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São Leopoldo
2015
Ricardo Pietrowski Ferreira
São Leopoldo
2015
Ricardo Pietrowski Ferreira
Aprovado em 25/08/2015
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Inácio Helfer (orientador) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Prof. Dr. Alfredo Santiago Culleton – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
Ao orientador e agora amigo, Prof. Dr. Inácio Helfer, pela preciosa orientação e pela
dedicação, mas sobretudo pela amizade, pela paciência e pelos conselhos que me auxiliaram a
crescer na pesquisa.
Aos meus pais e ao meu irmão, que prestaram toda educação necessária para um
convívio social, e que ainda suportaram calorosamente toda minha despesa econômica e
emocional durante esse período de labor intelectual, sempre acreditando em um futuro
promissor.
Não posso deixar de citar minha gratidão aos meus avós, João Pietrowski e Vitória
Pietrowski e José Ferreira e Teresa Lobo.
Aos professores Castor Bartolomé, Alfredo Culleton, Adriano Naves de Brito, Sofia
Stein, Denis Coitinho e Marcelo Fernandes de Aquino, pelo conhecimento transmitido e pela
amizade.
Aos colegas Arildo, Aline, Leandro, Edward, Lincoln e Henrique, que conheci nesta
etapa, amizades que me ajudaram edificar a perplexidade de ser, aprendendo muito sobre a
convivência.
Agradeço também meus amigos irmãos: Elton Tada, Renan Cesar Alves, Renato
Ferreira, Vinícius Bogdan, Silvio Zangari, Pedro Henrique Sanches e Luis Arthur Peixoto.
Por fim, agradeço às secretárias do PPG, que sempre prestaram o melhor atendimento,
e também à CAPES, que tornou esta pesquisa possível.
“Quem quiser nascer tem que destruir um mundo; destruir no sentido de
romper com o passado e as tradições já mortas, de desvincular-se do meio
excessivamente cômodo e seguro da infância para a consequente dolorosa
busca da própria razão de existir: ser é ousar ser.”
Demian – Hermann Hesse
RESUMO
This dissertation aims to perform a critical analysis of how human rights’ foundation
faded with the establishment of totalitarianism, and how Hannah Arendt’s thought can
contribute to reflecting on (re)building such rights. It is intended to understand how the
weakening of human rights ideas, diagnosed by Hannah Arendt, has developed, as well as
how her reflections are essential for a construction of human rights guided by political action,
freedom, plurality and equality, in a public space that guarantees human dignity. This study
covers mainly the German philosopher’s thoughts; however, it is also considered some
readings made by Celso Lafer, a scholar of Arent philosophy, whose works contribute to
better understand human rights issues. In order to properly clarify this problem, this
dissertation is organized in three parts: the first one aims at demonstrating how human rights
justified and based on the declarations published in 1776 and 1789, which consider men as the
source of every law and therefore as inalienable individuals, were insufficient before the
totalitarian phenomena (rupture phenomenon), especially concerning stateless persons issues.
The second part concerns the explanation of Arendt’s main concepts, such as: public and
private space, action and discourse, human relations and responsibility, and, finally, the
purpose of politics and freedom. The third part if this study focuses on Arendt’s concept of
citizenship, which is defined by her as “the right to have rights”. When properly developed,
citizenship enables the existence of freedom, which may be exercised through a council
system. To conclude these considerations, the closing comments demonstrate how the activity
of “reflective judgment”, formulated by Kant and taken into consideration by Arendt, may
help with reviewing the political and philosophical thought as an assertion of freedom;
therefore, it can be extremely important for administration of justice and History.
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
2 A DESCONSTRUÇÃO DOS VALORES HUMANOS NO PERÍODO TOTALITÁRIO
.................................................................................................................................................. 13
2.1. AS DECLARAÇÕES DE DIREITOS DO HOMEM E SUA INSUFICIÊNCIA ............. 13
2.2. A QUESTÃO DOS APÁTRIDAS .................................................................................... 19
2.3. A NOVIDADE TOTALITÁRIA COMO FENÔMENO DE RUPTURA ........................ 24
2.4 O CASO EICHMANN ....................................................................................................... 29
3 PLURALIDADE E DIVERSIDADE DA CONDIÇÃO HUMANA: O ESPAÇO DE
APARIÇÃO ............................................................................................................................. 33
3.1 O DOMÍNIO PÚBLICO, O DOMÍNIO PRIVADO E A ESFERA DO SOCIAL ............ 33
3.2 A AÇÃO, O DISCURSO E A REVELAÇÃO DO AGENTE POTENCIAL .................... 40
3.2.1 A teia das relações humanas ......................................................................................... 43
3.2.2 Responsabilidade ........................................................................................................... 47
3.3 SENTIDO DA POLÍTICA E LIBERDADE ...................................................................... 50
4 (RE)CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS ....................................................... 56
4.1 O DIREITO A TER DIREITOS ......................................................................................... 56
4.1.1 Noção de humanidade ................................................................................................... 64
4.1.2 Sistema de conselhos...................................................................................................... 70
4.2. O “JUÍZO REFLEXIVO” E OS DIREITOS HUMANOS ............................................... 78
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 84
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 89
9
1 INTRODUÇÃO
Fazer uma crítica aos direitos humanos, ou mesmo questioná-los, principalmente nos
dias atuais em que são festejados, pode soar um tanto quanto reacionário, típico de pessoas
desinformadas ou com defeitos intelectuais. Não é o caso desta pesquisa, pois o pensamento
filosófico, como nos convida e nos ensina, sempre nos faz ir além do senso comum. Dessa
maneira, com base no ponto de vista de Hannah Arendt, podemos analisar criticamente e
apontar objeções ao estatuto dos direitos humanos.
Vale ainda lembrar que Arendt não é a única a fazer críticas ao estatuto dos direitos
humanos; há grandes pensadores da filosofia e do direito que se prestaram a estudá-los e a
criticá-los. Dentre estes pensadores, podemos citar Michel Villey, Norberto Bobbio, Vicente
de Paulo Barreto, Costas Douzinas e o próprio Habermas. Vemos, assim, que não se trata de
um viés retrógrado ou reacionário, pois grandes personalidades do pensamento político-
filosófico já se propuseram a fazer o mesmo trabalho.
Nesta pesquisa, por questões de afinidade e de metodologia, a escolha que fizemos
foi a de utilizar o pensamento arendtiano como ponto de partida para analisar o assunto.
Como é sabido, os direitos humanos, quando foram pensados no séc. XVIII, foram elaborados
com intuito de promover uma proteção à população quanto às ações advindas do Estado.
Porém, nos dias atuais, o furto dos direitos humanos do cidadão não mais advém apenas das
ações dos Estados; também advém de ações terroristas, por exemplo. Por isso, é de suma
importância uma pesquisa no assunto para que se possa dar atualização, não só ao pensamento
da autora, mas também ao pensamento em torno dos direitos humanos.
A temática dos direitos humanos não surge com as declarações do séc. XVIII, porém,
a devida pesquisa irá analisá-lo sob o prisma de Arendt, que traça uma crítica relativa à
maneira como foram pensados os direitos humanos nas declarações americana e francesa.
Para a autora, o problema começa quando os direitos humanos se tornam frágeis frente ao
evento do totalitarismo. Por isso, é preciso considerar a importância de se atualizar o
pensamento arendtiano a respeito da temática dos direitos humanos, pois da mesma maneira
que os direitos humanos foram concebidos no séc. XVIII e se tornaram frágeis perante o
evento totalitário, continuaram frágeis após a Segunda Grande Guerra, com o surgimento das
Organizações das Nações Unidas e sua declaração de Direitos Humanos.
Os direitos humanos, como foram concebidos nas declarações, constituem em
primorosas condições de afirmação da dignidade humana; porém, se não houver um espaço
político em que se possa assegurar sua validade, como aponta Arendt, então não terão
10
validade. Sendo assim, como possibilidade de atualização, está mais que justificada a
importância de se traçar críticas e apontamentos ao estatuto dos direitos humanos sob o viés
de Hannah Arendt.
Para atingir esse objetivo, o trabalho estrutura-se da seguinte forma: no primeiro
capítulo, com base na obra Origens do Totalitarismo (1989), demonstramos como os Direitos
Humanos, justificados e baseados nas declarações de 1776 e de 1789 – que tornaram o
homem como fonte de toda lei e por isso inalienável –,mostraram-se insuficientes frente ao
fenômeno totalitário. Esta é a primeira crítica de Arendt aos direitos humanos, pois, a partir
dessa perspectiva, os homens não seriam iguais nem livres por natureza; se assim fossem,
apátridas e minorias não teriam perdido seus direitos: perderam-nos justamente porque
ficaram reduzidos à mera natureza humana, sem inserção no mundo, em especial no mundo
da política. A crítica de Arendt permanece referente às revoluções americana e francesa,
quando os direitos humanos, os quais se tentava consolidar, foram subordinados à soberania
nacional e identificados com os direitos dos nacionais. Com a subordinação dos direitos
humanos aos direitos nacionais, aqueles que perdiam a nacionalidade também perdiam seus
direitos humanos e, assim, afrontavam a fundamentação metafísica desses direitos, ancorada
na natureza humana que dependia de uma nação.
O surgimento desses homens supérfluos teve início no período entre as duas grandes
guerras, e sua efetivação se deu, como cristalização histórica de ruptura dos direitos humanos,
com a barbárie totalitária do nazismo e do stalinismo. Essa tragédia sem precedentes cria uma
massa de homens vazios, excluídos socialmente e despidos de qualquer direito. Nesse sentido,
a ruptura começa a tornar-se evidente na cena política com o aparecimento das “displaced
persons”, os apátridas e as minorias, que não tinham mais aqueles direitos consagrados como
inalienáveis.
