esse bordão fornece um ponto fixo, sobre o qual
todas as outras notas e intervalos são mensurados. sonante e a consonante
fornecem outros pontos de referência. Os sons não enfatizados de um rãga são
chamados de assonâncias. Sons que não pertencem ao rãga são dissonantes e não
podem ser utilizados.
A presença da sonante e consonante oferece ainda outra fonte de rãgas.
Uma coleção de notas pode se tornar um novo rãga através da seleção, a partir de
seus integrantes, de um novo par de notas predominantes. Tal escolha focaliza a
atenção, obviamente, nas relações intervalares formadas entre os sons predomi-
nantes e o restante tlo rãga. Ela destaca, conseqüentemente, certos aspectos dos
recursos intervalares de um rãga.
A estrutura tetracorda! dos rãgas fornece, portanto, um meio de forma-
ção de uma linguagem musical cujos elementos são reproduzidos e ampliados

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 593


(exemplos específicos são
"Existe grande entre as notas
de dois tetracordes. Em rãgas, a divisão dois tetracardes é
Como a sonante e a consonante apresentam relações
aos tons de seus tetracordes, a semelhança entre os •ffrv-,Nw~
tacada através destas notas. Intervalos formados pelo nota
predominante com as assonâncias de um são formadas da mesma
maneira que em outro tetracorde. "A samvãdi sustenta a impressão criada pela
vãdz". Dessa maneira, cada rãga cristaliza uma linguagem específica de notas e
intervalos enfatizados e de relacionamentos que são multiplicados e amplifica-
dos. Como Jairazbhoy conclui: "Um princípio básico emerge a de nossa
discussão, qual seja, que os rãgas mostram a tendência de alinharem-se em uni-
dades simétricas". 10 De fato, de acordo com a teoria indiana, cada rãga adquire,
por conseguinte, uma conotação expressiva muito específica, cada um expressa
seu próprio sentimento ou caráter e é considerado apropriado para um tempo es-
pecífico do dia ou do ano. O caráter de uma rãga resulta da amplificação específica
de seus recursos intervalares.
Três rãgas são mostrados no Exemplo C.2. Em cada um desses, estão ilustrados:

- as formas ascendente e descendente do rãga;


- a sonante e a consonante;
- algum dos recursos intervalares disponíveis reproduzidos no inte-
rior do rãga; estes grupos intervalares conferem caracterização pri-
mordial a cada rãga e são distintos entre si;
- uma frase ilustrando um típico desdobramento dos elementos do
rãga. 11

A essência da música indiana é a improvisação melódica baseada no rãga,


uma improvisação que "explora exaustivamente o rãga escolhido". 12 A improvi-
sação estende-se progressivamente por diversos registros e andamentos. O rãga
não necessariamente se cristalizará em uma melodia conhecida e explícita. Em
certos pontos da improvisação, existe sempre uma cristalização em padrões rít-
micos específicos (tãlas) que servem, como os rãgas, como base para a improvi-
sação. Juntos, o rãga e a tãla fornecem inúmeros recursos para a improvisação.
Durante uma improvisação, cada configuração e nuance dos recursos intervalares
do rãga podem ser utilizadas e exploradas. Em uma improvisação

os ciclos sucessivos geralmente aumentam em intensidade, criando, portanto, um efei-


to de espiral ascendente. Isso é obtido através do desenvolvimento de idéias melódicas

594 APÊNDICES
(por exemplo, a âmbito de um rãga), pela complexidade crescente
das variações rítmicas e melódicas e pela aceleração do andamento ... 13

- Três rãgas, suas células intervalares reproduzidas e frases típicas

b)

-,--.-
'--=~--i--~

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 595


Copirraite (1971) N. A. Jairazbhoy, reproduzido de The Rags ofNorth Indian Music, de N. A Jairazhboy, com
permissão da Wesleyan University Press e Faber & Faber Ltd., London. As transcrições são execuções de Vilayat
Khan (cítara) em uma gravação que acompanha o livro.

Cada rãga seleciona do sistema recursos de notas e intervalos e recria (a


partir de sua seleção) diversos relacionamentos intervalares específicos que são
amplificados em elevado grau. Em sua totalidade, o sistema oferece grande di-
versidade de coleções de notas provisórias (rãgas) e características intervalares.
Enquanto a música européia explorou somente uma coleção de notas, que con-
tém um limitado conteúdo intervalar específico, o conteúdo disponível na música
indiana aproxima-se do Conseqüentemente, o sistema modal europeu
forneceu somente recursos limitados para a música melódica. Após serem eles
explorados, a música européia concentrou-se na combinação de vozes e poste-
riormente em outros sistemas. A música indiana, no entanto, concentrou-se por
milênios em explorar o grande potencial melódico inerente aos sistemas de rãga.

