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Do Planejamento à Ecologia:

nascimento de um novo
paradigma da ação sobre a
cidade e o habitat? * 1

Christian Topalov

É a partir de dois pequenos textos que Movement e, em seguida, emigrou para


eu gostaria de tentar formular a questão o Canadá. Eis o trecho:
que será o objeto desta exposição. Meio
século separa o primeiro do segundo.
“[...] Para o observador superficial,
o planejamento urbano para as diversas
Para começar, escutemos os auto- utilizações do solo parece ter sido feito
res do Regional Plan of New York, ope- pelo Chapeleiro Louco no chá de Alice.
ração pioneira de estudo sistemático de Algumas das pessoas mais pobres vivem
uma grande metrópole, lançada em em casebres situados em terrenos de
1921, sob os auspícios da Russel Sage grande valor. [...] A dois passos da Bolsa
Foundation. O projeto foi dirigido por de Valores, o ar está repleto do aroma
Thomas Adams, um britânico que figu- das torrefações de café; e a uma centena
rava entre os fundadores do Garden City de metros de Times Square, do fedor

* Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira.


1
Conferência proferida na V Conferência Internacional de Pesquisa sobre o Habitat, Montréal,
19 8 2 .

Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XI, N os 1 e 2, 1997, p. 19-42


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dos matadouros. [...] Tal situação é um a hipótese admitida cegamente de uma


ultraje ao sentido da ordem. Tudo pare- possibilidade de crescimentos ilimitados
ce estar no lugar errado. Sente-se a von- e se, ao tomar consciência do fenômeno,
tade de arrumar esse bricabraque e não for desencadeada uma ação en-
colocar as coisas no lugar.” 2 quanto é tempo.” 3

Escutemos agora Robert Lattès, um Ambos os textos trazem a marca da


matemático e membro do Clube de autoridade da ciência. Com exceção
Roma, na introdução que escreveu para dessa característica comum, funda-
a edição francesa de The Limits to mental, eles se opõem em todo o resto.
Growth, em 1972, alguns meses depois A tonalidade do primeiro é a irritação, a
de esse estudo ter saído dos computado- do segundo, a angústia. Os planejadores
res do System Dynamics Group do MIT: da Russel Sage Foundation encontraram
uma ordem escondida sob a desordem
“Diariamente, um nenúfar duplica aparente e empreenderam a definição
sua superfície em um lago. Sabendo que dos meios para remediar tal desordem.
precisa de trinta dias para cobrir o lago, É necessário colocar tudo no lugar para
sufocando todas as formas de vida que a razão leve a melhor e o progresso
aquáticas, em que momento terá cober- tenha continuidade. Quanto aos espe-
to metade, último limite para agir? Ainda cialistas do Clube de Roma, decidiram
crianças, ficávamos perturbados com a que a própria ordem – a ordem da pro-
resposta, no entanto, evidente – 29 o dia. gressão geométrica – continha a de-
Essa brincadeira ilustra um fenômeno sordem. A razão só levará a melhor se
matemático fundamental: o crescimento houver mudança da própria razão.
exponencial em um campo finito. Fun-
damental porque o mesmo se passa com Sublinharei outras duas diferenças:
todas as formas de crescimento, em par- a escala e a metáfora. A escala do dis-
ticular, demográfico e econômico, em curso planejador é a cidade ou a região
nosso planeta. Mas que se tornará dra- metropolitana; além disso, este é dirigido
mático se não for colocada em questão às autoridades administrativas corres-

2
“[...] The assignment of the land to the various uses seems to the superficial observer to have
been made by the Mad Hatter at Alice’s tea party. Some of the poorest people live in
conveniently located slums on high-priced land. [...] A stone’s throw from the stock exchange
the air is filled with the aroma of roasting coffee; a few hundred feet from Times Square with
the stench of slaughter-houses. [...] Such a situation outrages one’s sense of order. Everything
seems misplaced. One yearns to rearrange the hodge-podge and to put things where they
belong.”, in Committee of the Regional Plan of New York and Its Environs, Regional Survey
of New York and Its Environs, New York, Regional Plan of New York and Its Environs, v. 1, p.
31, 1929.
3
Robert Lattès, Prefácio de Halte à la croissance? Paris: Fayard, 1972. p. 5 (edição francesa
de The Limits to Growth).
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pondentes. Quanto à escala do discur- A emergência de um novo paradig-


so do ambientalista, é o planeta e diri- ma? Acompanhemos durante alguns
ge-se à humanidade inteira. A metáfora instantes a análise das “ideologias do
utilizada pelo primeiro pertence ao cam- meio ambiente” propostas, em 1976,
po da cultura: trata-se de um conto e, por Timothy O’Riordan. Passaram-se
através da fala de Alice, Lewis Carrol quinze anos e, na época, já era possível
irá permitir-lhe que volte a passar para pôr em evidência as características es-
o nosso lado do espelho. A metáfora do senciais de duas modalidades opostas
segundo é extraída da natureza: trata- do ambientalismo passado e atual. O
se de uma planta e, talvez, seja tarde autor designava uma por “techno-
demais para interromper o crescimento centric ” e a outra por “ecocentric ”. O
silencioso do nenúfar que mata. modelo qualificado de “tecnocêntrico”
é baseado na perícia que se legitima
Escolhi esses dois textos, mas pode- como racional e eficaz e recorre a
ria ter escolhido dezenas de outros em métodos objetivos e intervencionistas.
cada um dos dois universos que os pro- Quanto ao modelo dito “ecocêntrico”,
duziram. Sua justaposição faz surgir uma é construído em torno de dois conjuntos
questão. As propriedades do discurso da de temas distintos. Por um lado, preco-
salvaguarda do meio ambiente não niza a autonomia das comunidades e a
serão radicalmente diferentes das pro- democracia participativa e faz apelo a
priedades do discurso do planejamento formas de organização em pequena
racional? Este é resultado de uma cons- escala. Por outro, legitima-se por uma
trução histórica antiga que deu uma bioética do respeito aos ecossistemas
linguagem comum a inúmeros atores naturais e baseia nela alguns direitos e
sociais, poderosos e diferentes, e marcou uma moralidade naturais. 4
profundamente a modernidade do sécu-
lo XX. Seremos, hoje, as testemunhas De uma forma um pouco abstrata,
de uma ruptura cognitiva e prática de talvez, tudo é dito em algumas frases de
amplitude comparável à da substituição um confronto que estava dando os pri-
de um paradigma por outro? meiros passos. O autor desvendava duas
tendências no próprio âmago das ideo-
Eis a questão que eu gostaria de dis- logias ambientalistas. É possível alargar
cutir, abertamente, nesta exposição, sa- a afirmação e considerar que uma oposi-
bendo bem que é provavelmente cedo ção da mesma natureza existe entre o
demais para abordá-la com seriedade. antigo paradigma do plano e o novo

4
“Professional expertise ”, “rational and efficient ”, “objective and interventionist ”; “self-relient
community ”, “participatory democracy ”, “small-scale organization ”; “bioethic ”,
“indispensability of nature ”; “natural rights ”, “natural morality ”. Ver Timothy O’Riordan,
Environmentalism, Londres, Pion, 1976, cap. 1. Ver também “Environmental Ideologias”, in
Environment and Planning, v. 9, 1977.
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paradigma do meio ambiente, que, em em confronto. Uma das formas da vio-