Os campos de concentração implantados no período totalitário foram fenômenos
inéditos perante a comunidade política e filosófica e, dessa maneira, tornaram-se cruciais para
consolidação da ruptura dos direitos humanos. A novidade totalitária dos campos de
concentração destruiu não apenas a personalidade jurídica e moral do homem, mas também
sua “espontaneidade”. Ao ceifar este último sedimento do homem, os regimes nazi-fascistas
acabaram por torná-los supérfluos, reduzidos à mera insignificância. A autora conclui, em sua
análise, que o os regimes totalitários trouxeram para cena do século XX uma versão inédita do
mal em sua dimensão política, o qual ela denominou de “mal radical”, ou, no caso de
Eichmann, como “mal banal”.
11
Depois da crítica aos meios violentos da resistência à opressão, meios que apenas
destroem a autoridade e o poder mas não os criam ou substituem, mostramos, no segundo
capítulo, os conceitos que Arendt expõe na obra A Condição Humana (2010), tais como
liberdade, ação, pluralidade e espaço público, os quais, articulados entre si, permitem a
formação de um conceito de cidadania baseado na real participação dos cidadãos na
organização política de uma comunidade, em contrapartida a um conceito meramente formal
de cidadania.
Já no terceiro e último capítulo, para fechar o pensamento apontado nos itens
anteriores, indicamos como a experiência histórica das “displaced persons” levou Hannah
Arendt a concluir que a cidadania é o “direito a ter direitos”, pois, para ela, a igualdade em
dignidade e direitos dos seres humanos não é um fato dado; é algo construído a partir da
convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. Em resumo, é esse
acesso ao espaço público – o direito de pertencer a uma comunidade política – que permite a
construção de um mundo comum por meio do processo de asserção dos direitos humanos.
O direito a ter direitos, portanto, implica a necessidade de refletir criticamente sobre
os direitos e suas garantias, sobre a noção de humanidade e a atribuição de tal
responsabilidade a ela, de modo que essa reflexão tenha de se estender cada vez mais, visto
que nossas ações possuem consequências que já não são mais territorialmente circunscritas.
Essa reflexão revela também a dependência de qualquer direito a um plano de garantias e
acordos mútuos realizados por atores políticos, porque se trata de um conceito artificial e
contingente. Mais ainda, revela que o direito a ter direitos deve ser compreendido
politicamente, pois apenas na esfera pública e por meio da ação política e do discurso é que é
possível compreender, redefinir e reconstruir o sentido dos direitos humanos. Nessa terceira
seção, abordamos ainda o sistema do conselho, instância em que a cidadania é compreendida
como ação vivenciada no espaço público, favorecendo, assim, a possibilidade de efetivação
dos direitos humanos, exercidos como dignidade política dos cidadãos.
Por fim, no último item do terceiro capítulo, recorremos ao juízo reflexivo, que Kant
examina na Crítica do Juízo (1998), no que se refere à análise de estética, e que foi o ponto de
partida de Hannah Arendt para unir a teoria à prática na sua proposta de reconstrução,
conforme se vislumbra nas suas Lições sobre filosofia política em Kant (ARENDT, 1993b). O
juízo, entendido como a faculdade de subsumir o particular no geral, é um dos temas
fundamentais do Direito, pois uma das características da experiência jurídica moderna é o
processo por meio do qual o caso concreto é qualificado por uma normal geral. A importância
dos juízos reflexivos deriva da relação problemática entre o universal e o particular, que a
12
Para abordar o tema dos direitos humanos, e como o totalitarismo rompeu com
algumas de suas fundamentações, as reflexões contidas nas obras de Hannah Arendt se fazem
de suma importância para a compreensão do devido fenômeno histórico. Esta análise
filosófica tende a rever o evento totalitário, da segunda grande Guerra, como processo
histórico que se desenvolve durante a afirmação da ideia dos direitos humanos, convidando a
repensar a validade de sua fundamentação enquanto argumento jurídico-filosófico. Neste
capítulo, analisaremos de que forma a autora aborda a novidade do holocausto e como as
declarações dos direitos humanos foram insuficientes para suportar o evento totalitário do
nazismo. Analisa também como a ruptura do pensamento filosófico com a tradição acarretou
em sua inutilidade para a análise deste “evento” 1.
Convém dizer, desde logo, que a reflexão arendtiana sobre os direitos humanos é
fragmentária; está não só dispersa, como inacabada na sua obra – cuja importância, para o
entendimento de nosso século, vem sendo crescentemente reconhecida. Nesse sentido,
podemos observar a relevância de um diálogo com seu pensamento; afinal, poderemos
explorar livremente as reflexões da autora e tratar de assuntos que ela não chegou a abordar
em sua obra. (LAFER, 1988).
1
Sobre a noção de evento totalitário como evento político singular e difícil de significação, Cf. DUARTE
(2000).
2
Hannah Arendt perde a nacionalidade alemã em 1933.
14
classes, partidos, movimentos, governos e nações. Porém, o que Arendt não previa e o mundo
foi obrigado a assistir, foi o insucesso das resoluções dos conflitos e a abertura de uma nova
via que acarretou em uma solução trágica, violenta e genocida, como nunca se tinha visto
anteriormente: o caso do terror dos campos de concentração implantados pelos regimes
totalitários. (SIVIERO, 2006).
Nesse sentido, a obra Origens do Totalitarismo serve-nos como bom aparato teórico
para compreender a questão do holocausto, do genocídio e do tema judaico levantado pelo
nazismo. Arendt proporciona uma análise robusta sobre a organização totalitária, a sua
implantação, a propaganda e o modo como domina as massas e ajusta o Estado com a
intenção de dominação total.
As aflições do holocausto desenvolvidas pelo regime totalitário do nazismo, que
causaram uma situação de restrição e abolição da liberdade pública e das garantias
individuais, até então nunca enfrentadas, fez com que a autora desenvolvesse um
questionamento sobre a validade fundacional dos direitos humanos que foram construídos sob
a proteção de conceitos filosóficos e abstratos, culminando naqueles direitos até então tidos e
definidos como inalienáveis. (ARENDT, 1989).
Hannah Arendt admite que a Declaração dos Direitos do Homem, do final do século
XVIII, foi um evento de tamanha importância para o paradigma histórico dos direitos
humanos. Não que tenha sido a primeira a tratar do assunto na história, mas pelo fato de ter
sido fundamental para o desenvolvimento do conceito concebido a posteriori. O advento dessa
declaração determinou que, daí em diante, o homem tivesse sua emancipação pronunciada, a
qual se tornou única e exclusivamente fonte de toda lei. Além disso, o homem não estava
mais sujeito a regras provindas de uma entidade divina ou assegurada meramente pelos
costumes da história, passando a ser dotado de direitos simplesmente pelo fato de ser homem.
(ARENDT, 1989).
Mas existe outra implicação que os criadores da Declaração não perceberam; nas
palavras da autora,
político, evidenciando, assim, toda a fragilidade dos apátridas, que ficaram à mercê da sorte e
da violência. Isso levou os apátridas a crer que a perda dos direitos nacionais era muito
semelhante à perda dos direitos humanos e que a primeira perda era caminho certo para
segunda. (ARENDT, 1989).
Entretanto, a concepção de direitos humanos como direitos que decorrem do Homem
ou de uma ideia de homem, isto é, de um ser abstrato e indefinível, opõe-se à condição
humana da pluralidade, essencial à ação e à dignidade humana. Sendo assim, o homem
isolado3 permanece sendo homem; porém, ao distanciar-se do espaço público e da companhia
de outras pessoas, fica impossibilitado de se revelar e de confirmar sua identidade. De fato, na
filosofia arendtiana, são as revelações estabelecidas no espaço público, entre os diversos
homens, que representam a atividade dignificadora do ser humano. No espaço público, o
homem iniciará relações únicas, marcadas por sua experiência unívoca e iluminadas por suas
particularidades. Nessa esfera, cada ação tem sua importância, exatamente porque é fruto da
atividade livre de cada indivíduo específico, revelando a identidade única e singular daquele
que age. A ação política, advinda da liberdade e da singularidade de cada um, revela o
indivíduo aos demais e confirmando para si mesmo quem de fato ele é.
Depois de a Revolução Francesa declarar os direitos então inalienáveis, surge o
conflito latente entre o Estado e a nação, que veio à luz por ocasião do próprio nascimento do
Estado-nação moderno, culminando na exigência da soberania nacional. Assim a autora
reflete:
Pode-se notar que a declaração de direitos humanos foi elaborada de forma abstrata e
subjetiva, dependendo necessariamente da soberania dos Estados-nações para efetivação dos
então direitos declarados. Quando a ditadura Nacional-Socialista sob o comando de Hitler se
instaurou na Alemanha, as pessoas que não eram de raça ariana passaram a ser consideradas
sem nacionalidade e foram capturadas, torturadas e mortas como seres supérfluos, sem
dignidade. Nesse contexto, quem conseguia fugir se tornava apátrida e, uma vez fora do país
de origem, permanecia sem lar, perdia todos os seus direitos humanos – tornava-se um refugo
3
Sobre a diferença entre isolamento e solidão, Cf. Arendt (1989).
16
da terra (ARENDT, 1989), pessoas do submundo4. É nessa perspectiva que surge a fraqueza
do fundamento dos direitos humanos, pois, como a sua aplicação necessitava de um respaldo
da soberania nacional, a partir do momento que as pessoas perdiam sua nacionalidade,
perdiam também seus direitos humanos.
Sem essa revelação, calcada nos direitos humanos no espaço público, o homem não
faz mais parte da história e, após sua morte, nada existe que possa recuperar sua existência ou
sua memória. Sem a companhia de iguais, a relação do eu com o mundo se parte pela falta de
ratificação do senso comum. Por isso, é apenas quando o indivíduo está em companhia de
outros homens diferentes de si, em um espaço público, que ele realmente age, confirmando
sua singularidade e sua identidade com o advento de relações inéditas que refletem a si
mesmo como agente unívoco na totalidade da comunidade humana. E é somente nesse
momento que ele atualiza sua dignidade. O indivíduo sozinho, excluído da teia de relações
humanas, fica despido da própria dignidade, justamente porque nada daquilo que ele faça ou
deixe de fazer terá importância. Seus anos não atingirão o resto da comunidade humana e
passarão como se não tivessem existido. Essa situação de isolamento e separação da
comunidade, em realidade, afeta as características particulares da vida humana que são
consideradas especiais, segundo Hannah Arendt, desde Aristóteles: o homem fica despido da
relevância da fala (e comandar o pensamento e a fala sempre foram marcas de separação do
ser humano dos demais animais); e fica despido do relacionamento com outras pessoas
(afetando-se a ideia do homem como “animal político”). (ARENDT, 1989).
