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Panorama da
História da Igreja
Alderi Souza de Matos

Introdução
Como o título indica, este é um curso panorâmico sobre a história da igreja cristã. Como
tal, ele não visa estudar essa história em profundidade, e sim abordar os contornos mais
amplos desse vasto assunto, para que, posteriormente, o aluno possa pesquisar com maiores
detalhes quaisquer tópicos específicos do seu interesse. O propósito do curso é familiarizar
os participantes com os principais personagens, eventos e movimentos da longa e rica
história do cristianismo, no desejo de que esse estudo possa ser ao mesmo tempo uma fonte
de informação, desafio e inspiração para a vida cristã.

Além desta introdução, o curso constará de dez aulas, sendo três para o período antigo, duas
aulas para cada um dos períodos subseqüentes (medieval, Reforma e
moderno/contemporâneo) e uma sobre a América Latina e o Brasil. Cada aula será
acompanhada de leituras complementares indicadas pelo professor. Além dos testes simples
de avaliação para cada aula, haverá quatro provas de múltipla escolha, ou seja, uma para
cada semana de aula.

A presente aula introdutória consta dos seguintes pontos:


1. O que é história
2. Definições básicas
3. Importância da história da igreja
4. Períodos em que se subdivide a história da igreja
5. Bibliografia básica

1. O que é história
O termo "história" vem do grego historía, que significa pesquisa, informação ou narração e
já nos tempos antigos era usado para indicar a resenha ou narração dos fatos humanos.
Hoje, o termo tem dois aspectos básicos: (1) os próprios fatos, isoladamente ou em
conjunto (em alemão, Geschichte) e (2) o conhecimento dos fatos, ou a ciência que
disciplina esse conhecimento (Historie). Para este segundo aspecto, usa-se com freqüência
o termo "historiografia."

Outra maneira de encarar o assunto é considerar quatro sentidos em que se pode entender a
história (observe que todos começam com a letra "i"):

Incidente ou evento é todo e qualquer acontecimento. Por sua própria


Incidente natureza, todo incidente é absoluto e ocorre somente uma vez. É
impossível que se repita exatamente em todos os seus pormenores.
São os elementos que nos fornecem dados sobre o incidente, tais como
Informação
documentos, objetos ou depoimentos orais.

Investigação ou pesquisa é a busca de respostas para as perguntas "o


Investigação
quê", "quem", "quando", "onde" (os dados).
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É a busca dos porquês, do significado dos dados. A atitividade de


interpretação é inevitável, porque os incidentes já não são diretamente
acessíveis, mas somente através de indícios, de informações indiretas.
Toda interpretação é relativa, porque todo intérprete é limitado por um
Interpretação
maior ou menor número de condicionamentos. É impossível uma
plena objetividade e imparcialidade. No entanto, as contínuas
pesquisas vão fazendo surgir certos consensos entre os estudiosos
sobre um grande número de fatos e interpretações.

2. Definições
 História: é o registro interpretado do passado humano socialmente relevante, com
base em dados organizados que são obtidos através do método científico a partir de
fontes arqueológicas, literárias ou vivas.

 História da igreja: o historiador Earle E. Cairns define a história da igreja como "o
relato interpretado da origem, progresso e impacto do cristianismo sobre a
sociedade humana, baseado em dados organizados e reunidos pelo método
científico a partir de fontes arqueológicas, documentais ou vivas" (O Cristianismo
Através dos Séculos, 14).

Observação:
 As fontes mais comuns da história da igreja são documentais, que podem ser de dois
tipos: primárias e secundárias. Fontes primárias são documentos produzidos pelos
próprios personagens e movimentos da história. Por exemplo, a Epístola de Paulo
aos Romanos, a Didaquê, o Credo Niceno, as Noventa e Cinco Teses de Lutero.
Fontes secundárias são análises posteriores dos estudiosos, como os livros de
história da igreja mencionados na bibliografia que está no final desta aula. As fontes
primárias não precisam ser antigas; às vezes são bastante recentes, como a
declaração conjunta de católicos e luteranos sobre a justificação pela fé, publicada
em 1999.

3. Importância da história da igreja


Uma questão que se pode levantar é: Por que, afinal, estudar a história da igreja? É isso
realmente necessário e prioritário para o cristão? Quais os benefícios que se poderiam
auferir desse estudo?

Uma das razões mais importantes para o estudo da história é o caráter histórico da
revelação bíblica e da obra redentora de Deus. Boa parte da Bíblia contém relatos
históricos, como o Pentateuco e os chamados livros históricos, desde Josué até Ester. Um
dos maiores livros do Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, é inteiramente dedicado ao
registro de eventos da igreja primitiva. Além disso, a Escritura nos fala de um Deus que,
além de ser transcendente, é também imanente, ou seja, comunica-se e relaciona-se com os
seres humanos, entrando na história humana e atuando na mesma. Toda a Escritura dá
testemunho dessa verdade. O evento máximo dessa manifestação de Deus na história foi a
encarnação do Verbo, o Filho de Deus (ver João 1.1,14; Gálatas 4.4; 1 Jo 4.9,10,14).
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Assim, a história da igreja implica em uma determinada filosofia da história. Para os


cristãos convictos, a história tem um sentido dado por Deus. Essa história é linear, tendo
um princípio e um fim, sob a direção providente e soberana do Senhor da história. O
primeiro autor a articular uma filosofia cristã da história foi Agostinho (354-430), em sua
magnífica obra A Cidade de Deus (De Civitate Dei). No ano 410, os visigodos saquearam
Roma. Os pagãos alegaram que essa tragédia ocorreu porque os romanos haviam
abandonado a antiga religião dos deuses e abraçado o cristianismo. A pedido de um amigo,
Agostinho dispôs-se a rebater essa acusação e isso resultou na referida obra.

Para ele, a história consiste na interação de duas sociedades antagônicas, a cidade de Deus e
a cidade terrena. A primeira consiste de todos os seres humanos e celestiais que estão
unidos no seu amor a Deus e buscam somente a sua glória. A cidade terrena é composta dos
seres que amam somente a si mesmos e buscam somente a sua própria glória. O curso da
história humana dirige-se para a cruz e a partir da cruz. A graça que dela flui opera dentro
da igreja cristã, o corpo visível de Cristo. Fortalecidos pela graça divina, os cristãos
colocam-se ao lado de Deus no conflito contra o mal, até que a história alcance a sua
consumação no retorno de Cristo.

Além desse aspecto bíblico e teológico, a história da igreja tem um valor prático como
fonte de informações sobre uma infinidade de assuntos que não encontramos em outros
lugares. Todas as mudanças que têm ocorrido na igreja ao longo do tempo nas áreas
administrativa, doutrinária, litúrgica e devocional são estudadas na história da igreja, bem
como um grande número de instituições, movimentos e subdivisões do cristianismo. A
história da igreja nos fala sobre métodos missionários, estilos de pregação, hermenêutica e
interpretação bíblica, atitudes para com dinheiro e os bens materiais, prática da
beneficência, relações da igreja com o estado e com a sociedade. Ela ajuda-nos a entender
como surgiram os grupos cristãos atuais com suas características distintivas.

Finalmente, há também um elemento bastante pessoal. A história da igreja é a nossa


história, tem a ver com a nossa identidade (quem somos e de onde viemos), quer no sentido
espiritual, quer no sentido cultural, pois o cristianismo foi um poderoso elemento formativo
do Ocidente como um todo e da América Latina em particular. Além disso, o estudo da
história ajuda-nos a compreender a nossa herança cristã, dá-nos um senso de continuidade
com o passado e proporciona edificação e inspiração. Finalmente, é fonte de solenes
advertências quanto aos erros de igrejas e cristãos individuais, incentivando-nos à
humildade e tolerância.

4. Períodos da história da igreja


Para facilidade de estudo, a história da igreja é dividida em períodos, os quais, por sua vez,
estão subdivididos em unidades menores. Essa divisão é relativa, variando de acordo com
os critérios de diferentes estudiosos, mas facilita a compreensão de um tema que é tão vasto
e complexo. A classificação abaixo é aquela que seguiremos no presente curso:

A Igreja Antiga (30-590 DC = depois de Cristo)

A igreja apostólica (30-100)


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A igreja "católica" (100-313)


A igreja imperial (313-590)

A Igreja Medieval (590-1517)


A igreja no início da Idade Média (590-1073)
A igreja no apogeu da Idade Média (1073-1294)
A igreja na época do Renascimento (1294-1517)

A Reforma Protestante (1517-1648)


A Reforma na Alemanha e Suíça
A Reforma na Inglaterra, Escócia, França e Holanda
A Contra-Reforma e a Reforma Católica

A Igreja Moderna e Contemporânea (1648-2000)


Racionalismo e reavivamentos (1648-1789)
O grande século das missões (1789-1914)
O século XX

Não poderíamos falar da história da igreja sem abordar de maneira especial o nosso
continente e o nosso país. Assim, concluiremos este curso com alguns dados básicos sobre a
história do cristianismo na América Latina e no Brasil.

5. Bibliografia
Como fontes para estudos e pesquisas complementares, sugerimos as seguintes obras em
português.
 Bettenson, Henry, Documentos da Igreja Cristã (São Paulo: ASTE, 1967); 3ª ed.
revista, corrigida e atualizada (São Paulo: ASTE/Simpósio, 1998). Uma ótima
coletânea de fontes primárias dos diferentes períodos da história da igreja.

 Cairns, Earle E., O Cristianismo através dos Séculos: Uma História da Igreja
Cristã (São Paulo: Vida Nova, 1988). Uma das melhores histórias da igreja em um
só volume disponíveis em português.

 Dowley, Tim, ed., Atlas Vida Nova da Bíblia e da História do Cristianismo (São
Paulo: Vida Nova, 1997). Belíssima edição em cores, com excepcional qualidade
gráfica. Útil também para o estudo da história bíblica (Velho e Novo Testamentos).

 González, Justo L., Uma História Ilustrada do Cristianismo, 10 vols. (São Paulo:
Vida Nova). Os dois volumes da edição em inglês foram transformados em dez
pequenos volumes na edição portuguesa. Agradável de ler.

 Neill, Stephen, História das Missões (São Paulo: Vida Nova, 1989). Uma das
melhores abordagens de um aspecto específico da história da igreja. O autor foi
missionário na Índia e na África.
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 Nichols, R. H., História da Igreja Cristã, 5ª ed. rev. (São Paulo: Casa Editora
Presbiteriana, 1981). Obra mais modesta que as anteriores, mas ótima para quem
está começando a estudar a história da igreja. O autor é presbiteriano.

 Tucker, Ruth A., "... Até aos Confins da Terra": Uma História Biográfica das
Missões Cristãs, 2ª ed. (São Paulo: Vida Nova, 1996). Contém biografias de
missionários destacados que trabalharam nas mais diferentes regiões do globo.
Inclui um capítulo especial sobre o Brasil.

 Walker, W., História da Igreja Cristã, 2 vols. (São Paulo: ASTE, 1967). Obra
excelente, mas um tanto desatualizada. A edição mais recente em inglês, revista por
três outros autores (Norris, Lotz e Handy) e lançada em 1985, ainda não foi
publicada em português.

 Williams, Terri, Cronologia da História Eclesiástica em Gráficos e Mapas (São


Paulo: Vida Nova, 1993). Os ótimos gráficos permitem visualizar facilmente alguns
dos temas mais importantes da história da igreja.

 Christian History – periódico trimestral em inglês publicado por Christianity Today


(Carol Stream, Illinois). Publicação dirigida primordialmente a leigos, contendo
ilustrações e gráficos bastante úteis. Os artigos são escritos por autoridades
reconhecidas. Cada número é dedicado a um personagem ou movimento específico
(o último número trata de Agostinho). Para maiores informações, visite
www.christianhistory.net.

Essa é apenas uma pequena amostragem do grande número de obras disponíveis em nosso
idioma, para não mencionarmos outras línguas, como o inglês e o espanhol, onde a
variedade é muito maior. No decurso das aulas, forneceremos outras indicações
bibliográficas sobre temas ou períodos específicos.

Implicações Práticas
Como se viu acima, o estudo da história da igreja pode ser altamente benéfico para o
cristão, dando-lhe em primeiro lugar uma melhor compreensão da atuação de Deus na vida
do mundo. A história não é um conjunto de acontecimentos aleatórios, sem rumo, mas
revela, por trás de eventos muitas vezes confusos e aparentemente desconexos, o propósito
providencial de Deus.

Além disso, o conhecimento da história auxilia os cristãos e as igrejas a terem maior


consciência de sua identidade e da sua missão no mundo. Seja como fonte de inspiração ou
de advertência, o conhecimento da caminhada da igreja na terra permite que os cristãos
definam melhor as suas prioridades e estejam alerta contra erros e tentações já enfrentados
no passado.

O Período Apostólico (Primeiro Século)

A. Contexto: O Mundo em que Surgiu a Igreja


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O cristianismo não surgiu em um vácuo, e sim em um contexto histórico e social


específico. É importante conhecer o ambiente em que surgiu o cristianismo, ambiente esse
que influenciou a igreja e também foi eventualmente influenciado por ela. Esse ambiente
era definido por três grandes culturas ou civilizações.

(1) Os gregos:
No quarto século antes de Cristo, Alexandre, o Grande (356-323 AC) conquistou um vasto
império que ia desde os Balcãs até a Índia. Essas conquistas promoveram uma ampla
difusão da língua e cultura gregas (helenização) em toda a região oriental do Mar
Mediterrâneo, no Oriente Médio e no Egito. Quando Alexandre morreu aos 33 anos, o seu
império foi dividido entre os seus generais, dois dos quais ficaram com as terras bíblicas. A
Síria coube a Seleuco e seus descendentes (os selêucidas) e o Egito a Ptolomeu. A Palestina
sofreu fortemente as influências helenizantes dessas duas dinastias. Especialmente
influenciados foram os judeus que viviam fora da Palestina, na Diáspora (= dispersão),
especialmente no Egito. Muitos deles, falando apenas o grego, não mais podiam ler as suas
Escrituras na língua original. Com isso, o Velho Testamento precisou ser traduzido para o
grego, tradução essa que recebeu o nome de Septuaginta (LXX). Essa foi a Bíblia dos
primeiros cristãos. Como uma versão popular do grego, o koiné (= comum), era a língua
mais falada em torno do Mediterrâneo, o Novo Testamento eventualmente foi todo escrito
nesse idioma.

Além da contribuição linguística, os gregos também legaram ao mundo antigo a sua


riquíssima reflexão filosófica e toda uma cosmovisão (maneira de ver o mundo e a vida)
gerada por essa reflexão. Algumas das principais correntes filosóficas foram as de Platão,
Aristóteles, dos estóicos e dos epicureus. Vários conceitos dessas escolas eram bastante
difundidos quando surgiu o cristianismo. Por exemplo, o contraste entre a verdadeira
realidade (o mundo das idéias ou das coisas espirituais) e o mundo material das sombras
(um pálido reflexo das realidades eternas). Outro conceito muito difundido era o de que,
assim como o corpo tem uma alma, também o mundo é governado e mantido coeso por
uma alma racional, o Logos, do qual cada alma humana é uma centelha. Encontramos
referências a esses movimentos e a esse vocabulário em algumas passagens do Novo
Testamento como João 1:1,14; Atos 17:18; Fp 4.11,13; Hebreus 8:5; 10:1. A filosofia
solapou a crença nas velhas religiões, mas não ofereceu uma alternativa satisfatória para as
necessidades espirituais das pessoas.

(2) Os romanos:
Se a contribuição dos gregos foi nas áreas linguística, cultural e filosófica, os romanos
deram notável contribuição ao mundo em que surgiu o cristianismo nos aspectos político,
jurídico e administrativo. O Império Romano emergiu um pouco antes da era cristã, quando
Otaviano foi aclamado como César Augusto, tornando-se o primeiro imperador dos
romanos (27 AC-14 DC). Os romanos, com seu vasto império, abrangendo muitos povos e
culturas, imprimiram no mundo antigo o conceito de uma unidade que transcendia a
diversidade. Nesse aspecto, havia um interessante paralelo com a igreja cristã, que sendo
uma só, era composta de uma grande variedade de pessoas. Através da sua legislação
avançada, de seu exército e de suas instituições, os romanos criaram um ambiente de ordem
e segurança como nunca se vira nas terras em torno do Mediterrâneo. A "pax romana"
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permitiu que as viagens, tanto marítimas como terrestres, se tornassem mais rápidas e
seguras, o que certamente veio a facilitar a difusão do cristianismo.

No aspecto religioso, o Império Romano era caracterizado por uma grande diversidade de
opções. Havia em primeiro lugar a religião tradicional e familiar dos deuses greco-romanos.
Além disso, estavam florescendo no primeiro século as chamadas "religiões de mistério",
que comunicavam suas verdades mais profundas somente aos iniciados (cultos esotéricos).
As principais eram a religião de Cibele (vinda da Ásia Menor), de Ísis e Osíris (do Egito) e
de Mitra (da Pérsia). O mitraísmo tornou-se especialmente popular no exército romano.
Finalmente, havia o culto imperial ou estatal de Roma, com freqüência voltado para a
própria pessoa do imperador, culto esse que tinha um elemento fortemente político, como
símbolo da unidade do império e da lealdade ao mesmo. A recusa obstinada em participar
desse culto traria sérias conseqüências para os cristãos.

(3) Os judeus:
Sem dúvida, a principal matriz do cristianismo foi o judaísmo, em cujo seio nasceu. Na
época de Cristo, a Palestina estava sob dominação romana. No segundo século antes de
Cristo, as atitudes despóticas de um rei selêucida, Antíoco Epifânio, haviam provocado a
revolta dos macabeus (167 AC). Então, por cerca de um século os judeus gozaram de
independência política, até que, no ano 63 AC, os exércitos romanos, sob o comando do
general Pompeu, conquistaram a Palestina. Por conveniências políticas, os romanos
permitiram que a região fosse governada por reis vassalos, não-judeus, os Herodes.

O judaísmo era caracterizado pela existência de várias correntes. Havia os saduceus, que
controlavam o templo e eram colaboradores dos romanos. Os líderes religiosos mais
identificados com o povo eram os fariseus e os escribas, caracterizados pela mais estrita
obediência à lei. Havia também grupos menores, periféricos e radicais, como os zelotes e os
essênios (da comunidade de Qumran, junto ao Mar Morto). Sobre alguns desses grupos, ver
Mc 12.18; At 23.7-8. O judaísmo caracterizava-se pela centralidade do templo e da lei, pelo
rígido monoteísmo e por uma forte esperança escatológica. Na Diáspora, onde era lida a
Septuaginta (o VT em grego), muitos gentios se aproximaram do judaísmo, sendo
conhecidos como "prosélitos" (convertidos plenos) e "tementes a Deus" (simpatizantes).
Muitos deles eventualmente abraçaram o cristianismo, como vemos em Atos dos Apóstolos.

O cristianismo, como um movimento surgido no seio do judaísmo, recebeu muitas coisas


importantes do mesmo. Em primeiro lugar, seus primeiros seguidores, todos eles judeus.
Depois, as Escrituras Hebraicas, a fé monoteísta, os elevados preceitos éticos. Finalmente,
o culto cristão e o sistema de administração da igreja também foram inspirados pelas
práticas judaicas, especialmente através da notável instituição que era a sinagoga.

B. Jesus e o Surgimento da Igreja


Não vamos entrar em muitos detalhes nesse aspecto, em parte por causa da limitação do
nosso tempo, e em parte porque se trata de um tema familiar para os que conhecem o Novo
Testamento. Além disso, esse tópico é estudado em outras matérias, como introdução
bíblica. Para maiores informações, o aluno pode consultar a obra de Robert H. Gundry,
Panorama do Novo Testamento (Edições Vida Nova) e outras obras congêneres.
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Obviamente, os nossos pressupostos religiosos afetam profundamente a maneira como


encaramos a pessoa de Jesus Cristo. Muitos historiadores o vêem meramente como um
judeu carismático e perspicaz que questionou o status quo, acabou sendo morto por causa
disso e mais tarde foi divinizado pelos seus seguidores. Para nós, os cristãos, ele é o próprio
Filho de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai com o propósito expresso de
reconciliar os seres humanos com Deus. Os evangelhos nos falam das circunstâncias do seu
nascimento e pouco dizem sobre a sua infância e mocidade. O enfoque principal está sobre
o seu ministério de três anos, iniciado quando ele estava com trinta anos de idade (Lucas
3.23).