si próprio, está dividido. Se estivermos lência social é, com efeito, de ordem sim-
atentos às evoluções do discurso desde bólica e ocorre pela desqualificação da
meados dos anos 70, o conflito parece linguagem do adversário. Ao mesmo
ter sido encerrado com a vitória por K.O. tempo, as imposições simbólicas bem-
da visão ecocêntrica sobre a visão tecno- sucedidas não podem ser arbitrárias.
cêntrica. Um dos indícios desse desfecho Acabam articulando novos consensos
é uma impressionante mudança de vo- pelos quais estabelecem-se as novas mo-
cabulário. Planejamento ou ecologia? dalidades de definição das partes con-
Uma análise léxica das comunicações flitantes e do vínculo social que as une.
apresentadas em conferências como a
nossa, no decorrer dos últimos dez ou A noção de paradigma poderá ser
vinte anos, faria aparecer, sem dúvida, útil para pensar esses deslizamentos de
duas coisas. Por um lado, uma polariza- terreno, com a condição de ser estendida
ção dos vocabulários em dois conjuntos do campo estritamente cognitivo ao da
semânticos opostos, centralizados em prática social. A imposição de um novo
cada um desses termos; por outro, uma paradigma implica uma mutação das re-
mudança radical das freqüências rela- presentações eruditas da ordem e de-
tivas de um e do outro. Pura hipótese sordem do mundo, ao mesmo tempo
minha, na medida em que fazer tal esta- que uma redefinição dos objetivos legí-
tística é muito enfadonho e, além disso, timos da ação e dos métodos aceitáveis
totalmente supérfluo. Com efeito, todos da mesma. Definir os termos do proble-
nós sabemos que o léxico que, há vinte ma, eis a operação decisiva. É a con-
anos, organizava os savoir-faire profis- dição prévia dos combates para que
sionais e os discursos políticos está, hoje, venha triunfar esta ou aquela solução.
inteiramente desacreditado. Raros são A principal propriedade de um empreen-
os que têm a ousadia de falar hoje de dimento desse tipo é, com efeito, mudar
“planejamento global”, “controle do de- de conversação, deslocar os debates e
senvolvimento urbano”, “normas cien- os conflitos legítimos, redesenhar o
tíficas”, “previsão quantitativa das espaço no interior do qual todas as opi-
necessidades de habitação”. niões particulares deverão se situar para
serem admissíveis. Utilizarei, de bom
Se estou insistindo dessa forma grado, uma metáfora esportiva. A deli-
sobre a linguagem não é para lhe atribuir mitação do terreno no qual os jogadores
propriedades fundadoras que, com cer- hão de se enfrentar e a formulação das
teza, ela não possui. As mudanças que regras do jogo fixam um quadro ao qual
podem ser observadas no registro do deverá se submeter todo aquele que pre-
discurso são veiculadas por atores so- tender participar da partida. Isto posto,
ciais concretos e exprimem conflitos bem que ganhe o melhor. Os conflitos, por
reais. No entanto, dizem-nos alguma conseguinte, nunca hão de cessar, mas
coisa, senão da natureza, pelo menos devem desenrolar-se no âmbito de li-
dos modos de legitimação das posições mites determinados. É isso o objeto do
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consenso, do senso comum: todo enun- Rússia soviética dos planos qüinqüenais,
ciado, para ser audível e, portanto, o Brasil de Kubitschek ou a França de
fazer parte do debate, deve situar-se De Gaulle. Ela governava tanto o plano
no campo dos enunciados historica- Beveridge para a Grande Londres,
mente admissíveis. Caso contrário, quanto a criação de Chandigarh. Por-
com ou sem a liberdade de falar, a si- tanto, não se trata de um fenômeno estri-
tuação não muda grande coisa: esta- tamente localizado ou conjuntural, mas
mos fora de jogo. de uma construção cognitiva e prática
que foi dominante por um longo perío-
Na história das sociedades, é raro do: cerca de três quartos de século.
ocorrer tais redefinições dos quadros do
discurso e da ação. No que diz respeito Com efeito, tudo leva a crer que essa
ao mundo ocidental e às suas dependên- época está encerrada. Uma mudança de
cias, tal momento de violência simbólica paradigma estaria em vias de se produ-
aconteceu quando se impôs o paradig- zir, se é que já não se tenha realizado.
ma do planejamento racional contra o Teríamos passado de um consenso his-
da ordem social natural e do laisser-faire. tórico sobre o planejamento racional
Nada mais difícil, ou até mesmo arbitrá- para um outro sobre a salvaguarda do
rio, do que datar uma ruptura desse gê- meio ambiente. Este não seria uma nova
nero. No entanto, como referencial, vou variante daquele, como já tinham sido
propor a emergência, nos anos 90, da observadas várias rupturas no decorrer
doutrina do planejamento urbano que, deste século, mas constituiria uma ver-
na seqüência, fornecerá os esquemas dadeira ruptura. É, pelo menos, essa
organizadores do planejamento econô- hipótese que eu gostaria de discutir aqui.
mico nacional e do planejamento regio-
nal. Nosso século XX tem sido descrito Neste ponto, impõe-se uma precau-
como o teatro da ascensão irresistível ção. É sempre complicado, no próprio
dessa doutrina e dessa prática do plano. momento, distinguir uma moda de uma
Por esse senso comum, graças ao plane- virada histórica. A sabedoria aconselha-
jamento apoiado na ciência, as nações ria a esperar um pouco, porque, como
tomavam racionalmente o encargo de se sabe, é no crepúsculo que a ave de
seu desenvolvimento. Essa chave de Minerva alça vôo. No entanto, é difícil
leitura poderia aplicar-se a campos não pensar seu tempo, seja ele qual for,
variados, tanto às políticas macroeconô- como o de uma mutação sem preceden-
micas quanto às da proteção social, tes. Essa convicção recorrente é, aliás,
tanto às políticas de habitação quanto provavelmente, constitutiva da noção de
às do desenvolvimento regional. Uma “geração”, tão importante nos últimos
visão planejadora análoga era comum dois séculos na construção das identi-
aos cientistas e aos dirigentes de socieda- dades sociais, particularmente entre os
des cujas formas de organização política letrados. A convicção do novo é, além
e estruturas econômicas eram muito disso, ativamente cultivada hoje por in-
diferentes: a América do New Deal ou a teresses sociais bem definidos dotados
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de legitimidades culturais fortes: o mun- irrupção do discurso ecológico na mídia


do da mídia, perpétuo criador de acon- e publicidade, ou o desenvolvimento de
tecimentos, e o das ciências sociais, o legislações nacionais relativas aos di-
nosso, que ganha uma parte de sua au- versos aspectos da questão. Todavia,
diência apresentando-se como testemu- limitar-me-ei a alguns indícios que se
nha privilegiada do emergente e, assim, mostram nas instituições internacionais.
faz esquecer seus erros de previsão do Sublinhemos, por exemplo, a Conferên-
ano precedente. cia das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente (Estocolmo, 1972), contem-
Em suma, a prudência deveria im- porânea do relatório do Clube de Roma,
por-se e, ainda, mais particularmente no o livro The Limits to Growth, as Con-
que me diz respeito. Especialista do últi- ferências on the Fate of the Earth (bie-
mo quarto do século XIX e do primeiro nais desde 1982), a Comissão Mundial
quarto do século XX, é somente sobre sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvi-
esse período passado que posso propor mento, cujo relatório, Our Common Fu-
resultados baseados em pesquisas efe- ture (relatório Bruntland), apresentado
tivas. Isto equivale a dizer que, a respei- na Assembléia das Nações Unidas, ofi-
to do que estou falando neste momento, cializa o conceito de sustainable devel-
não conheço nada. Isso deveria imedia- opment (1987) e, enfim, a Conferência
tamente me fazer calar, mas não vim a das Nações Unidas sobre o Meio Am-
Montréal para deixar os senhores com biente e o Desenvolvimento (Rio, 1992).
essa confissão de incompetência.
Se estou chamando a atenção para
Correndo o risco de cair na armadi- esses momentos fortes de uma crono-
lha, vou enunciar, portanto, como hipó- logia internacional é porque eles ex-
tese que um novo senso comum está em pressam, de maneira particularmente
vias de surgir: o que faz do “meio am- nítida, a ruptura de paradigma evocada
biente” o problema central em torno do e, sobretudo, a mudança de escala que
qual, daqui em diante, todos os discursos ela implica. Um novo discurso global e
e projetos sociais devem ser reformulados consensual sobre os principais proble-
para serem legítimos. Esse fenômeno não mas da humanidade impõe-se, daqui
é recente, sendo que seus primeiros em diante, mundialmente como legítimo
indícios podem ser observados em todo e desqualifica, com efeito, os discursos
o mundo ocidental industrializado a partir globais dominantes anteriormente em
de meados dos anos 60. cada nação considerada separada-
mente. Além disso, nessas conferências
Poder-se-iam evocar a multiplicação internacionais convergem os que con-
dos movimentos locais que têm recebido tribuíram para a elaboração do novo
a designação, cada vez mais freqüente, senso comum: cientistas, organizações
de “defesa do meio ambiente”, a emer- não-governamentais, representantes dos
gência de partidos verdes nas cenas Estados nacionais, assim como burocra-
políticas de diversos países europeus, a cias e instituições políticas mundiais.
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Uma surpreendente conjunção: para seu aperfeiçoamento, sua edu-