A ruptura que os campos de concentração trouxeram aos direitos humanos não
consistia apenas no fato de que a escravidão tolhia a liberdade das pessoas (o que pode
ocorrer em muitas situações), mas no fato de ter tirado, de uma categoria de pessoas, até
mesmo a possibilidade de lutarem pela liberdade. Sob esse ponto de vista, a fundamentação
dos direitos humanos em uma ideia de homem, abstrata e universal, que exclui qualquer
particularidade e singularidade dos homens no mundo real, vai de encontro à própria atividade
dignificadora do ser humano: a ação. A ação é política em sua natureza, pois é a interação
peculiar do ser humano concreto e singular com outros homens, tão concretos e diversos
quanto existem, em uma comunidade real. E é precisamente por essa característica que cada
indivíduo, concreto e singular, emana dignidade – porque é único, e não uma cópia
homogênea e substituível de uma natureza genérica. Na perspectiva arendtiana, os direitos
humanos, que deveriam ser reflexo da dignidade do homem, pensados de forma a
4
O termo “submundo” quer dizer o inferior somado a tudo aquilo que constitui a realidade, ou seja, abrange as
pessoas que vivem na realidade mundana, mas que estão a baixo dos direitos humanos.
17
5
A tomada do Estado pela nação inicia-se, em parte, com a crescente consciência nacional causada pela
ampliação geográfica que as nações europeias experimentaram com o imperialismo. Essa ampliação fez com que
os europeus se defrontassem com homens de culturas radicalmente diferentes, que, de certa forma, não cabiam
em seu conceito de humanidade. Quanto a essa questão do tribalismo e os Estados-nações, pontua Arendt (1989,
p. 261): “A tragédia do Estado-nação surgiu quando a crescente consciência nacional do povo interferiu com
essas funções [de proteção de todos os habitantes de seu território e de instituição legal suprema]. Em nome da
vontade do povo, o Estado foi lançado a reconhecer como cidadãos somente os “nacionais”, a conceder
completos direitos civis e políticos somente àqueles que pertenciam à comunidade nacional por direito de origem
e fato de nascimento. Isso significa que o Estado foi parcialmente transformado de instrumento da lei em
instrumento da nação.”
19
Argumenta, portanto, que, antes de possuir qualquer direito específico, importa primeiro a um
indivíduo pertencer a uma comunidade política, comunidade disposta e capaz de garantir
direitos. Consequentemente, o primeiro e único direito que pode ser atribuído a um homem é
o de ter direitos. (ARENDT, 1989).
O número de apátridas viu-se também multiplicado por uma pratica política nova,
fruto de atos do Estado no exercício da competência soberana em matéria de
emigração, naturalização e nacionalidade. Refiro-me ao cancelamento em massa da
nacionalidade por motivos políticos, caminho inaugurado pelo governo soviético em
1991 em relação aos russos que viviam no estrangeiro sem passaporte das novas
autoridades, ou que tinham abandonado a Rússia depois da Revolução sem
autorização do governo soviético. Este caminho foi percorrido pelo nazismo, que
promoveu desnacionalizações maciças, iniciadas por lei de 14 de julho de 1933,
21
Direitos do Homem na esfera das relações internacionais. Isso foi devido ao fato de que o
instituto era concebido para ser aplicado individualmente. Do asilo beneficia-se um indivíduo
por ter sido acusado, em um país, da prática de crimes políticos que o Estado que concede
asilo entende que não deva ser punido. Por esse motivo, o asilo não deveria ser aplicado à
grande população dos apátridas. (LAFER, 1988).
O segundo grande abalo que a população europeia sofreu com o surgimento dos
refugiados6 provia da dupla constatação de que não se poderia desfazer-se deles e de que era
impossível transformá-los em cidadãos do país de refúgio, principalmente porque a maioria
das pessoas acreditava que só teria duas formas de resolução para o caso: repatriação ou
naturalização. Porém, assim como o asilo, os institutos clássicos da naturalização e
repatriação não eram aplicáveis à multidão de apátridas. O motivo da inaplicabilidade era o
fato inédito de que sua escala era muito numerosa; nesse aspecto, sabe-se pelo menos que,
enquanto existia 1 milhão de apátridas “reconhecidos”, havia mais 10 milhões de apátridas
“de fato”, embora ignorados. (ARENDT, 1989). Outrossim, a fronteira da nacionalização se
esbarrava em políticas nacionalistas dos Estados que não eram muito favoráveis aos
movimentos migratórios em larga escala, principalmente por estarem num contexto de crise e
desemprego. Logo, se o país de origem aceitasse “displaced persons”, estes indivíduos seriam
jogados e entregues nas mãos dos seus piores inimigos. (ARENDT, 1989).
As “displaced persons”, como eram chamados os apátridas, se constituíam em uma
exceção política: desnacionalizados no Estado de origem, não tinham a cidadania reconhecida
no Estado de destino; eram pessoas sem lugar no mundo. Nesse sentido, a expressão “povos
sem Estado” ao menos tomava conhecimento de que essas pessoas haviam perdido sua
nacionalidade de que careciam de acordos internacionais que efetivassem a sua condição
legal. Aqui, Arendt enfatiza que a expressão “displaced persons”, ou pessoas deslocadas, foi
elaborada durante a guerra com o intuito de resolver o problema dos apátridas de maneira
rápida, simplesmente com a manifestação de ignorar a sua existência. (ARENDT, 1989).
Arendt destaca ainda um terceiro tipo de população que se deslocava entre os países,
distintos dos dois anteriores, e que já começava a adquirir importância: os imigrantes
econômicos. Ela se refere particularmente ao caso da França, que, devido às suas condições
demográficas, necessitava se nutrir de trabalhadores estrangeiros para o seu mercado de
trabalho. Apesar de necessários, nem por isso deixavam de recair sobre eles pesadas medidas
restritivas, como a deportação em tempo de crise e desemprego. (ARENDT, 1989).
6
Para fins práticos, todos os refugiados são aqui considerados como apátridas.
23
Nesse estudo, o que fica evidente é a conclusão de que, num mundo como o do
século XX, politicamente organizado, perder o status civitatis é a mesma coisa que perder sua
casa no mundo, ser expulso da humanidade, da comunidade política, de nada valendo os
24
Cabe ainda ressaltar que Hannah Arendt, em Origens do Totalitarismo, não tinha o
intuito de promover uma teoria normativa, um plano de “como devemos agir”, nem mesmo
oferecer respostas a estes “problemas reais subjacentes”, mas tão somente instruir o terreno,
“promover uma análise em termos de história” (ARENDT, 1994), ou seja, compreender,
pensar7 sobre aquilo que estamos fazendo. Esse estudo, em termos de história, tinha a
pretensão de culminar num entendimento dos elementos que se cristalizaram no fenômeno
totalitário e daquilo que diferenciava essa forma de governo de outras formas de opressão
política. A autora estava, de fato, interessada em caracterizar o evento totalitário enquanto
fenômeno político de ruptura. (XARÃO, 2013).
Para melhor esclarecer esse aspecto, apontamos a crítica levantada por Seyla
Benhabib a respeito da metodologia. Segundo Benhabib, a metodologia adotada por Arendt
na compreensão da política estaria envolvida por uma dupla tensão. A primeira se refere ao
fato de que seu pensamento não estaria livre de suposição – derivada da
Ursprungsphilosophie (uma filosofia da origem ou do sentido originário) – que localiza um
estado original ou um ponto temporal como privilegiado para a busca por capturar o sentido
verdadeiro dos fenômenos. Para Benhabib, essa concepção seria inspirada pela fenomenologia
de Husserl e Heidegger, segundo a qual “a memória é a recordação mimética das origens
perdidas dos fenômenos enquanto contidas em alguma experiência humana fundamental”.
(BENHABIB, 1993, p. 73, tradução nossa).
A segunda tensão refere-se à concepção arendtiana do pensamento político como
storytelling, tentando pensá-lo por meio da história humana, sedimentada nas camadas da
linguagem. Para Benhabib, a decorrência metodológica deste comprometimento teórico
acerca do conceito de política é a construção de um método historiográfico fragmentário –
que busca, não obstante, vale dizer, restabelecer a possibilidade de articulações significativas
entre os fenômenos –, inspirado por Benjamin, e que consiste em “uma lembrança, no sentido
de um ato criativo de ‘remembrar’, isto é, de colocar juntos os membros de um todo, de
7
Pensar é compreender, é dar sentido; em termos políticos, pensar é elaborar uma história que dê conta dos
acontecimentos, reconciliando-se com o mundo e tornando-se responsável por ele.
25
repensar que libera as perdas potenciais do passado. (BENHABIB, 1993, p. 76). Arendt, em
todo caso, afirma ser parte de seu pressuposto, e não de seu método, uma desconstrução da
metafísica que tem por assentada tanto a ruptura quanto a impossibilidade de reatamento do
fio da tradição.
Sobre a questão da novidade totalitária, a autora enfatiza que os métodos de domínio
total não são apenas mais drásticos, mas que o totalitarismo difere essencialmente de outras
formas de opressão política que conhecemos, como o despotismo, a tirania e a ditadura,
porque, sempre que o totalitarismo8 galgou o poder, criaram-se instituições políticas
inteiramente novas e destruíram-se todas as tradições sociais, legais e políticas do país.