Seu trabalho foi tríplice: proclamar o reino de Deus, ensinar (nas sinagogas e outros
lugares) e curar os enfermos e aflitos. O reino por ele anunciado tinha como ponto central a
sua própria pessoa e ensino, e, em particular, a sua morte e ressurreição. Ele reuniu em
torno de si um grupo de seguidores e especialmente doze homens aos quais treinou e
enviou a pregar, designando-os como continuadores da sua missão (João 20.21). Ele deixou
aos seus seguidores os seus ricos ensinos e apenas duas ordenanças: o batismo com água
para simbolizar a purificação dos pecados e uma refeição de pão e vinho representando o
seu corpo e o seu sangue, ou seja, o seu sacrifício. Ele não deixou nenhuma organização
básica, sistema doutrinário bem definido ou livros sagrados.

Após a sua morte e ressurreição, os seus seguidores foram revestidos com o Espírito Santo
e comissionados a pregar as boas novas de Cristo e sua salvação até os confins da terra
(Atos 1.8). Por ocasião do Pentecostes, a comunidade inicial em Jerusalém era composta de
120 pessoas (Atos 1.15). Logo, através da pregação de Pedro e dos demais apóstolos, esse
número cresceu dramaticamente, não somente naquela cidade, mas em outras partes da
Palestina. Essa pregação acabou resultando em duas dificuldades. Primeiro, a oposição das
autoridades judaicas, na forma das primeiras perseguições. Segundo, o problema mais
explosivo do que fazer em relação aos gentios que estavam aceitando a nova mensagem.
Seria preciso que eles cumprissem a lei mosaica além de crerem em Cristo? Seria preciso
que primeiro se tornassem judeus para depois se tornarem cristãos? O relato da conversão
de Cornélio mostra como era forte a resistência dos judeus à recepção de gentios na igreja
(Atos 10).

Esse problema foi tratado e resolvido satisfatoriamente no assim chamado Concílio de


Jerusalém, descrito em Atos 15. Bastava que os gentios crêssem no Senhor Jesus; ao
mesmo tempo, deviam evitar certas práticas com o objetivo de terem comunhão com os
seus irmãos judeus, que tinham escrúpulos quanto a questões alimentares e outras. Essa
decisão abriu as portas para que o cristianismo deixasse de ser uma simples seita judaica e
se tornasse um movimento mais abrangente, aberto a pessoas de todas as raças e culturas. A
igreja primitiva destacava-se pela igualdade entre os seus membros, um código de ética
baseado no amor, serviço mútuo, principalmente aos necessitados, e a pregação incessante
da morte redentora e da ressurreição de Cristo.

Por cerca de quinze anos, a igreja de Jerusalém ocupou a liderança do novo movimento.
Posteriormente, a comunidade de Antioquia da Síria passou a exercer esse papel. Em
Antioquia, pela primeira vez o evangelho foi pregado deliberadamente aos gentios e os
discípulos também pela vez primeira foram chamados de "cristãos". Essa cidade tornou-se
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o centro de um poderoso esforço missionário transcultural que levou a mensagem cristã a


muitas regiões importantes do Império Romano. Um personagem central desse esforço foi
um judeu chamado Saulo.

C. A Contribuição de Paulo
O apóstolo Paulo foi o vulto mais influente dos primeiros tempos da igreja. Convertido no
famoso episódio da estrada de Damasco (Atos 9.1-19), ele passou de perseguidor da igreja
a ardoroso pregador do evangelho. Um testemunho da sua importância é o fato de que
metade dos livros do Novo Testamento estão diretamente ligados a ele. Atos dos Apóstolos
tem-no como principal protagonista. Quase dois-terços do livro dedicam-se a descrever
detalhadamente as suas viagens missionárias, através das quais ele plantou igrejas em
vários centros estratégicos da Ásia Menor (Antioquia da Pisídia, Galácia, Éfeso) e da
península grega (Filipos, Tessalônica, Corinto). Mais do que qualquer outro, Paulo
contribuiu para imprimir sobre a igreja a consciência do caráter universal da fé cristã.

Outra notável contribuição de Paulo foi literária e teológica. No sentido de orientar, advertir
e incentivar as igrejas que resultaram do seu ministério, ele escreveu muitas epístolas,
várias das quais foram preservadas e incluídas no Novo Testamento. Outras quatro cartas
também preservadas foram enviadas a colaboradores seus (Timóteo, Tito e Filemom).
Finalmente, Paulo escreveu uma extraordinária carta a uma igreja fundada por outros
cristãos, em Roma. Como o apóstolo queria apresentar-se a essa igreja que não conhecia,
para que ela o encaminhasse a outros pontos do Império Romano (Romanos 15.22-24), ele
sentiu a necessidade de expor mais plenamente as suas convicções e o evangelho que
pregava. O resultado foi um documento de grande complexidade e beleza que revelou outro
aspecto da contribuição de Paulo: sua profunda e criativa reflexão teológica sobre a
realidade de Cristo e suas implicações para o crente, para a igreja e para a sociedade.

Finalmente, Paulo destacou-se como polemista, lutando pela integridade da doutrina cristã,
especialmente quanto à pessoa e obra de Cristo. Nesse esforço, ele enfrentou uma longa
luta contra os judaizantes, os cristãos hebreus ainda fortemente ligados à lei e às tradições
judaicas, especialmente no que diz respeito à circuncisão (ver Gálatas 1.6-9; 2.3; 4.9-11).
Paulo também voltou-se, pelo menos em uma de suas cartas (Colossenses), contra uma
heresia sincrética de tipo gnóstico que aparentemente considerava Cristo como parte de
uma hierarquia de seres celestiais e apelava tanto para costumes judaicos quanto para
práticas ascéticas e um conhecimento especial.

D. A Experiência da Perseguição
No decurso do seu trabalho, Paulo defrontou-se de maneira crescente com a realidade da
oposição contra o cristianismo. As primeiras manifestações de intolerância contra os
cristãos haviam ocorrido ainda na Palestina, por parte do Sinédrio e dos Herodes. Entre os
primeiros mártires contavam-se Estêvão e Tiago, o irmão de João (ver Atos 7.58-59 e 12.1-
2). Posteriormente, à medida que a fé cristã se difundia pelo Império Romano, os discípulos
continuaram a sofrer a oposição dos judeus e também agora da parte de gentios, cujos
deuses eram negados pelos cristãos. Mas a primeira perseguição "oficial" romana contra os
cristãos só veio a ocorrer no reinado de Nero, por volta do ano 64. Essa perseguição teve
conexão com um grande incêndio que destruiu boa parte da cidade de Roma. Sob a suspeita
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de haver ordenado o incêndio, Nero culpou os cristãos da cidade e os maltratou cruelmente,


conforme a interessante descrição de Tácito, um autor daquela época.

Ainda no primeiro século (c. 95), outro imperador, Domiciano, perseguiu os cristãos da
Ásia Menor, diante de sua recusa de participar do culto imperial. Essa perseguição é o pano
de fundo do exílio de João na ilha de Patmos e do livro do Apocalipse. Nos séculos
seguintes, a igreja haveria de sofrer ataques muito maiores, aos quais voltaremos nas
próximas aulas. Essa experiência gerou entre os primeiros cristãos uma verdadeira
glorificação do martírio como uma experiência altamente desejável e honrosa para um
seguidor de Cristo.

E. O Fim da Era Apostólica


A década de 60 foi especialmente importante para a igreja primitiva. Nessa década,
morreram os últimos dos apóstolos originais de Cristo, à exceção de João. Segundo a
tradição praticamente unânime da igreja antiga foi nessa época que morreram martirizados
os dois apóstolos mais destacados, Pedro e Paulo. Essas mortes teriam ocorrido no contexto
da perseguição promovida por Nero, na cidade de Roma.

Outro evento de grande magnitude foi o declínio do cristianismo judaico em virtude do


cerco e eventual destruição de Jerusalém. Quando o cerco começou, no ano 66, os cristãos
hebreus fugiram da cidade e foram para Pela, no outro lado do rio Jordão. Ali, com o passar
dos anos, esses judeus-cristãos, separados do restante da igreja, desenvolveram
características peculiares, vindo mais tarde a desaparecer nas brumas do tempo. Conhecidos
como "ebionitas", eles articularam uma posição teológica acerca de Cristo conhecida como
adocionismo. Jesus teria sido um mero homem que foi adotado por Deus como filho por
ocasião do seu batismo. Essa posição seria mais tarde defendida por outras pessoas no
cristianismo antigo.

A destruição de Jerusalém contribuiu decisivamente para a emancipação definitiva da igreja


em relação ao judaísmo. Nas primeiras décadas, muitas pessoas ainda podiam pensar que os
cristãos eram um grupo ou seita dentro do judaísmo. Essa identificação às vezes ajudava e
às vezes prejudicava os cristãos. Após a revolta dos judeus e a conseqüente punição dos
romanos, ficou cada vez mais claro que o judaísmo e o cristianismo eram religiões bastante
distintas.

No final do primeiro século, o cristianismo havia se difundido amplamente em muitas


regiões do Oriente Médio e da Europa e estava se preparando para a sua grande conquista
poucos séculos depois: o Império Romano. As igrejas ainda reuniam-se em residências
particulares e salões públicos; só mais tarde seriam construídos os primeiros templos. Havia
dois tipos de líderes: aqueles que possuíam certos dons, como os profetas e mestres, e
líderes mais formais, eleitos pelas comunidades, como os presbíteros ou bispos (Atos
20.17,28; Tito 1.5,7) e os diáconos.

Havia dois tipos de cultos aos domingos: um culto matutino centrado na pregação da
Palavra e um culto vespertino com ênfase sacramental. Em conexão com o mesmo, os
cristãos realizavam uma ceia comunitária denominada "agape" (=festa do amor), na qual
era celebrada a Ceia do Senhor. No final do século o agape caiu em desuso e a Santa Ceia
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passou a ser celebrada no culto matutino. Os primeiros cristãos causaram grande impacto
na sociedade greco-romana em virtude de seu amor mútuo, coragem e elevados padrões
éticos. Eles separavam-se firmemente das práticas pagãs (idolatria, imoralidade), mas ao
mesmo tempo insistiam em ter uma participação construtiva na sociedade, esforçando-se
por cumprir os seus deveres cívicos e ser bons cidadãos.

F. Cronologia Básica

Ano Evento

30 Morte, ressurreição e ascensão de Jesus

30-44 Liderança da igreja de Jerusalém

35 Conversão de Saulo

41-54 Reinado de Cláudio

44-64 Liderança da igreja de Antioquia

46-48 Primeira viagem missionária de Paulo

49 Concílio de Jesuralém

50-52 Segunda viagem missionária

51 Judeus (e cristãos) expulsos de Roma (Atos 18:2)

53-57 Terceira viagem missionária

54-68 Reinado do Nero

59-62 Prisão de Paulo em Roma

64 Incêndio de Roma (martírio de Paulo e Pedro?)

66 Revolta judaica; cristãos de Jerusalém fogem para Pela


12

70 Destruição de Jerusalém e do templo

81-96 Reinado de Domiciano

90-95 João em Patmos, Apocalipse

95 Epístola de Clemente aos coríntios

Implicação Prática
O cristianismo surgiu de maneira extremamente modesta, mas tinha dentro de si um grande
potencial para a transformação do mundo. Esse potencial resultava da sua origem divina e
do caráter do seu fundador. Não devemos desprezar "o dia dos humildes começos" (Zc
4.10), porque é assim que com muita freqüência Deus escolhe agir.

O cristianismo permanece de pé ou cai dependendo das convicções que temos sobre os seus
fundamentos. Para os cristãos conscientes, estes fundamentos são o eterno propósito de
Deus Pai, a obra redentora do Filho e o direção do Espírito Santo. Crendo nessas verdades,
os primeiros cristãos impactaram o seu mundo. Nós somos chamados a fazer o mesmo na
nossa geração.

A Igreja “Católica” (100-313)

Introdução
A igreja cristã experimentou importantes mudanças nas últimas décadas do primeiro século.
Essas mudanças foram tanto de caráter teológico quanto institucional. Um dado
significativo é que temos poucas informações sobre esse período (anos 70 a 95). Nenhum
documento importante dessa época chegou até nós. Quando os documentos reaparecem, a
partir do ano 95 (ano aproximado da perseguição de Domiciano), nos deparamos com uma
igreja mais organizada e centralizada administrativamente, bem como com ênfases
teológicas um tanto diferentes daquelas do Novo Testamento. São os primórdios do
surgimento da igreja “católica.” O chamado “velho catolicismo” é uma referência à igreja
pré-constantiniana, ou seja, anterior ao imperador Constantino (ano 313), cujas ações
decisivas analisaremos na próxima aula.

A. A Igreja “Católica”
No segundo século, diante de crescentes problemas internos (diversidade teológica,
heresias) e desafios externos (acusações, perseguições), a igreja sentiu a necessidade de
definir mais claramente a sua identidade institucional e teológica. O objetivo visado era a
obtenção de maior unidade estrutural e uniformidade doutrinária. Desse processo resultou a
igreja “católica”.
13

A expressão “igreja católica” é encontrada pela primeira vez numa carta escrita pelo bispo
Inácio de Antioquia à Igreja de Esmirna, por volta do ano 110. A palavra vem do grego
katholikos e significa geral, universal (de kata = “de acordo com” + holos = “o todo”). A
partir do segundo século, a expressão foi utilizada para designar a igreja verdadeira,
apostólica e ortodoxa, em oposição aos movimentos dissidentes, aos grupos heterodoxos ou
heréticos.

A igreja católica caracterizava-se pelos seguintes elementos de unidade e identidade:

> O bispo monárquico: ao contrário do primeiro século, em que cada igreja tinha vários
bispos ou presbíteros, agora cada igreja passou a ter um só bispo, com autoridade sobre os
presbíteros e os diáconos. Para isso, deu-se ênfase à idéia de sucessão apostólica. Os bispos
tornaram-se os guardiães da unidade e ortodoxia da igreja. O crescimento da importância
dos bispos eventualmente deu grande destaque aos bispos das cidades mais importantes,
especialmente o de Roma.

> A regra de fé: as verdades fundamentais da fé cristã passaram a ser claramente expressas
na forma de credos “trinitários”. Essas declarações de fé tinham fins didáticos/catequéticos,
confessionais/litúrgicos e apologéticos. Encontramos alguns exemplos antigos dessa regra
de fé nos escritos de Irineu (ver adiante). À medida que o tempo passou, os credos foram
ficando mais extensos e complexos, até chegarmos aos séculos IV e V com suas
sofisticadas formulações credais.

> O cânon do Novo Testamento: a formação do cânon consistiu na definição da literatura


cristã tida como divinamente inspirada e, portanto, normativa para a vida e a fé da igreja.
Inicialmente foram reunidos os quatro evangelhos e as epístolas paulinas, o livro de Atos
dos Apóstolos servindo como ligação entre ambas as coleções. Por último, foram
acrescentadas as epístolas gerais (Hebreus a Judas) e o Apocalipse. Os critérios de inclusão
no cânon foram os da apostolicidade, ortodoxia e aceitação geral. Alguns livros levaram
mais tempo para ser aceitos do que outros.

B. Os Pais Apostólicos
O final do primeiro século e o início do segundo marcam também o início da era dos pais
da igreja. Trata-se dos antigos autores cristãos que com seus escritos instruíram as igrejas,
articularam a doutrina cristã e combateram desvios teológicos do seu tempo. Eles podem
ser entendidos como os campeões ortodoxos da igreja e os expositores da sua fé. O estudo
dos pais da igreja geralmente é designado por dois termos correlatos: patrística e patrologia.
A patrística refere-se ao estudo do pensamento dos pais, da sua teologia, e a patrologia é o
estudo histórico dos próprios personagens e da sua obra.

O conjunto dos primeiros escritos cristãos posteriores ao Novo Testamento é conhecido


pelo nome de “pais apostólicos.” Eles são designados de “apostólicos” porque surgiram
pouco depois dos apóstolos e revelam uma certa conexão com eles. É importante observar
que a expressão “pais apostólicos” não designa somente indivíduos, mas também
documentos anônimos. O período aproximado em que foram produzidos vai de 95 a 150
DC.
Os pais apostólicos não contêm nenhuma teologia elaborada. São antes declarações simples
14

e piedosas das verdades fundamentais da fé, ditadas principalmente por um interesse


pastoral. As principais características desses autores e documentos são as seguintes:

NOS DOCUMENTOS DOS PAIS APOSTÓLICOS HAVIA


Ausência de elaborações filosóficas.

Grande reverência pelo Antigo Testamento.

Interpretação tipológica (e alegórica) das Escrituras.

Familiaridade com as formas literárias do Novo Testamento.


Preocupação pastoral e prática: exortação à paz, unidade e
pureza da igreja; ênfase ao episcopado; celebração do martírio.

A maior parte dos pais apostólicos é constituída de literatura epistolar, ou seja, cartas. Dois
deles correspondem a outros gêneros, um à literatura apocalíptica e outro à literatura
catequética. A relação completa é a seguinte:

> Clemente de Roma (c. 30-100), um dos bispos da igreja de Roma, escreveu em nome da
sua igreja à igreja co-irmã de Corinto, exortando os crentes a serem submissos aos seus
presbíteros. Essa epístola, conhecida como I Clemente, foi escrita por volta do ano 95.
> Inácio, o bispo de Antioquia da Síria, foi condenado à morte por volta do ano 110 e
levado a Roma para ser executado. Durante a viagem, escreveu cartas às igrejas de
Eféso, Magnésia, Trales, Roma, Filadélfia, Esmirna e a seu colega Policarpo.
Preocupações dominantes: o martírio iminente do autor, a unidade da igreja e os
movimentos heréticos e cismáticos.
> Policarpo (c. 70-155), bispo de Esmirna, escreveu uma carta aos filipenses por volta de
110, contendo exortações práticas. Policarpo foi martirizado no reinado do imperador
Antonino Pio.
> Papias (c. 60-c.130), bispo de Hierápolis, na Frígia, escreveu “Interpretações dos Ditos
do Senhor”, sobre a vida e as palavras de Cristo. Essa obra só é conhecida através de
trechos preservados por Irineu de Lião e Eusébio de Cesaréia.
> Epístola de Barnabé (c. 130): escrita por um cristão anônimo de Alexandria, afirma a
suficiência de Cristo em relação à lei de Moisés; utiliza amplamente tipologia e
alegoria.
> O Pastor, de Hermas (c. 150): baseado no Apocalipse, tem um objetivo moral e prático,
dando ênfase ao arrependimento e a uma vida de santidade.
> II Epístola de Clemente aos coríntios (c. 150): não foi escrita por Clemente, nem é uma
carta, e sim um sermão ou homilia do segundo século.
> Didaquê ou O Ensino dos Doze Apóstolos (2° séc.): é um manual de instrução para a
igreja, abordando ensinos éticos, normas litúrgicas, os oficiais da igreja e questões
disciplinares. É muito útil para o estudo da igreja sub-apostólica.
> Epístola a Diogneto (c. 200): foi escrita por um autor anônimo a um destinatário
desconhecido (tutor de Marco Aurélio?). Tem caráter apologético (=defesa racional do
cristianismo) e às vezes é incluída entre os pais apologistas (ver adiante).
15

Os alunos que desejarem ler na íntegra, em português, esses importantes escritos, poderão
encontrá-los na Coleção Patrística (São Paulo: Paulus Editora), vols. 1 e 2.

C. Desafios Enfrentados
Como já foi apontado, a igreja desde cedo defrontou-se com formidáveis desafios, tanto
dentro de suas fileiras quanto fora das mesmas.

1. Desafios internos: os principais desafios internos do segundo e terceiro séculos foram


algumas interpretações da fé cristã consideradas heterodoxas pelo grupo majoritário. As
principais foram as seguintes:

>Docetismo: era o entendimento de que Jesus Cristo não havia de fato assumido uma
natureza humana, corpórea. Antes, ele tinha apenas uma aparência de humanidade (daí,
docetismo, do grego dokéo = parecer), sendo uma espécie de fantasma ou aparição.
Essa posição já é condenada nas epístolas joaninas (ver 1 João 4.2; 2 João 7). As cartas
de Inácio de Antioquia contêm muitas condenações do docetismo.