participação dos cidadãos, liberação cação coletiva. É claro, contingentes de
dos mercados, salvaguarda do meio especialistas hão de se formar para en-
ambiente. quadrar esses esforços, dos urbanistas
aos trabalhadores da área social, pas-
Como já tinha ocorrido no início do sando pelos psicólogos, sociólogos ou
século XX, várias correntes distintas engenheiros da organização científica do
oriundas de fontes defasadas confluíram trabalho. Todavia, em cada um desses
para o mesmo rio, tornando seu fluxo canteiros especializados da moderniza-
irresistível, assim como suas águas mis- ção e do enquadramento das práticas,
turadas e turbulentas. haverá ao longo do século reformadores
da reforma que criticarão os dispositivos
Uma dessas correntes é a reivindi- puramente tecnicistas, para promover o
cação da participação dos cidadãos “neighborhood work”, o levar em con-
contra as tecnocracias, inclusive as ins- sideração o fator humano, ou seja, a par-
tituições políticas representativas a elas ticipação dos citadinos.
assimiladas. Exigência cuja origem é
paradoxal porque procede, simultanea- Esta última formulação, que prolon-
mente, de baixo e de cima. Com efeito, ga e transforma as precedentes, difunde-
a demanda de participação dá teste- se a partir da segunda metade da década
munho da rejeição, sob diversas formas, de 60, sob a habitual aparência da ino-
das operações de racionalização dos vação. É a época em que uma pro-
espaços e modos de vida. No entanto, gressão da conflitualidade social em
ao mesmo tempo, está amplamente inúmeros países conduz à adoção de um
enquadrada, inclusive suscitada, pelas novo discurso, inclusive a uma ligeira
burocracias que, supostamente, são con- modificação das práticas, por parte de
sideradas seus alvos. burocracias públicas ainda em plena ex-
pansão. Os planejadores e as autorida-
Não se deve esquecer que o paradig- des locais desenvolvem e sistematizam
ma do plano não pretendia ser somente procedimentos de consulta que, supos-
tecnicista, mas também democrático à tamente, permitem aos citadinos intervir
sua maneira. Ao definir, em 1898, sua nos projetos. Tal efeito das mobilizações
utopia prática da Garden City, Ebenezer populares nos lembra que não há base
Howard vai baseá-la tanto em uma ciên- sem cúpula, não há reivindicação sem
cia das necessidades quanto em um uma instância à qual ela se dirija. Essas
projeto de reconstrução da comunidade. experiências de “participação” hão de
Desde então, a maioria dos planejadores mostrar bem depressa que nem o
da cidade e dos promotores do Welfare homem da rua, tampouco as associa-
State perseguiu um duplo objetivo: ins- ções, têm grande coisa a dizer sobre os
talar uma ordem racional espacial e so- esquemas diretores de aglomeração ou
cial, e construir uma cidadania moderna os grandes projetos imobiliários plane-
em que a própria população contribuiria jados. A participação, definida de cima,
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esbarra em uma incompatibilidade das restroika” britânica de Mrs. Thatcher e


linguagens, a da racionalidade global e da desregulamentação do presidente
as das experiências e interesses particu- Reagan às políticas de ajustamento es-
lares. Portanto, será necessário diversi- trutural do FMI no Terceiro Mundo e nos
ficar as escalas, permitindo à democracia países ex-comunistas, desencadeia-se
de base falar dos semáforos e das qua- um maremoto que pode ser qualificado
dras de esporte, embora reservando aos de liberal ou conservador, segundo os
especialistas o planejamento dos sis- pontos de vista e as semânticas políticas
temas de transporte e da localização de nacionais. Seja como for, as políticas
atividades. Todavia, o verme está na keynesianas são desmanteladas na prá-
fruta e o paradigma planejador tornou- tica e na teoria, em benefício da celebra-
se esquizofrênico. Sua divisão entre o ção universal do mercado. O paradigma
momento da globalidade e o da locali- do planejamento racional não conse-
dade permitirá contestar o primeiro em guirá oferecer resistência a tal choque.
nome do segundo.
O mais inesperado é o ponto de con-
Durante esse tempo, uma outra cor- fluência das duas correntes que evoquei
rente cresce a partir de uma outra fonte. sucessivamente. A exigência da partici-
Desde os anos 30 e, mais ainda, no pe- pação cidadã e a da liberação dos mer-
ríodo após a Segunda Grande Guerra, cados acabam convergindo na crítica do
a doutrina keynesiana reinava sobre a plano, da regulamentação, da globali-
ciência econômica e as políticas macro- zação racionalizadora em nome da qual
econômicas. Sob formas bastante di- funcionavam as burocracias públicas e
versas, os Estados nacionais tinham as profissões que dependiam das
empreendido a regularização do cresci- mesmas. Nos anos 70, a emergência da
mento; aliás, era praticamente incon- noção de advocacy planning ilustra de
testada sua legitimidade em tomar tal forma notável esse ponto. As organiza-
atitude. Von Hayeck estava fora de jogo. ções de base que articulam os interesses
Em nome do interesse geral nacional, de grupos de cidadãos dão-se conta da
os Estados tinham regulamentado, pro- impossibilidade de intervir nas lógicas
tegido, financiado, por vezes, nacionali- do conjunto do plano. Assim, em nome
zado. Em nome do interesse geral local, da democracia, acabam por recusar a
as municipalidades tinham regulamen- própria legitimidade dos projetos tecno-
tado, planejado, por vezes, construído. cráticos globais. Uma nova estratégia
No Ocidente, o paradigma do planeja- toma forma, muitas vezes elaborada por
mento racional tinha definido os papéis profissionais jovens, bloqueados em sua
respectivos do plano e do mercado sem carreira pelo enfraquecimento das insti-
nunca questionar este último, mas rede- tuições de planejamento estabelecidas
finindo os limites e as condições de sua e delas críticos vigorosos. Paralelamente,
eficácia. Conhece-se a evolução dos os grandes interesses econômicos, pode-
acontecimentos que irá acelerar-se a rosamente reforçados em seu confronto
partir da virada dos anos 80. Da “pe- com o Estado por trinta anos de cresci-
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mento e concentração, trabalham com dos lugares para tentar impedir a cons-
eficácia a partir de cima para consegui- trução especulativa desses espaços.
rem o desmantelamento do que os mo- Ficamos-lhes devendo Hampstead
vimentos locais de citadinos procuram Heath. No início do século XX, os resi-
sabotar por baixo. Essa convergência, dentes dos subúrbios privilegiados de
ou mal-entendido, contribui para causar San Francisco e de Nova York mobili-
a ruína do planejamento racional e per- zavam-se para impor regulamentações
mite ao neoliberalismo reivindicar uma de zoneamento que os protegessem
essência democrática. contra o risco de serem invadidos pelos
pobres, negros e indústrias. Nos anos
Uma terceira corrente vai, então, ao 20, os operários parisienses que tinham
mesmo tempo fornecer ao processo em comprado e construído nos loteamentos
curso a linguagem que lhe faltava e reve- irregulares do subúrbio exigiam que as
lar as tensões de que é portador. É a ruas fossem pavimentadas e instalada a
reivindicação de salvaguarda do meio canalização da água, como hoje os ocu-
ambiente contra o desperdício dos recur- pantes das villas miserias de Buenos
sos naturais. Em torno dessa reivindica- Aires ou das favelas do Rio. Assim, é pos-
ção, em um tempo surpreendentemente sível reconstruir uma genealogia ima-
breve, determinadas forças sociais bas- ginária da luta em favor da salvaguarda
tante diferentes vão convergir e produzir do Patrimônio e do Meio Ambiente.
um novo discurso global que permitirá Imaginária porque se todos esses movi-
enunciar todas as grandes transforma- mentos, e muitos outros, existiram de
ções que já começaram. Somente uma fato é apenas hoje que, retrospectiva-
análise fina das diversas cronologias mente, são classificados na mesma ca-
nacionais permitiria identificar as origens tegoria. Esta é construída em função das
dessa linguagem, os atores sociais que implicações do presente, que são estra-
a utilizaram e os processos de imposição nhas aos termos em que os atores do
simbólica pelos quais ela acabou con- passado enunciavam efetivamente seus
quistando sua legitimidade. Por não interesses e exigências. Sabe-se até que
dispor de tais pesquisas, traçarei sim- ponto a maneira de nomear os fatos e a
plesmente as grandes linhas de um in- reconstrução da memória são elementos
ventário hipotético e incompleto. essenciais da conquista dos espíritos.
Sabe-se, também, que a ilusão retros-
Os movimentos que se organizam pectiva é uma das principais armadilhas
para defender os interesses de grupos que ameaça a pesquisa histórica.
definidos espacialmente são muito
antigos e bastante diferentes. Na se- Parece-me, portanto, pelo menos
gunda metade do século XIX, a arraia- arriscado inventar uma pré-história para
miúda que vivia nas proximidades dos uma história presente que está nitida-
commons que subsistiam em Londres mente comprovada. Foi somente no
encontrava-se ao lado de notáveis preo- decorrer dos anos 70 que, pela primeira
cupados com a higiene e a preservação vez, em relação ao território, foram
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enunciadas reivindicações em termos de características levam a pensar, irresisti-