596 APÊNDICES
1. Krishnãnanda Vyãsa, Rãga Kalpa-drume (1843); citado em Alain Daniélou, Northern Indian Music
(New York: Praeger, 1968, p. 12). Utilizado com permissão.
2. Utilizamos dados obtidos especificamente a partir do autor Daniêlou, op. cit., e N. A. Jairazbhoy,
The Rãgs ofNorthern Indian Music (Middletown Conn.: Wesleyan University Press, 1971). O segundo
livro foi lançado posteriormente ao nosso. Apesar de divergências nos detalhes, constatamos que
este livro corrobora muitos de nossos principais argumentos. Em diversas ocasiões, incorporamos
seus pontos de vista.
3. Shãrngadeva, Sangita-ratuãkava (início do século XX, mas retirado do anterior Sangita-makaranda);
citado por Daniélou, op. cit., p. 23.
4. Esta não é urna característica exclusiva da música indiana. Na música européia, a descrição usual da
afinação temperada como doze subdivisões iguais da oitava também é uma aproximação. O piano
não é afinado pelo sistema exato de temperamento. Se afinado desta maneira, não soa corretamente
(veja o Capítulo 4 e as notas 7 e 9 deste capítulo). W. D. Ward e D. W. Martin em "Psychophysical
Comparison of Just Tuning and Equal Temperament in Sequences of Individual Tones", Journal of
the Acoustical Society ofAmerica (maio, 1961), concluíram: "As evidências indicam que a preferência
de urna pessoa, na construção de escalas, é mais determinada pela sua história individual de audição
e execução do que por considerações matemáticas a priori".
5. Danielou, op. cit. ,p. 56-57.
6. Jairazbhoy prefere descrever tetracordes de Ré-Sol e Sol-Dó; Ré~ pode substituir Ré. O princípio é
o mesmo tanto em Daniêlou quanto em Jairazbhoy: embora existam muitos rãgas diferentes, cada
um reproduz certos intervalos selecionados - os intervalos limítrofes dos tetracardes e, freqüente-
mente, também os intervalos dos preenchimentos. O ponto principal de Jairazbhoy é que os rãgas
apresentam simetrias intervalares, é a simetria (ou reprodução dos intervalos) de cada rãga que lhe
confere seu caráter específico.
7. Somanãtha, Rãga-vibodha (1610); citado em Daniêlou, op. cit., p. 62.
8. · Ibid., p. 62.
9. Daniélou, op. cit., p. 57.
10. Jairazbhoy, op. cit., p. 151. Unidades simétricas são aquelas que reproduzem relações intervalares
similares. Em nossa terminologia, estas unidades amplificam o conteúdo intervalar comum.
11. As frases foram obtidas dos exemplos presentes em Jairazbhoy, op. cit., Apêndice B. Estas frases são
notações de performances de cítara de Ustãd Vilayat Khan, que pode ser escutado na gravação que
faz parte do livro de Jairazbhoy.
12. Ravi Shanker, nas notas de gravação para Angel 35468.
13. Jairazbhoy, op. cit., p. 31.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 597


Os elementos - tríades, escalas, progressões e,
de fato, o próprio sentido de tonalidade - podem ser ampliados de suas
formas mais simples. Aspectos aparentemente estranhos podem ser integrados,
portanto, aos elementos tonais. As tríades, escalas e progressões lineares-har-
momcas novas notas e membros, incorporando novas possibilidades
musicais e expressivas. Neste momento, examinaremos alguns tipos de exten-
são. À medida que a música tonal consiste em progressões lineares e harmônicas
de tríades, as extensões são propriamente concebidas como extensões de tríades:

- acordes de sétima;
- inversões;
- conexões lineares e elaboração de tríades;
- alterações cromáticas.

Em breve, constataremos que a ampliação de um elemento do sistema tonal am-


plia simultaneamente outros elementos.

ACORDES DE SÉTIMA

O princípio das harmonias construídas por terças produz, através da adi-


ção de mais uma terça à tríade, o acorde de sétima (Exemplo D.la). A sétima da
harmonia também pode ser considerada como uma conexão linear com uma nota
da próxima tríade, na qual a sétima resolve por movimento descendente em grau
conjunto (no Exemplo D.lb-D.ld, a sétima, Fá, conecta com o Mi, que é a sua re-
solução). Portanto, acordes de sétima criam:

- sonoridades mais ricas que as tríades;


- um fluxo linear bem conduzido entre as harmonias.