Outro ponto-chave de caracterização da ruptura totalitária com a tradição, sendo a
principal instituição dos regimes totalitários, foram os campos de concentração, não apenas
porque eles condensam e potencializam todos os absurdos implementados na textura social
por meio dessa forma de dominação sem precedentes, mas também porque, justamente aí,
manifesta-se o objetivo crucial do totalitarismo: a destruição da infinita pluralidade e da
diferenciação dos seres humanos. Os campos de concentração são os laboratórios onde foram
testadas as possibilidades e as condições de fabricação do cidadão por excelência dos regimes
totalitários, aquele que apenas reage previsivelmente aos estímulos externos a que é
submetido, cuja espontaneidade foi destruida, e que pode ser eliminado a qualquer momento,
posto que seria totalmente “supérfluo” (DUARTE, 2000). Isso ocorre porque totalitarismo não
procura o domínio despótico dos homens, mas sim um sistema em que os homens sejam
supérfluos, porque, enquanto todos os homens não se tornarem iguais nesse sentido – e isso só
se consegue nos campos de concentração –, o ideal do domínio totalitário não é atingido. Por
sua vez, isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem foram apenas formulados, mas
nunca filosoficamente estabelecidos; apenas proclamados, mas nunca politicamente
garantidos. perderam, em sua forma tradicional, toda a validade.
Para que os campos de concentração efetivassem o domínio total dos regimes
totalitários, o primeiro passo essencial como desmontagem do homem era efetivar a
destruição total da “pessoa jurídica” do homem. Assim como dito anteriormente no tocante
aos apátridas, com a perda dos direitos civis na sua privação de nacionalidade, bem como com
a criação de um sistema independente da conduta, dá-se o primeiro passo para a aberração
8
Quanto a essa questão do termo “totalitarismo”, deve-se manter um cuidado. Para entender esse termo, Cf.
Xarão (2013, p. 35): “Essa restrição quanto ao uso do termo deve-se à convicção de que a dominação total ‘é a
única forma de governo com a qual não é possível coexistir‘. Por esse motivo, o termo totalitarismo deve ser
usado com cautela. A rigor, ele designa somente o período de 1929 a 1941 e de 1945 a 1953 na Rússia, de todo o
período de Stálin, e, na Alemanha, o governo de Hitler após 1933 até o fim da guerra em 1945.”
26
impossível. Nos campos de concentração, a alternativa já não é mais entre o bem e o mal, mas
entre matar e matar.
No tocante a esse aspecto, a autora pontua de maneira incisiva que, morta a pessoa
moral, a única coisa que ainda impede que os homens se transformem em mortos-vivos é a
diferença individual, a identidade única do indivíduo. Sob certa forma estéril, essa
individualidade pode ser conservada por um estoicismo persistente, e sabemos que muitos
homens em regimes totalitários se refugiaram, e ainda se refugiam diariamente, nesse
absoluto isolamento9 de uma personalidade sem direitos e sem consciência. (ARENDT,
1989). A experiência dos campos de concentração demonstra realmente que os seres humanos
podem transformar-se em espécimes do animal humano, e que a “natureza” do homem só é
“humana” na medida em que dá ao homem a possibilidade de tornar-se algo eminentemente
não natural, isto é, um homem.
Tendo destruído a sua “pessoa jurídica” e a sua “pessoa moral”, resta apenas ao
homem a raiz de sua distinção singular em relação aos seus semelhantes, a sua
“espontaneidade”, e é justamente para tentar destruí-la que os campos de concentração
organizam seus métodos calculados de tortura. A meta dos campos é justamente ceifar esse
último sedimento do humano do homem, convertendo-o em um mero “feixe de reações” que
pode ser liquidado sem que ofereça resistência: “quem aspira ao domínio total deve liquidar
do homem toda espontaneidade que a mera existência da individualidade sempre produzirá, e
persegui-la nas suas formas mais peculiares, por mais apolíticas e inocentes que sejam”
(DUARTE, 2000, p. 70).
O argumento arendtiano é o de que as propriedades tradicionalmente atribuídas ao
homem desaparecem sob condições totalitárias, isto é, que elas não dependem de uma
natureza imutável, mas são construídas e garantidas a partir de artifícios, tais como a
legalidade, a cidadania, o respeito à pluralidade humana e a posse de um lugar próprio e de
uma ocupação social, sem os quais não subiste a dignidade da existência humana e, logo, os
direitos humanos.
Hannah Arendt conclui suas análises dos regimes totalitários sob o signo da certeza
de que eles trouxeram, para a cena do século XX, uma versão inédita do mal em sua dimensão
política, a qual ela denominou, naquele contexto, de “mal absoluto” ou “mal radical”. Com
essas noções, Arendt sintetizou os traços paradoxais da ruptura instituída pelos atos
empreendidos pelos regimes totalitários, os quais exigem ser compreendidos justamente
9
Sobre a questão do isolamento, Cf. Arendt (1989).
28
Nesse sentido, o terror totalitário não pode ser avaliado em termos de meios e fins,
pois a própria referência a essas categorias deixa de fazer sentido aqui. É nesse contexto que o
adjetivo “sem precedentes”, aplicado ao totalitarismo, torna-se compreensível, na medida em
que permite identificar de modo mais apropriado esse fenômeno.
Arendt não se dedicou a pensar o problema do mal em seu estatuto filosófico,
optando por investigar sua dimensão especificamente política. As noções de mal radical e mal
absoluto, bem como a sua noção posterior – a respeito da “banalidade do mal”, elaborada no
contexto de seu estudo sobre o caso Eichmann –, possuem no mesmo sustentáculo suas
experiências, sintetizando os paradoxos instituídos pelos regimes totalitários em seu caráter
desafiador ao pensamento. O mal totalitário, seja ele pensado como absoluto, radical ou banal,
sempre é pensado como imperdoável e impossível de se punir na exata medida; se ele não é
cometido em funções de quaisquer motivos malignos ou demoníacos, também não se
encontram motivos “humanamente compreensíveis” que possam explicá-lo de uma vez por
todas. Para Arendt, o mal político não se deixa compreender plenamente em termos das suas
possíveis motivações, cabendo apenas analisar as suas terríveis consequências para o mundo.
(DUARTE, 2000).
Para a autora, é preciso reconhecer a realidade desta ruptura e evitar a tendência
reconfortante de “pensar que algum acidente aconteceu, após o qual nossa tarefa é a de
restaurar a velha ordem, de apelar à velha sabedoria do certo e do errado”, a fim de garantir a
“ordem” e a “segurança”. (ARENDT, 1989, p. 329). Não se tratava de reproduzir as predições
dos chamados “profetas das catástrofes”, mas de assumir a árdua tarefa de repensar as bases
da política. (DUARTE, 2000).
Diante dos desafios impostos pela ruptura da tradição, Arendt anunciava, já em sua
primeira grande obra, as exigências teóricas legadas aos pensadores e homens de ação do
século XX: não se tratava de argumentar a favor da tese da impossibilidade de compreender e
29
carreira e de participar das altas rodas do partido nazista e do Reich. Ocorre, como a própria
Arendt coloca, o erro do Tribunal de Jerusalém em julgar Eichmann, não apenas pelos seus
atos, mas por concentrar nele todo o mal realizado pelo nacional-socialismo:
Se o réu for tomado como um símbolo e o julgamento como um pretexto para trazer
à tona assuntos que são, aparentemente, mais interessantes do que a culpa ou
inocência de uma pessoa, então a consciência exige que nos inclinemos diante da
afirmação feita por Eichmann e seu advogado: que ele foi trazido à cena porque era
necessária uma válvula de escape, não só para a República Federal da Alemanha,
como também para os acontecimentos como um todo(...). (ARENDT, 2000a, p.
294).
É inerente a toda a nossa tradição filosófica que não possamos conceber um “mal
radical”, e isso se aplica tanto à teologia cristã, que concedeu ao próprio Diabo uma
origem celestial, como a Kant, o único filósofo que, pela denominação que lhe deu,
ao menos deve ser suspeitado de que esse mal existia, embora logo o racionalizasse
no conceito de um “rancor pervertido” que podia ser explicados por motivos
compreensíveis. (ARENDT, 1989, p. 510).
Arendt explica que o verdadeiro mal radical surgiu em um sistema em que todos os
homens se tornaram “supérfluos”. Podemos afirmar que, toda vez que o homem for tratado
como supérfluo, teremos o mal radical, e este pode ocorrer também em democracias, não só
em regimes totalitários ou de exceção.
No início, Arendt coloca que “não é um indivíduo que está no banco dos réus neste
processo histórico, não é apenas o regime nazista, mas o antissemitismo ao longo de toda
história” (ARENDT, 2000a). Mas o seguimento desse processo não ocorreu bem dessa
maneira:
Em toda sua defesa, tanto pessoal como por intermédio de seu advogado, Eichmann
alegou estar cumprindo ordens. Como um ambicioso almejando degraus cada vez mais altos,
Eichmann não hesitou em momento algum em cumprir todas as ordens que lhe eram dadas,
independentemente de quais fossem, fato este que derrubou seus argumentos pró-judeus em
sua defesa. Tanto que, quando questionado pelo juiz da corte de Jerusalém sobre cada
acusação, ele respondia: “se declara culpado?” “– Não no sentido da acusação!”
Em síntese, Hannah Arendt questionou a promotoria por querer ver no holocausto
um pogrom10 em grande escala, e a defesa por se valer dos conceitos jurídicos válidos apenas
num contexto de razoabilidade, realçando que estes dois posicionamentos não contribuíram,
no correr do processo, para a inteligibilidade do genocídio: um crime burocrático insólito,
10
Pogrom é um ataque violento maciço a pessoas, com a destruição simultânea do seu ambiente (casas,
negócios, centros religiosos).