“defesa do quadro de vida” e, em segui- velmente, em uma parte do pessoal do
da, cada vez mais freqüentemente, de Progressive Movement norte-americano
“salvaguarda do meio ambiente”. Reali- do início do século ou nos intelectuais
dades tão diferentes quanto o protesto franceses defensores da República na
contra as nocividades de uma rodovia, mesma época. A mudança de escala, no
a recusa em ver seu vale inundado pelas entanto, é evidente, com o desenvolvi-
águas de uma represa, os temores da mento maciço das camadas sociais em
população diante da implantação de que se recrutam esses defensores do
uma central nuclear, acabam por adqui- meio ambiente. Além disso, sublinhe-
rir um princípio comum de legitimidade: mos que a audiência destes é tanto
a preservação do patrimônio coletivo da maior quanto mais fraca se torna a capa-
humanidade. Desde então, as reivindi- cidade de representação dos partidos
cações locais podem mudar duplamente políticos que reivindicam tradições socia-
de escala: do mais minúsculo ao mais listas ou liberais. É assim que, em certos
universal, do mais imediato ao futuro países europeus, a ecologia tornou-se
mais longínquo. Essa mutação do infi- uma importante força política, o que não
nitamente pequeno em infinitamente deixa de modificar profundamente os
grande acaba adotando uma linguagem caracteres originais do movimento.
adequada a uma disciplina científica
que, até então, ainda não tinha saído Bem depressa, o sucesso do discur-
dos laboratórios – a ecologia. so que cimenta essa nebulosa social
obrigou os outros atores a modificar seu
A convergência de um grande nú- próprio discurso. A onda verde submer-
mero de movimentos locais sob a ban- ge os partidos políticos estabelecidos, as
deira da ciência opera-se de maneira instituições representativas e as burocra-
diferente segundo os países e, no es- cias públicas, e, em medida mais limita-
sencial, continua sendo um fenômeno da, algumas grandes empresas e grandes
limitado aos países mais industrializados. sindicatos. A “tomada de consciência
Em geral, a direção do movimento é for- ecológica” obriga a fazer compromissos
necida por homens e mulheres das ca- e reclassificações, e cria ameaças em
madas médias assalariadas, dotados de relação a determinadas atividades eco-
fracos recursos econômicos, desprovi- nômicas, ao mesmo tempo que abre
dos de acesso às responsabilidades po- novos mercados. Tornou-se uma lingua-
líticas e tendo motivos para temer uma gem obrigatória. Paradoxalmente, esta
possível desqualificação social dos filhos. chega a exprimir as duas reivindicações
Esses militantes desenvolvem, há muito evocadas mais acima, que tinham em-
tempo, uma atividade associativa multi- preendido, de maneira independente, o
forme pela qual valorizam sua educação desmantelamento do paradigma do pla-
superior, compensam sua marginalidade nejamento racional. Este está associa-
política e afirmam sua diferença cultural do ao crescimento louco e à cegueira
em relação às camadas populares. Tais da tecnostrutura. Mas se o componente
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público desta última está fragilizado, isso confrontos são, por natureza, locais,
não acontece com seu componente pri- enquanto a interferência das represen-
vado. Ao colocar na frente a iniciativa tações anteriores do interesse geral tem
local, a reivindicação descentralizadora um efeito global.
elimina a distinção entre interesse pú-
blico e interesses privados e, ao mesmo
tempo, contribui para uma nova legiti- Para tentar compreender a razão
mação de tais interesses. Tudo isso é disso, é necessário examinar de mais
acompanhado por conflitos entre salva- perto a nova linguagem e ver em que
guarda do meio ambiente e lógica do aspecto suas propriedades são diferentes
lucro. Algumas companhias petrolíferas ou não das propriedades da linguagem
sabem do que estou falando. Mas esses que ela tornou obsoleta.

O Antigo e o Novo

Para falar do novo, vou partir do antigo Tenham presente a breve passagem
e, em particular, de uma das principais do Regional Plan of New York que citei
matrizes do paradigma do planejamento no início. Ela sugere que a ciência das
racional, ou seja, a ciência das cidades. cidades surge do enunciado fundador
Esta é exemplar de uma aliança histórica de uma “questão urbana” e que esta é,
de longa duração entre a Ciência e a em primeiro lugar, a constatação de uma
Reforma Social, isto é, entre os cientistas desordem. Seja qual for a maneira como
e as instituições públicas e privadas da esta é caracterizada, tratar-se-á sempre
gestão da sociedade. Essa idéia irá, de colocar as coisas em seu lugar. Por
talvez, causar surpresa e eu gostaria de outras palavras, instaurar uma nova
dedicar algum tempo a esse ponto. ordem espacial – meio e resultado de
uma nova ordem social. Observemos
Não foi ontem, tampouco anteon- que os próprios termos em que a rea-
tem, que a cidade se tornou objeto de lidade é analisada, ou simplesmente
ciência. Sem recuar, como conviria, ao descrita, designam implicitamente,
século XVIII, direi que um momento como em negativo, um modelo dessa
decisivo são, sem dúvida, os anos 1900- ordem a fazer surgir. A desordem é a
1910. Nessa época, surgem, simulta- imagem invertida de uma ordem escon-
neamente, a “city survey ” e o “town dida que é ainda potencial e que a ciên-
planning ” na Grã-Bretanha, a “ciência cia urbana e o planejamento racional
das cidades” e o “urbanismo” na França, devem tornar atual. Uma representação
e, nos Estados Unidos, o “city planning ” do progresso e do método prático que
que precede apenas de uma dezena de conduz ao mesmo define assim as pró-
anos a “human ecology ”. prias categorias da análise científica. Dito
30 Do Planejamento à Ecologia

por outras palavras, os modelos de inte- dependentemente de sua percepção


ligibilidade estão intimamente associa- pela população ou pelos vereadores.
dos a um modelo de sociedade. Sendo as necessidades e funções ur-
banas uma questão de ciência, elas
Esse paradigma do planejamento são objetivas e podem ser traduzidas
racional tinha tomado forma no primei- em normas que deverão ser promo-
ro decênio deste século. Resume-se em vidas pela autoridade pública. A refor-
algumas proposições, cuja formulação ma dos serviços urbanos e do habitat
pode parecer fora de moda, mas cujo será o primeiro campo de aplicação
conteúdo não é tanto assim. dessas normas.

2. A cidade é um organismo ou, em uma


1. A cidade é o lugar de todos os proble- linguagem mais moderna, um siste-
mas, mas pode tornar-se o vetor de ma, em cujo âmago o bom funciona-
todos os progressos. Na época, essa mento dos elementos depende do
visão é totalmente nova. Durante o bom funcionamento do conjunto e
século XIX, a cidade era descrita pelos reciprocamente. A ciência das cida-
porta-vozes da cultura legítima como des tem por objeto tal sistema, o es-
um mal em si. Aliás, são, paradoxal- tudo de suas leis, o exame de suas
mente, os temas da patologia das patologias e a definição dos remédios
metrópoles, da interrupção do cres- para tratamento das mesmas e, em
cimento urbano e do retorno à terra primeiro lugar, o planejamento. Não
que fornecerão à visão planejadora se pode esperar dos particulares que
seu terreno mais fértil. Subsistirão, em percebam e adotem, espontanamen-
parte, ao lado desta e emergirão, de te, o ponto de vista do conjunto. A
novo, em várias ocasiões, no decorrer ordem deve vir de alhures, é claro,
do século XX. Todavia, a partir da de cima.
virada do século, são cada vez mais
numerosos os reformadores que con- 3. A ciência das cidades determina preci-
sideram que a “cidade tentacular” é samente as fontes da desordem: os
inevitável, que o crescimento urbano interesses econômicos de curto prazo,
é um fato e que, em certas condições, os costumes burocráticos, a submis-
ele pode tornar-se um bem. É precisa- são dos políticos ao seu eleitorado,
mente porque acreditam dispor, a os modos de vida inadequados da
partir de então, dos meios científicos população. Determina também ou-
e técnicos necessários para controlar tros tantos alvos para a ação reforma-
a urbanização que essa mudança de dora – em parte, privada, em parte,
perspectiva é possível. O desenvol- pública – em pleno crescimento; e
vimento urbano é analisado como o outras tantas disciplinas irmãs da
de uma série de funções. Cada uma ciência urbana: planejamento econô-
delas corresponde a uma necessidade mico, ciência municipal e ciência polí-
do indivíduo ou da coletividade, in- tica, sociologia e ciência regional.
Christian Topalov 31