>Gnosticismo: foi uma filosofia religiosa de natureza altamente especulativa que surgiu
no primeiro século, mas tornou-se uma grande ameaça para o cristianismo majoritário a
partir de meados do século II (c. 130-160). Partindo de uma concepção dualista acerca
do mundo (espírito x matéria), propôs uma reinterpretação radical da fé cristã, negando
doutrinas como a criação, a encarnação e a ressurreição. A salvação vinha através do
conhecimento (gnosis) acerca da verdadeira origem e destino da alma. Esse
conhecimento mais profundo era transmitido somente aos iniciados. Havia várias
modalidades de gnosticismo (sírio, egípcio, judaizante).

>Marcionismo: Márcion foi um cristão do Ponto, na Ásia Menor, que chegou a Roma
por volta do ano 144. Partilhando da cosmovisão gnóstica, ele propôs uma
descontinuidade radical entre a velha e a nova dispensação (o cristianismo não tinha
nada em comum com o judaísmo, sendo uma religião inteiramente nova). Assim sendo,
ele rejeitou por completo o Velho Testamento e o seu Deus, Jeová, tido como uma
divindade inferior, o criador da matéria. Em contraste com Jeová (um ser justiceiro e
vingativo), o Deus verdadeiro, o Pai de Jesus Cristo, é um Deus plenamente amoroso e
perdoador, que não condena ninguém. Portanto, no fim todos irão se salvar. Márcion foi
o primeiro indivíduo na história da igreja a elaborar uma lista de escritos cristãos
normativos. O seu cânon continha apenas o evangelho de Lucas e as cartas de Paulo às
igrejas (sem as pastorais), tendo excluídas as suas referências ao Velho Testamento. O
cânon marcionita forçou a igreja a elaborar a sua própria lista de livro autorizados, ou
seja, o Novo Testamento.

>Montanismo: esse antigo movimento de natureza entusiástica ou carismática,


autodenominado “nova profecia”, surgiu na Frígia, Ásia Menor, na década de 170. Foi
iniciado por um cristão chamado Montano, que era acompanhado de duas profetizas,
Priscila e Maximila. Montano considerava-se o instrumento especial do Paracleto (o
Espírito Santo) e anunciou o iminente fim do mundo e a descida da Nova Jerusalém em
sua região, a Frígia. O montanismo foi um protesto contra o crescente mundanismo da
16

igreja e, devido a seus rigorosos padrões morais, atraiu a simpatia do grande intelectual
cristão Tertuliano, sobre o qual falaremos adiante.

>Monarquianismo: no segundo século houve intensa reflexão sobre a teologia do Logos


(Cristo como o Verbo) e suas implicações. Vários pensadores cristãos, na ânsia de
defender a convicção básica do monoteísmo ou a unidade do Ser Divino (daí,
“monarquia”, isto é, governo de um só), acabaram por negar a divindade ou a
personalidade distinta do Filho e do Espírito Santo. Houve duas manifestações básicas:
(a) Monarquianismo Dinâmico: afirmava que Jesus era um homem comum que foi
adotado por Deus na ocasião do seu batismo, sendo revestido do poder divino (daí,
“dinâmico”, de dynamis = poder). Essa posição, abraçada pelos ebionitas e por Paulo de
Samósata, também é chamada de adocionismo. (b) Monarquianismo Modalista:
afirmava que Pai, Filho e Espírito Santo são três modos ou manifestações sucessivas
(não simultâneas) do único Deus. Também é conhecido como sabelianismo, por causa
de um de seus defensores (Sabélio). Uma variante dessa posição é o patripassianismo, a
noção de que o próprio Pai sofreu na cruz (defendida por Práxeas e Noeto).

2. Desafios externos: no segundo e terceiro séculos, além dos questionamentos internos, o


jovem movimento cristão enfrentou formidáveis ameaças externas.

Em primeiro lugar, houve o recrudescimento das perseguições por parte do Império


Romano. A bem da verdade, é preciso observar que, com algumas exceções, essas
perseguições não foram contínuas nem generalizadas. As causas iam desde as habituais
alegações de incesto (por causa da ênfase no amor fraternal), canibalismo (por causa da
Ceia do Senhor) e ateísmo (pela negação dos deuses), até acusações mais especificamente
políticas de subversão, falta de patriotismo e deslealdade ao império, principalmente em
virtude da recusa dos cristãos em participar do culto imperial.

Duas perseguições intensas, mas localizadas, ocorreram nos reinados de Marco Aurélio e
Sétimo Severo. A primeira atingiu as igrejas de Lião e Viena, na Gália, no ano 177; a
segunda abateu-se sobre o Egito e Cartago nos anos 202-206. Alguns mártires famosos
foram Justino, Potino, Blandina, Perpétua e Felicidade. Muito mais grave foi a perseguição
geral movida pelo imperador Décio em 250-251. Decidido a impor em todas as regiões o
culto imperial, Décio exigiu que todos tivessem um certificado de sacrifício (libellus).
Muitos cristãos foram martirizados e outros conseguiram sobreviver aos maus tratos (os
confessores). Muitos outros negaram a fé: alguns simplesmente ofereceram o sacrifício e
ficaram conhecidos como sacrificati; outros, os libellatici, compraram certificados falsos.
Passada a perseguição, muitos desses relapsos procuraram reingressar na igreja, gerando
um sério problema pastoral para os bispos.

Em dois longos períodos de paz no terceiro século (206-250 e 260-303), a igreja


experimentou um crescimento sem precedentes. Finalmente, no início do quarto século,
ocorreu a última e a maior de todas as perseguições, sob os imperadores Diocleciano e
Galério (303-311). Foram publicados editos ordenando em toda parte a destruição das
igrejas e de cópias das Escrituras. Os cristãos que entregaram essas cópias ficaram
conhecidos como traditores (= traidores). Dessa época data o cisma donatista, no norte da
África. Os cismáticos, dentre os quais um certo Donato, alegaram que uma determinada
17

consagração episcopal foi inválida porque um dos bispos consagrantes teria sido um
traditor. O cisma donatista durou mais de um século, criando uma igreja paralela à igreja
católica.

Outro desafio externo enfrentado pela igreja na era anterior a Constantino foram os ataques
de ilustres intelectuais pagãos como Luciano de Samosata, Galeno e Celso na segunda
metade do século II, e Porfírio, no terceiro século. Numa época em que o cristianismo
crescia a olhos vistos e incomodava seriamente o paganismo, esses homens cultos
escreveram obras influentes em que os cristãos eram acusados de serem ignorantes,
supersticiosos e inimigos da cultura e do conhecimento.

D. A Defesa da Fé
Rapidamente surgiram no seio da igreja respostas de pensadores cristãos a esses desafios.
Os defensores intelectuais do cristianismo no segundo e terceiro séculos ficaram
conhecidos como os apologistas e os polemistas.

1. Os apologistas (de apologia = discurso de defesa) surgiram um pouco depois dos pais
apostólicos, já estudados nesta aula. Quase todos viveram na segunda metade do
segundo século. Suas características gerais são as seguintes: eram convertidos do
paganismo ou do judaísmo, enfrentaram ataques externos, usaram principalmente o
Antigo Testamento, defenderam ou explicaram o cristianismo e utilizaram formas
literárias apologéticas ou dialógicas. Dirigiram os seus escritos às autoridades, bem
como a judeus e a intelectuais pagãos, defendendo os cristãos das muitas acusações que
lhes eram feitas.
>Os apologistas foram os seguintes: Quadrato, Aristides, Justino Mártir, Taciano,
Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antioquia, Melito de Sardes e Hegésipo. O mais
destacado deles foi Justino Mártir (100-165), um filósofo cristão que viveu em Roma e
escreveu duas apologias e o Diálogo com Trifão, o Judeu. Taciano, seu discípulo,
escreveu uma harmonia dos evangelhos, o Diatessaron, e um Discurso aos Gregos.
Atenágoras escreveu a belíssima Súplica pelos Cristãos e Teófilo produziu a longa
apologia A Autólico. Algumas dessas obras podem ser encontradas na já mencionada
Coleção Patrística, vols. 2 e 3.

2. Os polemistas: outro grupo de defensores da fé foram os chamados polemistas, que


viveram no final do segundo século e primeira metade do terceiro. Em geral, tiveram
maior estatura intelectual que os apologistas e foram mais agressivos do que eles em
seus escritos (daí “polemistas”, do grego pólemos = guerra). Alguns deles dirigiram-se
contra intelectuais pagãos; mais comumente, porém, voltaram-se contra falsos ensinos
dentro da igreja. Esses pais da igreja viveram em três regiões distintas do Império
Romano: Gália, Cartago (norte da África) e Egito. Os mais importantes foram Irineu de
Lião, Tertualiano, Cipriano, Clemente de Alexandria e Orígenes. Outros menos
conhecidos foram Hipólito, Júlio Africano e Gregório Taumaturgo.

>Irineu (c.135-c.200) foi bispo de Lião, no sul da Gália (atual França), e escreveu em
grego uma monumental obra contra os gnósticos, intitulada Contra as Heresias. Quase
na mesma época viveu em Cartago, uma colônia romana no norte da África, Tertuliano
(c.160-c.220), o primeiro escritor cristão a utilizar o latim e por isso chamado de “pai da
18

teologia latina”. Entre suas obras polêmicas, destacam-se Prescrição aos Hereges,
Contra Márcion e Contra Práxeas, na qual antecipou a doutrina da trindade. No final
da sua vida, aderiu ao movimento montanista. Outro importante escritor de Cartago foi
o bispo Cipriano (c.200-258), que ressaltou a importância do episcopado e morreu
como mártir. Em Alexandria, no Egito, foi fundada uma famosa escola catequética que
teve como seus grandes líderes Clemente de Alexandria (c.150-c.215) e o extraordinário
Orígenes (c.185-c.254), o mais influente pensador cristão do seu tempo e autor da obra
Dos Primeiros Princípios, a primeira teologia sistemática, e de uma obra polêmica,
Contra Celso, além de muitíssimos outros livros.

E. A Vida da Igreja
No início do quarto século, o culto cristão estava mais formalizado e dotado de uma liturgia
elaborada, principalmente no que concerne à celebração dos sacramentos. O batismo era
precedido de uma longa preparação, o catecumenato, e geralmente ocorria na Páscoa ou no
Pentecostes. Podia ser ministrado por imersão ou por efusão (água derramada sobre a
cabeça). Já havia se difundido a convicção de que esse rito literalmente purificava os
pecados da pessoa batizada. A santa ceia ou eucaristia havia se tornado a principal
celebração cristã, sendo entendida como um sacrifício. Portanto, os seus oficiantes eram
vistos como sacerdotes distintos dos demais cristãos, os leigos. A organização da igreja
havia se tornando fortemente hierárquica, sob a firme liderança dos bispos. No final desse
período, os cristãos também começaram a construir os seus primeiros templos. Em Roma,
os cristãos reuniam-se nas catacumbas, locais onde também sepultavam os seus mortos.

No final do período que estamos estudando (início do quarto século), o cristianismo já


estava firmemente implantado em várias regiões do norte da África, inclusive o Egito, bem
como na Síria, Armênia, Mesopotâmia, toda a Ásia Menor, a península grega, Itália, sul da
Gália e sul da Espanha. Também já havia cristãos ao sul dos rios Reno e Danúbio e até
mesmo na longínqua Britânia. Em outras palavras, a fé cristã já havia alcançado quase
todas as regiões do vasto Império Romano e no oriente ultrapassava as suas fronteiras. Não
houve missionários famosos nesse período: a fé era difundida pelos cristãos comuns em
seus contatos com outras pessoas e povos. A igreja era composta de indivíduos de todas as
classes sociais, desde escravos até nobres.

Implicações Práticas
Esse foi um período heróico da igreja antiga, em que os cristãos procuravam viver a vida
cristã e testemunhar acerca da sua fé em meio a circunstâncias freqüentemente adversas.
Sua coragem e coerência no meio das perseguições e perplexidades do seu tempo nos
inspiram e motivam a “viver de modo digno do evangelho” e a “lutar juntos pela fé
evangélica” (Filipenses 1.27) nos dias atuais.

O esforço tanto dos grandes intelectuais cristãos quanto dos crentes comuns dos primeiros
séculos, no sentido de comunicar as suas convicções aos seus contemporâneos e dar uma
contribuição construtiva à sua sociedade, nos desperta para as grandes oportunidades e
responsabilidades que temos em nossa geração.

A Igreja Imperial (313-590)


19

1. A Grande Transição
No ano 313, ocorreu um evento extraordinário que mudou drasticamente os rumos da
história da igreja. Esse evento foi o decidido apoio do imperador Constantino ao
cristianismo. Constantino havia começado a governar em 308, mas só em 312 ele
conseguiu vencer o seu rival Maxêncio, na batalha da Ponte Mílvia, perto de Roma,
tornando-se o único imperador da parte ocidental do império. Pouco antes da batalha ele
tivera o famoso sonho em que viu as duas primeiras letras do nome de Cristo em grego (χρ
= chi-rho) e as palavras “Com este sinal vencerás”. No ano seguinte, ele e Licínio, o
dirigente da seção oriental do império, se encontraram e promulgaram um decreto que ficou
conhecido como Edito de Milão. Esse famoso decreto legalizou o cristianismo, fez cessar
as perseguições e deu ampla liberdade religiosa a todas as pessoas.

Constantino passou a fazer generosas concessões à igreja e seus líderes, em termos de


doação de propriedades, isenção de tributos e outros privilégios. Um importante cronista
dessa época foi Eusébio de Cesaréia, que escreveu História Eclesiástica (300-325), a
primeira história da igreja. Em troca dos benefícios concedidos à igreja, Constantino sentiu-
se no direito de intervir em questões eclesiásticas, como no caso da controvérsia ariana, que
veremos a seguir. Começou assim o complexo e por vezes tumultuado relacionamento entre
a igreja e o estado que dura, de uma forma ou de outra, até os nossos dias.

Na segunda metade do século IV, o imperador Juliano (361-63), cognominado “o apóstata”


por ter abandonado a fé cristã, fez a última tentativa de restaurar o paganismo. Duas
décadas depois, o imperador Teodósio I (379-95), um espanhol, tornou o cristianismo
“católico” a religião oficial do Império Romano (ano 380). No século seguinte, o Império
Romano ocidental (latino) entrou em declínio acentuado. No ano 476, o general germânico
Odoacro destronou Rômulo Augústulo, o último imperador do ocidente. No oriente grego,
o império continuou a existir por muitos séculos, tendo sua capital em Constantinopla ou
Bizâncio e sendo conhecido como Império Bizantino. Um notável líder desse império foi
Justiniano (527-565).

2. A Controvérsia Ariana (4o. século)


Por volta do ano 318, Ário, um presbítero de Alexandria (Egito), começou a ensinar que
Cristo, o Filho de Deus, foi criado pelo Pai antes da existência do mundo, sendo portanto
inferior ao Pai, mas superior aos seres humanos. Esse ensino gerou uma enorme
controvérsia em toda a igreja. Constantino, temendo pela estabilidade política do império,
convocou um concílio de bispos para resolver essa e outras questões. O Concílio de Nicéia,
na Ásia Menor, reuniu-se em 325, sendo presidido pelo próprio imperador. Depois de
muitas discussões, o concílio aprovou um credo, o Credo de Nicéia, que afirmou a
divindade de Jesus Cristo e condenou as posições arianas. Uma palavra importante e
controvertida dessa declaração foi homoousios, isto é, “consubstancial”. Cristo partilha da
mesma substância que o Pai. Estava assim definida a doutrina da trindade, ou seja: o Pai, o
Filho e o Espírito Santo são três “pessoas” que compartilham da mesma “substância” ou
essência divina, sendo, portanto, um só Deus.

Mais tarde, sempre por razões políticas, Constantino e seus filhos apoiaram a posição
condenada, o arianismo, gerando grande problemas para a igreja, até que, como vimos
20

acima, o imperador Teodósio oficializou o cristianismo trinitário, niceno. No ano seguinte,


Teodósio convocou o Concílio de Constantinopla (381), que reafirmou plenamente as
decisões do Concílio de Nicéia. Esse concílio aprovou um novo credo que expandiu as
declarações de Nicéia e afirmou explicitamente a divindade do Espírito Santo (Credo
Niceno-Contantinopolitano). Na grande luta em defesa das decisões de Nicéia, destacaram-
se quatro importantes pais da igreja oriental: Atanásio (328-373), bispo de Alexandria, que
escreveu as obras Sobre a Encarnação do Verbo e Discursos Contra os Arianos (e foi
exilado cinco vezes por causa de suas posições), e três bispos e teólogos da Ásia Menor,
conhecidos como os três capadócios: Basílio de Cesaréia (†379), Gregório de Nazianzo
(†c.389) e Gregório de Nissa (†c.394).

3. As Controvérsias Cristológicas (5o. século)


No século V foi discutido um novo problema teológico: como se relacionam as duas
naturezas de Cristo, a divina e a humana. Havia duas posições divergentes. Uma delas era
representada pela Escola de Alexandria, surgida no terceiro século. Os alexandrinos eram
adeptos do método alegórico de interpretação das Escrituras, procurando ver no texto
significados ocultos, místicos. No que diz respeito a Cristo, entendiam que o Verbo uniu-se
à carne, sendo uma pessoa plenamente integrada. Acentuavam, pois, a divindade de Cristo,
em detrimento da sua humanidade. Desse raciocínio, resultaram duas posições que foram
condenadas pela igreja. Apolinário de Laodicéia afirmava que Jesus era uma combinação
de alma divina (ou Logos = Verbo) e corpo humano. Eutiques, um monge de
Constantinopla, afirmou que as duas naturezas fundiram-se em uma só, a divina (daí o
nome dessa posição: monofisismo = uma só natureza).

Do outro lado estava a Escola de Antioquia, surgida no século IV. Essa escola dava mais
ênfase ao sentido literal da Escritura, evitando a interpretação alegórica. Afirmava que
Cristo tinha uma plena natureza divina e uma plena natureza humana. O problema estava na
tendência de dividir em duas a pessoa de Cristo. A posição clássica foi defendida por
Nestório, patriarca de Constantinopla (428-431). Ele afirmava com tanta ênfase a distinção
das duas naturezas que dava a impressão de ensinar que havia duas pessoas em Cristo
(divina e humana). Por isso, enquanto os alexandrinos afirmavam que Maria era theotokos
= “portadora de Deus”, Nestório dizia que ela era somente christotokos = “portadora ou
mãe de Cristo”.

Nestório encontrou um adversário extremamente agressivo na pessoa de Cirilo, patriarca de


Alexandria (412-444). Para tentar resolver a disputa, foi convocado o Concílio de Éfeso
(431). As posições eram tão antagônicas que os dois grupos tiveram de reunir-se
separadamente e excomungaram um ao outro. Finalmente, o imperador Teodósio II
interveio, tomou o partido de Cirilo e baniu Nestório. Vinte anos depois, o imperador
Marciano convocou o importante Concílio de Calcedônia (451) para resolver a questão de
uma vez por todas. A célebre Definição de Calcedônia afirmou a plena divindade e a plena
humanidade de Cristo, duas naturezas em uma só pessoa divino-humana. Contribuiu para
essa decisão um documento enviado pelo bispo de Roma, Leão I (440-461), conhecido
como o Tomo de Leão. Adotando uma posição intermediária entre Alexandria e Antioquia,
o Concílio de Calcedônia condenou formalmente as três posições mencionadas acima:
apolinarianismo, eutiquianismo e nestorianismo.
21

4. Invasões Germânicas e Missões


No século IV, vários povos que habitavam a Europa oriental começaram a invadir o
Império Romano ocidental. Em 378, os visigodos derrotaram e mataram o imperador
Valêncio. Poucas décadas depois, sob o comando de Alarico, saquearam a própria cidade de
Roma (410). Também invadiram a Gália e o sul da Espanha. Os famigerados vândalos
invadiram a Gália, a Espanha e o norte da África, e saquearam Roma em 455. Outros
invasores foram os hunos, vindos das estepes da Ásia central e comandados pelo célebre
Átila, “o flagelo de Deus”. Também foram importantes as ações dos anglos e saxões, que
invadiram a Britânia (Inglaterra) no ano 449. Esses e outros povos eventualmente deram
origem às modernas nações européias.