Como a sétima deve conectar-se linearmente com um som da tríade seguinte, os


acordes de sétima não são conclusivos.
No Capítulo 2, constata-se que as progressões tonais lineares-harmônicas
movimentam-se para I através de Quando V agrega uma sétima (V 7 ), o sentido
de I como um objetivo é ressaltado. A harmonia I é então necessária tanto como
objetivo da movimentação de fundamentais por cadeia de quintas quanto para
resolver a sétima da harmonia V 7 (como nos exemplos D.lb-D.ld). Portanto, V

598 APÊNDICES
V7, ou seJa,
.

demonstra este recurso, é uma área rica, que


""~-"~"elaborações de passagem e por bordaduras de V ;
7
menor,
1
mudanças registro e arpejação - extensões tonais explicadas nas próximas
páginas. Sua base subjacente consiste na suspensão da prolongação de V7,
no aguardo de sua resolução final para I.

li:lll:enntpllo D.2 - W. A. Mozart: Sonata para piano em Sib maior, K. 570, primeiro movimento,
compassos 125-136

""
elabo1:aci:ies através de notas de passagem bordaduras
deslocamentos de r""ldt·o

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 599


Acordes de sétima são mais comuns na dominante, porém podem ser
formados em qualquer fundamental de uma progressão. A presença da sétima,
no entanto, demanda sua resolução. Brahms, em Wach'auf (Exemplo 2.43),
desenvolve longas cadeias de acordes de sétima. Cada harmonia resolve a sétima
da harmonia precedente e, ao mesmo tempo, apresenta sua sétima, resolvida
então na próxima harmonia (compassos 5-6, por exemplo). Como o Exemplo
D.3 mostra, os acordes de sétima em diferentes graus da escala produzem ampla
variedade de estruturas intervalares, dependendo dos tipos (maior ou menor)
terça e sétima desta tríade.

Exen:1pl:o D.3 - Estrutura intervalar do acorde de sétima

acorde de

acorde de

Ocasionalmente, a lógica das harmonias construídas por terças é ampliada


para além das sétimas, de maneira a produzir o acorde de nona (Exemplo D.4).
Nesta harmonia, tanto a sétima quanto a nona resolvem linearmente por movi-
mento descendente em notas da harmonia subseqüente.

600 APÊNDICES
-O nona

A inversão de tríades foi um dos conceitos de Rameau mais problemáticos e


debatidos. Rameau sustentava que qualquer nota da tríade (ou do acorde de séti-
ma) poderia ocorrer no baixo sem afetar a fundamental da harmonia ou a função
De acordo com esse pressuposto, a das três harmonias no
Exemplo D.5 seria considerada a nota Sol e todas estas harmonias funcionariam
como tríades da tônica da tonalidade de Sol maior. É de se duvidar, contudo, que
alguém (exceto estudantes mal-orientados) tenha aceito completamente esta for-
mulação. Sempre que uma forte afirmação da função tonal fazia-se necessária
- em inícios, cadências e finais - os compositores (incluindo Rameau) utilizavam
tríades com a fundamental no baixo, não as inversões.

segu.nda inversão:

Examine o Exemplo D.6. A função tônica não ocorre no* do compasso 9


(uma aparente tríade de Sol maior), mas sim com a presença da nota Sol no baixo
e no soprano do compasso No momento do *, as linhas do soprano e do baixo
A

ainda estão se movimentando em direção a 1- I. No compasso 9, a função do baixo é


V, definida pela nota Ré no baixo e confirmada harmonicamente no terceiro tem-
po. No ponto*, as notas Si e Sol no soprano são lineares em sua origem; Si conduz

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 601


a soprano de c4-3-2) e a nota
As notas Si e são conexões lineares
V (estas notas são necessariamente conexões, em vista da
nificativa da nota Si). Uma análise que considere * como sendo 1 está
na medida em esta interpretação obscurece o verdadeiro progres-
são linear-harmônica e o em a este Este ponto
é nada é mais vital para o entendimento e a execução da música
uma percepção clara da progressão em direção aos seus

lixen1pllo D.6 - W. A. Mozart: Sonata para piano em Sol, K. 283, primeiro movimento, com-
passos 8-10

Rameau pensava que as harmonias (tríades) definiam o baixo. Constata-


mos, ao contrário, que (no * do exemplo de Mozart) o baixo define a função har-
mônica. A harmonia confirma esta função quase imediatamente. Esse é inevi-
tavelmente o caso quando um acorde I ! aparente é diretamente seguido por V.
Esta harmonia sempre funciona como elaboração da dominante, a função tonal
contida na voz do baixo.
e:)
o sentido tonal de uma harmonia em segunda inversão é, portanto, de-
pendente da nota do baixo e do contexto harmônico da passagem. Em Wach'auf
de Brahms (Exemplo 2.43), ! aparentes soam nos compassos 1-2. Nesse exemplo,
estes acordes resultam da extensão de I, no tempo e no espaço, - através de frag-
mentação, arpejação e deslocamentos de registro. Como as notas Ré dos compas-
sos 1-2 não são notas de baixo fortemente enfatizadas nem tampouco são harmo-
nicamente confirmadas, não atuam como fundamentais independentes. As notas