O objetivo comum da ciência e do urbana nascente toma claramente par-


planejamento é instaurar uma ordem tido. Somente o desenvolvimento do sis-
espacial que deverá desembocar em tema de fábrica permitirá realizar dois
uma nova ordem produtiva (garantia do de seus principais objetivos: por um
progresso social) e em uma nova ordem lado, descongestionar as grandes cida-
política (garantia do progresso democrá- des, descentralizando as indústrias para
tico). Entre todas essas relações, eu gos- as periferias ou cidades satélites e, por
taria de me deter um instante na relação outro, estabelecer uma nítida separação
entre racionalização urbana e racionali- no espaço entre áreas de trabalho e
zação industrial. áreas de residência. Para pôr um termo
à desordem urbana, cujo símbolo é
constituído pelos bairros populares nos
No início do século, os reformadores quais estão misturados casebres e ofici-
sociais são confrontados, nas grandes nas, a esperança encontra-se no desen-
metrópoles da Europa e da América do volvimento planejado das superfícies
Norte, a uma realidade urbana que evo- urbanas.
ca, por numerosas características, a dos
países da periferia de hoje. As grandes
cidades, que os obcecam, permanece- A partir da Primeira Grande Guerra,
ram afastadas da primeira revolução a metáfora da cidade-fábrica vem sobre-
industrial; além disso, sua economia, por-se à do organismo urbano. Os arqui-
excetuando os negócios e as finanças, é tetos do movimento moderno são, nesse
feita de uma poeira de pequenas empre- aspecto, pioneiros, em particular, Tony
sas. Por múltiplas razões, associadas em Garnier, em 1907, com seu projeto de
particular à capacidade de resistência ao “Cidadela industrial”; em seguida, Le
assalariado que a própria grande cidade Corbusier, que introduzirá a noção de
proporciona à população laboriosa, a fá- “máquina a ser habitada”, em 1926.
brica não existe nelas ou, pelo menos, é Esse vocabulário difunde-se rapidamen-
bastante marginal. te na ciência urbana. Assim, o urbanista
francês Jaussely define, em 1922, a “or-
ganização econômica das cidades como
Ora, quando surge a ciência urbana, uma espécie de ‘taylorização’ a grosso
a fábrica é cada vez mais freqüentemen- modo de uma oficina bastante ampla.” 5
te pensada como o lugar típico e a forma Alguns anos mais tarde, o Regional Plan
necessária de uma ordem produtiva mo- da Russel Sage Foundation afirma que
derna. Essa crença pode ser considera- “o território de Nova York e seus arrabal-
da, então, como um critério fundamental des pode ser comparado ao solo de uma
de classificação entre progressistas e con- fábrica. O planejamento regional indica
servadores. Nesse conflito, a ciência a melhor utilização desse solo: ‘ o ajus-

5
Léon Jaussely, “Avertissement”, in Raymond Unwin, L’étude pratique des plans de ville. Paris,
Librairie centrale des Beaux-Arts, 1922. p. iii.
32 Do Planejamento à Ecologia

tamento conveniente dos territórios às habitat, planejamento urbano e raciona-


suas utilizações’ .” 6 lização das indústrias e dos serviços ca-
minharão juntos.
Essa visão – que antecipa, conside-
ravelmente, os desenvolvimentos reais Todavia, a ordem urbana procurada
da indústria – inspirará durante muito pela ciência nascente da cidade não era
tempo a ciência urbana e o planeja- somente uma ordem produtiva, mas
mento. Com algumas modificações, provavelmente, antes de tudo, uma
sobreviverá à substituição da ideologia ordem política. Conhece-se o discurso
industrialista pela ideologia da socie- da degenerescência urbana que marca
dade pós-industrial. É a partir daí que tão fortemente os últimos decênios do
se pode compreender a novidade das século XIX. A cidade, que deu origem
políticas públicas de habitação que se ao indivíduo e às instituições políticas
desenvolvem – com toda a certeza, de modernas, tornou-se, então, o lugar
forma desigual segundo os países – entre emblemático da dissolução do vínculo
o início do século e meados dos anos social. Para as sociologias nascentes,
70. Para além dos objetivos do tipo essa questão é obsessiva. Tönnies vê a
higienista que conservam, elas visam “sociedade” substituir a “comunidade”;
transformar radicalmente o quadro físi- Durkheim analisa a anomia; Tarde e
co, espacial e social da vida cotidiana Pareto falam da era das “massas”; Park
das massas populares urbanas, pelo um pouco mais tarde irá estudar a “de-
menos daquelas que são suscetíveis de sorganização social”. Com efeito, os mo-
serem estabilizadas no assalariado. Para delos antigos da ordem política são
isso, seria necessário fazer surgirem gran- condenados e pretende-se acreditar que
des construtores de tipo novo, capazes é pela urbanização. Nem a integração
de produzirem a habitação de massa e estreita dos indivíduos nas comunidades
o meio ambiente planejado que deve camponesas, supostamente, “tradicio-
acompanhá-la, capazes de renovarem nais”, nem a deferência do povo às “au-
os velhos centros e de reordenarem em toridades sociais naturais” lamentadas
grande escala os novos subúrbios. Se- por Le Play, parecem viáveis na grande
gundo os países e as épocas, os poderes cidade.
públicos agirão, sobretudo, pelas normas
e regulamentos, ou também pelo finan- Essas representações são a elabora-
ciamento, ou inclusive pela construção. ção erudita de um temor social ampla-
Os resultados concretos serão diferentes, mente difundido nas burguesias do
muitas vezes, bastante diferentes dos tempo. Mas mudando de registro, o dis-
objetivos perseguidos ou exibidos. No curso científico abre novas vias. Recriar
entanto, em todos os casos, políticas de o vínculo social a partir de novas bases:

6
Committee of the Regional Plan of New York, Regional Survey, v. 1, p. 18: “[...] the area of
New York and its environs may be likened to the floor space of a factory. Regional planning
designates the best use of this floor space - ‘the proper adjustment of areas to uses’.”
Christian Topalov 33

eis o programa dos fundadores das ciên- objetivo de “reconstrução social” em


cias sociais, eis também o programa dos conjunturas e sob diferentes formas.
especialistas das novas ciências da ci-
dade e dos profissionais da reforma Uma delas é o urbanismo de plano,
urbana. Os reformadores sociais mobili- quer se trate do plano do Garden City
zam-se para educar as “classes labo- Movement ou do plano da Carta de Ate-
riosas”, enquanto os partidos socialistas nas. Para os “planners” de qualquer
fazem o mesmo com “o proletariado”. corrente, a nova cidade ou a grande
Transformar em cidadãos os bárbaros operação planejada em periferia urba-
que acampam às portas da cidade, mo- na prometem muito mais do que uma
delá-los a partir de matéria-prima difícil racionalização do espaço: elas devem
tornou-se para todos um imperativo prá- criar as condições de uma restauração,
tico. O eufemismo utilizado hoje para a partir de novas bases, da “comunida-
designar o mesmo trabalho histórico de” perdida. Mudando radicalmente o
sobre os povos é “aprendizagem da de- quadro das atividades cotidianas, elas
mocracia”. Entre os métodos dessa permitirão reorganizar não só os costu-
operação, existe a reforma do bairro po- mes individuais, mas também a vida
pular. Este, considerado durante muito coletiva das classes populares. Como
tempo o lugar de todos os males sociais dizia Henri Sellier, prefeito socialista e
e de todos os perigos, acabou por promotor dos subúrbios-jardins da re-
tornar-se, a partir da virada do século, gião parisiense nos anos 20, trata-se de
o instrumento de uma possível regene- “reordenar a vida social” 7. Como dirá
ração. É, ao mesmo tempo, espaço da um pouco mais tarde Arthur C. Comey,
vida cotidiana e, portanto, da reforma e “city planner ” do New Deal, trata-se de
do enquadramento dos costumes, e es- criar uma “comunidade organizada” 8 .
paço primeiro da democracia repre-
sentativa e, portanto, da formação e Esta última expressão não é exclusi-
organização dos cidadãos. Os regimes vidade dos urbanistas tecnocratas. Orga-
democráticos não podem viver sem dis- nizar a comunidade “a partir de baixo”
ciplinas silenciosas e opressão aberta. é, desde a origem, o objetivo de uma
No entanto, sua especificidade é estarem outra corrente das ciências da cidade,
apoiados também, ou antes de tudo, em por vezes, aliada, outras vezes, oposta
formas sociais auto-reguladas: a comu- à precedente, mas necessariamente em
nidade local reformada pode ser uma diálogo com ela. A “reconstrução do
dessas formas. Desde sua origem, a ciên- bairro” é um tema central entre os tra-
cia urbana está, assim, à procura desse balhadores da área social, desde as