32
engendrado pelo ineditismo da dominação totalitária que assume o ser humano como
supérfluo e que tem, no campo de concentração, a instituição constitutiva do cerne do poder
organizacional do regime. (LAFER, 1988). O genocídio, em outras palavras, não é uma
discriminação em relação a uma minoria, não é um assassinato em massa, não é um crime de
guerra nem um crime contra paz. Sob o ponto de vista da novidade totalitária, Arendt pode
elencar que o caso do genocídio é algo novo: um crime burocrático sem precedentes,
cometido por pessoas “aterradoramente normais” como Eichmann. Estas circunstâncias da
dominação totalitária não estavam agindo por inclinação ao mal radical, mas sim no exercício
de uma capacidade profissional, numa época na qual a técnica tornara o assassino em larga
escala industrialmente fácil e asséptico. (LAFER, 1988). Por isso, como disse Hannah Arendt,
refletindo sobre o caso Eichmann, na sua carta a Scholem:
[...] é minha opinião agora que o mal nunca é ‘radical’, que ele é apenas extremo e
que não possui nem profundidade nem dimensão demoníaca. Ele pode invadir e
destruir todo o mundo precisamente porque se propaga como um fungo na
superfície. Ele desafia o pensamento, como disse, porque o pensar busca a
profundidade, procura alcançar as raízes e, no momento que em se ocupa o mal, se
vê frustrado porque nada encontra. Esta é a banalidade do mal. Só o bem tem
profundidade e pode ser radical. (ARENDT, 2007 apud SOUKI, 1998, p. 101).
Após essa análise de Arendt sobre o caso Eichmann, houve frequentemente uma má
interpretação a respeito do termo banalidade do mal, pois viam no conceito uma banalização
dos crimes nazistas, o que era equivocado. Mas o que a autora notou, após ficar frente a frente
com um dos maiores representantes desse novo mal cometido, foi o fato que esse indivíduo,
Eichmann, não possuía nada de fanático convicto ou de cínico mentiroso. O que surpreendeu
foi a desproporção existente entre o ato e o autor do ato, entre a extensão do mal cometido e a
mediocridade, a pobreza intelectual de Eichmann em pensar o assunto moral. (ROVIELLO,
1997). E é nesse sentido que o mal banal se denomina, pois não é algo que tinha origens
demoníacas, mas sim um mal burocratizado, um mal praticado por pessoas que fazem parte de
uma engrenagem da máquina e que são desprovidos do pensar profundo, incapazes de emitir
juízos pessoais sobre suas ações, ou seja, de submeter o conteúdo particular de seus atos à
questão do sentido dessas ações.
33
Quanto à terceira, que possui maior importância para a autora, e também para este
trabalho, a autora pontua que
A ação, única atividade que ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação
das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
que os homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Embora todos
os aspectos da condição humana tenham alguma relação com a política, essa
pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas
a conditio per quam – de toda vida política. (ARENDT, 2010, p. 8-9).
Podemos observar a ênfase que a autora dá para ação, pois, para ela, todas as
atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos; porém, a
ação é a única que não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens. Assim, a
ação se diferencia do trabalho, que corresponde ao processo biológico do corpo humano, e da
obra, correspondente ao artificialismo da existência humana.
Aqui, como em boa parte de sua obra, nota-se a importância que a autora dá à
metodologia de se “fazer distinções”, pois, segundo ela, à medida que se deixam passar
despercebidas as distinções de conceitos, cada um de nós tem o direito de definir seus
próprios termos. Isso implica deixarmos de viver em um mundo comum, em que as palavras
possuem um significado preciso, para então deixarmos conceitos como os de “autoridade”,
“liberdade” e “educação” à mercê de cada indivíduo, os quais ganham, desta maneira,
contornos de “opinião própria”. Nessa perda da habilidade de distinguir conceitos, em que
35
todas as coisas podem tornar-se qualquer outra coisa, concepções antes bem definidas, como o
de público e privado, passam a perder seu sentido original e, assim, começam a fugir do
entendimento comum, metamorfoseando-se em instâncias que praticamente não se
diferenciam, como no caso da esfera social.
Uma análise sobre a política arendtiana deve, obrigatoriamente, passar pelos pares
conceituais construídos por ela, visto que, em geral, ela formula suas noções de maneira
dicotômica, dando ênfase à inter-relação entre dois termos opostos que não podem ser
entendidos um sem o outro. Arendt elucida um conceito tendo em vista o contraste com o seu
lado oposto. É nesse sentido que se faz mister passar pelos conceitos de público e privado que
a autora elabora, pois, a partir do momento em que ela define política como liberdade
(BRITO, 2007), a avaliação das inter-relações entre as concepções de liberdade e de
necessidade se tornam de suma importância para entender sua noção de política.
Arendt resgata o conceito público e privado do pensamento grego, a partir do qual
parte para sua análise das atividades da vida activa. Dentro dessas atividades, a autora
evidencia quais delas se enquadram no espaço público e no espaço privado. Sendo assim, com
base no pensamento grego, podemos dizer que para eles, existia uma divisão clara entre os
domínios da vida privada e os da vida pública, “entre as esferas da polis e a esfera do lar, da
família, [...] entre as atividades relativas a um mundo comum e aquelas relativas à
manutenção da vida, divisão essa que baseava todo o antigo pensamento político” (ARENDT,
2010, p. 34). Os assuntos relacionados à economia não se enquadravam de nenhuma maneira
aos assuntos políticos, pois se relacionavam apenas à vida individual e à sobrevivência da
espécie, portanto, “[...] nenhuma atividade que servisse à mera finalidade de garantir o
sustento do indivíduo, de somente alimentar o processo vital, era autorizada a adentrar ao
domínio político” (ARENDT, 2010, p. 44). Dessa maneira, o domínio privado difere do
domínio público exatamente por guardar aquelas coisas que não podem ser partilhadas, ou por
não suportarem a luz do público, como o amor; ou por não poderem ser comunicadas de
nenhuma forma, como a dor. Em outras palavras, o domínio privado se opõe ao público por
conter aquilo que é ausente-do-mundo ou que só concerne ao corpo, pois de fato, nada “é
menos comum e menos comunicável, e, portanto, mais seguramente protegido contra a
visibilidade e audibilidade do domínio público, quanto aquilo que se passa no interior do
corpo, seus prazeres e suas dores, seus esforços físicos e de consumo (XARÃO, 2013). Para a
autora, a Cidade-Estado e o domínio público só foram possíveis devido à existência de uma
esfera do lar e da família (oikos), que mantinham as necessidades vitais para que os homens
livres pudessem exercer a prática da política, como um luxo a mais da existência.
36
A polis no mundo grego era o espaço político por excelência, aquele destinado
apenas ao exercício da liberdade, enquanto a outra esfera, a da vida privada, era um espaço
pré-político que mantinha a responsabilidade de suprir as necessidades. A diferenciação que
havia entre a polis e o lar residia no fato de que na polis o homem estava entre “iguais”11,
isento das necessidades da vida e, ao mesmo tempo, fazendo uso da sua singularidade através
do discurso e da ação. A igualdade política, segundo Arendt, era entendida como uma questão
de direitos iguais, isto é, somente aqueles que eram iguais deveriam ser tratados como tais,
pois nem todos deveriam ser considerados com igualdade12. Assim, mesmo a noção cristã de
igualdade, onde todos eram iguais diante de Deus, nunca pretendeu igualar todos os homens
da face da Terra, como fez a modernidade, mas pretendia tornar iguais somente aqueles que
pertenciam ao mesmo grupo político.
De outra maneira, é possível dizer que a igualdade é sempre resultado do corpo
político e é equivalente à pertença a uma comunidade política; pois, em princípio, “os iguais
foram somente aqueles que pertenciam ao mesmo grupo, e estender esse termo a todos os
seres humanos tem sido privá-lo de significado” (ARENDT, 2010, p. 44). Sendo assim, a
modernidade, ao tentar tornar todos os seres humanos iguais do ponto de vista da igualdade
social e não política13, agride a divergência presente na antiga política grega entre esfera
pública e privada, fazendo com que essas duas esferas se diferenciem cada vez menos entre si.
Na modernidade, “os dois domínios constantemente recobrem um ao outro, como ondas de
perene fluir do processo da vida”. (ARENDT, 2010, p. 40).
Dessa maneira, é possível dizer que somente na modernidade o abismo entre o
privado e o público foi diluído por inteiro, pois, mesmo durante a Idade Média, ele ainda
existia de certa forma, embora não tivesse a mesma importância que nutria os antigos. Sendo
assim, o conceito de “bem comum”, presente no pensamento político medieval do
cristianismo, defendia apenas que “os indivíduos privados têm interesses materiais e
espirituais em comum” (ARENDT, 2010, p. 42), não tendo nenhuma pretensão política, ou
seja, sem concentrar qualquer importância publica às atividades pertencentes à esfera privada,
como aconteceu com o advento da modernidade.
11
Igualdade aqui não está ligada a justiça, mas antes significa liberdade: “ser livre significa ser isento da
desigualdade presente no ato de governar e mover-se em uma esfera na qual não existiam governar nem ser
governado” (ARENDT, 2010, p.39).
12
A igualdade aqui não pode ser confundida com a igualdade de agora; deve ser entendida como a igualdade do
período grego. Dentre aqueles que não poderiam ser tratados com igualdade, estavam mulheres, escravos etc.;
esses eram os que não dispunham de liberdade para participar da esfera política, não podendo assim ser tratados
com igualdade.
13
Nessa perspectiva, Claude Lefort afirma que, segundo Arendt, “fomos constrangidos a confundir igualdade
política com igualdade social; confusão trágica, pois igualdade só pode ser política”. (LEFORT, 1991, p.71).
37
Outrossim, ainda vale ressaltar que o termo privado em sua raiz também está
conectado à ideia de privativo, conforme expressa Arendt:
Viver uma vida inteiramente privada significava, acima de tudo, estar privado de
coisas essenciais a uma vida verdadeiramente humana: estar privado da realidade
que advém do fato de ser visto e ouvido por outros, privado de uma relação
“objetiva” com eles decorrente do fato de ligar-se e separar-se deles mediante um
mundo de coisas, e privado da possibilidade de realizar algo mais permanente que a
própria vida. (ARENDT, 2010, p. 71).
“expropriação dos bens monásticos da igreja após a Reforma”. (ARENDT, 2010, p. 81). O
que ocorreu de prontidão, após essa reformulação de pensamento, foi que não se via diferença
entre propriedade privada e riqueza; foi a dissolução da esfera pública e a consequente
evolução da produtividade social.