602 APÊNDICES
compassos 1-3 definem a e
destes compassos. Nesse caso, a
e sexta a à definida pela nota Sol no baixo.
teoria de inversão de Rameau também é (se literalmente observa-
para em primeira inversão. Examine o Exemplo D.7. O baixo
destas duas progressões comuns apresenta I-IV-V-I: a tônica e seus rela-
cionamentos primários. Entretanto, somente a análise da primeira progressão
(Exemplo D.7a) está correta (de acordo com os princípios de Rameau). A segunda
progressão é comumente analisada como no Exemplo D.7b; tal análise ignora a
função de subdominante implicada em seu baixo. A análise do Exemplo D.7b é
tão questionável que o próprio Rameau abriu uma exceção para este caso. Ele o
considerava como uma harmonia IV com uma "sexta adicionada" - uma "adição"
triádica que contradiz a premissa fundamental (harmonias construídas em ter-
ças) de seu sistema.
Consideremos outro exemplo: a segunda harmonia do Exemplo D.6 é IV6.
Caso esta passagem fosse recomposta como no Exemplo D.8, a função seria
mais fortemente expressa pelo baixo, ainda que a harmonia substituta, que ex-
pressa o sentido de IV, não seja um IV!

Exemplo D.8 - Recomposição do Exemplo D.6

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 603


Existe, uma LL•.~L"
sua função como
adjacências ao invés
este acorde
É o contexto musical deve esclarecer o
contexto) desta "inversão" """"Lª· cuja natureza intrínseca é tão
ambígua. Esta mesma harmonia de maneira em três contextos
diferentes, conforme o resumo Exemplo D.9. análise em caso tem
objetivo descrever, da maneira precisa, sua função efetiva de acordo com o
contexto:

exemplo 9a I-IV-V-I duas conexões por


conectando as tríades primárias, que
são enfatizadas pelo baixo
exemplo D.9b ~-V-I uma cadeia de quintas que chega a I
através de V; o movimento Lá-Ré-Sol
é enfatizado elaborações similares
de Lá e Ré
exemplo D. 9c I-V-I elaboração linear de V

A teoria de Rameau proclamava que toda triádica apresentava


uma fundamental e que toda a lógica da música dependia do movimento entre
fundamentais. Para compreender uma peça de música, Rameau era obrigado,
portanto, a atribuir uma única fundamental dominadora para cada harmonia.
Atualmente, está esclarecido que o sistema tonal é tão mais complexo e ao mes-
mo tempo mais simples do que a proposição original deste compositor. A
tidade tonal de algumas tríades é perfeitamente óbvia, ao passo que a de outras
é ambígua ou mesmo ausente. Nesse último caso, a identidade nota do baixo

604 APÊNDICES
com

em seu

A experiência oferece a variedade de harmonias, capazes de infinita diversidade, porém


que nos confundiria sempre, caso não procurássemos outra causa para seu A
razão, entretanto, nos apresenta um único principio harmônico, cujas propriedades são
facilmente determinadas. 2

prática errônea d~ Rameau de examinar tríades isoladas, sem considerar sua


função contextual, torna seu sistema deficiente. Nos exemplos anteriores, vimos
como a aplicação cega das regras do sistema analítico de Rameau obscurece (mais

SOM E MÚSICA A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 605


do que revela) o papel das
quase dois séculos,
ensível e a teoria de análise harmônica de
da ª"~v·-~~
Felizmente, as revisões sistema os ajustes necessários. O
reconhecimento das funções lineares e de suas múltiplas funções possibilitou
uma descrição da música tonal mais de acordo como a que percebemos em seu
desenrolar efetivo, acarretando mudanças significativas no processo analítico.
Anteriormente, a análise tonal era um simples sistema de preenchimento, cujas
categorias freqüentemente não correspondiam ao fenômeno musical percebido
(como vimos anteriormente, quando harmonias que funcionam como V eram ca-
tegorizadas como I, e IV como II). A revisão tornou a análise um ato "interpreta-
tivo": decisões são tomadas em relação às movimentações fundamentais de um
contexto musical e sobre os papéis efetivos destes membros nestas movimenta-
ções. Longe de ser automática e fácil (um dos objetivos de Rameau), esta aborda-
gem está focalizada na questão de como um evento tonal verdadeiramente ocorre
e é ouvido. Tal abordagem apresenta um elevado grau de dificuldade. Entretanto,
em troca da dificuldade, o processo analítico torna-se diretamente relevante às
decisões fundamentais sobre a compreensão e a execução de obras tonais, re-
velando os objetivos musicais e a maneira como são atingidos. Este raciocínio é
especialmente pertinente em relação às inversões, que exigem uma percepção
sutilmente adequada para a identificação correta de suas funções.
Resumindo:

- ao invés de assumir que as inversões expressam uma função de fun-


damental, entendemos que estas não precisam necessariamente as-
sumir tal função;
- estas inversões podem prolongar uma função estabelecida ante-
riormente por um baixo fundamental (como nos compassos 1-3 do
exemplo de Brahms);
- elas podem produzir a elaboração linear de uma harmonia estabele-
cida por um baixo fundamental (como no Exemplo D.6, compasso
9) ou integrar parte de uma movimentação linear que conecta duas
fundamentais;
- quando a harmonia invertida não puder ser explicada destas manei-
ras, a tríade deve ser explicada como uma função tonal fundamental
e ela deve ser designada por um numeral romano. Entretanto, a fun-
ção tonal pode ser desempenhada pela fundamental (como descrito

606 APÊNDICES
o

LOCAL E LINEAR DE HARMONIAS

Embora de maneira limitada, Rameau reconheceu a existência de elabora-


ções a elaboração uma única nota da tríade por uma nota adjacente.
Estas "notas dissonantes não-harmônicas", como são chamadas na tradição da
análise harmônica, podem ser agrupadas em diversas categorias:

nota de passagem (P) Preenche o espaço entre duas notas triádicas, cons-
(Exemplo D.lOa) tituindo uma adjacência entre elas; as notas da
tríade podem ser membros da mesma tríade ou de
duas tríades sucessivas diferentes.
Geralmente, ocorre entre os tempos do compasso;
quando ocorre diretamente no tempo, é denomi-
nada de "nota de passagem acentuada". Esta possi-
bilidade é menos freqüente do que a anterior. No-
tas de passagem são possíveis em todas as vozes.

bordadura (ou nota Adjacente a uma nota da tríade, ocorre diretamen-


de retorno) (R) te entre duas ocorrências da mesma nota da tría-
(Exemplo D.lOb) de. Portanto, após a elaboração, retorna~se à nota
da tríade.
Ocorre sempre numa posição rítmica fraca, entre
acentos ou tempos. É possível em todas as vozes.
É freqüentemente chamada de "nota vizinha", um
termo que reservamos para o fenômeno seguinte.

nota vizinha (N) Uma nota adjacente a uma nota da tríade, ocor-
(Exemplo D.lOc) rendo tanto antes ou depois desta (mas não uma
P ou R).
Ocorre em posições rítmicas fracas.
É menos comum do que as notas de passagem e
retorno.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 607


e

Resolve em uma nota

descendente.
Na música século era um
elemento expressivo e extremamente
necessitando especial de
execução:

A apojatura é mais intensa do que a nota seguinte,


incluindo qualquer ornamentação adicional, e deve
ser conectada a esta nota por legato na ausência as-
sim como na presença da ligadura. 3

O acento deve sempre recair, tanto na apojatura cur-


ta quanto na longa, na própria apojatura, sendo que
a nota da resolução (a nota da melodia ou harmôni-
ca) é mais suave. 4

suspensão (S) Como a AP, ocorre em uma posição rítmica forte e


(Exemplo D.10e) move-se por grau conjunto para sua resolução rit-
micamente mais fraca (geralmente por movimento
descendente).
A suspensão é preparada por uma nota da tríade na
harmonia anterior à suspensão, e é freqüentemen-
te ligada à tríade precedente, sem um novo ataque.
Ela pode ocorrer em qualquer voz.

antecipação (AN) Estritamente falando, não é uma adjacência, mas


Exemplo D.10f uma nota que soa antes da ocorrência da harmonia
da qual faz parte. Ocorre numa posição rítmica fraca.
Quase sempre ocorre na voz melódica primária e
no final de uma frase, seção ou movimento.

608 APÊNDICES
locais

e)

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 609


Bach;

Percebe-se, no Exemplo D.10, que cada forma de elaboração linear ocorre


quase sempre em sua passagem como uma célula característica que pode ser con-
tinuada ou desenvolvida. Os diferentes tipos de elaboração não são misturados
de maneira aleatória. De fato, um tipo de elaboração (ou uma mistura específica
deles) pode ser explorado como base para uma frase, seção ou mesmo para toda
a obra. O caráter expressivo de uma obra musical resulta, com freqüência, di-
retamente da natureza desta elaboração. Movimentações com uso de notas de
passagens geralmente produzem passagens fluidas e movimentadas. As longas
dissonâncias acentuadas e as suspensões geram tensão expressiva. A repetição
de uma elaboração colabora na afirmação de um caráter expressivo específico.