7
Henri Sellier, “Les aspects nouveaux du problème de l’habitation dans les agglomérations
urbaines”, in La vie urbaine, n. 15, p. 86, abr. 1923.
8
“Organized community”. Arthur C. Comey e Max S. Wehrly, “Planned Communities”, in
National Resources Committee, Urbanism Committee, Supplementary Report, v. 2, Urban
Planning and Land Policies, Washington, D. C., 1939, p. 61.
34 Do Planejamento à Ecologia

“settlement houses” britânicas e norte- progresso implicasse a intervenção cons-


americanas do início do século. A mes- ciente de atores sociais porque o simples
ma preocupação está na origem dos jogo do mercado era considerado inca-
estudos de comunidade empreendidos paz de produzi-lo. Se isso tivesse ocor-
em Chicago durante as décadas de 20 rido de outra forma, o objeto da ciência
e 30, e mesmo depois. Um dos capítulos urbana teria desaparecido ao mesmo
de The City, livro-programa publicado tempo que seus meios de agir sobre a
em 1925, é assinado por Burgess e tem realidade.
por título: “Can Neighborhood Work
Have a Scientific Basis?”. Portanto, parece que algumas das
questões que deram origem ao para-
O método para reconstituir a comu- digma da salvaguarda do meio ambiente
nidade perdida podia partir de cima ou estavam já formuladas no próprio âma-
de baixo, do projeto urbanístico ou da go do paradigma do planejamento ra-
organização do bairro. Existem aí, evi- cional. O novo estava, em parte, no
dentemente, mais do que detalhes. No antigo. No entanto, o enfraquecimeno
entanto, em ambos os casos, esperava- das burocracias planejadoras deixou
se de uma mudança urbana e da ciência órfã de adversários, que eram também
que a guia um progresso de ordem po- cúmplices, a reivindicação de partici-
lítica. E parecia axiomático que esse pação.

O Novo e o Antigo

Esse recuo não era, talvez, inútil para Ruptura 1: da sociedade à


tentar circunscrever, por comparação, natureza
algumas das propriedades do novo pa-
radigma.
A emergência do paradigma do plane-
Duas diferenças saltam à vista: por jamento racional estava em conformi-
um lado, os “problemas” a serem resol- dade com uma representação do mundo
vidos são reformulados no quadro de que irá impor-se, pouco a pouco, como
uma redefinição das relações entre so- dominante no decorrer das revoluções
ciedade e natureza, isto é, da natureza industriais. Durante o século XIX, os
da natureza; por outro, a escala do pro- conservadores nostálgicos da ordem
grama reformador muda radicalmente, antiga irão perder terreno diante dos
passando da nação para o planeta. progressistas de todos os matizes. O que
Abordarei sucessivamente esses dois opõe os segundos aos primeiros é a con-
p on t os . vicção de que a indústria humana é um
Christian Topalov 35

fator de progresso. Isso é válido tanto O espectro que assombra essas ela-
para os liberais moderados ou radicais borações – e do qual elas tentam desem-
quanto para todos os que – em particu- baraçar-se uma vez por todas – é a
lar, os socialistas – denunciam as conse- “questão social”. Para reunir as “duas
qüências trágicas do curso da história; nações” que Disraeli observa na Ingla-
aliás, sua aspiração é acelerá-lo e com- terra, Gambetta formula, na França, a
pletá-lo. Nesse aspecto, o otimismo in- estratégia fundamental: “não existe
dustrialista de Marx é exemplar. questão social, mas apenas problemas
sociais”. Trata-se de segmentar a ques-
O novo paradigma que emerge a tão temível da dissolução do vínculo
partir da virada do século XX situa-se social em uma série de problemas espe-
no âmbito dessa visão “progressista”. cíficos que serão analisados pelas ciên-
Nesse caso, o que muda é, simultanea- cias e tratados pelas reformas. Assim,
mente, a afirmação de que esse pro- serão inventados os problemas da habi-
gresso pode e deve ser conscientemente tação, da tuberculose, do alcoolismo, do
ordenado e a emergência de agentes desemprego, da extensão urbana, da or-
que se apresentam como candidatos à ganização do trabalho e muitos outros.
aplicação de tal programa. Ao mesmo Assim, as “classes perigosas” do século
tempo que é formulada essa máxima XIX serão decompostas em categorias
prática, ocorre uma mudança na ordem de população administráveis e transfor-
cognitiva: é a invenção dos fatos so- madas em cidadãos modernos.
ciais, considerados como irredutíveis a
um conjunto de fatos individuais. Con- Esse projeto reformador que o sécu-
cebe-se, daí em diante, que exista uma lo XX colocará em ação baseia-se, por-
ordem específica de fenômenos que, tanto, em duas construções históricas
simultaneamente, vão constituir os bastante singulares: a constituição da
objetos de ciências novas e delimitar sociedade como objeto da ação racional
campos concretos de reforma. Se a so- e o postulado da identidade possível
ciologia durkheimiana é sintomática entre progresso industrial e progresso
dessa nova postura, esta expressa-se social.
também nas linguagens científicas que
lhe são totalmente estranhas, tais como O sistema que as ciências sociais
o organicismo urbano, a higiene social nascentes constroem é, portanto, estrita-
ambientalista ou a estatística mate- mente o das relações dos homens entre
mática em seus começos. Em todos si, em suma, a “sociedade”. A “nature-
esses campos científicos, novos modos za” lhe é exterior e só está incluída aí
de representação permitem formular como recurso da indústria humana e re-
novos tipos de causalidade que, por sua sistência que esta deve domar. Nesse
vez, designam novos objetos de ação aspecto, as construções teóricas da nova
coletiva racional. Estes serão aborda- economia política são sintomáticas. Os
dos por disciplinas aplicadas, profis- rendimentos decrescentes deixaram de
sões, regulamentações, burocracias. ser uma lei natural e a terra, tornada
36 Do Planejamento à Ecologia

“fator de produção”, é finalmente assimi- mento industrial, eis portanto o âmago


lada a um “capital”. O espaço é reduzido do paradigma do planejamento racional.
a um custo monetário ou considerado
como uma acumulação de capitais que A ruptura introduzida pelo ecolo-
geram economias externas. É a comple- gismo pode ser descrita a partir daí. O
ta humanização da natureza. Esse postu- objeto “sociedade” deixa de estar no
lado implícito deixa aos engenheiros e centro do discurso para ficar incluído em
industriais o cuidado de se ocuparem um outro, a “natureza”. Esta deixou de
praticamente da produção das riquezas, ser o que era desde há séculos: o pólo
e os economistas só se interessam pela oposto da cultura, uma ordem de rea-
formalização do equilíbrio geral. Portan- lidades cujos limites deveriam ser, in-
to, pressupõe-se que a atividade da cessantemente, repelidos pelo progresso
sociedade suprima todas as distâncias e da civilização. A natureza clássica, que
torne provisória toda escassez. Por outro era também a da modernidade, era
lado, as necessidades são consideradas hostil se permanecesse natural, útil se
suscetíveis de crescer indefinidamente. fosse submissa. Inversamente, a natu-
Com os primeiros estudos estatísticos de reza construída pela ecologia é um siste-
orçamentos, o estatístico prussiano ma global de que os próprios homens
Engel descobre que as necessidades pro- são elementos. Desde então, tornam-se
gridem segundo leis e são limitadas a caducos todos os diagnósticos e pres-
determinado momento apenas pelo po- crições anteriores. Os enunciados dos
der de compra e pelo nível da produção. problemas sociais, elaborados a partir
da virada do século XX, são desqua-
Essas evidências comuns alimen- lificados na medida em que só diziam
tam-se da observação da nova onda de respeito às relações dos homens entre
revoluções tecnológicas que começa no si: daí em diante, é unicamente nas inter-
decorrer da grande depressão das déca- faces da sociedade humana e de seu
das de 1880 e 1890 e que irá acompa- meio ambiente natural que está em jogo
nhar a entrada do capitalismo em um o destino comum da humanidade e do
novo regime de acumulação no decorrer planeta. A angústia da “questão social”,
do século XX. Energia e transportes já que tinha sido dissolvida por três quartos
encontram-se então no cerne da mitolo- de século de racionalização planejada,
gia, nesse caso, a do progresso ilimitado: dá lugar a uma outra, a da catástrofe
a “fada eletricidade” e, em breve, a ex- ecológica. Além disso, a representação
ploração do “ouro negro” prometem do curso do tempo muda radicalmente.
uma nova era, da mesma forma que o O ecologismo abole a história como
primeiro carro Ford T e o surgimento teatro da mudança e do progresso, em
da indústria aeronáutica no decorrer da suma, o tempo moderno. A natureza sis-
Primeira Grande Guerra. têmica, com efeito, não tem história a
não ser a de sua possível degradação.
Agir sobre o social para liberar de “Salvaguarda”, “preservação”, “conser-
qualquer entrave o rápido desenvolvi- vação”, tais são os deveres da espécie
Christian Topalov 37