Retomando aquilo que consiste na esfera pública para os gregos, Arendt, numa
primeira consideração, indica que público consiste em tudo aquilo que aparece na cena
pública e que pode ser visto pelos demais, garantindo assim a realidade das coisas. Em uma
segunda ocasião, público significa o próprio mundo, “tem a ver com o artefato humano, com
o que é fabricado pelas mãos humanas, assim como com os negócios realizados entre os que
habitam o mundo feito pelo homem”. (ARENDT, 2010, p. 64). Segundo Arendt, podemos
dizer que o domínio público é aquele mundo que dividimos na companhia dos outros, o
espaço-entre que podemos chamar de mundo comum. Dessa maneira, “o que torna a
sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de pessoas envolvidas, ou ao
menos não fundamentalmente, mas o fato de que o mundo entre elas perdeu seu poder de
congregá-las, relacioná-las e separá-las” (ARENDT, 2010, p. 64).
Desse modo, na Idade Média, em que ainda existia de certa forma a diferenciação
entre público e privado, o cristianismo, baseado no princípio de caridade instituído por
Agostinho, tornou improvável o domínio público na vida comunitária cristã. Assim ressalta
Arendt: “[...] o caráter apolítico, não-político, da comunidade cristã foi bem definido na
exigência de que deveria formar um corpus, um ‘corpo’, cujos membros teriam de relacionar-
se entre si como irmãos de uma mesma família”. (ARENDT, 2010, p. 65). Já vimos que o
caráter privado da vida familiar está justamente em oposição à vida pública; portanto, a
entrada da caridade cristã no campo da política anulou qualquer possibilidade de existência da
política e do domínio público. Outra característica do cristianismo é sua ideia de não
mundanidade, de transcendência da realidade terrena, o que também impossibilita qualquer
atividade do domínio público.
Dito isso, não podemos esquecer que tanto os gregos como os romanos tiveram
sempre a preocupação de resguardar o espaço destinado ao domínio público, espaço de
aparência e de libertação do reino das necessidades14. Desse modo, “a polis, era para os
gregos, como a res pública para os romanos, antes de tudo sua garantia contra futilidade da
vida individual, o espaço protegido contra essa futilidade e reservado à relativa permanência
14
Sobre aparência, afirma Arendt: “a polis grega foi outrora precisamente a ‘forma de governo’ que
proporcionou aos homens um espaço para aparecimento onde pudessem agir – uma espécie de anfiteatro onde a
liberdade podia aparecer”. (ARENDT, 1998, p. 201.)
39
dos mortais, se não a sua imortalidade. (ARENDT, 2010). Podemos dizer que parte da
natureza da crítica de Arendt à modernidade está baseada no fato de esse período ter perdido a
dimensão pública da polis e da res pública romana, dimensões essas que se fundavam no fato
de se ser visto e ouvido pelos demais homens. Nesse sentido, pode-se afirmar que, na era
moderna, cada vez mais os homens tornam-se condicionados somente à satisfação das
necessidades. O resultado imediato de todo esse condicionamento, fruto do isolamento radical
e do surgimento de uma sociedade de massas uniformizadora de comportamentos, é, sem
dúvida, a perda do mundo comum, pois “o mundo acaba quando é visto somente sobre um
aspecto e só lhe permite apresentar-se em uma única perspectiva”. (ARENDT, 2010, p. 71).
O que Arendt queria mostrar, com sua crítica à modernidade, era como a ascensão da
esfera social prejudicou a distinção entre uma esfera da vida privada e uma esfera da vida
pública. A ascensão do social coincidiu historicamente com a transformação da preocupação
individual com a propriedade privada em preocupação pública. De acordo com ela, o que
vemos surgir na era moderna não é somente uma contradição entre o privado e o público,
mas, sobretudo, “a completa extinção entre o privado e público, a submersão de ambos à
esfera do social”. (ARENDT, 2010, p. 85). Nesse sentido, segundo a autora, foi o
aparecimento da sociedade na era moderna que confundiu os limites entre o privado e o
público, ao mesmo tempo em que “alterou o significado dos dois termos e a sua importância
para a vida do indivíduo e do cidadão, ao ponto de torná-los quase irreconhecíveis”.
(ARENDT, 2010, p. 46).
Dessa maneira, podemos caracterizar a modernidade política como uma
compreensão da política como função da sociedade, com a implicação fundamental de que as
questões eminentemente privadas da sobrevivência e da aquisição transformaram-se em
interesse coletivo, ainda que nunca se pudesse conceber de fato tal interesse como sendo
público. O advento de uma esfera híbrida como a social teria promovido uma indistinção entre
os domínios público e privado e o deslocamento de princípios e propósitos de uma esfera a
outra, constituindo-se como uma intersecção a minar as possibilidades de felicidade pública
ou privada. (CORREIA, 2014).
O que podemos perceber com a concepção de público e privado, de Arendt, é que ela
busca revitalizar, de algum modo, o espaço público, aquele que foi perdido com o advento da
modernidade. Pode-se afirmar que, para ela, o espaço público é essencial, ora concebido como
espaço de aparência no qual o homem surge e se manifesta para os demais. Assim, podemos
crer que a era moderna é marcada por um novo conceito de governo, preocupado em garantir
proteção para os interesses privados de aumento de riquezas dos indivíduos. A esfera pública
40
e a esfera privada vão aos poucos sendo submersas à dimensão do social, isso porque “a
esfera pública [...] se tornou uma função da esfera privada, e a esfera privada [...] se tornou a
única preocupação comum que restou”. (ARENDT, 2010, p. 85). O que foi decisivo nessa
transformação foi o fato da descoberta moderna da intimidade, que possibilitou ao indivíduo
se refugiar em sua subjetividade, o que favoreceu o surgimento do domínio social e o fim da
diferenciação entre as esferas da vida privada e pública.
Portanto, o fim dessa diferenciação entre esfera pública e esfera privada, e a
consequente promoção do domínio social no séc. XIX, foi profundamente marcado pela
entrada da intimidade no campo da vida pública, que surge como “uma tentativa de se
resolver o problema público negando que o problema público exista”. (SANNETT, 1988, p.
44). Temos então, na era moderna, de acordo com Arendt, a invasão da privatividade pela
sociedade e a consequente socialização do homem. (ARENDT, 2010). A consequência
imediata de tudo isso é que a vida e a necessidade assumem o centro da questão política,
reduzindo cada vez mais a política ao campo das necessidades, em que a esfera da vida
privada se tornou a única preocupação comum que restou.
A atenção redobrada que Arendt dá para o espaço público vem de sua preocupação
em demonstrar como esse espaço é importante para que o agente da ação política tenha uma
espaço onde possa se inserir. E, para ela, a condição básica da ação e do discurso, em
contraste com a obra e o trabalho, é o mundo comum da pluralidade. Nesse sentido, Lafer,
explicando as ideias de Arendt, diz que a ação e o discurso
entretanto, é exatamente igual a algum outro que existe ou que já existiu, ou que poderá
existir. (XARÃO, 2013).
O sumo da significação política da ação em Arendt reside na noção de pluralidade.
Com esse termo, a autora visa a contrapor-se radicalmente à posição contemplativa e afirmar
a necessidade de se considerar os cidadãos, seus interesses e perspectivas (doxas), na
constituição da comunidade política. Por meio desse conceito, Arendt quer afirmar que a
dignidade humana não pode ser submissa a um valor absoluto ou externo, mas ao
reconhecimento das vozes e do poder dos cidadãos nos seus destinos. Certamente a
experiência de apátrida ajudou nossa autora na formulação desse conceito. Conforme visto no
primeiro capítulo, tratando da obra Origens do Totalitarismo, Arendt critica os direitos
humanos justamente em razão do seu caráter abstrato, mostrando como as pessoas que não
possuem uma pátria facilmente ficam à margem desses direitos, e narra o caso dos apátridas,
na Europa, no período nazista, cuja única possibilidade de ter algum direito residia no
cometimento de um delito. (AGUIAR, 2001).
Vale frisar que a ação não constitui um fenômeno isolado, único ou independente.
Para que se realize, é necessário que haja outras disposições humanas. É por essa razão que
Arendt buscou estabelecer uma relação entre discurso e ação, e, depois, entender como isso se
constitui num espaço público, numa interação entre os agentes. Se para Arendt a ação,
enquanto um “início”, corresponde ao fato do nascimento, à condição humana da natalidade,
“[...] o discurso corresponde ao fato da distinção e é a efetivação da condição humana da
pluralidade, isto é, do viver distinto e singular entre iguais”. (ARENDT, 2010, p. 223). Para a
filósofa, o discurso seria um dos atos primordiais do ser, na mesma medida que seria este o
recurso que identificaria o ser humano, em detrimento de outros seres15.
15
Em nota explicativa na obra A Condição Humana (p. 190), Arendt chega afirmar que suas considerações
acerca da característica comunicativa inerente aos homens possuíam bases em pesquisas científicas da época.
Admitindo esse contexto, embora longe de afirmar que é essa a referência de Arendt, há que se registrar que,
paralelamente à publicação de A Condição Humana, o filósofo e linguista Avram Noam Chomsky havia
publicado sua obra prima Logical Structure of Linguistic Theory (1955). Nesta obra, Chomsky acredita que, ao
contrário dos homens, os animais não são capazes de usar a linguagem de maneira rica e criativa. Por isso, seria
até mesmo um equívoco chamar seus sistemas de comunicação de linguagem. Chomsky argumenta que o ponto
central da faculdade de linguagem humana está relacionado à capacidade de recursão nas línguas humanas: uma
peculiaridade dos diversos sistemas linguísticos, que permitem formular infinitas frases a partir de um número
finito de palavras e de regras sintáticas. De acordo com a teoria de Chomsky, todos os seres humanos possuem
uma faculdade inata da linguagem, uma espécie de “órgão da linguagem” no cérebro; essa capacidade
independeria do meio cultural, tendo sido impressa nos círculos cerebrais do Homo Sapiens pela evolução. E a
principal marca dessa faculdade é especificamente a recursividade. Embora haja especulações em torno da
validade das teses de Chomsky, ainda é o elemento da Linguagem e sua articulação (discurso) que, desde
Aristóteles, é tida como o diferenciador entre os homens e os animais. Ver ainda “A Política” (ARISTÓTELES,
2006).