610 APÊNDICES
a lógica das ela-
uma ou mais células que produzem um cará-
ter expressivo específico.

Os exemplos tonais examinados até o momento utilizam somente a cole-


ção escalar de sete notas, provenientes da tonalidade intacta. Os processos que
regulam o relacionamento entre as sete notas podem, entretanto, ser ampliados
de maneira a produzir notas que não estão na coleção tonal: as notas da coleção
cromática de doze sons.
Os exemplos mais simples de ampliação cromática consistem nas elabora-
ções cromáticas: P, R, N, AP e assim por diante, conforme a categorização definida
na seção anterior. Como o Exemplo D.11 demonstra, essas elaborações podem
ocorrer como adjacências cromáticas (e diatônicas), elaborando e conectando no-
tas das tríades. De forma alguma estas elaborações alteram as notas das har-
monias tonais, ao contrário, se movem ao redor ou entre estas notas (obtidas da
coleção tonal) que definem a progressão tonal.
A tonicização, uma segunda categoria de cromatismo, produz efeito sobre
as notas das harmonias tonais. A tonicização significa que os membros de uma
progressão tonal (à exceção da tônica) são tratados como se fossem uma tôni-
ca. No caso mais simples, uma harmonia que não seja a tônica é precedida por
sua própria dominante (ou dominante com sétima). Na progressão tonal funda-
mental (cujas fundamentais estão relacionadas por quintas), isso pode ser obtido
elevando a terça da harmonia menor, convertendo tríades menores e menores
com sétima em tríades maiores e dominantes com sétima (Exemplo D.12). Por-
tanto, no Exemplo D.12a, a harmonia V é tonicizada; nesse caso, uma tríade de
Sol maior precedida pela dominante da tonalidade de Sol maior (um acorde de Ré
com sétima). No exemplo D.12b, tanto II quando V são tonicizados.
Nesses exemplos simples de tonicização, a progressão das fundamentais
não é de maneira alguma afetada: a cadeia de quintas direciona-se para I, como
sempre. As harmonias construídas nesta progressão de fundamentais são alte-
radas, incorporando notas cromáticas. A tonicização é um meio de ênfase: assim
como a tônica é enfatizada como objetivo de sua V precedente, também uma tría-
de tonicizada é enfat:i.zada. De fato, por causa da alteração cromática, tanto a "tô-
nica" temporária quanto sua "dominante" constituem-se em eventos especiais no
fluxo harmônico. A tonicização deve ser indicada na análise tonal, pois a função
destes eventos cromáticos especiais deve ser sempre claramente reconhecida. 5

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 611


- Joseph Haydn: Sonata para piano em segundo movimento

D.12

lu11:mo1nia tonidzada

O Exemplo D.13 ilustra com mais detalhes o processo de tonicização. No


Exemplo D.13a, o objetivo da primeira movimentação linear-harmônica, V, é to-
nicizado. Essa tonicização enfatiza seu papel - uma harmonia primária atuan-
do como objetivo de uma movimentação tonal: . No exemplo D.13b,

612 APÊNDICES
Cada nova tonicização a célula V-Idos compassos 1-2 em um novo
nível (compassos 5 e - IV; IF - V). análise mostra como a "~·-.. ~·
zação transforma a ascendente da produzindo (na tonalidade de
maior) sonoridades inesperadas (Dó# e Ré#) posteriormente
retornam às suas formais originais a descendente que retorna
a frase é, ao mesmo tempo, lógica e aw-1.a<-•voa.
A tonicização ser mais elaborada as possibilidades apresenta-
das nestes exemplos. Uma pode ser tonicizada por do sua do-
podendo ser precedida por toda uma progressão que prossegue em
reção à harmonia tonicizada como se esta fosse uma tônica. No Exemplo D.14, o
II tonicizado (compassos 4-6) é apoiado pelos seus próprios IV e V, assim como o
I inicial foi estabelecido por estas mesmas harmonias primárias. Dessa maneira,
uma ampla progressão tonal por quintas em direção à dominante (VI - é
elaborada durante uma frase inteira.
A instância da tonicização consiste na modulação. Na modulação,
uma harmonia que não seja I é tratada como se fosse a tônica por um período
de tempo relativamente longo, é repetidamente atingida através das próprias
progressões de quintas e serve de objetivo para as próprias movimentações
neares. Enquanto na tonicização a progressão move-se rapidamente através da
harmonia tonicizada para a tônica original, na modulação o sentido de tônica é
temporariamente alterado. A "nova" nota (com sua própria tríade) momentanea-
mente adquire o sentido e a sensação de ser uma tônica objetivo. 6 A modulação
produz um paradoxo, na medida em que os ouvidos tonalmente educados acei-
tam a "nova tônica" como objetivo da movimentação tonal, mesmo sabendo que
esta "tônica" é, em última instância, instável e que será por fim substituída por
um movimento posterior em direção à tônica original.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 613