humana em relação a seu habitat. Termi- restaura e sobre a qual constrói seu pro-
nou a grande narração épica do progres- grama. O problema da floresta amazô-
so econômico e do progresso social e está nica já não é o dos conflitos pela terra e
começando a da restauração do planeta pelo controle de matérias-primas, mas
terra em sua integridade original. o da proteção da biosfera. O problema
da habitação nas grandes cidades já não
A reviravolta das representações que é o do acesso normalizado a esse bem
isso implica é exatamente de sinal con- para as categorias excluídas do merca-
trário ao da reviravolta que se produziu do, mas o da proteção dos lugares e da
no início do século: à socialização inte- redução das escalas. É engraçado ob-
gral da natureza sucede a naturalização servar que, nesse campo, o ecologismo
integral da sociedade. Isso tem implica- permite formular prescrições práticas
ções nas linguagens dominantes das dis- opostas segundo as situações nacionais.
ciplinas científicas e nas hierarquias entre Assim, na França, desde a segunda
as mesmas. Assiste-se a uma importa- metade dos anos 70, ele justifica a in-
ção maciça por parte das ciências hu- terrupção da construção dos grandes
manas de esquemas construídos nas conjuntos de habitações sociais em be-
ciências físicas ou biológicas. Em parti- nefício da expansão da casa individual.
cular, a cibernética e a ecologia forne- No Canadá, em compensação, parece
cem os poderosos instrumentos da que o mesmo discurso fundamenta
análise dos sistemas a ciências sociais atualmente uma crítica do desperdício
cujo objeto original, ou seja, as relações do espaço e dos recursos devido ao ha-
sociais, é cada vez mais contestado. bitat disperso e um programa de densi-
ficação imobiliária. 9 O estudo que estou
Ao mesmo tempo, as prioridades e fazendo aqui em relação aos paradig-
o quadro da ação reformadora encon- mas não dispensa, portanto, o estudo
tram-se redefinidos. As ciências sociais das estruturas de produção e dos inte-
analisavam a sociedade em seus ele- resses bem concretos daí resultantes.
mentos, a humanidade em seus grupos
constitutivos, dotados, com toda a cer-
teza, de necessidades universais, mas de Ruptura 2: do nacional ao
possibilidades desiguais de reconhecê- planetário
las e satisfazê-las. As legislações sociais
estavam baseadas no reconhecimento Uma segunda ruptura introduzida pela
dessas diversidades. Assim, a racionali- linguagem da salvaguarda do meio am-
zação planejadora tinha colocado entre biente diz respeito às escalas espaciais
parênteses uma representação substan- dos discursos eruditos e dos projetos
cialista do Homem que o ecologismo práticos.

9
Canada Mortgage and Housing Corporation/Société canadienne d’hypothèques et de logement,
Sustainable Development and Housing/Le développement durable et le logement, Research
Paper, n. 1, jan. 1991.
38 Do Planejamento à Ecologia

O paradigma precedente tinha sido atribuíam-lhes um estatuto específico,


construído ao mesmo tempo que emer- todos definiam novos direitos sociais, daí
giam os Welfare States modernos. A to- em diante, constitutivos da cidadania
talização social e espacial implicada e moderna. As guerras provocavam
instaurada pelo planejamento era a da amplos deslocamentos de populações
nação, embora definisse também sub- heterogêneas e, enfim, alguns Estados
conjuntos como níveis administrativos aniquilavam os que tinham sido defini-
pertinentes para tratar de certos proble- dos como os estrangeiros do interior.
mas, em particular, os da cidade ou da Tendo-se tornado um objeto cognitivo
região. Afinal, isso não é uma coincidên- e prático, segundo a observação feita
cia histórica, porque o projeto moderni- anteriormente, a “sociedade” era, por-
zador e industrialista andava ao lado do tanto, o Estado-nação moderno, dotado
empreendimento político que recebeu de fronteiras territoriais e jurídicas. O pa-
de George Mossé a designação de “na- radigma do planejamento racional apli-
cionalização das massas” 10. A distância cava-se ao mesmo objeto.
entre o Estado e a população deveria
ser reduzida, e os múltiplos localismos, Ainda aí, o ecologismo introduz uma
suprimidos ou atenuados pela instalação mudança fundamental ao desqualificar
de poderosas instituições nacionais: es- todos os discursos e todos os projetos
cola obrigatória e conscrição, leis sociais que tinham sido elaborados no quadro
e sistemas de seguro. Esse florescimento de cada nação. Por um lado, ele inventa
de novos quadros de formação das iden- o local, o mais próximo, como único
tidades estava estreitamente associado lugar pertinente da expressão democrá-
a uma redefinição da cidadania como tica, da identificação dos problemas e
privilégio exclusivo dos nacionais. É a da formulação das soluções. Por outro,
derrota do liberalismo clássico. A ascen- instaura o planeta como a única verda-
são do protecionismo a partir do final deira escala que deve servir de bitola às
do século XIX não era, com efeito, so- conseqüências de todas as ações. Esse
mente um fechamento dos mercados duplo deslocamento aparecia já em
aos bens estrangeiros, mas também a 1973 quando E. F. Schumacher publica
instauração de uma série de exclusões Small Is Beautiful 11 . “Think globally, act
que fixavam as fronteiras sociais da locally” é hoje a máxima que une essas
nação, internas e externas. Alguns países duas mudanças de definição do territó-
fechavam-se para os estrangeiros, outros rio da reforma.

10
George L. Mossé, The Nationalization of the Masses: Political Symbolism and Mass Movement
in Germany from Napoleonic Wars through the Third Reich, Nova York, Howard Fertig,
1975.
11
Ernst Friedrich Schumacher, Small Is Beautiful: A Study of Economics as if People Mattered,
Londres, Blond and Briggs, 1973. O livro é constituído, principalmente, por artigos publica-
dos e conferências feitas a partir de 1961.
Christian Topalov 39