Alguns desses povos já haviam sido cristianizados quando invadiram o Império Romano.
Foi o caso dos godos do baixo Danúbio ou visigodos, que foram evangelizados por Ulfilas
(c. 311-383), cuja mãe era daquele povo. Ulfilas traduziu as Escrituras para a língua gótica
e, sendo um adepto do arianismo, transmitiu essa concepção da fé aos visigodos. Na França
central, um dos primeiros missionários foi

Martinho de Tours (†397) e a Irlanda foi evangelizada por Patrício (c.415-c.493), a partir de
460 (início do cristianismo celta). A primeira nação germânica a abraçar o cristianismo
católico, ou seja, trinitário, foram os francos, mediante a conversão do rei Clóvis em 496.
Sua esposa, Clotilde, já era uma cristã. Até 590, a maior parte das tribos germânicas havia
deixado o arianismo em favor do catolicismo. Na Escócia, foi muito atuante o irlandês
Columba (c.521-597), que, acompanhado de monges celtas, fundou um influente centro
missionário na pequena ilha de Iona (557). Esse centro enviou missionários à Escócia,
Inglaterra, França, Alemanha e Suíça.

5. Quatro Grandes Vultos


Os séculos IV e V são chamados a “idade de ouro” dos pais da igreja. No final do século IV
e início do V viveram quatro líderes e escritores cristãos especialmente importantes. Dois
deles foram notáveis pregadores, um no ocidente latino e o outro no oriente grego. O
primeiro foi Ambrósio, bispo de Milão (374-397), no norte da Itália, que ficou conhecido
pela maneira corajosa como enfrentou o imperador Teodósio por causa de um massacre
ocorrido em Tessalônica. O outro foi o não menos ousado João Crisóstomo, patriarca de
Constantinopla (397-407), o maior pregador da igreja antiga e por isso mesmo apelidado de
Crisóstomo, ou seja, “boca de ouro”. Por causa de sua pregação profética, foi banido pela
imperatriz Eudóxia e morreu no exílio.

Os outros dois vultos eminentes do período foram Jerônimo e Agostinho. Jerônimo (331-
420) foi o maior erudito da igreja ocidental antiga. Depois de muitos estudos, no oriente,
tornou-se secretário do papa Dâmaso, que o incentivou a fazer uma nova tradução da Bíblia
para o latim. Passou os últimos trinta e cinco anos de sua vida num mosteiro em Belém,
onde escreveu seus comentários bíblicos e concluiu a tradução da Vulgata Latina, a Bíblia
oficial da Igreja Católica. Agostinho (354-430) converteu-se em Milão em 386,
influenciado pela pregação de Ambrósio, e tornou-se bispo de Hipona, no norte da África,
em 395. É considerado o maior dos pais da igreja e muito influenciou os reformadores
protestantes. Das 94 obras que escreveu, as mais conhecidas são as Confissões e A Cidade
de Deus, esta última já referida na aula de introdução. Agostinho lutou fortemente contra os
22

cismáticos donatistas e contra Pelágio, um monge inglês que afirmava que o homem nasce
essencialmente bom e é capaz de fazer o bem sem o auxílio de Deus. Agostinho, ao
contrário, afirmou que o ser humano está morto no pecado e, portanto, a salvação provém
inteiramente da graça de Deus, sendo concedida apenas aos eleitos.

6. A Vida Cristã
No período antigo surgiu uma instituição que haveria de tornar-se imensamente importante
na história posterior da igreja: o monasticismo. Desde os primeiros séculos, muitas pessoas
sentiram a necessidade de viver uma vida de renúncia e total consagração a Deus,
inspiradas por passagens do Novo Testamento como a história do moço rico (Mateus 19.21;
ver também Lucas 14.33). Os primeiros monges surgiram no terceiro século e viviam sós
nos desertos. Os mais conhecidos desses antigos “eremitas” (de éremos = deserto) ou
anacoretas (de anachorein = afastar-se) foram Antônio ou Antão, no Egito (†356), e Simeão
Estilita, na Síria (†459). Este último foi chamado de estilita porque viveu trinta anos em
cima de uma coluna (em grego, stylos).

Ao mesmo tempo, surgiu uma nova modalidade, o monasticismo comunitário, que veio a
tornar-se predominante tanto no oriente como no ocidente. Esses monges eram chamados
de cenobitas (de koinós bíos = vida comum). O primeiro cenóbio foi fundado por Pacômio
(†346), no Egito. Dois grandes líderes monásticos foram, no oriente, Basílio de Cesaréia, e
no ocidente, Bento de Núrsia (c.480-c.550). Este último escreveu a famosa regra
beneditina, que por séculos orientou a vida dos mosteiros. A regra disciplinava a vida diária
dos monges em torno de três atividades: devoção, estudo e trabalho. Muitos dos
personagens que já vimos foram monges, submetendo-se aos três votos clássicos de
pobreza, castidade e obediência.

No período que estamos estudando, o culto cristão tornou-se fortemente estruturado, com
liturgias e orações formais. Deu-se grande ênfase à música, com coros, cânticos e antífonas.
No século IV, foi composto o Te Deum (= A ti, ó Deus), um dos hinos litúrgicos mais
conhecidos. O culto tornou-se solene e impressionante e também a arquitetura religiosa,
com o surgimento das majestosas basílicas. Intensificou-se o culto aos santos, os antigos
mártires da igreja, bem como a Maria, especialmente após as controvérsias cristológicas,
que deram ênfase a Maria como theotokos, a portadora ou mãe de Deus. Também
popularizaram-se as peregrinações a lugares considerados santos e a veneração de relíquias.

7. Organização Eclesiástica
Esse período testemunhou o crescente fortalecimento dos bispos e dos concílios em que se
reuniam. Os bispos das capitais provinciais passaram a ser chamados de metropolitanos
(arcebispos). Os bispos das igrejas mais importantes e antigas – Roma, Constantinopla,
Alexandria, Antioquia e Jerusalém – receberam o título de patriarcas. Outra característica
marcante do período foi a afirmação da supremacia dos bispos de Roma. Isso resultou de
um longo processo em que esses bispos foram fazendo reivindicações cada vez mais
ousadas sobre sua autoridade.

Os principais fatores que contribuíram para o surgimento do papado foram: a insistência no


primado de Pedro (Mateus 16.17-19), que teria sido o primeiro bispo de Roma, e a alegação
de que essa autoridade foi transmitida aos seus sucessores; o suposto martírio de Pedro e
23

Paulo em Roma; a importância da cidade e da igreja de Roma; as declarações de


governantes em apoio às pretensões papais; a rápida aceitação dessa autoridade no
ocidente, devido à falta de concorrentes; o declínio do Império do ocidente, tornando a
igreja a instituição mais importante da sociedade; a habilidade de muitos bispos de Roma
como teólogos, administradores e promotores da obra missionária. O fato é que no século V
houve a aceitação geral do primado de Pedro, sendo Leão I (440-461) considerado o
primeiro papa no sentido pleno da palavra. Essas reivindicações encontraram forte
resistência no oriente, sendo um dos fatores da futura separação entre as igrejas oriental
(ortodoxa) e ocidental (católica).

Implicações Práticas
Embora o texto da aula não fale muito sobre o assunto, uma das características da igreja
antiga foi o profundo interesse pelas Escrituras. Pais da igreja como Irineu, Orígenes,
Jerônimo e Agostinho dedicaram as suas vidas ao estudo reverente da Palavra de Deus.
Teodoro de Mopsuéstia (c.350-428), da Escola de Antioquia, é considerado o maior exegeta
da igreja antiga. João Crisóstomo destacou-se pelas suas pregações profundamente bíblicas,
expositivas. E outros ainda, como vimos, dedicaram-se à tarefa de traduzir as Escrituras.
Que o seu exemplo nos estimule a valorizar a Palavra e interpretá-la de modo equilibrado.
Ao estudar este período, podemos ficar perplexos diante do surgimento de crenças e
práticas que não nos parecem corretas. Ficamos nos perguntando porque Deus permitiu que
as coisas tomassem certos rumos. A história da igreja é importante porque mostra os acertos
e os erros da igreja em sua caminhada no mundo. Nós também cometemos erros e temos as
nossas próprias divergências teológicas. Precisamos pelo menos entender como certas
coisas aconteceram, mesmo que não concordemos com elas. Por outro lado, seria um erro
nos concentrar nos desvios e esquecer as coisas positivas. Os reformadores protestantes do
século XVI souberam valorizar as contribuições positivas da igreja antiga.

A Igreja no Início da Idade Média (590-1073)

Inicialmente, cabem duas observações sobre o título desta aula. Primeiro, o mais correto
seria dizer “A igreja na primeira metade da Idade Média”, pois o período indicado é de
quase quinhentos anos. Segundo, o ano do final do período é um pouco diferente do que foi
colocado na Introdução (1054). No final da aula, vocês verão por quê. A Idade Média, que
tem esse nome por estar entre a Idade Antiga e a Moderna, com freqüência tem má
reputação como a “idade das trevas”. Muitos acham que foi uma época em que só houve
ignorância, superstições e retrocesso. Todavia, esse longo período da história também teve
coisas muito apreciáveis, especialmente na sua segunda metade, como veremos na próxima
aula.
O início da Idade Média coincide com o pontificado do grande bispo de Roma que foi
Gregório Magno (590-604), considerado um dos “doutores da igreja,” ao lado de Ambrósio,
Jerônimo e Agostinho. Ele foi o primeiro monge a tornar-se papa. Foi um homem de grande
integridade pessoal e um notável administrador cujas ações aumentaram o poder temporal
do papado, ampliaram a ação missionária da igreja (como veremos adiante) e influenciaram
o monasticismo e a liturgia católica (“canto gregoriano”). Gregório escreveu uma obra de
teologia prática, Livro do Cuidado Pastoral, um manual de aconselhamento que foi muito
24

utilizado durante toda a Idade Média. Cerca de trinta anos após a sua morte, houve um
acontecimento de grande importância que afetou profundamente o cristianismo.

1. O Surgimento do Islamismo
Esse acontecimento foi o surgimento, na Península Arábica, de uma combativa religião
rival do cristianismo. O islamismo foi fundado por Maomé (†632), um mercador de Meca,
na atual Arábia Saudita, que em suas viagens teve muitos contatos com judeus e cristãos,
sendo por eles influenciado em suas concepções religiosas. Uma dessas influências foi o
rígido monoteísmo que caracteriza o islã, que significa “submissão” à vontade de Deus
(Alá). Seu livro sagrado, o Corão, faz muitas referências ao Velho Testamento e considera
Jesus um dos profetas de Deus, sendo Maomé o último e principal deles. O grande feito de
Maomé foi unir as tribos árabes, que antes eram politeístas e viviam guerreando entre si,
em torno dessa nova religião monoteísta.

Empolgados com a sua nova fé, a partir de 632, o ano da morte de Maomé, os exércitos
muçulmanos começaram a conquistar todo o norte da África e o Oriente Médio. Foi uma
trágica perda para o cristianismo, pois essas regiões tinham tido florescentes centros
cristãos desde os primórdios da história da igreja. Entre os lugares conquistados estavam a
Numídia, onde viveram Tertuliano, Cipriano e Agostinho; o Egito, lugar da Escola de
Alexandria, com seus grandes luminares, Clemente e Orígenes; e a Síria, onde havia
florescido a Escola de Antioquia. Em 711, os maometanos atravessaram o Estreito de
Gibraltar e invadiram a Península Ibérica (Espanha). Aliás, Gibraltar significa “rocha de
Tarik”, numa referência ao comandante dos exércitos invasores. Assim, teve início uma
presença muçulmana na Espanha que haveria de durar por muitos séculos. Em seguida, os
mouros atravessaram os Pirineus e entraram na França, mas foram finalmente derrotados
pelo rei Carlos Martelo em Tours, em 732.

2. Atividade Missionária
A primeira metade da Idade Média caracterizou-se por intensa atividade missionária. Foi
nesse período que completou-se a evangelização ou cristianização da Europa,
principalmente no norte e no leste. Como vimos na aula anterior, em 449 os anglos e os
saxões haviam invadido a Britânia ou Bretanha. A população local, os bretões, foi expulsa
para o ocidente da ilha. Os bretões eram cristãos (celtas), mas os invasores ainda eram
pagãos. O papa Gregório I viu nisso uma grande oportunidade missionária e enviou para lá,
em 597, um monge chamado Agostinho, acompanhado de 40 outros monges.
Eventualmente, houve a conversão do rei Etelberto de Kent, cuja esposa, Berta, havia se
convertido anteriormente. Agostinho tornou-se arcebispo de Cantuária (Canterbury). Com
isso, passaram a coexistir na Inglaterra dois tipos de cristianismo: o antigo cristianismo
celta e agora o catolicismo romano. A situação foi resolvida em 663, quando o Sínodo de
Whitby unificou o cristianismo inglês sob a autoridade do papa.

Assim como no século VI Columba havia fundado o centro missionário de Iona, no século
VII Aidano fundou um centro semelhante do outro lado da Escócia, em Lindisfarne. Porém,
o mais extraordinário missionário irlandês foi Columbano (†c. 614), que pregou na França,
na Alemanha e na Suíça, chegando até o norte da Itália. Na Frísia (atual Holanda) trabalhou
Willibrord, que tornou-se arcebispo de Utrecht em 695, e na vizinha Germânia (Alemanha)
o inglês Bonifácio (680-755), o maior missionário do seu tempo. A Dinamarca e a Suécia
25

foram evangelizadas pelo francês Ansgar (801-865), “o apóstolo do norte”. Já os primeiros


missionários aos eslavos (Morávia) foram os gregos Cirilo e Metódio, no século IX. Em
todo esse longo período de desbravamento, os mosteiros realizaram um admirável trabalho
nas áreas de missões, cultura e beneficência.

3. O Império dos Francos


Já vimos que os francos foram a primeira tribo germânica a abraçar o cristianismo católico,
sob a liderança do rei Clóvis. Esse rei iniciou a dinastia dos merovíngios, que foi
suplantada no século VIII por uma nova dinastia de líderes franceses, os carolíngios, o
primeiro dos quais foi Pepino de Heristal. Como vimos acima, seu filho Carlos Martelo
(714-41) derrotou os muçulmanos na batalha de Tours. O filho deste, o rei Pepino, o Breve
(741-68), conquistou muitas terras no norte da Itália e as cedeu à igreja, dando origem aos
estados papais, que haveriam de perdurar até o século XIX. O próximo governante, Carlos
Magno, que reinou de 768 a 814, foi o maior monarca do período inicial da Idade Média.
Coroado imperador pelo papa Leão III, em Roma, no natal do ano 800, ele passou a
governar o Sacro Império Romano. Promoveu a cultura, no que ficou conhecido como o
Renascimento Carolíngio, protegeu e controlou a igreja, e ajudou os papas. Após a ruína do
antigo Império Romano, esse foi o primeiro governo da Europa ocidental capaz de impor
ordem e paz e desenvolver a civilização.

4. O Império Germânico
Após a morte de Carlos Magno, seus filhos não conseguiram manter o império unido. O
centro do poder deslocou-se um pouco para leste, para o território da atual Alemanha, onde
Oto I, o Grande (936-73), inspirado em Carlos Magno, foi coroado imperador pelo papa em
962. Surgiu assim o Sacro Império Romano Germânico, que foi o principal poder político
da Idade Média e, por incrível que pareça, subsistiu até 1806! O império chamava-se sacro
ou sagrado por ser cristão, abençoado pela igreja, e romano porque foi entendido como o
ressurgimento do antigo império dos romanos. Esse império com freqüência teve uma
relação tumultuada com a igreja, interferindo nos seus assuntos internos, inclusive na
escolha dos papas. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se a ideologia de que o reino de Deus
tinha dois representantes no mundo, o império e a igreja.

5. Personagens e Controvérsias
Como os períodos anteriores, também este teve vários personagens de destaque. Na
Espanha, viveu o bispo Isidoro de Sevilha (c.560-636), considerado por muitos estudiosos o
último dos pais da igreja ocidental. Na Inglaterra, viveu o monge conhecido como
Venerável Beda (c.673-735), autor da importante obra História Eclesiástica do Povo Inglês.
João de Damasco (c.675-749), outro destacado personagem desse período, é considerado o
último e mais importante dos pais da igreja oriental. O inglês Alcuíno (735-804) foi
conselheiro e uma espécie de ministro da cultura do imperador Carlos Magno. O período
também foi marcado por algumas controvérsias teológicas das quais participaram
indivíduos com nomes estranhos. Ratramno (†856) e Gottschalk (†868) defenderam a
doutrina de Agostinho sobre a predestinação, sendo que o último foi preso e condenado,
morrendo depois de vinte anos na prisão. Rabano Mauro (†856), João Scotus Erígena
(†c.877) e Hincmar (†882) atacaram essa doutrina. Por sua vez, o monge beneditino
Pascásio Radberto (†860) defendeu a presença real de Cristo na eucaristia
(transubstanciação) contra Ratramno e Rabano Mauro.
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6. A Igreja Oriental
A começar do período antigo, a igreja grega ou oriental foi enfraquecida pelas lutas
teológicas, cismas e invasões muçulmanas (os árabes chegaram às portas de Bizâncio em
673). A igreja também sofreu por causa de suas estreitas ligações com o Império Bizantino.
Os imperadores geralmente controlaram a igreja, fenômeno esse que ficou conhecido como
cesaropapismo. Entre 726 e 843 ocorreu a célebre “controvérsia iconoclástica”, na qual
vários imperadores tentaram impedir sem sucesso o uso e veneração dos ícones (quadros de
Maria e dos santos). Como já foi apontado, o maior teólogo da igreja oriental foi João
Damasceno, falecido em 749 e considerado um doutor da igreja. Inicialmente, ele serviu na
corte de um califa islâmico; depois, abandonou esse serviço para ingressar em um mosteiro.
Ele produziu uma teologia considerada normativa para a igreja oriental.

Desde os primeiros séculos manifestaram-se diferenças crescentes entre a igreja


romana/ocidental e a igreja grega/oriental. Além do aspecto geográfico, linguístico e
político, havia as diferenças mais profundas de cultura e mentalidade. Os gregos eram mais
filosóficos, especulativos, daí a sua predileção por temas abstratos como o ser de Deus. Os
romanos tinham mentalidade mais prática, daí seu interesse por áreas como a eclesiologia.
Outro motivo para afastamento foi a palavra filioque (= “e do Filho”). O Credo de
Constantinopla (381) dizia que o Espírito Santo procede do Pai. O III Sínodo de Toledo, em
589, acrescentou a referida palavra ao credo. Na década de 860, o papa Nicolau I e Fócio, o
patriarca de Constantinopla, excomungaram-se mutuamente por esse motivo. O problema
maior sempre foi a reivindicação de autoridade universal pelo bispo de Roma. A ruptura
final entre as duas igrejas ocorreu em 1054, quando Leão IX excomungou o patriarca
Miguel Cerulário e este anatematizou o papa. De todo esse longo processo, resultou a Igreja
Ortodoxa Grega, distinta da Igreja Católica Romana.

7. Decadência e Reforma do Papado


Do final do século IX até meados do século XI, o papado tornou-se um joguete nas mãos de
poderosas famílias romanas (como os Theophylact, os Crescentii e os Tusculani),
experimentando a maior decadência da sua história. Todavia, a partir da fundação do
Mosteiro de Cluny (910), na França, surgiu um partido reformador que eventualmente
moralizou a alta administração da igreja. Esse movimento promoveu a reforma dos
mosteiros e lutou contra a simonia (compra e venda de cargos eclesiásticos; ver Atos 8:18),
o nicolaísmo (casamento dos sacerdotes; ver Ap 2:6,15) e as investiduras leigas, ou seja, a
interferência dos príncipes na eleição e consagração dos bispos. A reforma do papado
começou com Leão IX (1049-54) e seu hábil conselheiro Hildebrando (c.1023-1085). No
pontificado de Nicolau II, foi decidido que a eleição dos papas seria feita somente através
do colégio de cardeais (1059). Finalmente, em 1073 o próprio Hildebrando foi eleito papa,
adotando o título de Gregório VII.

8. E as Escrituras?
Na Idade Média, as Escrituras eram lidas habitualmente apenas nos mosteiros, sendo pouco
acessíveis para o povo. Havia várias razões para isso: a Bíblia só existia em latim, não
tendo ainda sido traduzida para os diversos idiomas da Europa; não havia ainda a imprensa,
o que fazia com que as cópias da Bíblia tivessem de ser escritas à mão, tornando-as muito
caras para a maior parte das pessoas; além disso, a igreja não tinha interesse em que as
Escrituras estivessem nas mãos das pessoas comuns, por temer que fossem interpretadas de
27

maneira divergente do ensino da igreja, gerando idéias “heréticas”. Todavia, foi muito
importante o trabalho dos monges no sentido de preservar e reproduzir os antigos
manuscritos bíblicos, o que faziam com muita arte e esmero. Além dos copistas peritos em
caligrafia havia os iluministas, ou seja, os indivíduos que ilustravam os manuscritos com
belos desenhos conhecidos como iluminuras. Em termos de hermenêutica ou interpretação
bíblica, continuou-se a usar o método alegórico (a busca de sentidos ocultos no texto),
surgido nos primeiros séculos da história da igreja. O peso da tradição eclesiástica (os
ensinos dos escritores da igreja, dos concílios e dos papas) foi se tornando cada vez mais
influente para a fé e a prática da igreja.