42
Arendt afirma que mais do que diferenciador entre os homens e animais, é por meio
da própria fala, do discurso, que os homens, ao se singularizarem, diferenciam-se uns dos
outros. É pela fala e ação que os homens se revelam no mundo. Arendt destaca a intima
relação entre ação e discurso ao afirmar que
Para Arendt, não há nenhuma outra atividade humana que necessita tanto do discurso
como a própria ação. Neste mesmo domínio de análise, se concebermos a ação, engendrada
coletivamente, como uma atividade que visa a uma finalidade única de preservação da espécie
ou mero desfrute do conforto produzido pela técnica, essa ação poderia muito bem ser
substituída por outras formas menos pesarosas ou que dispensassem o concurso dos homens.
Nesse ponto, Arendt é incisiva ao firmar que estes objetos (finalidades) poderiam ser
atingidos “muito mais facilmente através da violência muda, de sorte que a ação pareceria um
substituto pouco eficaz da violência”. (ARENDT, 2010, p. 224). Desta forma, conceber tanto
a ação como o discurso isoladamente, ou com vistas a um telos determinado, seria um luxo
desnecessário, ou mesmo um mecanismo pouco operacional. De forma geral, tanto a ação
quanto o discurso, quando conjugados, elevam a categoria humana a planos muito mais
nobres do que somente um mero informar.
A conjugação entre a ação e o discurso gera uma condição ímpar para os homens: a
condição de se revelar, pois “só no completo silêncio e na total passividade pode alguém
ocultar quem é”. (ARENDT, 2010, p. 224). Essa revelação, no sentido mais literal do termo,
retira o véu que cobre o agente, apresentando-o ao mundo e demonstrando ativamente sua
identidade. Tal revelação aponta para uma questão ontológica: a do “quem és”, em detrimento
do “o que és”. Isso porque o “quem” se refere à singularidade, uma personificação16, uma
subjetividade; ao passo de que o “que és” aponta para uma constituição, uma classificação,
uma objetividade. A este “quem” podemos atribuir qualidades variantes – de indivíduo para
16
Não é poeticamente que Arendt se referirá ao agente como um ator, um personagem, no sentido mais literal
possível: aquele que atua, que representa um papel, um elemento vivo de uma obra narrativa, bem como narrador
de uma grande história, e, nesse caso, a história humana.
43
indivíduo – que atestam para uma identidade pessoal e singular personificada nos “dons,
talentos e defeitos que alguém pode exibir ou ocultar e que está implícito em tudo o que ele
diz ou faz”. (ARENDT, 2010, p. 224).
Sendo a revelação do agente a qualidade da conjugação entre o discurso e a ação, em
que sem essa qualidade a ação perderia seu caráter específico, tornando-se um feito como
outro qualquer (ARENDT, 2010), essa revelação só poderá ser engendrada na presença de
outros agentes, nas interações entre eles. A qualidade reveladora se dá, num primeiro
momento, na mera convivência entre os homens. Não é, numa primeira instancia, partidária,
no sentido de ser “pró” ou “contra” os outros: o discurso e ação se bastam na simples
convivência dos homens para revelá-los enquanto personalidades.
Como esta revelação do sujeito é parte integrante de todo o intercurso, até mesmo do
mais “objetivo”, a mediação física e mundana, juntamente com os seus interesses, é
revestida e, por assim dizer, sobrevelada por outra mediação inteiramente diferente,
constituída de atos e palavras, cuja origem se deve unicamente ao fato de que os
homens agem e falam diretamente uns com os outros. (ARENDT, 2010, p. 228).
17
Interesses, aqui, no sentido mais literal do termo (inter-esse), o que está entre os homens (inter homines esse);
como elucida Arendt: “o que está entre as pessoas e que, portanto, as relaciona e interliga”. (ARENDT, 2010, p.
228). De outro modo, esses interesses representariam a sua acepção usual que a identifica como um conjunto de
reinvindicações próprias; em outros termos, um partidarismo.
44
Hannah Arendt nomeará essa mediação subjetiva de “teia das relações humanas”18.
Nesse caso, “teia”, por representar, metaforicamente, os elos sutis entre os homens; real, no
entanto, seja enquanto uma cadeia de necessidades grupais, ou na condição de artifícios
erigidos no mundo19 de fabricação humana: “tão vinculada ao mundo objetivo das coisas
quanto o discurso é vinculado à existência de um corpo vivo”. (ARENDT, 2010, p. 229).
Como demonstrado por Arendt em A Condição Humana, é bem clara essa passagem
do intangível inerente à ação para a materialização (no sentido de efetivação) nos negócios
humanos, operado em esfera pública. Arendt afirma que essa “teia”, inerente às relações
humanas, possui inúmeras vontades e intenções por vezes conflitantes. Parece-nos óbvio que,
quando os agentes se encontram na esfera pública, exatamente por suas diferenças devido à
pluralidade, é possível sim que expressem suas opiniões conflitantes. Disto, podemos inferir
que de uma mera divergência pode gerar conflitos sim; que, mesmo que anulasse, por
desventura da violência, a atividade do Poder, haveria possibilidade de esses conflitos
ocorrerem no intercurso dos homens. A esfera pública constitui-se no “palco” de expressões
das capacidades humanas, em especial, a capacidade de exercer a atividade exclusiva e por
excelência humana: a política. A esfera pública é o espaço no qual irrompe o autêntico
confronto da pluralidade de diálogos entre iguais, e não somente um espaço onde indivíduos
apenas falam, sem engajamento ou defesa de interesses comuns a todos. (MORAES, 2009).
A teia representa, nesse sentido, uma abstração dos inter esses humanos. Ela existe
onde quer que os homens estejam juntos, como afirma a autora. A partir da perspectiva
arendtiana, podemos conceber esta teia no seguinte modelo: 1) temos homens e não um
homem; 1.1) homens enquanto agentes plurais; 2) a partir desta pluralidade, manifestam-se
intenções, vontades e proposições variadas; 2.2) essas proposições, quando expressadas pela
fala no contato com outras vontades e intenções, denotam, por sua singularidade, uma
diferenciação subjetiva; 3) essas diferenciações existem no espírito humano e, quando
contrastadas, representam abstratamente a teia das relações humanas. Em decorrência disso,
temos a esfera dos negócios humanos, como afirma Arendt:
A rigor, a esfera dos negócios humanos consiste na teia de relações humanas que
existe onde quer que os homens vivam juntos. A revelação da identidade através do
discurso e o estabelecimento de um novo início através da ação incidem sempre uma
nova teia já existente, e nela imprimem suas consequências imediatas. Juntos,
iniciam novo processo, que mais tarde emerge como a história singular da vida do
18
No original, The web of human relationships.
19
Nesse caso, não um mundo enquanto espaço e sim enquanto criação do Homo Faber: um espaço preenchido
por coisas fabricadas, portanto, artificiais.
45
recém chegado, que afeta de modo singular a história da vida de todos aqueles como
quem ela entra em contato. (ARENDT, 2010, p. 230).
A história real, em que nos engajamos durante toda a vida, não tem criador visível
nem invisível porque não é criada. O único “alguém” que ela revela é o seu herói; e
20
Em nota explicativa na obra A Condição Humana, Arendt menciona que “[...] em Homero, a palavra heros
sem dúvida implicava distinção, mas uma distinção que estava ao alcance de qualquer homem livre. Em nenhum
momento tem o significado ulterior de ‘semideus’, resultante talvez da deificação dos antigos heróis épicos.”
(ARENDT, 2010, p. 233).
47
Em conclusão a toda essa argumentação, a ação é entendida como uma atividade sem
finalidade, e a ação política arendtiana é vista como constituinte de uma política em que não
existe motivação ou interesse.
3.2.2 Responsabilidade
Para Arendt, quando o livre arbítrio é transposto para um contexto político, o que
temos é a eliminação da política, porque o ideal que rege o livre arbítrio não é o virtuosismo –
que depende da pluralidade –, mas a soberania. Esse é o resultado final da ruptura entre
filosofia e política, visto que, mais uma vez, tanto a pluralidade humana quanto a experiência
da liberdade são afastadas pela ideia de soberania, que Arendt entende como “ideal da
inflexível auto-suficiência e auto-domínio”. (ARENDT, 2010, p. 292). De acordo com
Arendt,
21
Vale ressaltar que, da mesma forma que a promessa estaria vinculada à faculdade do querer, o perdão estaria
vinculado à faculdade do julgar.
50
Arendt aponta para o papel fundamental da responsabilidade pessoal de julgar, que de fato
conduziria o indivíduo a um juízo que fosse espontâneo, que não estivesse baseado em
padrões e regras universais nos quais os particulares seriam meramente subsumidos; mas que,
ao contrário, por meio das atividades da vida do espírito, o sujeito “produzisse seus próprios
princípios de virtudes através da atividade de julgar. Apenas sob esta pressuposição
poderíamos nos arriscar neste híbrido campo da moral na esperança de encontrar alguma
forma de fundação”. (AGUIAR, 2001a, p. 95).
Arendt ressalta a ideia da não participação na vida pública durante os regimes
totalitários, referindo-se aos poucos indivíduos que não se recusaram à atividade de julgar
como uma forma de resistência. No mesmo viés, a autora enfatiza que esta seria uma dentre
inúmeras variações de ação não violenta e de resistência, como, por exemplo, o poder que
estaria potencialmente contido na desobediência civil. (ARENDT, 1973). De certa forma, as
atividades do espírito se tornariam a outra face da ação. “Embora tenhamos perdido os metros
para medir e as regras sob as quais podemos subsumir o particular, um ser cuja essência é o
começo pode trazer dentro de si um teor suficiente de origem para compreender sem
categorias preconcebidas e para julgar sem esse conjunto de regras comuns que é a
moralidade. Se a essência de toda ação, e em particular a da ação política, é promover o novo
começo, então a compreensão torna-se o outro lado da ação”. (ARENDT, 1993a, p. 52).