Uma das propriedades desse sistema normalização das condutas pessoais e


de representações que, sem dúvida, con- sociais. A promulgação de novas regras
tribui para o seu poder de convicção é de vida, e das interdições correlatas,
que ele permite a passagem imediata do tinha por horizonte a formação de
local para o planetário, do indivíduo habitus que, na seqüência, permitiam
para a Humanidade. Uma publicidade dispensar o policial. Com certeza, já não
comercial que foi divulgada recente- existem metrôs no mundo industriali-
mente pela televisão, na França, fornece zado nos quais seja possível encontrar,
uma imagem impressionante desse es- como em 1900, cartazes que proibiam
magamento, dessa fusão das escalas. cuspir sob pena de multa. A higiene cor-
Uma menina, cuja mãe tinha escolhido poral, a regularidade no trabalho e a
para a máquina de lavar o bom deter- sede de instrução, a preocupação com
gente ecológico, observa com olhos bri- a família, a boa vizinhança e o respeito
lhantes o córrego do jardim, em seguida, pelas instituições promotoras do bem-
uma grande árvore e, enfim, o céu. estar eram outros tantos deveres que
Mudança de plano: aparece, então, o acompanhavam a atribuição dos direitos
planeta Terra, verde e azul, envolvido sociais. No entanto, os horizontes de
pela atmosfera na qual fica-se com a referência e de legitimação dessas máxi-
impressão de ver, bem espessa, a ca- mas eram a família e a nação, apresen-
mada de ozônio. A mãe e a criança, o tadas como homólogas. Quanto à moral
jardim e a Terra: a mesma relação ime- ecológica, formula obrigações universais
diata é instaurada entre o presente e o e instaura novos patriotismos: o culto
futuro, entre o mais próximo e o mundo. da minha aldeia e da “global village ”
A linguagem da salvaguarda do meio que é o planeta faz passar para o segun-
ambiente fundamenta, assim, uma nova do plano o amor de meu país. Daí, uma
moral que permite ligar diretamente tensão sempre possível entre os porta-
cada ato individual ao bem comum da vozes do ecologismo e os “interesses
humanidade. Essa moral é conquis- nacionais” enunciados pelos Estados,
tadora, prosélita, afirma o bem para em particular nos períodos de crise,
todos. Não é de se surpreender que os como o da disseminação dos Pershing
primeiros profetas do novo paradigma, na Europa pré-gorbatcheviana ou o da
Schumacher e os membros do Clube de Guerra do Golfo.
Roma, em particular, tenham visto em
uma renovação da religião a condição Essa redefinição das escalas tende,
derradeira da inversão das curvas que portanto, a reduzir a legitimidade do
levam à catástrofe. Estado nacional como lugar de formu-
lação dos problemas e das soluções. Ela
Nesse plano também, é possível ava- anota o deslocamento do poder econô-
liar a evolução operada pelo novo para- mico para as multinacionais cada vez
digma. O do planejamento racional mais independentes de suas bases terri-
comportava, igualmente, uma dimensão toriais originais. Adapta-se ao desloca-
moral que implicava a prossecução da mento das competências da gestão, até
40 Do Planejamento à Ecologia

aí reservadas aos Estados, para entida- outro aspecto da mudança de escala que
des supranacionais, as áreas de livre- está sendo questionada – tem por conse-
comércio e suas instituições. Com efeito, qüência desqualificar as instituições es-
o emagrecimento do Estado-nação é tatais nacionais como garantias de seu
considerado, em geral, pelo ecologismo “respeito”. O direito de ingerência nas
como um objetivo salutar. questões internas das nações em nome
do interesse superior da humanidade
Ao mesmo tempo, desloca-se o ter- torna-se um dever eticamente funda-
reno da ação coletiva. A tensão demo- mentado. À sua maneira, a administra-
crática no âmago dos sistemas regulados ção Bush soube tirar as conseqüências
pelos planos opunha grupos ou movi- disso na luta contra o tráfico de drogas
mentos de cidadãos a um parceiro te- no Panamá ou contra o “ladrão de
mível, mas que parecia claramente Bagdá”, ainda por cima, poluidor. No
identificável: uma poderosa “tecno- entanto, as mais estimáveis organizações
estrutura” que unifica os interesses de não-governamentais não dispõem dos
burocracias públicas, de grandes grupos mesmos meios para impor os direitos do
financeiros ou industriais e de profissio- meio ambiente. O Greenpeace perdeu
nais da ciência. No entanto, o discurso, um dos seus membros, morto por agen-
então legítimo, do interesse geral e a tes do governo francês que, atualmente,
coincidência do território das reivindi- usufruem de uma tranqüila aposenta-
cações com o de instituições represen- doria. Compreende-se a esperança que
tativas ofereciam algum poder à ação os defensores do meio ambiente podem
coletiva. Tudo isso muda com a ruína depositar em instâncias éticas, judiciais
dos sistemas de regulação estatal, sendo ou políticas internacionais, das quais
que, daqui em diante, as relações de esperam que afirmem o direito e exer-
força tendem a se instaurar diretamente çam vigilância na sua aplicação.
com potências imperceptíveis e em um
quadro jurídico incerto. O que está aqui em debate é a capa-
cidade do ecologismo para construir os
Além disso, uma das principais instrumentos de sua aplicação, os equi-
formas da racionalização planejada valentes funcionais do que eram deter-
tinha sido a defnição de direitos sociais minadas burocracias e direitos sociais
que, ao longo do século XX, foram-se nacionais para o antigo paradigma.
inserindo, pouco a pouco, nas legisla- Desse ponto de vista, um Schumacher
ções e jurisprudências. Tais direitos – aos e suas cooperativas pertencem ao último
quais correspondiam, é claro, outros quarto do século XIX, enquanto o Clube
tantos deveres – só podiam instaurar-se de Roma contenta-se em fazer apelo à
no quadro do Estado-nação porque im- tomada de consciência da humanidade.
plicavam a criação de instâncias respon- Se o ecologismo não chegar a produzir
sáveis pela sua aplicação. A passagem outras respostas, será somente a restau-
da linguagem dos direitos sociais para a ração da liberdade dos mercados que,
linguagem dos direitos do homem – no final de contas, terá sido legitimada.
Christian Topalov 41

No campo do habitat, os frutos de os obstáculos às altas de preço especu-


uma quinzena de anos de supressão das lativas e fecharam o mercado a amplas
políticas racionalizadoras e sociais an- camadas da população. Os processos de
teriores podem já ser lidas no espaço. relegação urbana dos pobres foram,
Certas crises duráveis da produção imo- assim, consideravelmente reforçados, ao
biliária permitiram, muitas vezes, interes- mesmo tempo que se acelerava a con-
santes reduções de escala, inovações quista pelos ricos das localizações privi-
arquitetônicas, evoluções menos trau- legiadas e a separação espacial dos
matizantes do aspecto visual dos tecidos assalariados estáveis e dos excluídos da
urbanos. No entanto, simultânea ou su- crise. Perdoem-me esse vocabulário po-
cessivamente, a retirada das autoridades pulista, mas é o único que a lógica im-
públicas do setor da habitação e a desre- placável daquele “que oferecer mais”
gulamentação dos mercados imobi- deixa disponível.
liários e hipotecários eliminaram todos

O Antigo no Novo

Conforme anunciei no início, tudo o que gerações futuras; a outra é o espaço,


precede é muito especulativo. Creio desde a família até o mundo inteiro.
voltar a um terreno mais seguro ao subli- Cada um de nós é representado por um
nhar, como conclusão, que, apesar das ponto. A legenda do gráfico é a seguinte:
rupturas que tentei identificar, existe “Os homens estão interessados pelos
entre o novo paradigma e o antigo um acontecimentos situados mais ou menos
elemento notável de continuidade. Ele longe no espaço e no tempo. Somente
é de natureza a satisfazer nosso pequeno alguns têm uma perspectiva global a
mundo de eruditos ou, pelo menos, uma longo prazo”. Existe uma imensa multi-
parte dele. dão bem perto das origens dos eixos e
somente cinco pontos na extremidade
Quando se é analista de sistemas, oposta do gráfico. Seria interessante
fica-se gostando de gráficos. Em The saber o número de pesquisadores que
Limits to Growth, os autores introduzem compunham a equipe que elaborou o
suas conclusões com uma figura interes- relatório.
sante. 12 Ela representa a humanidade
em um sistema de coordenadas. Uma é O paradigma da salvaguarda do
a escala de tempo que diz respeito aos meio ambiente não escapa, portanto, à
indivíduos, desde uma semana até as regra instaurada, há um século, pelos in-

12
Ver Halte à la croissance? (trad. francesa de The Limits to Growth), Paris: Fayard, 1972. p.
145.
42 Do Planejamento à Ecologia

ventores do paradigma do planejamento previsão? Os especialistas desta, ontem


racional. O fundamento da legitimidade como hoje, estão colocados no centro
é sempre a ciência, e os servidores desta do dispositivo a ser instalado para a
continuam sendo o derradeiro baluarte sobrevida – ontem da sociedade, hoje
da razão contra a loucura dos homens. do planeta. A questão que permanece
As reivindicações do mundo erudito, pelo aberta é a do braço secular desses novos
menos, não mudam. clérigos.

Essa observação é de natureza a pôr


em dúvida uma das hipóteses que for-
mulei ao começar esta exposição. Pla-
nejadores e ambientalistas têm, talvez,
(Recebido para publicação em agosto
apesar de tudo, algo em comum que é
de 1997)
a crença no poder racionalizador da
ciência. Com toda a certeza, a angústia Chr istian T opal ov é pesquisador
da catástrofe ecológica veio substituir a do Laboratório “Cultures et Sociétés
da questão social. No entanto, como Urbaines” - CSU/CNRS - e professor
pensar as catástrofes a não ser segundo da École Pratique des Hautes Études -
o modo da prevenção e, portanto, da EPHE

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