Implicações Práticas
O surgimento do islamismo e os danos que causou ao cristianismo mostram outro tipo de
desafio que os cristãos têm enfrentado em toda a sua história: a realidade de outras religiões
e o desafio missionário que representam. Como vimos, a parte inicial da Idade Média não
foi só um período de perdas, mas de ganhos: perdas no norte da África e Oriente Médio,
mas ganhos no norte e leste da Europa, através dos esforços missionários empreendidos. Os
problemas enfrentados e vitórias alcançadas nos dão importantes lições ao nos depararmos
com os mesmos desafios em nossos dias.

A história desse período também nos mostra o alto preço que a igreja pode pagar ao
relacionar-se muito estreitamente com o estado. Essa relação quase sempre corrompe a
ambos, embora quem mais perca seja a igreja, que não tens fins primariamente políticos, e
sim espirituais. Não é desejável que a igreja esteja alheia às questões políticas ou sociais,
mas que, a partir de uma postura de independência, exerça uma influência salutar sobre as
instituições políticas, especialmente na área crucial da ética.

A Igreja na Idade Média Posterior (1073-1517)

Devido à grande quantidade de informações sobre este importante e longo período, iremos
dividi-lo em duas partes: O Apogeu da Idade Média e A Época do Renascimento.

I. O Apogeu da Idade Média (1073-1294)

1. O Auge do Papado
Hildebrando, a quem nos referimos no final da aula passada, tornou-se papa com o título de
Gregório VII (1073-85) e adotou como lema do seu pontificado as palavras de Jeremias
48.10a. Ele foi um papa reformador que lutou contra a corrupção dos clérigos, as
investiduras leigas e a simonia (ver aula anterior). Como o imperador alemão Henrique IV
(1056-1106) insistisse em nomear os bispos no seu território, Hildebrando o excomungou.
Enfraquecido politicamente, Henrique foi encontrar-se com o papa no castelo de Canossa,
nos Alpes, em que este achava-se hospedado (ano 1077). Depois de bater à porta por três
dias, vestido como um penitente e caminhando descalço na neve, Henrique foi perdoado e
teve anulada a sua excomunhão. Novamente fortalecido, o imperador enviou um exército a
Roma e prendeu o papa. A controvérsia das investiduras só foi resolvida na Concordata de
Worms (1122), entre o papa Calixto II e o imperador Henrique V.
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Outro papa que lutou contra a simonia foi Alexandre III (1159-81). O rei Henrique II da
Inglaterra não queria abrir mão da prerrogativa de nomear os bispos. Isso fez com que o seu
opositor, Thomas Becket, arcebispo de Cantuária, fosse assassinado (1170). O papa obrigou
o rei a fazer uma penitência pública pelo assassinato. Todavia, o maior dos papas medievais
foi Inocêncio III (1198-1216), o primeiro a usar o título “Vigário de Cristo”. Ele nutriu a
visão de uma sociedade cristã unificada sob a liderança do papa (o conceito de
“cristandade”). Inocêncio reorganizou a igreja através do 4° Concílio Lateranense (1215) e
enfrentou com êxito o rei francês Filipe Augusto e o rei inglês João Sem Terra, que se viu
forçado a aceitar uma constituição, a Magna Carta. Esses episódios nos mostram como era
tumultuada e nociva a relação entre a igreja e o estado.

2. As Cruzadas
As cruzadas foram guerras promovidas pela cristandade ocidental contra o islamismo, de
1095 a 1291. Tiveram diversas causas, religiosas, políticas e econômicas, mas o objetivo
declarado era libertar a Palestina, o berço do cristianismo, das mãos dos maometanos. A
primeira cruzada foi pregada pelo papa Urbano II em Clermont, na França, em 1095, sob o
lema Deus vult! (“Deus o quer”). Depois de muita violência, os cruzados estabeleceram um
reino cristão em Jerusalém (1099-1187). A “cruzada das crianças” (1212) envolveu
milhares de adolescentes, a maior parte dos quais morreram ou foram vendidos como
escravos. Os cruzados mais famosos foram os reis Frederico Barba Roxa (1152-90),
Ricardo Coração de Leão (1189-99) e Luís IX (São Luís, 1226-70). Esse período viu o
surgimento de ordens militares como os hospitalários, os templários e a ordem teutônica.
Na mesma época, teve continuidade a reconquista da Península Ibérica e ocorreu o
surgimento de Portugal como nação independente (1147-1249). As cruzadas produziram
muitos efeitos negativos, entre os quais uma duradoura antipatia entre os dois grupos
envolvidos, o que muito dificultou as missões dos cristãos aos muçulmanos.

3. O Escolasticismo
O escolasticismo foi um movimento intelectual e teológico que resultou da introdução da
filosofia de Aristóteles na Europa através dos árabes e judeus da Espanha. Essa filosofia,
com sua visão ordenada e sistemática do mundo, afetou todas as áreas do pensamento,
contribuindo para o chamado renascimento do século XII (1050-1250). A filosofia e a
lógica aristotélicas também afetaram fortemente a teologia cristã. Os primeiros teólogos
escolásticos foram os seguintes: Anselmo (1033-1109), arcebispo de Cantuária, chamado o
“pai do escolasticismo”; sua obra principal foi Cur Deus Homo?, um tratado sobre a
encarnação. Pedro Abelardo (1079-1142), brilhante professor da Universidade de Paris que
escreveu a obra Sic et Non. Bernardo de Claraval (1090-1153), influente líder, pregador e
místico, tido como o pai do misticismo medieval. Pedro Lombardo (1100?-1160?),
chamado “o mestre das sentenças” por causa da sua obra Quatro Livros de Sentenças, um
texto padrão de teologia por vários séculos no qual ele defendeu os sete sacramentos. O
século XII também marcou o surgimento das primeiras universidades, tais como as de
Paris, Montpellier, Cambridge, Oxford, Bolonha, Modena e Régio. Nelas estudava-se
filosofia, direito, medicina e teologia, a “raínha das ciências”. Outra contribuição do
período foi a esplêndida arquitetura gótica das catedrais.

4. Movimentos dissidentes
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Outro aspecto desse período de efervescência foi o surgimento de alguns movimentos


dissidentes no sul da França que despertaram forte oposição da Igreja Católica. Um deles
foi o dos cátaros (em grego = “puros”) ou albigenses (da cidade de Albi), surgidos no
século XI. Caracterizavam-se por um sincretismo cristão, gnóstico e maniqueísta, com um
dualismo radical (espiritual x material) e extremo ascetismo. Foram condenados pelo 4°
Concílio Lateranense em 1215 e mais tarde aniquilados por uma cruzada. Para combater
esses e outros hereges, a Inquisição foi oficializada em 1233.

Outro movimento foi liderado por Pedro Valdo ou Valdes († c.1205), de Lião, cujos
seguidores ficaram conhecidos como “homens pobres de Lião”. Tinham um estilo de vida
comunitário, ensinavam as Escrituras no vernáculo (enfatizando o Sermão do Monte),
incentivavam a pregação de leigos e de mulheres, negavam o purgatório. Condenados pelo
Concílio de Verona em 1184, foram muito perseguidos, refugiando-se em vales remotos e
quase inacessíveis dos alpes italianos. Mais tarde abraçaram a Reforma Protestante, sendo
assim uma das poucas igreja protestantes anteriores à Reforma do Século XVI.

5. Ordens Religiosas
A segunda metade da Idade Média também viu o surgimento de novas ordens religiosas
como os cistercienses (de Citeaux, na França), em 1098. Em um século, os chamados
“monges brancos” criariam 530 mosteiros. Todavia, duas outras ordens surgidas no século
XIII se tornariam muito mais conhecidas. Trata-se das “ordens mendicantes” (frades), com
sua ênfase na educação como instrumento de conversão do mundo. A primeira foi a dos
franciscanos, fundada pelo italiano Francisco de Assis (c.1181-1226) e aprovada
oficialmente em 1210. Os “frades menores” tinham inicialmente um ideal de renúncia e
pobreza (Mt 19:21), e visavam a conversão dos muçulmanos. Dedicavam-se à caridade, à
pregação e ao estudo. A outra ordem foi a dos dominicanos, organizada pelo espanhol
Dominic de Guzman (c.1170-1221) e aprovada em 1216. Esses frades pregadores tinham
como alvo inicial converter os albigenses e outros grupos. Posteriormente, sua forte ênfase
inicial na pregação e no estudo foi substituída pela preocupação com a ortodoxia e isso os
levou a se envolverem com a Inquisição.

6. O Apogeu do Escolasticismo
Os grandes teólogos escolásticos foram os dominicanos Alberto Magno (c.1200-1280),
Tomás de Aquino (c.1225-1274) e Meister Eckhart (c.1260-1327), e os franciscanos
Boaventura (c.1217-1274), Duns Scotus (c.1265-1308) e Guilherme de Ockham (c.1285-
1349). O maior de todos sem dúvida foi Tomás de Aquino, procedente de uma família
nobre italiana. Aquino foi o maior teólogo medieval e os seus ensinos (o tomismo) são a
doutrina oficial da Igreja Católica. Escreveu a famosa Suma Teológica, na qual dá ênfase
aos conceitos duplos de fé e razão, graça e natureza, bem como aos sacramentos. Foi
canonizado em 1323 e declarado como “doutor da igreja” em 1567.

7. Vida e Culto
A sociedade medieval possuía uma estrutura hierárquica e rígida composta de três grupos
principais: os que trabalham (servos), os que oram (religiosos) e os que guerreiam (nobres).
Imperava o sistema feudal de senhores e vassalos. Ao mesmo tempo, estava surgindo uma
economia baseada no lucro, o que conflitava com o antigo ideal de pobreza. A religiosidade
popular dava grande ênfase aos sacramentos, especialmente da eucaristia e da penitência (e
30

as indulgências), bem como às esmolas, jejum e orações. Muitos buscavam um contato


mais pessoal com Deus pela união da alma com Ele (místicos) ou o cultivo da vida
devocional interior. Havia muita ansiedade por uma espiritualidade mais profunda, o que
nem sempre podia ser suprido pela igreja, envolvida que estava com tantos interesses
seculares e mundanos.

II. A Época do Renascimento (1294-1517)

1. Os Estados Nacionais
A igreja não vivia em um vácuo, mas sim em um contexto político e social mais amplo com
o qual tinha múltiplas interações. No final da Idade Média, houve o surgimento dos
chamados “estados nacionais”, as modernas nações européias, o que representou uma
grande ameaça às pretensão do papado. Na Alemanha (Sacro Império Romano), Rudolf von
Hapsburg foi eleito imperador em 1273. Em 1356, um documento conhecido como Bula de
Ouro determinou que cada novo imperador seria escolhido por sete eleitores (quatro nobres
e três arcebispos). Havia descentralização política, isto é, o poder dos príncipes limitava a
autoridade do imperador, e forte tensão entre a igreja e o estado.

Na França, houve o fortalecimento da monarquia com Filipe IV, o Belo (1285-1314). Esse
rei enfrentou com êxito o poder da igreja e dos papas e preparou a França para tornar-se o
primeiro estado nacional moderno. Na Inglaterra, o parlamento reuniu-se pela primeira vez
em 1295. Esse país teve um grande rei na pessoa de Eduardo I (†1307), que subjugou os
nobres e enfrentou com êxito o papa na questão de impostos.

2. O Declínio do Papado
Este período começa com o pontificado de BonifácioVIII (1294-1303), um papa arrogante
e ambicioso que entrou em confronto direto com o rei Filipe IV acerca de impostos e da
autoridade papal. Bonifácio publicou três famosas bulas: Clericis Laicos, na qual reclama
que os leigos sempre foram hostis ao clero; Ausculta Fili (“Escuta, filho”), dirigida ao rei
francês, e Unam Sanctam (1302), denominada “o canto do cisne do papado medieval.”
Irritado com as ações papais, Filipe enviou suas tropas, o papa foi preso e faleceu um mês
após ser libertado.

Seguiu-se um período de crescente desmoralização do papado. Clemente V (1305-1314),


um papa francês, transferiu a Cúria, ou seja, a administração da igreja, para Avinhão, ao sul
da França, no que ficou conhecido como o “Cativeiro Babilônico da Igreja” (1309-1377).
Em toda parte cresceram as críticas às extravagâncias e ao luxo da corte papal. João XXII
(1316-1334) mostrou-se eficiente na cobrança de taxas e dízimos para cobrir essas
despesas. Finalmente, ocorreu o chamado “Grande Cisma”, em que houve dois e
posteriormente três papas rivais em Roma, Avinhão e Pisa (1378-1417). Diante dessa
situação constrangedora, surgiu em toda a Europa um clamor por “reformas na cabeça e nos
membros.”

3. O Movimento Conciliar
Durante o “Grande Cisma”, cada papa considerou-se o único legítimo e excomungou o
rival. Assim, houve a necessidade de um concílio para resolver a crise. O Concílio de Pisa
(1409) elegeu um novo papa, mas os outros dois recusaram-se a ser depostos, resultando
31

em três papas ao mesmo tempo. João XXIII, o segundo papa pisano, convocou o Concílio
de Constança (1414-1417), que depôs os três papas, elegeu Martinho V como único papa,
decretou a supremacia dos concílios sobre o papa e condenou os pré-reformadores João
Wycliff, João Hus e Jerônimo de Praga. O Concílio de Basiléia (1431-1449) reafirmou a
superioridade dos concílios. Finalmente, o Concílio de Ferrara-Florença (1438-1445) tentou
a união com a Igreja Ortodoxa (frustrada pela conquista de Constantinopla pelos turcos em
1453) e reafirmou a supremacia papal. Essa tentativa fracassada de tornar a igreja mais
democrática e governá-la através de concílios ficou conhecida como conciliarismo.

4. O Renascimento
No final da Idade Média houve um extraordinário movimento intelectual e artístico que é
conhecido como Renascimento ou Renascença (c.1350-1550). Duas características desse
movimento foram a forte valorização do ser humano (humanismo) e a fascinação com as
obras artísticas e literárias da antigüidade greco-romana. O renascimento começou na Itália
(Roma, Florença) com Petrarca e Bocácio, no século XIV. Seus artistas mais conhecidos
são Leonardo da Vinci (1452-1519), autor da fachada da basílica de São Pedro e da “Última
Ceia”; Rafael Sanzio (1483-1520) autor de madonas; e Michelangelo Buonarroti (1475-
1564), que pintou a belíssima Capela Sistina e esculpiu as famosas estátuas da “Pietá” e de
“Moisés.”

O interesse pelas obras da antigüidade levou ao estudo da Bíblia nas línguas originais pelos
chamados humanistas bíblicos. Os principais deles foram o italiano Lorenzo Valla (†1457),
estudioso do Novo Testamento; o inglês John Colet (†1519), estudioso das epístolas
paulinas; o alemão Johannes Reuchlin (†1522), notável hebraísta; o francês Lefèvre
D’Étaples (†1536), tradutor do Novo Testamento; e o holandês Erasmo de Roterdã (1466?-
1536), “o príncipe dos humanistas”, que publicou uma edição crítica do Novo Testamento
grego com uma tradução latina, talvez a obra mais importante publicada no século XVI,
que serviu de base para as traduções de Lutero, Tyndale e Lefèvre e muito influenciou os
reformadores protestantes. Esse retorno às Escrituras muito contribuiu para a Reforma do
Século XVI.

5. Primeiros Movimentos de Reforma


Nos séculos XIV e XV surgiram alguns movimentos esporádicos de protesto contra certos
ensinos e práticas da igreja medieval. Um deles foi encabeçado por João Wycliff (1325?-
1384), um sacerdote e professor da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Wycliff atacou
as irregularidades do clero, as superstições (relíquias, peregrinações, veneração dos santos),
bem como a transubstanciação, o purgatório, as indulgências, o celibato clerical e as
pretensões papais. Seus seguidores, conhecidos como os lolardos, tinham a Bíblia como
norma de fé que todos devem ler e interpretar.

João Hus (c.1372-1415), um sacerdote e professor da Universidade de Praga, na Boêmia,


foi influenciado pelos escritos de Wycliff. Definia a igreja por uma vida semelhante à de
Cristo, e não pelos sacramentos. Dizia que todos os eleitos são membros da igreja e que o
seu cabeça é Cristo, não o papa. Insistia na autoridade suprema das Escrituras. Hus foi
condenado à fogueira pelo Concílio de Constança. Seus seguidores ficaram conhecidos
como Irmãos Boêmios (1457) e foram muito perseguidos. Foram os precursores dos Irmãos
Morávios, que veremos posteriormente, outro grupo protestante cujas raízes são anteriores
32

à Reforma do século XVI. Outro indivíduo incluído entre os pré-reformadores é Jerônimo


Savonarola (1452-1498), um frade dominicano de Florença, na Itália, que pregou contra a
imoralidade na sociedade e na igreja, inclusive no papado. Governou a cidade por algum
tempo, mas finalmente foi excomungado e enforcado como herege.

6. Movimentos Devocionais
Além dos movimentos que romperam com a igreja, houve outros que permaneceram na
mesma por se concentrarem na vida devocional, sem críticas aos dogmas católicos. Um
deles foi o misticismo, bastante forte na Inglaterra, Holanda e especialmente na Alemanha
(Reno). Os principais místicos dessa época foram Meister Eckhart (†1327); Tauler (†1361)
e os “Amigos de Deus”, Henrique Suso (†1366) e mais tarde o célebre teólogo e líder
eclesiástico Nicolau de Cusa (1401-1464). O misticismo dava ênfase à união com Deus, ao
amor, à humildade e à caridade, e produziu uma belíssima literatura devocional.

Outro importante movimento foi a Devoção Moderna, que manteve-se forte durante todo o
século XV. Suas ênfases recaíam sobre a espiritualidade, a leitura da Bíblia, a meditação e a
oração. Também valorizava a educação, criando ótimas escolas. Foi um movimento leigo,
para ambos os sexos, e também exerceu grande influência sobre os reformadores
protestantes. Os participantes eram conhecidos como Irmãos da Vida Comum. A obra mais
importante e popular produzida por esse movimento foi o belíssimo livreto devocional A
Imitação de Cristo (1418), escrito por Thomas à Kempis.

7. Situação Geral
O final da Idade Média for marcado por muitas convulsões políticas, sociais e religiosas.
Entre as políticas destacou-se a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre a Inglaterra e a
França, na qual tornou-se famosa a heroína Joana D’Arc. Houve também muitas revoltas
camponesas, o declínio do feudalismo, a expansão das cidades e o surgimento do
capitalismo. No aspecto social havia fomes periódicas e o terrível flagelo da peste bubônica
ou peste negra (1348). As guerras, epidemias e outros males produziam morte, devastação e
desordem, ou seja, a ruptura da vida social e pessoal. O sentimento dominante era de
insegurança, ansiedade, melancolia e pessimismo. Isso era ilustrado pela “dança da morte”,
gravuras que se viam em toda parte com um esqueleto dançante.