614 APÊNDICES
Embora as modulações proporcionem uma sensação distinta dos eventos
tonicizantes mais breves, seu sentido fundamental é o mesmo. Analisadas na
mais ampla perspectiva, as tônicas inicial e final da peça, junto com aquelas es-
tabelecidas pela tonicização temporária e por modulações mais extensas, produ-
zem uma movimentação e progressão harmônica de larga escala características.
A harmonia enfatizada pela modulação é um membro desta progressão harmô-
nica-linear de amplo alcance. Essa harmonia enfatizada pode ser tanto parte da
movimentação tonal por quintas nesta progressão como uma adjacência linear
a uma harmonia que faça parte desta progressão. Como os processos tonais de
larga escala já foram discutidos no Capítulo 2 (veja as análises de Wehmut e Du bist
die ruh de Schubert), em nome da concisão não os ilustraremos neste momento.

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 615


gesehen", do Frauenlíebe und Leben

O retângulo indica uma tonicização prolongada de uma harmonia. A harmonia tonicizada é


anotada (de acordo com a tonalidade original) na pequena caixa no início do retângulo. Todas
as outras harmonias do retângulo são então calculadas como se a harmonia tonicizada fosse
a tônica de sua tonalidade.

616 APÊNDICES
Não ternos esforços claro o sentido das progres-
sões tonais. tonalidade resulta de uma progressão linear-harmônica em
reção à tônica. As harmonias dessas progressões podem ser ornamentadas por
notas elaboradoras adjacentes, definidas na terceira seção deste apêndice. Vimos
também que as inversões (em alguns contextos) também desempenham funções
lineares, tais corno continuar, conectar e ornamentar as harmonias mais forte-
mente definidas. Entretanto, para compreender plenamente o papel linear das
harmonias, é necessário perceber que as harmonias podem apresentar as mes-
mas funções elaboradoras e conectivas das notas simples: função de passagem,
bordadura e vizinhança. Cada um desses casos é ilustrado no Exemplo D.15. Nes-
tas passagens, certos eventos podem ser explicados de duas maneiras:

- como harmonias que desempenham funções tonais;


- ou como movimentos lineares simultâneos em diversas vozes.

Reconhecemos as alternativas e geralmente preferimos a descrição linear.

Exemplo D.15

a) Robert Schumann: ,do

a)

b) Franz Schubert: .Moments musicaux, rrúmero 2

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 617


Examine o Exemplo D.15a. Ao considerar os eventos que ocorrem em *
como uma movimentação de passagem simultânea nas três vozes, a progressão
harmônica torna-se IF-V 7-I, uma movimentação tonal direta por quintas em
reção a L Caso os eventos em * fossem considerados como uma harmonia I6 ,
a progressão seria II~-l 6 -IF-V 7 -l. Qual o sentido tonal de II~-1 6 , na medida em que
esta não é uma progressão por quintas? Qual é, o de a
6
progressão? Se I é o objetivo da música tonal, por que 1 ocorre tão brevemente e
em uma posição rítmica fraca? Por que esta harmonia soa tão pouco como um ob-
jetivo? Considerar esta sonoridade momentânea como I obscurece o sentido das
harmonias e da movimentação tonal. É crucial, portanto, entender quais sonori-
dades de uma passagem formam sua progressão tonal básica e quais elaboram ou
conectam linearmente estes membros (veja também os Exemplos D.15b e D.15c).
Para a compreensão da música tonal, cada harmonia deve ser examinada
para determinar se ela possui peso estrutural como membro de uma progressão
tonal básica ou se seu papel é o de conexão ou elaboração linear. Os exemplos
finais, D.15 e D.17, mostram progressões que se utilizam dos ricos recursos de
elaboração, conexão e extensão linear, assim como do cromatismo tonicizante.
Esses recursos são empregados para acentuar os relacionamentos tonais básicos
ao invés de obscurecê-los. No Exemplo D.16, as harmonias primárias, IV e V, são
os objetivos das movimentações lineares de passagem nas vozes soprano e baixo.
As harmonias tonicizadas conduzem para IV e V, as sonoridades cromáticas

recionam o foco de atenção para IV e V [(Fá# --7 ~~;Sol# --7 t) ], sublinhando


sua importância. A importância estrutural da chegada em IV e V é ainda mais
enfatizada (nesta frase) pelos deslocamentos de registro e pela :figuração nestes
pontos. Caso numerais romanos tivessem sido atribuídos a cada harmonia desta
passagem, o resultado seria um retrato muito mais confuso, sem um sentido de
fluxo direcional ou de objetivos tonais.