Na área religiosa, houve a erosão do ideal da cristandade ou “corpus christianum”, a


sociedade coesa sob a liderança da igreja e dos papas. A religiosidade era meritória, com
missas pelos mortos, crença no purgatório e invocação dos santos e Maria. Ao mesmo
tempo, havia grande ressentimento contra a igreja por causa dos abusos praticados e do
desvio dos seus propósitos. Isso é ilustrado pela situação do papado no final do século XV e
início do século XVI. Os chamados papas do renascimento foram mais estadistas e patronos
das artes e da cultura do que pastores do seu rebanho. A instituição papal continuou em
declínio, com muitas lutas políticas, simonia, nepotismo, falta de liderança espiritual,
aumento de gastos e novos impostos eclesiásticos. Como papa Alexandre VI (1492-1503), o
espanhol Rodrigo Borja foi um generoso promotor das artes e da carreira dos seus filhos
César e Lucrécia; Júlio II (1503-1513) foi um papa guerreiro, comandando pessoalmente o
seu exército; Leão X (1513-1521), o papa contemporâneo de Lutero, teria dito quando foi
eleito: “Agora que Deus nos deu o papado, vamos desfrutá-lo.”
33

Implicações Práticas
Quando olhamos para a Idade Média, temos a tendência de considerá-la um período pouco
edificante para nós, como herdeiros da Reforma. Vemos uma igreja marcada por doutrinas e
práticas estranhas, em virtude do seu afastamento das Escrituras e do excessivo apego a
tradições, bem como uma igreja contaminada por uma relação viciada como o estado e
excessivamente envolvida com interesses não-espirituais. Todavia, seria um erro achar que
a igreja medieval nada tem a ver conosco. Se desprezamos esse período, cortamos a nossa
ligação com a história da igreja e temos de admitir que por cerca de um milênio não houve
um corpo de Cristo na terra. Por trás da instituição eclesiástica e de suas estruturas nem
sempre saudáveis, havia manifestações de um cristianismo bíblico, de uma piedade
autêntica, de amoroso serviço a Cristo e ao próximo, de missões transculturais bem-
sucedidas. As igrejas evangélicas atuais também têm as suas falhas, na forma de
divergências doutrinárias, ensinos questionáveis, ética nem sempre coerente, fracassos
morais de líderes destacados. Obviamente, também apresentam aspectos muito positivos e
edificantes. Vistas em suas principais características, como nossas igrejas serão avaliadas
pelas gerações futuras?

A Reforma Protestante (1517-1648) – 1ª Parte

1. Antecedentes
Vimos no final da aula anterior alguns elementos que caracterizavam a sociedade européia
às vésperas da Reforma. Havia muita violência, baixa expectativa de vida, profundos
contrastes sócio-econômicos e um crescente sentimento nacionalista. Havia também muita
insatisfação, tanto dos governantes como do povo, em relação à igreja, principalmente ao
alto clero e a Roma. Na área espiritual, havia insegurança e ansiedade acerca da salvação
em virtude de uma religiosidade baseada em obras, também chamada de religiosidade
contábil ou “matemática da salvação” (débitos = pecados; créditos = boas obras).

Foi bastante inusitado o episódio mais imediato que desencadeou o protesto de Lutero.
Desde meados do século XIV, cada novo líder do Sacro Império Romano era escolhido por
um colégio eleitoral composto de quatro príncipes e três arcebispos. Em 1517, quando
houve a eleição de um novo imperador, um dos três arcebispados eleitorais (o de Mainz ou
Mogúncia) estava vago. Uma das famílias nobres que participavam desse processo, os
Hohenzollern, resolveu tomar para si esse cargo e assim ter mais um voto no colégio
eleitoral. Um jovem da família, Alberto, foi escolhido para ser o novo arcebispo, mas havia
dois problemas: ele era leigo e não tinha a idade mínima exigida pela lei canônica para
exercer esse ofício. O primeiro problema foi sanado com a sua rápida ordenação ao
sacerdócio.

Quanto ao impedimento da idade, era necessária uma autorização especial do papa, o que
levou a um negócio altamente vantajoso para ambas as partes. A família nobre comprou a
autorização do papa Leão X mediante um empréstimo feito junto aos banqueiros Fugger, de
Augsburgo. Ao mesmo tempo, o papa autorizou o novo arcebispo Alberto de
Brandemburgo a fazer uma venda especial de indulgências, dividindo os rendimentos da
seguinte maneira: parte serviria para o pagamento do empréstimo feito pela família e a
outra parte iria para as obras da Catedral de São Pedro, em Roma. E assim foi feito. Tão
34

logo foi instalado no seu cargo, Alberto encarregou o dominicano João Tetzel de fazer a
venda das indulgências (o perdão das penas temporais do pecado). Quando Tetzel
aproximou-se de Wittenberg, Lutero resolveu pronunciar-se sobre o assunto.

2. Martinho Lutero (1483-1546)


Martinho Lutero nasceu em 1483 na pequena cidade de Eisleben, na Turíngia, em um lar
muito religioso. Seu pai trabalhava nas minas e a família tinha uma vida confortável.
Inicialmente, o jovem pretendeu seguir a carreira jurídica, mas em 1505 defrontou-se com a
morte em uma tempestade e resolveu abraçar a vida religiosa. Ingressou no mosteiro
agostiniano de Erfurt, onde dedicou-se a uma intensa busca da salvação. Em 1512, tornou-
se professor da Universidade de Wittenberg, onde passou a ministrar cursos sobre vários
livros da Bíblia, como Gálatas e Romanos. Isso lhe deu um novo entendimento acerca da
“justiça de Deus”: ela não era simplesmente uma expressão da severidade de Deus, mas do
seu amor que justifica o pecador mediante a fé em Jesus Cristo (Rom 1.17).

No dia 31 de outubro de 1517, diante da venda das indulgências por João Tetzel, Lutero
afixou à porta da igreja de Wittenberg as suas Noventa e Cinco Teses, a maneira usual de
convidar-se uma comunidade acadêmica para debater algum assunto. Logo, uma cópia das
teses chegou às mãos do arcebispo, que as enviou a Roma. No ano seguinte, Lutero foi
convocado para ir a Roma a fim de responder à acusação de heresia. Recusando-se a ir, foi
entrevistado pelo cardeal Cajetano e manteve as suas posições. Em 1519, Lutero participou
de um debate em Leipzig com o dominicano João Eck, no qual defendeu o pré-reformador
João Hus e afirmou que os concílios e os papas podiam errar.

Em 1520, a bula papal Exsurge Domine (= “Levanta-te, Senhor”) deu-lhe sessenta dias para
retratar-se ou ser excomungado. Os estudantes e professores da universidade queimaram a
bula e um exemplar da lei canônica em praça pública. Nesse mesmo ano, Lutero escreveu
várias obras importantes, especialmente três: À Nobreza Cristã da Nação Alemã, O
Cativeiro Babilônico da Igreja e A Liberdade do Cristão. Isso lhe deu notoriedade imediata
em toda a Europa e aumentou a sua popularidade na Alemanha. No início de 1521, foi
publicada a bula de excomunhão, Decet Pontificem Romanum. Nesse ano, Lutero
compareceu a uma reunião do parlamento, a Dieta de Worms, onde reafirmou as suas
idéias. Foi promulgado contra ele o Edito de Worms, que o levou a refugiar-se no castelo de
Wartburgo, sob a proteção do príncipe-eleitor da Saxônia, Frederico, o Sábio. Ali Lutero
começou a produzir uma obra-prima da literatura alemã, a sua tradução das Escrituras.

3. A Reforma na Alemanha
A partir de então, a reforma luterana difundiu-se rapidamente no Sacro Império, sendo
abraçada por vários principados alemães. Isso levou a dificuldades crescentes com os
principados católicos, com o novo imperador Carlos V (1519-1556) e com o parlamento
(Dieta). Na Dieta de 1526, houve uma atitude de tolerância para com os luteranos, mas em
1529 a Dieta de Spira reverteu essa política conciliadora. Diante disso, os líderes luteranos
fizeram um protesto formal que deu origem ao nome histórico “protestantes”. No ano
seguinte, o auxiliar e eventual sucessor de Lutero, Filipe Melanchton (1497-1560),
apresentou ao imperador Carlos V a Confissão de Augsburgo, um importante documento
que definia em 21 artigos a doutrina luterana e indicava sete erros que Lutero via na Igreja
Católica Romana.
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Os problemas político-religiosos levaram a um período de guerras entre católicos e


protestantes (1546-1555), que terminaram com um tratado, a Paz de Augsburgo. Esse
tratado assegurou a legalidade do luteranismo mediante o princípio “cujus regio, eius
religio”, ou seja, a religião de um príncipe seria automaticamente a religião oficial do seu
território. O luteranismo também se difundiu em outras partes da Europa, principalmente
nos países nórdicos, surgindo igrejas nacionais luteranas na Suécia (1527), Dinamarca
(1537), Noruega (1539) e Islândia (1554). Lutero e os demais reformadores defenderam
alguns princípios básicos que viriam a caracterizar as convicções e práticas protestantes:
sola Scriptura, solo Christo, sola gratia, sola fides, soli Deo gloria. Outro princípio aceito
por todos foi o do sacerdócio universal dos fiéis.

4. Ulrico Zuínglio (1484-1531)


Ulrico Zuínglio recebeu uma educação esmerada, com forte influência humanista.
Inicialmente, foi sacerdote em Glarus (1506) e em Einsiedeln (1516). Influenciado pelo
Novo Testamento publicado por Erasmo de Roterdã, tornou-se um estudioso das Escrituras
e um pregador bíblico. Com isso, foi chamado para trabalhar na catedral de Zurique em
1518. Quatro anos mais tarde, surgiram as primeiras divergências com a doutrina católica.
Zuínglio defendeu o consumo de carne na quaresma e o casamento dos sacerdotes,
alegando não serem essas coisas proibidas nas Escrituras. Ele propôs o princípio de que
tudo devia ser julgado pela Bíblia.

Em 1523, houve o primeiro debate público em Zurique e a cidade começou a tornar-se


protestante. O reformador escreveu os Sessenta e Sete Artigos – a carta magna da reforma
de Zurique – nos quais defendeu a salvação somente pela graça, a autoridade da Escritura e
o sacerdócio dos fiéis, bem como atacou o primado do papa e a missa. Esse movimento
suíço, conhecido como a “segunda reforma”, deu origem às igrejas “reformadas”,
difundindo-se inicialmente na Suíça alemã e no sul da Alemanha. Em 1525, o Conselho
Municipal de Zurique adotou o culto em lugar da missa e em geral promoveu mudanças
mais radicais do que as efetuadas por Lutero.

Como estava acontecendo na Alemanha, também na Suíça houve guerras entre católicos e
protestantes. Em 1529, travou-se a primeira batalha de Kappel. No mesmo ano, a Dieta de
Spira mostrou aos protestantes a necessidade de uma aliança contra os seus adversários.
Para tanto, era necessário que resolvessem algumas diferenças doutrinárias. Isso levou ao
Colóquio de Marburg, convocado pelo príncipe Filipe de Hesse. Luteranos e reformados
concordaram sobre a maior parte das questões doutrinárias, mas divergiram seriamente
sobre o significado da Santa Ceia. Em 1531, Zuínglio morreu na segunda batalha de
Kappel.

5. Os Reformadores Radicais (Anabatistas)


O terceiro movimento da Reforma Protestante surgiu na própria cidade de Zurique. Em
1522, homens como Conrado Grebel e Félix Mantz começaram a reunir-se com amigos
para estudar a Bíblia. Inicialmente, eles apoiaram o obra de Zuínglio, mas a partir de 1524
passaram a condenar tanto Zuínglio quanto as autoridades municipais, alegando que a sua
obra de reforma não estava sendo profunda o suficiente. Por causa de sua insistência no
batismo de adultos, foram apelidados de “anabatistas”, ou seja, rebatizadores, sendo
36

também chamados de radicais, fanáticos, entusiastas e outras designações. Por causa de


suas atividades de protesto, nas quais chegavam a interromper cultos e celebrações da ceia,
os líderes anabatistas sofreram punições de severidade crescente. Em 1526, Grebel morreu
em uma epidemia, mas seu pai foi decapitado, Mantz foi afogado e outro líder, Jorge
Blaurock, foi expulso da cidade.

O movimento logo difundiu-se nas vizinhas Alemanha e Áustria e em outras partes da


Europa. Um importante líder em Estrasburgo foi Miguel Sattler (c.1490-1527), que presidiu
a conferência de Schleitheim (1527), na qual os anabatistas aprovaram a Confissão de Fé
de Schleitheim. Essa confissão definiu os princípios anabatistas básicos: ideal de
restauração da igreja primitiva; igrejas vistas como congregações voluntárias separadas do
Estado; batismo de adultos por imersão; afastamento do mundo; fraternidade e igualdade;
pacifismo; proibição do porte de armas, cargos públicos e juramentos. Os anabatistas foram
os únicos protestantes do século XVI a defenderem a completa separação entre a igreja e o
estado.

Os anabatistas adquiriram uma reputação negativa por causa de acontecimentos ocorridos


na cidade de Münster (1532-1535). Influenciados por Melchior Hoffman, que anunciou o
fim do mundo e a destruição dos ímpios, alguns anabatistas implantaram uma teocracia
intolerante naquela cidade alemã. Finalmente, foram todos mortos por um exército católico.
Já na Holanda, o movimento teve um líder equilibrado e capaz na pessoa de Menno Simons
(1496-1561), do qual vieram os menonitas. Outro líder de expressão foi Jacob Hutter
(†1536), na Morávia. Os menonitas e os huteritas viviam em colônias, tendo tudo em
comum (ver Atos 2.44; 4.32). Cruelmente perseguidos em toda a Europa, muitos deles
eventualmente emigraram para a América do Norte.

6. João Calvino (1509-1564)


João Calvino nasceu em Noyon, no nordeste da França. Seu pai, Gérard Cauvin, era
secretário do bispo e advogado da igreja naquela cidade; sua mãe Jeanne Lefranc, morreu
quando ele ainda era uma criança. Após os primeiros estudos em sua cidade, Calvino seguiu
para Paris, onde estudou teologia e humanidades (1523-1528). A seguir, por determinação
do pai, foi estudar direito nas cidades de Orléans e Bourges (1528-1531). Com a morte do
pai, retornou a Paris e deu prosseguimento aos estudos humanísticos, publicando sua
primeira obra, um comentário do tratado de Sêneca Sobre a Clemência.

Calvino converteu-se provavelmente em 1533. No dia 1º de novembro daquele ano, seu


amigo Nicholas Cop fez um discurso de posse na Universidade de Paris repleto de idéias
protestantes. Calvino foi considerado o co-autor do discurso e os dois amigos tiveram de
fugir para salvar a vida. Calvino foi para a cidade de Angouleme, onde começou a escrever
a sua obra mais importante, Instituição da Religião Cristã ou Institutas, publicada em
Basiléia em 1536 (a última edição seria publicada somente em 1559). Após voltar por breve
tempo ao seu país, Calvino decidiu fixar-se na cidade protestante de Estrasburgo, onde
atuava o reformador Martin Butzer (1491-1551). No caminho, ocorreu um episódio
marcante. Impossibilitado de seguir diretamente para Estrasburgo por causa de guerra entre
a França e a Alemanha, o futuro reformador fez um longo desvio, passando por Genebra, na
Suíça francesa. Essa cidade havia abraçado o protestantismo reformado há apenas dois
meses (maio de 1536), sob a liderança de Guilherme Farel (1489-1565). Este, sabendo que
37

o autor das Institutas estava de passagem pela cidade, o “convenceu” a permanecer ali e
ajudá-lo.

7. A Reforma em Genebra
Logo Calvino e Farel entraram em conflito com os magistrados de Genebra e dois anos
depois foram expulsos. Calvino seguiu então para Estrasburgo, onde passou os três anos
mais felizes e produtivos da sua carreira (1538-1541). Naquela cidade ele pastoreou uma
igreja de refugiados franceses, casou-se com a viúva Idelette de Bure (†1549), lecionou na
academia de João Sturm, participou de conferências religiosas ao lado de Martin Butzer e
publicou algumas obras importantes, entre elas a segunda edição das Institutas e o
Comentário de Romanos, o primeiro dos muitos que escreveu.

Eventualmente, os magistrados de Genebra insistiram no seu retorno. Calvino aceitou com


a condição de que pudesse escrever a constituição da Igreja Reformada de Genebra. Essa
importante obra, as Ordenanças Eclesiásticas, previa quatro categorias de oficiais: pastores,
encarregados da pregação e dos sacramentos; doutores para o estudo e ensino da Bíblia;
presbíteros, com funções disciplinares; e diáconos, encarregados da beneficência. Os
pastores e os doutores formavam a Companhia dos Pastores; os pastores e os presbíteros
integravam o Consistório, uma espécie de tribunal eclesiástico. Calvino teve um
relacionamento tenso com as autoridades municipais até 1555. No final desse período, em
1553, o médico espanhol Miguel Serveto foi condenado e executado por heresia. Calvino
teve uma participação nesse episódio, lamentada por seus herdeiros, o que não anula a sua
grande obra como reformador, escritor, teólogo e líder eclesiástico. Em 1559, um ano
especialmente significativo, o reformador tornou-se cidadão de Genebra, fundou a sua
Academia, embrião da Universidade de Genebra, e publicou a última edição das Institutas.

A visão do reformador francês era tornar Genebra uma cidade-cristã-modelo através da


reorganização da igreja, de um ministério bem preparado, de leis que expressassem uma
ética bíblica e de um sistema educacional completo e gratuito. O resultado foi que Genebra
tornou-se um grande centro do protestantismo, preparando líderes reformados para toda a
Europa e abrigando centenas de refugiados. O calvinismo veio a ser o mais completo
sistema teológico protestante, tendo por princípio básico a soberania de Deus e suas
implicações, soteriológicas e outras. Foi essa a origem das igrejas reformadas (continente
europeu) ou presbiterianas (Ilhas Britânicas). Os principais países em que se difundiu o
movimento reformado foram, além da Suíça e da França, o sul da Alemanha, a Holanda, a
Hungria e a Escócia.

Calvino também notabilizou-se como um erudito bíblico. Escreveu comentários sobre


quase todo o Novo Testamento e os principais livros do Antigo Testamento. Seus sermões e
preleções também expuseram amplamente as Escrituras. Além disso, escreveu muitos
opúsculos, tratados e cartas. Mas a maior das suas obras são as Institutas, nas quais ele
expôs todos os aspectos da doutrina cristã, apelando às Escrituras e ao testemunho dos
antigos pais da igreja. Em muitas de suas obras se vê uma mão que sustenta um coração, e
ao redor as palavras Cor meum tibi offero Domine, prompte et sincere (“O meu coração te
ofereço, ó Senhor, de modo pronto e sincero”).

Implicações Práticas
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Os reformadores não estavam buscando inovar, mas restaurar antigas verdades bíblicas que
haviam sido esquecidas ou obscurecidas pelo tempo e pelas tradições humanas. Sua maior
contribuição foi chamar a atenção das pessoas para a importância das Escrituras e seus
grandes ensinos, especialmente no que diz respeito à salvação e à vida cristã. Para que as
igrejas evangélicas atuais possam manter-se fiéis à sua vocação, é preciso que julguem tudo
pelas Escrituras, acolhendo o que é bom e lançando fora o que é mau. Os reformadores nos
mostraram que o critério da verdade não são os ensinos humanos, nem a experiência
espiritual subjetiva, mas o Espírito Santo falando na Palavra e pela Palavra.

Reforma e Contra-Reforma (1517-1648) – 2ª Parte

1. A Reforma na Inglaterra
Vários fatores contribuíram para a introdução da Reforma Protestante na Inglaterra: o
anticlericalismo de uma grande parcela do povo e dos governantes, as idéias do pré-
reformador João Wycliff, a penetração de ensinos luteranos a partir de 1520, o Novo
Testamento traduzido por William Tyndale (1525) e a atuação de refugiados que voltaram
de Genebra. Todavia, quem deu o passo decisivo para que a Inglaterra começasse a tornar-
se protestante foi o rei Henrique VIII.

Henrique VIII (1491-1547) começou a reinar em 1509. Sendo muito católico, em 1521
escreveu um folheto contra Lutero que lhe valeu o título de “defensor da fé.” Era casado
com a princesa espanhola Catarina de Aragão, viúva do seu irmão, que não conseguiu dar-
lhe um filho varão, mas somente uma filha, Maria. Henrique pediu ao papa Clemente VII
que anulasse o seu casamento com Catarina para que pudesse casar-se com Ana Bolena
(Anne Boleyn), mas o papa não pode atendê-lo nesse desejo. Uma das principais razões foi
o fato de que Catarina era tia do sacro imperador germânico Carlos V. Em 1533, Thomas
Cranmer (1489-1556) foi nomeado arcebispo de Cantuária e poucos meses depois declarou
nulo o casamento do rei. Em 1534, o parlamento aprovou o Ato de Supremacia, pelo qual a
Igreja Católica inglesa desvinculou-se de Roma e o rei foi declarado “Protetor e Único
Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra.” O bispo John Fisher e o ex-chanceler Thomas
More opuseram-se a essas medidas e foram executados (1535); os numerosos mosteiros do
país foram extintos e suas propriedades confiscadas (1536-1539). Nos anos seguintes,
Henrique ainda teria outras quatro esposas: Jane Seymour, Ana de Cleves, Catarina Howard
e Catarina Parr.

Henrique morreu na fé católica e foi sucedido no trono por Eduardo VI (1547-1553), o filho
que teve com Jane Seymour. Os tutores do jovem rei implantaram a Reforma na Inglaterra e
puseram fim às perseguições contra os protestantes. Foram aprovados dois importantes
documentos escritos pelo arcebispo Cranmer, o Livro de Oração Comum (1549; revisto em
1552) e os Quarenta e Dois Artigos (1553), uma síntese das teologias luterana e calvinista.
Eduardo era doentio e morreu ainda jovem, sendo sucedido por sua irmã Maria Tudor
(1553-1558), conhecida como “a sanguinária”, filha de Catarina de Aragão. Maria
perseguiu os líderes protestantes e muitos foram levados à fogueira. Os mártires mais
famosos foram Hugh Latimer, Nicholas Ridley e Thomas Cranmer. Muitos outros, os
chamados “exilados marianos”, foram para Genebra, Estrasburgo e outras cidades
protestantes.
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Com a morte de Maria, subiu ao trono sua meio-irmã Elizabete I (1558-1603), filha de Ana
Bolena, em cujo reinado a Inglaterra tornou-se definitivamente protestante. Em 1563 foi
promulgado o Ato de Uniformidade, que aprovou os Trinta e Nove Artigos. O resultado foi
o acordo anglicano, que reuniu elementos das principais teologias evangélicas, bem como
traços católicos, especialmente na área da liturgia. Além dos anglicanos, havia outros
grupos protestantes na Inglaterra, como os puritanos, presbiterianos e congregacionais. Os
puritanos surgiram no reinado de Elizabete e foram assim chamados porque reivindicavam
uma igreja pura em sua doutrina, culto e forma de governo. Reprimidos na Inglaterra,
muitos puritanos foram para a América do Norte, estabelecendo-se em Plymouth (1620) e
Boston (1630), na Nova Inglaterra. Outro grupo protestante inglês foram os batistas,
surgidos a partir de 1607 sob a liderança de John Smyth e Thomas Helwys. Este fundou em
1612 a primeira igreja batista geral.

No século XVI, no contexto da guerra civil entre o rei Carlos I e um parlamento puritano,
foi convocada a Assembléia de Westminster (1643-1649). Essa célebre assembléia elaborou
uma série de documentos calvinistas para a Igreja da Inglaterra, entre os quais a Confissão
de Fé e os Catecismos Maior e Breve, que se tornaram os principais símbolos confessionais
das igrejas reformadas ou presbiterianas.

2. A Reforma na Escócia
O protestantismo começou a ser difundido na Escócia por homens como Patrick Hamilton e
George Wishart, ambos martirizados. Todavia, o presbiterianismo foi introduzido graças
aos esforços do reformador John Knox (†1572), um discípulo de Calvino que, após passar
alguns anos em Genebra, retornou ao seu país em 1559. No ano seguinte, o parlamento
escocês criou a Igreja da Escócia (presbiteriana). Knox fez oposição tenaz à rainha católica
Maria Stuart (1542-1587), prima de Elizabete, que viveu na França (1548-1561) e voltou à
Escócia para tomar posse do trono. A aceitação do protestantismo ocorreu no contexto da
luta pela independência do domínio francês. Alguns anos mais tarde, Maria Stuart teve de
fugir e buscar refúgio na Inglaterra, onde foi executada por ordem de Elizabete em 1587.

Foi na Escócia que surgiu o conceito político-religioso de “presbiterianismo”. Os reis


ingleses e escoceses sempre foram firmes defensores do episcopalismo, ou seja, de uma
igreja governada por bispos. A razão disso é que, sendo os bispos nomeados pelos reis, a
igreja seria mais facilmente controlada pelo estado e serviria aos interesses do mesmo. À
luz das Escrituras, os presbiterianos insistiram em uma igreja governada por oficiais eleitos
pela comunidade, os presbíteros, tornando assim a igreja livre da tutela do estado. Foi
somente após um longo e tumultuado processo que o presbiterianismo implantou-se
definitivamente na Escócia.

3. A Reforma na França
O movimento reformado francês surgiu na década de 1530. Inicialmente tolerante, o rei
Francisco I (1515-1547) eventualmente mostrou-se hostil contra os reformados. Henrique II
(1547-1559) foi ainda mais severo que o seu pai. Em 1559 reuniu-se o primeiro sínodo
nacional da Igreja Reformada da França, que aprovou a Confissão Galicana. Em 1561,
havia duas mil congregações reformadas no país, compostas de artesãos, comerciantes e até
mesmo de algumas família nobres, como os Bourbon e os Montmorency. Os reformados
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franceses, conhecidos como huguenotes, estavam concentrados principalmente no oeste e


sudoeste do país, e recebiam decidido apoio de Genebra. Ao norte e leste estava a facção
ultra-católica liderada pela poderosa família Guise-Lorraine.

No reinado de Francisco II (1559-1560), os Guise controlaram o governo. Quando Carlox


IX (1560-1574) tornou-se rei, sendo ainda menor, sua mãe Catarina de Médici assumiu a
regência, mostrando-se inicialmente tolerante para com os huguenotes. Tentando conciliar
as duas facções, ela promoveu um encontro de católicos e protestantes, o Colóquio de
Poissy, em 1561. Com o fracasso desse encontro, houve um longo período de guerras
religiosas (1562-1598), cujo episódio mais chocante foi o massacre do Dia de São
Bartolomeu (24-08-1572). Centenas de huguenotes achavam-se em Paris para o casamento
da filha de Catarina com o nobre protestante Henrique de Navarra. Na calada da noite, os
huguenotes foram assassinados à traição enquanto dormiam, entre eles o seu principal líder,
almirante Gaspard de Coligny. Nos dias seguintes, muitos milhares foram mortos no
interior da França. Mais tarde, quando o nobre huguenote tornou-se rei, com o título de
Henrique IV, ele promulgou em favor dos seus correligionários o Edito de Nantes (1598),
concedendo-lhes uma tolerância limitada. Esse edito seria revogado pelo rei Luís XIV em
1685, dando início a um novo período de duras provações para os reformados franceses.

4. A Reforma nos Países Baixos


Os Países Baixos eram parte do Sacro Império Germânico e depois ficaram sob o domínio
da Espanha. Durante o reinado do imperador Carlos V, surgiram naquela região luteranos,
anabatistas e principalmente calvinistas, por volta de 1540. Desde o início foram objeto de
intensas perseguições, tendo a repressão aumentado sob o rei Filipe II (1555) e o
governador Duque de Alba (1567). A revolta contra a tirania espanhola foi liderada pelo
alemão Guilherme de Orange, grande defensor da plena liberdade religiosa, que seria
assassinado em 1584. Eventualmente, os Países Baixos dividiram-se em três nações:
Bélgica e Luxemburgo (católicas) e Holanda (protestante).

A Igreja Reformada Holandesa foi organizada na década de 1570. No início do século XVII
surgiu uma forte controvérsia por causa das idéias de Tiago Armínio. O Sínodo de Dort
(1618-1619) rejeitou as idéias de Armínio e afirmou os chamados “cinco pontos do
calvinismo”, cujas iniciais formam em inglês a palavra “tulip” (tulipa):

T Total depravity Depravação total


U Unconditional election Eleição incondicional
L Limited atonement Expiação limitada
I Irresistible grace Graça irresistível
Perseverance of the
P Perseverança dos santos
saints

5. A Contra-Reforma
Ao analisarem as ações da Igreja Católica Romana após o surgimento do protestantismo, os
historiadores falam em dois aspectos: Contra-Reforma e Reforma Católica. O primeiro foi
o esforço da Igreja Romana para reorganizar-se e lutar contra o protestantismo. Essa reação
ocorreu tanto no plano dogmático quanto político-militar. Já a Reforma Católica revelou a
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preocupação de corrigir certos problemas internos do catolicismo em resposta às críticas


dos protestantes e de outros grupos.

Foram vários os elementos dessa reação. Na Espanha, houve notáveis manifestações de


uma rica espiritualidade mística, cujos representantes mais destacados foram Teresa de
Ávila e João da Cruz. Além do misticismo espanhol, outro sinal da revitalização católica foi
o surgimento de várias ordens religiosas, das quais a mais importante foi a Sociedade de
Jesus, fundada pelo espanhol Inácio de Loiola (1491-1556) e oficializada pelo papa em
1540. Além dos votos usuais de pobreza, castidade e obediência aos superiores, os jesuítas
faziam um voto adicional de submissão incondicional ao papa. Seu objetivo era a expansão
e o fortalecimento da fé católica através de missões, educação e combate à heresia. Os
jesuítas exerceram forte influência sobre governantes e contribuíram decisivamente para a
supressão do protestantismo em várias regiões da Europa, como a Espanha e a Polônia.

O instrumento mais eficaz tanto da Contra-Reforma quanto da Reforma Católica foi o


Concílio de Trento, que reuniu-se em três séries de sessões entre 1545 e 1563. Seus
decretos rejeitaram explicitamente as doutrinas protestantes e oficializaram o tomismo (a
teologia de Tomás de Aquino), a Vulgata Latina e os livros denominados apócrifos ou
deuterocanônicos. Outros instrumentos da Contra-Reforma foram o Índice de Livros
Proibidos (Index Librorum Prohibitorum, 1559) e a Inquisição, especialmente em suas
versões espanhola e romana. Como expressão do dinamismo católico nesse período, as
ordens dos franciscanos, dominicanos e jesuítas realizaram uma grande obra missionária no
Oriente e nas Américas.
No território do Sacro Império, os conflitos entre católicos e protestantes continuaram por
muitas décadas, atingindo o seu auge na tenebrosa Guerra dos Trinta Anos, que envolveu
metade do continente europeu. Essa guerra terminou com a Paz de Westfália (1648), que
fixou definitivamente as fronteiras político-religiosas da Europa e marcou o final do
período da Reforma.

Implicações Práticas
A história da Reforma nem sempre é agradável e inspiradora. Por causa das profundas
conexões entre elementos religiosos e políticos, esse período foi marcado por muita
violência em nome da fé. Porque a religião é uma coisa muito importante para as pessoas,
as paixões que desperta podem se tornar terrivelmente destrutivas. Os erros cometidos
nessa área por diferentes grupos nos séculos XVI e XVII nos servem de advertência e de
estímulo para a prática da caridade cristã e da tolerância, conforme o exemplo de Cristo.
Podemos, sem abrir mão de nossas convicções, respeitar os que pensam diferente de nós.

Ao mesmo tempo, nos impressionamos com o heroísmo de tantos irmãos nossos da época
da Reforma, que por causa de sua fé enfrentaram muitas provações e até mesmo mortes
cruéis. O evangelho já não exige esse tipo de sacrifício da maioria dos cristãos do Ocidente,
mas isso não significa que estamos livres de grandes desafios. São outras as maneiras pelas
quais a nossa fé é testada no tempo presente. Viver de acordo com os princípios e os valores
do Reino de Deus continua sendo uma prova difícil, mas necessária, para todos os cristãos.

Racionalismo e Reavivamentos (1648-1789)


42

Este período estendeu-se por quase um século e meio, desde a Paz de Westfália até o
importante marco histórico e ideológico que foi a Revolução Francesa (1789). O período
foi caracterizado por um poderoso fenômeno cultural e filosófico, o Iluminismo, com todo
o seu questionamento de antigos pressupostos e a criação de uma nova cosmovisão, o que
representou um formidável desafio para o cristianismo. A Igreja Católica dessa época é
caracterizada como “tridentina” (referente a Trento) e “ultramontana” (= além dos montes,
isto é, os Alpes, numa referência à autoridade suprema do papa). Era uma igreja mais
estruturada, conservadora e militante. Entre os protestantes essa foi uma época de grande
vitalidade, que se manifestou especialmente nas áreas da espiritualidade e missões.

1. Ortodoxia
O período da Reforma foi marcado pela preocupação dos diferentes grupos em definir com
precisão as suas posições teológicas. Como já foi visto, a Igreja Católica explicitou mais
plenamente os seus dogmas no Concílio de Trento (1545-1563). Os anglicanos aprovaram o
Livro de Oração Comum (1549-52) e os Trinta e Nove Artigos (1563), e os luteranos
aprovaram a Fórmula de Concórdia (1577). Por sua vez, os calvinistas, além dos muitos
documentos confessionais que elaboraram no século XVI, articularam novas definições
doutrinárias no Sínodo de Dort (1618-1619) e na Assembléia de Westminster (1643-1649).
Por causa dessa preocupação com a definição e defesa da correta doutrina, o século XVII é
referido como o período do “escolasticismo protestante” ou da “ortodoxia protestante”.
Essas designações geralmente têm uma conotação depreciativa, apontando para o suposto
formalismo e frieza espiritual desse período, o que não é de todo incorreto.

2. Racionalismo
O século XVII também testemunhou o surgimento de uma nova atitude intelectual em
reação ao dogmatismo e intolerância que muitos percebiam no cristianismo, tanto católico
quanto protestante. Esse movimento começou com os humanistas (como Erasmo de
Roterdã) e floresceu no período de 1650 a 1800, a chamada “era da razão”, que marcou o
início do período moderno. As principais ênfases do racionalismo foram a liberdade e
dignidade humana, a investigação científica, o questionamento da autoridade e o ceticismo.
Seus representantes mais conhecidos foram os filósofos René Descartes (†1650), John
Locke (†1704), George Berkeley (†1753) e David Hume (†1776), bem como o cientista
cristão Isaac Newton (1642-1727). Outro nome dado ao movimento é Iluminismo (em
inglês Enlightenment e em alemão Aufklarung), que revelou um esforço consciente de
aplicar a lei da razão aos vários aspectos da vida individual e coletiva.

Curiosamente, apesar de todo o seu ceticismo, os iluministas tinham um religião, o deísmo,


também denominada religião natural ou racional. Seu credo era constituído dos seguintes
elementos: crença em Deus (Criador e Ser Supremo), valores éticos, bondade humana,
progresso, recompensa ou punição futura, suficiência da razão e tolerância religiosa. Por
não aceitarem um Deus imanente, que se relaciona com o mundo, os deístas negavam os
conceitos de providência, revelação e encarnação. Também negavam a trindade (Cristo foi
apenas um grande mestre) e os milagres.

Os principais deístas foram ingleses, alemães e especialmente franceses como Voltaire


(†1778), Rousseau (†1778) e os enciclopedistas. Vários líderes da independência norte-
43

americana também foram deístas, como Benjamin Franklin (†1790), Thomas Jefferson
(†1826) e John Adams (†1826). O grande filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804)
também pertence a este período, embora não tenha sido um deísta. Ele afirmou que Deus
não pode ser conhecido, mas a sua existência é exigida pela razão prática. Kant deu grande
ênfase ao conceito ético do imperativo categórico.

3. Alemanha
Nos séculos XVII e XVIII houve diversas reações contra o escolasticismo luterano, o
tradicionalismo e a interferência política na vida da igreja. Um exemplo disso foram os
místicos e músicos como Johann Sebastian Bach (†1750). Todavia, o grande movimento de
revitalização espiritual ocorrido no luteranismo alemão foi o pietismo. O iniciador do
movimento foi o pastor Philip Spener (1635-1705), que em 1670 começou a promover
reuniões domésticas para meditação e oração. Em 1675, Spener publicou a obra Pia
Desideria (= “desejos piedosos”), na qual defendeu a necessidade de reformas na igreja e
deu ênfase à devoção pessoal e a atividades em pequenos grupos. August H. Francke (1663-
1727), seu discípulo, tornou a cidade de Halle em um grande centro do pietismo (1692),
criando um orfanato, um hospital, escolas e imprensa.

O movimento desde o início preocupou-se com missões e ampliou a sua influência através
de amplos contatos internacionais. Um personagem chave atingido pelo pietismo foi o
conde Nicolau Ludwig von Zinzendorf (1700-1760). A comunidade cristã estabelecida em
sua propriedade (Herrnhut) recebeu um grupo de morávios e deu origem à Igreja Morávia,
da qual Zinzendorf foi o primeiro bispo. Eventualmente, os morávios foram para a
Pensilvânia, nos Estados Unidos. O pietismo deu grande ênfase à devoção pessoal, à
experiência e aos sentimentos, em contraste com a ortodoxia, credos e ritual. Também
enfatizou a necessidade de conversão pessoal, o sacerdócio universal dos crentes, o estudo
das Escrituras e um cristianismo prático (beneficência, missões). Outras ênfases foram a
união dos cristãos, a escatologia e o milenarismo. Apesar de sua insistência nos sentimentos
e na experiência religiosa, o pietismo não desprezou o conhecimento, produzindo
intelectuais respeitados como o historiador da igreja Gottfried Arnold (†1714) e o erudito
bíblico Johann A. Bengel (†1752).

4. Inglaterra
Na Inglaterra ocorreu um acentuado declínio do anglicanismo no século XVII, em virtude
do controle estatal e da influência do secularismo e do deísmo. No século seguinte, houve
um movimento de revitalização liderado por herdeiros dos puritanos. Os chamados
“evangélicos” acentuavam a conversão pessoal, a salvação pela graça e a moralidade,
revelando em tudo uma clara ênfase calvinista. Alguns personagens destacados foram
Henry Venn (†1797), William Romaine (†1795) e o grande autor de hinos John Newton
(†1807). Uma característica do movimento evangélico foi exatamente a rica produção de
músicas sacras.
Outro notável movimento de revitalização do protestantismo inglês foi o metodismo, criado
pelo ministro anglicano John Wesley (1703-1791). John, seu irmão Charles e alguns amigos
fundaram o “clube santo” de Oxford para o cultivo da vida espiritual. Depois de uma
experiência missionária fracassada na América, Wesley retornou à Inglaterra, foi
influenciado por morávios e teve a célebre experiência de conversão na Rua Aldersgate
(1738). Logo depois, foi a Herrnhut e conheceu Zinzendorf. Tornou-se então um grande
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pregador, evangelista, escritor e organizador. Na teologia, afastou-se do calvinismo que há


muito vinha sendo influente no seu país e adotou uma posição arminiana, dando ênfase à
salvação universal, salvação livre, salvação certa, salvação plena, bem como à inteira
santificação. Outra figura notável foi o calvinista George Whitefield (1714-1770),
inicialmente um companheiro de Wesley. Destacou-se como extraordinário pregador e
evangelista, fazendo várias viagens à América do Norte e influenciando o Grande
Despertamento (1740).

5. Missões
Os séculos XVI e XVII testemunharam intensa atividade missionária transcultural por parte
da Igreja Católica, especialmente na Ásia e na América Latina. No Oriente, os principais
missionários foram os jesuítas. No Japão, um grande pioneiro foi Francisco Xavier (†1552),
o “apóstolo” das Índias (1542) e do Japão (1549); nesse país, o cristianismo experimentou
grandes perseguições após 1587. Na China trabalhou Mateus Ricci (†1610), cujos métodos
missionários produziram muita controvérsia e a acusação de sincretismo. Na Índia
destacou-se Roberto de Nobili (†1656), que trabalhou entre os brâmanes. O trabalho
missionário sistemático nas Filipinas começou com o padre Legaspi em 1564.

Devido a uma série de circunstâncias, os protestantes pouco fizeram em termos de missões


aos pagãos nos séculos XVI e XVII. As primeiras sociedades missionárias protestantes
foram a Companhia para a Propagação do Evangelho na Nova Inglaterra (1649), a
Sociedade para a Promoção do Conhecimento Cristão (SPCK, 1698) e a Sociedade para a
Propagação do Evangelho em Regiões Estrangeiras (1702). Outro esforço pioneiro foi a
Missão Dinamarquesa-Halle, uma associação entre luteranos pietistas e o rei da Dinamarca.
Essa missão enviou Bartolomeu Ziegenbalg (1683-1719) e Henrique Plütschau (1678-
1747) como missionários à Índia. A Bíblia em tamil foi publicada em 1728. Hans Egede
(†1758) foi missionário na Groenlândia. Todavia, o movimento missionário protestante só
teria início com o pastor inglês William Carey (1761-1834), tido como o “pai das missões
modernas”, e a Sociedade Missionária Batista, criada em 1792.