618 APÊNDICES
D.16 - V'lr A. rvfozart: Fantasia em Ré menor, K 397, compassos 1-13

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 619


lix.e:ntpJ.o D.17 - W. A. Mozart: Rondá em Ré maior, K. 485, compassos 125-148

620 APÊNDICES
(dois esboços lineares-harmônicos da passagem, o esboço de baixo elimina as redundâncias)

O Exemplo D.17 é particularmente interessante. Sua progressão tonal básica (I-


-Vi-H6-V7-I) é enriquecida e elaborada, formando um longo circuito tonal de 24 com-
passos. Enquanto as quintas definem os estágios sucessivos da progressão do circuito,
as adjacências unem a movimentação em um único fluxo linear, especialmente aquelas
presentes na linha do baixo, que apresenta uma movimentação de passagem para
(Sol), seguida por um foco em (Lá) que é elaborado por bordaduras cromáticas. No
decorrer da passagem, as notas cromáticas adicionadas acentuam os membros cruciais
da progressão tonal: Lá# ~ Si (VI) tonicizando VI e Ré# ~ Mi (II) tonicizando II. A
segunda metade dp circuito contém os traços mais inventivos. Na elaboração de V por
seu vizinho cromático adjacente (bVI), as notas cromáticas anteriores adquirem novos
significados. Ao invés de Lá#~ Si, Si~ elabora Lá; ao invés de Ré#~ Mi, Mi~ ornamenta

SOM E MÚSICA: A NATUREZA DAS ESTRUTURAS SONORAS 621


Portanto, as a
e sua
A elaboração urna inflexões
7
ares e tonais. última instância, a passagem todas as doze notas
cromáticas em urna variedade de significados
sivos). Ainda assim, os princípios subjacentes à

- progressões de harmonias
- movimentação (e elaboração) através
espaciais.

De fato, as adjacências espaciais elaboradoras e as notas cromáticas adi-


cionadas sempre esclarecem os membros da progressão tonal estrutural. Dessa
maneira, provou-se possível estender o significado de sonoridades, linhas e pro-
gressões tonais. A progressão tonal básica floresceu de seu germinal (urna
sucessão de umas poucas tríades conectadas por quintas) para gerar frases, se-
ções e obras musicais inteiras - todas estas formas elaboradas e expandidas dos
mesmos relacionamentos germinais.

622 APÊNDICES
l, O arpejo é a ocorrência sucessiva das notas de uma harmonia, ao invés de sua ocorrência simultânea,
É uma técnica simples e comum para estender uma harmonia no espaço e no tempo,
2, Jean-Philippe Rameau em Traitê de l'Harmonie (Paris: Ballard, 1722), Livro II, Capítulo 18, Art,1,
trad, O Strunk; citado em O, Strunk, ed" Source Readings in Music History: The Baroque Era (New
York: Norton, 1965), p, 207,
3, C P E, Bach em Essay on the The Art of Playing Keyhoard Instruments, ed, e trad, W, J, Mitchell (New
York: Norton, 1949, p, 88),
4, Leopold Mozart, A Treatise on the Fundamental Principies ofViolin Playing, trad, E, Knocker (London:
Oxford University Press, 1948, p, 171),
5, Uma harmonia alterada de maneira a agir como uma dominante tem sido freqüentemente deno-
minada dominante secundária, Na análise, esta dominante tem sido às vezes indicada por V/V, sig-
nificando o V de V Nós preferimos nossa indicação, pois o quadrado pontilhado mostra claramente
que a harmonia que está sendo enfatizada é a harmonia tonicizada e que nenhuma alteração (ou
distorção) da progressão por quintas ocorre na progressão dos numerais romanos,
6, De fato, um elemento comum da modulação é a obliteração da tônica original através de alterações,
Portanto, uma modulação na tonalidade de Mib de I para V incluirá, em algum momento, a nota Mi~
ao invés de Mib, O Mi~ oblitera, temporariamente, a tônica Mib (veja Beethoven em Sonata para piano
em Mib, op, 31, n 3, primeiro movimento, compassos 40-45),
7, Compare as Variações para piano de Webern, terceiro movimento (discutido no Capítulo 2), Nesta
peça, o princípio mozartiano é sistematizado, de maneira que cada nota apresente dois relaciona-
mentos diferentes de semitom,

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