6. A América
Os primeiros colonizadores ingleses da América do Norte foram os anglicanos que
fundaram Jamestown, na Virgínia, em 1607. Alguns anos depois, chegaram a Plymouth,
Massachusetts, os peregrinos do navio Mayflower (1620), que eram puritanos separatistas.
Outro grupo de puritanos, esses não-separatistas, fundou Salem e Boston em 1629-1630.
Até 1640, cerca de vinte mil puritanos iriam para a Nova Inglaterra, fundando a Igreja
Congregacional. Os batistas estabeleceram-se na pequena colônia de Rhode Island, cuja
capital, Providence, foi fundada por Roger Williams (†1683). Os presbiterianos escoceses-
irlandeses fixaram-se em grande parte nas colônias centrais (Nova Jersey, Pensilvânia,
Virgínia). Sob a liderança de Francis Mackemie, foi fundado o Presbitério de Filadélfia em
1706; o Sínodo de Filadélfia surgiu em 1716 e a Assembléia Geral em 1788. Os metodistas
foram organizados em 1773 por Francis Asbury. Os quakers e outros refugiados religiosos
radicaram-se na Pensilvânia, colônia fundada por William Penn em 1682. Os católicos
concentraram-se em Maryland, colônia criada por Lord Baltimore.

Os calvinistas foram pioneiros em diversas áreas da vida religiosa das Treze Colônias. O
primeiro missionário aos indígenas foi John Eliot (1604-1690), pastor congregacional em
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Roxbury, Massachusetts. Eliot traduziu o Novo Testamento para a língua algonquim,


tradução essa que foi a primeira nas Américas. Na ilha de Martha’s Vineyard trabalharam
entre os indígenas várias gerações da família Mayhew (1646-1806). Outro famoso
missionário aos índios norte-americanos foi o jovem David Brainerd, falecido em 1747.

O maior fenômeno religioso das Treze Colônias foi o Grande Despertamento (1727-1743).
Alguns de seus líderes iniciais foram o reformado holandês Theodore Frelinghuysen e o
presbiteriano William Tennent. Porém, seus maiores expoentes foram o evangelista George
Whitefield, já mencionado, e Jonathan Edwards (1703-1758), pastor congregacional em
Northampton, Massachusetts. Edwards notabilizou-se por suas análises e descrições
extremamente perspicazes do avivamento e é hoje considerado um dos maiores teólogos
norte-americanos.

7. Igreja Ortodoxa
A igreja grega ou oriental sofreu um duro golpe com a queda de Constantinopla, em 1453.
Seu único teólogo notável por dois séculos foi Cirilo Lucar (†1638), que sofreu influências
calvinistas e foi condenado pelo Sínodo de Jerusalém (1672). Esse sínodo afirmou posições
semelhantes às do catolicismo tridentino. A igreja ortodoxa da Rússia foi controlada e
oprimida pelos czares (= césares), especialmente os Romanovs. O Patriarcado de Moscou
foi criado em 1588. A igreja russa revelou duas tendências opostas: de um lado, rigidez e
formalismo (discutiu-se se o sinal da cruz devia ser feito com dois ou três dedos); de outro
lado, reavivamento e vitalidade (misticismo, influência do pietismo alemão). Um grupo
interessante de igrejas do Oriente Médio e do leste europeu são os uniatas, igrejas orientais
que se uniram a Roma, mantendo características próprias.

Implicações Práticas
Um aspecto interessante da história da igreja é o seu movimento pendular, ou seja, de ação
e reação. Isso fica bem claro neste período, em que uma ênfase inicial no intelecto e na
razão (ortodoxia, racionalismo) gerou uma reação oposta centrada na experiência e no
sentimento (pietismo, avivamentos). Todavia, esses elementos não precisam ser opostos,
irreconciliáveis. É possível, e mesmo desejável, ser um cristão fervoroso, piedoso, e ao
mesmo tempo valorizar a cultura e o intelecto, pois Deus é o autor de ambas, a razão e a
emoção, e devemos cultuá-lo e servi-lo com essas duas dimensões complementares da
nossa personalidade.

Os grandes avivamentos deste período revelam outra realidade importante. A genuína


experiência religiosa transcende o plano pessoal e individual para alcançar e beneficiar toda
a sociedade. Pietistas, evangélicos, metodistas e outros grupos acentuavam a necessidade de
conversão e comunhão com Deus, mas também se envolveram amplamente em atividades
como educação, ação social e missões. É esse o modelo abrangente de vida e testemunho
cristãos que precisamos incentivar em nosso país.

Os Séculos Dezenove e Vinte

Esta aula está subdividida em duas partes: O Século XIX e O Século XX.
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A. O Século XIX
Em certo sentido, o século XIX começou com a Revolução Francesa (1789-1795), que por
sua vez inspirou-se, pelo menos em parte, na Revolução Americana (1776). Essas
revoluções popularizaram conceitos políticos que eventualmente seriam adotados por quase
todas as nações do hemisfério ocidental, entre os quais a separação entre a igreja e o estado
e a liberdade de consciência e religião.

1. A Igreja Católica
A Revolução Francesa foi um rude golpe contra a Igreja Católica. Influenciados pelo
racionalismo, os revolucionários pretenderam eliminar o cristianismo na França: templos
foram destruídos e muitos sacerdotes foram mortos. Na “era napoleônica” (1795-1815) a
igreja tornou-se novamente oficial (1801-1805), mas sujeita ao Estado. Em 1809, Napoleão
entrou em Roma e anexou os estados papais.

A igreja reagiu fortemente contra o ideário da revolução. A ordem dos jesuítas, que havia
sido suprimida em 1773 pelo papa Clemente XIV, foi restabelecida em 1814. O papado
experimentou um acentuado fortalecimento, que chegou ao seu ponto mais alto no
pontificado de Pio IX (1846-1878), o mais longo da história dos papas. Pio proclamou o
dogma da imaculada concepção de Maria (1854) e publicou a encíclica Quanta Cura (=
“quantos cuidados”) em 1864. A encíclica veio acompanhada de um apêndice, o Syllabus,
contendo uma longa série de ataques às liberdades modernas (separação entre igreja e
estado, educação leiga, democracia, ideais republicanos) e a instituições como a maçonaria
e o protestantismo. Pio também convocou o Concílio do Vaticano (1869-1870), que
proclamou o dogma da infalibilidade papal.

Após uma longa luta, a Itália foi unificada em 1861. A cidade de Roma e os antigos estados
papais, que a igreja havia controlado desde a época de Pepino, o Breve, no século VIII,
foram anexados em 1870. O papa tornou-se o “prisioneiro do Vaticano” e só bem mais
tarde a igreja aceitou a nova situação. Na Alemanha, a Velha Igreja Católica rejeitou os
decretos do Concílio Vaticano I (1873). O pontificado de Leão XIII (1878-1903) foi um
período menos conturbado.

2. O Protestantismo Europeu
Na Alemanha, houve um avivamento no início do século XIX em torno de movimentos
como o confessionalismo, o pietismo e a “missão interior”. Foi criada uma nova igreja
nacional em 1817, no tricentenário da Reforma, unindo luteranos e reformados. Deu-se
muita ênfase à reflexão bíblica e teológica. Em 1900 havia 62% de protestantes e 36% de
católicos. Na França, as principais igrejas eram a reformada e a luterana. Em 1900, havia
cerca de 650 mil protestantes, que eram bastante influentes na vida nacional. A vida
religiosa era vigorosa e havia dinamismo nas áreas da evangelização, ação social, missões e
educação teológica.

Na Holanda, a Igreja Cristã Reformada (livre) separou-se da velha Igreja Reformada. Em


1900, cerca da metade da população estava filiada às igrejas reformadas. Na Suíça, a
proporção de católicos e protestantes era igual à do século XVI, havendo 3/5 de
protestantes. Em 1874, a constituição federal consagrou a plena liberdade de culto, cada
cantão tendo a sua própria igreja ou igrejas. Em 1920 seria criada a Federação Eclesiástica
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Suíça, composta de igrejas cantonais e algumas igrejas livres. Na Escandinávia, a Igreja


Luterana continuou a ser a igreja oficial. No final do século XIX, os seguintes países
também tinham maioria evangélica: Estônia, Lituânia, Letônia e Finlândia (luteranos).
Havia minorias protestantes expressivas na Checoslováquia, Hungria, Romênia e Rússia.

3. Inglaterra
Na Inglaterra anglicana houve três grandes movimentos religiosos no século XIX.
O “movimento evangélico” foi uma conseqüência do reavivamento do século anterior,
abrangendo a ala evangélica da Igreja Anglicana (“low church”) e algumas igrejas livres. O
movimento deu grande ênfase à piedade pessoal, ao serviço cristão e a missões, exercendo
grande influência. Entre as suas contribuições estão a Escola Dominical, iniciada por
Robert Raikes (1735-1811), e o combate ao tráfico de escravos, liderado pelo político
William Wilberforce (1759-1833). Os evangélicos produziram notáveis líderes e pregadores
como Charles Simeon (1759-1836), pastor em Cambridge; Robert Murray M’Cheyne
(1813-1843), na Escócia, falecido com apenas trinta anos; e o batista reformado Charles H.
Spurgeon (1834-1892). No início do século, foi pastor em Londres o controvertido
presbiteriano escocês Edward Irving (1792-1834), tido como um precursor do movimento
carismático.

O “movimento liberal” revelou preocupação teológica (sob influência alemã), vigor


intelectual, interesse de relacionar a fé com todas as áreas da vida e integridade ética. Seus
grandes representantes foram os bispos J.B. Lightfoot (†1889) e B.F. Westcott (†1901). Por
sua vez, o “movimento anglo-católico”, centralizado em Oxford, deu ênfase a questões
como sucessão apostólica, o magistério da igreja, sacramentos e ritual. John Henry
Newman (†1890) e outros anglicanos publicaram os Folhetos Para os Tempos Atuais
(1833-1841), expondo as suas idéias. Muitos cléricos aderiram à Igreja Católica, inclusive
Newman, que tornou-se cardeal.

A segunda metade do século XIX é conhecida como a “era vitoriana” (da rainha Vitória),
caracterizada pela revolução industrial e pelo colonialismo. Ao longo do século surgiram na
Inglaterra novos grupos como os Irmãos de Plymouth ou Darbistas (c. 1830) e o Exército
da Salvação (1878). Em 1900, as igrejas livres tinham tantos membros quanto a igreja
oficial.

4. Estados Unidos
As Treze Colônias norte-americanas alcançaram a sua independência em 1776 e a
Constituição Americana foi aprovada em 1789, consagrando a separação entre a igreja e o
estado e a plena liberdade religiosa. Isso, associado à grande diversidade religiosa, resultou
no fenômeno do denominacionalismo. Alguns anos mais tarde, teve início o Segundo
Grande Despertamento (1801), que produziu o crescimento dramático de muitas
denominações, especialmente batistas e metodistas, e o surgimento de movimentos como os
“camp meetings” (acampamentos avivalísticos) e as sociedades voluntárias (abolicionismo,
educação, missões). Algumas décadas depois, o problema da escravidão levou a divisões de
igrejas e à Guerra Civil (1861-1865). Dois evangelistas destacaram-se ao longo do século: o
controvertido Charles G. Finney e especialmente Dwight L. Moody (1837-1899). O século
XIX também viu o surgimento de novos grupos religiosos como os Discípulos de Cristo
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(1832), Mórmons (1830), Adventistas (1843), Ciência Cristã (1875) e Testemunhas de


Jeová (1884).

5. Missões Modernas
O século XIX foi, no dizer do historiador Kenneth S. Latourette, “o grande século das
missões”. Um importante pioneiro foi William Carey (†1834) e a sua Sociedade
Missionária Batista (1792). Várias outras agências foram criadas nos anos seguintes, como
a Sociedade Missionária de Londres (1795), interdenominacional; a Junta Americana de
Comissionados para Missões Estrangeiras (1810), congregacional; e a União Missionária
Batista Americana (1813), com a qual trabalhou Adoniram Judson (1788-1850). O início do
século também marcou o surgimento da Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira (1804) e
da Sociedade Bíblica Americana (1816). Alguns dos grandes missionários do período foram
David Livingstone e Robert Moffat (África Central), Robert Morrison e Hudson Taylor
(China), Guido Verbeck (Japão) e John Paton (ilhas do Pacífico).

B. O Século XX
O início do século XX testemunhou a bárbarie da I Guerra Mundial (1914-1918) na Europa
cristã. Em 1926, teve início na Alemanha derrotada a ascensão do nacional-socialismo
(nazismo). Hitler tornou-se ditador em 1933 e alguns anos depois deflagrou a II Guerra
Mundial (1939-1945). As décadas seguintes foram marcadas pela “guerra fria”, um período
de constante tensão ideológica e militar entre o Leste e o Ocidente. Os anos 50 e 60 viram o
fim do colonialismo na África e na Ásia.

1. A Igreja Católica
Na Europa, ocorreu a separação entre a igreja e o estado em antigos países católicos como a
França (1905) e a Espanha (1931-39, 1978). Na Itália, Benito Mussolini tomou o poder em
1922 e assinou uma concordata com o papa Pio XI em 1929 mediante a qual foi criado o
pequeno Estado do Vaticano. A igreja experimentou avanços nas áreas política,
educacional, intelectual, social e missionária. Houve o surgimento de novos centros de
religiosidade popular, como Lourdes, na França, e Fátima, em Portugal. Uma das
personalidades católicas mais famosas do século XX foi Agnes G. Bojaxhiu (1910-1997),
mais conhecida como Madre Teresa de Calcutá, fundadora da Ordem das Missionárias da
Caridade (1950).

Um evento marcante foi o Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado pelos papas João
XXIII (1958-1963) e Paulo VI (1963-1978). Esse concílio adotou importantes medidas de
renovação litúrgica e de aproximação com outros grupos cristãos. Na esteira do Vaticano II,
surgiram dois movimentos católicos com tendências opostas: a renovação carismática nos
Estados Unidos e a teologia da libertação na América Latina, que teve como um de seus
expoentes o sacerdote brasileiro Leonardo Boff. O século XX terminou com o pontificado
do papa polonês João Paulo II, eleito em 1978, que fez uma reafirmação dos valores
tradicionais do catolicismo. João Paulo é um fervoroso devoto de Maria – seu escudo
pontifício ostenta a letra “M” e as palavras “totus tuus” (= todo teu).

2. A Igreja Ortodoxa
Durante boa parte do século, a Igreja Ortodoxa experimentou estagnação na Europa oriental
e crescimento nas Américas, devido à imigração. Por suas ligações com o czarismo, a Igreja
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Russa foi alvo da fúria da Revolução Comunista (1917): muitas igrejas e mosteiros foram
destruídos e inúmeros sacerdotes foram executados. Vasili B. Tikhon (†1925), o
metropolitano de Moscou, protestou contra as perseguições. Ortodoxos, católicos e batistas
do leste europeu resistiram contra o marxismo-leninismo. Nessa resistência, notabilizou-se
o escritor e dissidente cristão Alexandr Solzhenitsyn, que recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura em 1970 e escreveu a obra Arquipélago Gulag. Em 1989 ocorreu um dos eventos
mais marcantes do século: a “queda do muro de Berlim”, sinalizando a derrocada do
comunismo e o fim da União Soviética. A Rússia e outros países da região passaram a
usufruir de liberdade religiosa, o que levou a um ressurgimento da Igreja Ortodoxa.
Atualmente os ortodoxos estão novamente cultivando relações estreitas com os governos e
reivindicando a imposição de restrições às missões protestantes, especialmente
pentecostais, que estão trabalhando ativamente no leste europeu.

3. Protestantismo
A Alemanha foi palco de acontecimentos especialmente dramáticos devido ao surgimento
do nazismo. Em 1921 havia sido criada a Federação das Igrejas Evangélicas, envolvendo a
maioria dos protestantes e também algumas igrejas livres. Boa parte dos protestantes, os
chamados “cristãos alemães”, apoiaram o regime nazista. A “igreja confessional” opôs-se
ao regime, sofrendo a repressão do mesmo. O líder mais destacado desse movimento foi o
pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), que envolveu-se com a resistência
contra o regime e foi executado em um campo de concentração pouco antes do final da II
Guerra Mundial. Outro crítico do nazismo foi o notável teólogo suíço Karl Barth (1886-
1968), o criador da neo-ortodoxia e autor da monumental Dogmática Eclesiástica.

Nas primeiras décadas do século o movimento missionário continuou com todo o seu
ímpeto. Dois grandes líderes americanos de missões foram o presbiteriano Robert Elliott
Speer (1867-1947) e o metodista John Raleigh Mott (1865-1955). Desde meados do século
XIX, os protestantes europeus e norte-americanos vinham realizando grandes conferências
missionárias que produziram uma aproximação cada vez maior entre as igrejas. Em 1910,
realizou-se em Edimburgo, na Escócia, a Conferência Missionária Mundial, que acabou
sendo o berço do movimento ecumênico. A conferência resultou na criação do Concílio
Missionário Internacional (1921), que eventualmente deu origem ao Conselho Mundial de
Igrejas, fundado em Amsterdã em 1948. Uma personalidade de grande destaque no
cristianismo europeu foi o literato e apologista cristão C. S. Lewis (1898-1963).

Nos Estados Unidos, o início do século XX testemunhou o surgimento de um dos


fenômenos mais extraordinários da história do cristianismo: a eclosão do movimento
pentecostal. O pentecostalismo derivou do movimento de santidade (“holiness”), um fruto
do metodismo. Os pioneiros pentecostais foram os pastores Charles F. Parham (†1929) e
seu discípulo William Seymour (1870-1922), líder do avivamento da Rua Azusa (1906), em
Los Angeles, considerado o marco inicial do movimento. Entre as primeiras denominações
pentecostais estão a Igreja de Deus, de Cleveland (1906), as Assembléias de Deus (1914) e
a Igreja do Evangelho Quadrangular (1927), fundada pela evangelista Aimee Semple
McPherson (†1944). O pentecostalismo difundiu-se rapidamente por todo o mundo e hoje
congrega a maioria dos protestantes em muitos países, como o Brasil. Os anos 60 veriam o
surgimento do movimento carismático, que foi a manifestação de fenômenos pentecostais
nas igrejas protestantes históricas e no catolicismo dos Estados Unidos.
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O dinâmico protestantismo norte-americano continuou a produzir novas ênfases e


movimentos, como foi o caso do Evangelho Social, capitaneado pelo pastor Walter
Rauschenbusch (1861-1918). Um importante livro ligado ao movimento foi Em Seus
Passos (1896), de Charles M. Sheldon. Outro grupo expressivo e influente do
protestantismo norte-americano são os conservadores. Nos anos 20 ocorreu a célebre
controvérsia entre fundamentalistas e modernistas, que afetou principalmente os
presbiterianos. Duas das personalidades religiosas mais destacadas do século XX foram os
pastores batistas Billy Graham, o maior evangelista do século, e Martin Luther King Jr.
(1929-1968), líder da luta pelos direitos civis dos negros.

Outro fenômeno religioso marcante do século XX foi o acentuado declínio do cristianismo


no hemisfério norte, especialmente na Europa ocidental, e o seu enorme crescimento no
hemisfério sul, o chamado “terceiro mundo”, ou seja, na América Latina, África e Ásia. É
especialmente significativo o crescimento do cristianismo na África, com o surgimento das
chamadas “igrejas africanas independentes”. Na América Latina, a continuarem as atuais
taxas de crescimento, dois países terão maioria protestante no século XXI: Guatemala e
Porto Rico. Vejam-se alguns dados estatísticos sobre a evolução numérica do cristianismo
no século XX:

Filiação por Bloco Eclesiástico (em milhões)


1900 1970 1997
Católicos Romanos 266 689 992
Protestantes 134 288 426
Ortodoxos 116 147 215
Outros 9 74 238

Filiação por Continente (em milhões) 1900 1970 1997


África 9 119 310
América do Norte 60 173 203
América Latina 60 268 451
Ásia 20 90 299
Europa 369 494 527
Oceania 4 15 20

Implicações Práticas
Os séculos XIX e XX foram marcados pelo surgimento de muitas ideologias e filosofias
que representaram um enorme desafio para o cristianismo. Entre elas se destacam, no
aspecto político, o marxismo, o socialismo e o comunismo; no campo filosófico, o
positivismo, o agnosticismo e o existencialismo; na área da ciência, o evolucionismo e a
psicanálise freudiana. Presentemente, vemos o crescimento de uma cosmovisão
denominada “pós-modernismo”, com toda a sua ênfase no subjetivo e sua tendência para o
relativismo, principalmente nos campos da ética e da religião. O conceito de valores ou
verdades absolutos vem sendo cada vez mais questionado. Isso exige dos cristãos um
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renovado compromisso com a fé cristã histórica, ao mesmo tempo que procuram dar
respostas para os problemas e indagações deste final de milênio.

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