Para completar o pensamento de Arendt, ainda se faz necessário passar pelo exame
daquilo que ela entendeu por política, e nenhuma justificação da política representa melhor o
processo de instrumentalização, a que ela foi historicamente submetida, do que a
compreensão de que a política é absolutamente necessária à vida humana, tanto em relação à
sociedade como em relação ao indivíduo. Segundo essa compreensão, a associação política
deriva da necessidade que os homens têm uns dos outros; uma vez que não são
autossuficientes, os homens consentem nessa espécie de associação que garante os benefícios
que homem algum poderia prover sozinho. Assim, a finalidade última e a tarefa da política
seria a salvaguarda da vida em seu sentido mais amplo:
Para Aristóteles, esse modo qualificado de vida, que era a pólis organizada, era a forma
específica e mais elevada da vida humana em comum e, portanto, “equidistante dos deuses,
que podem existir de si mesmos em total liberdade e independência, e dos animais, cuja vida
em comum, se é que existe algo assim, é uma questão de necessidade”. (ARENDT, 2008, p.
170). Por isso que
Empregar o termo “político” no sentido de pólis grega não é nem arbitrário nem
descabido. Não é apenas etimologicamente e nem somente para os eruditos que o
próprio termo, que em todas as línguas europeias ainda deriva da organização
historicamente ímpar da cidade-estado grega, evoca as experiências da comunidade
que pela primeira vez descobriu a essência e a esfera do político. Na verdade, é
difícil e até mesmo enganoso falar de política e de seus princípios sem recorrer em
alguma medida às experiências da Antiguidade grega e romana, e isso pela simples
razão de que nunca, seja antes ou depois, os homens tiveram em tão alta
consideração a atividade política e atribuíram tamanha dignidade a seu âmbito.
(ARENDT, 1988, p. 201).
25
Essa é, pois, a justificação das constantes regressões ao passado político originário que encontramos no
pensamento de Arendt: “Regressamos pois, mais uma vez, à antiguidade, isto é, às suas tradições políticas e pré-
filosóficas; e, certamente, não por amor a erudição e nem mesmo pela continuidade de nossa tradição, mas
simplesmente porque uma liberdade vivenciada apenas no processo de ação e em nada mais – embora, é claro, a
humanidade nunca tenha perdido inteiramente tal experiência – nunca mais foi articulada com a mesma clareza
clássica”. (ARENDT, 1988, p. 213.)
26
O contexto em que esse trecho aparece é o seguinte: “A política como tal existiu tão raramente e em tão
poucos lugares, que, falando historicamente, só umas poucas épocas extraordinárias a conheceram e a tornaram
realidade. Esses raros e felizes acasos históricos têm sido, no entanto, cruciais; somente neles o significado da
política – como seus benefícios e seus males – se manifesta plenamente. E essas épocas estabeleceram um
padrão, não de modo que as suas formas organizacionais intrínsecas pudessem ser imitadas, mas de que certas
ideias e conceitos, nelas plenamente realizados por um breve período de tempo, também determinaram as épocas
às quais foi negada uma experiência plena de realidade política” (ARENDT, 2008, p. 174). A pólis grega e a
civitas romana são “[...] fenômenos originários da política (que) conservam consigo os traços esquecidos da
essência do político, o que realmente importa a Arendt é a detecção e a exploração das afinidades essenciais
53
Mas mesmo em certo sentido, pois para poder viver numa pólis o homem precisava
ser livre sob outro aspecto – não podia estar submetido como escravo à dominação
de outro ou como trabalhar à necessidade de ganhar o pão de cada dia. O homem
primeiro devia ser liberdade ou libertar-se a si próprio para poder desfrutar a
liberdade, e ser libertado da dominação das necessidades da vida era o verdadeiro
significa da palavra grega scholé, ou da latina otium – o que hoje chamamos de ócio
ou lazer. Em contraste com a liberdade, essa libertação era um fim que podia, e tinha
de ser, conquistado por certos meios. O meio crucial era a escravidão, a força brutal
pela qual um homem obrigava outros a desonerá-lo dos encargos da vida cotidiana.
(ARENDT, 2008, p. 171).
entre essa origem cristalizada e determinadas manifestações políticas modernas e do presente, nas quais homens
e mulheres visaram instaurar um novo começo revolucionário em atos e palavras”. (DUARTE 2000, p. 152).
27
“Segundo a interpretação proposta por Arendt, a noção de isonomia [convenção que torna os homens iguais]
não trazia consigo a ideia de uma igualdade universal perante as leis [como atualmente a compreendemos], mas
implicava que todos os cidadãos tinham o mesmo direito à atividade política, podendo exercer livremente a
atividade de conversar uns com os outros, sem que o discurso fosse modulado na forma do comando e o ouvir se
reduzisse à forma da obediência”. (DUARTE, 2000, p. 212). Sobre o papel da isonomia na instituição da pólis,
conferir a primeira seção do presente capítulo.
54
28
Como já dito na seção anterior.
29
Como já dito nas seções anteriores, a condição da pluralidade reside no fato de que “não o homem, mas sim os
homens habitam o planeta”.
55
diferentes, absolutamente singulares, considerando que é através destas atividades que “os
homens pode distinguir-se ao invés de permanecerem apenas diferentes”30.
Cada ação (na medida em que corresponde à distinção singular latente em cada um)
afirma a singularidade do agente e, ao mesmo tempo, as condições humanas da natalidade e
da pluralidade. Este é o motivo por que a dignidade da política (que por definição é espaço da
palavra e da ação) não apenas está articulado ao seu sentido como é dada por ele; por se
ancorar e responder à pluralidade humana por via da ação é que a dignidade política se
manifesta em sua existência enquanto tal. Em outras palavras, ter em conta a pluralidade
humana, tanto como condição quanto como meta, é a forma única sob a qual o sentido e a
dignidade da política são aspectos coexistentes. (OLIVEIRA, 2009).
O valor intrínseco da política consiste em proporcionar um espaço em que os homens
podem agir, porque “os homens [só] são livres – diferentemente de possuírem o dom da
liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são a mesma coisa”.
(ARENDT, 1988, p. 199).
30
O contexto em que essa passagem aparece é o seguinte: “O discurso e ação revelam essa distinção única. Por
meio deles, os homens podem distinguir a si próprios, ao invés de permanecerem apenas distintos; a ação e o
discurso são os modos pelos quais os seres humanos aparecem uns para os outros, certamente não como objetos
físicos, mas qua homens”. (ARENDT, 2010, p. 220.)
56
Como vimos anteriormente, a tomada do Estado pela nação gerou a sua perversão, e
essa corrupção do Estado ocorreu por meio do abandono do princípio da igualdade política.
Em outras palavras, a vinculação entre cidadania e nacionalidade teve como efeito imediato o
fato de que nem todos os habitantes de um Estado possuíam os mesmos direitos ou
respondiam às mesmas leis; esse foi, para Arendt, o fator principal para a ruína das
instituições políticas.
Ao se determinar que apenas os nacionais seriam cidadãos plenos, trazendo para o
fundamento dos direitos políticos uma noção de igualdade que estabelece uma igualdade
factual, uma homogeneidade entre os cidadãos, os Estados incorreram em duas consequências
graves relacionadas entre si. A primeira consequência é a tentativa de negar a pluralidade
humana e buscar numa igualdade natural, intrínseca aos homens, o fundamento para a
aplicação da lei. O resultado dessa tentativa é a marginalização do diferente, operada pela
negação do fato de que os homens são singulares, isto é, de que eles são desiguais e de que
essa desigualdade não é circunstancial ou eventual, não podendo ser eliminada sem que aquilo
que os torna humanos seja também excluído. Sendo a diferença entre os homens uma
57
condição de sua existência, a determinação de uma igualdade factual apenas deixa mais em
evidência o diferente, marginalizando aquilo que é outro31.
A igualdade não é dada ao homem; ela tem de ser construída artificialmente por meio
de organização. A igualdade política, para respeitar a pluralidade humana, não pode eliminar
as diferenças, tratando-se, portanto, de isonomia. Nas palavras de Arendt,
31
Sobre a necessidade de manutenção da singularidade humana e do problema para lidar com o outro, Arendt
aponta: “[...] o estranho é um símbolo assustador pelo fato da diferença em si, da individualidade em si, e evoca
essa esfera onde o homem não pode atuar nem mudar e na qual tem, portanto, uma definida tendência a destruir.
(...) onde quer que uma civilização consiga eliminar ou reduzir ao mínimo o escuro pano de fundo das
diferenças, o seu fim será a completa petrificação; será punida, por assim dizer, por haver esquecido que o
homem é apenas o senhor, e não o criador do mundo.” (ARENDT, 1989, p. 335.) Arendt ainda afirma que a
assimilação, isto é, o abandono de características singulares, a fim de garantir maior semelhança com o padrão
dominante, não é uma opção válida. A homogeneidade fere visceralmente a singularidade humana, significando
a própria anulação de quem uma pessoa é. Além disso, nem mesmo a assimilação imposta pelo medo de
marginalização ou da própria exclusão do corpo político foi suficiente para garantir que certos grupos, ainda que
assimilados, fossem também desnacionalizados, visto que a diferença é um fato que não consegue ser de todo
eliminado. (ARENDT, 1978a, p. 141, tradução nossa).
58
leis que definissem as condições jurídicas para determinados grupos de pessoas. Essa ausência
de isonomia gerou rapidamente a desintegração das instituições político-jurídicas até mesmo
para aqueles a quem essas instituições deveriam ser plenamente válidas. Arendt sublinha o
colapso das instituições do Estado-nação e reafirma a essencialidade da igualdade perante a
lei para o corpo político ao enfatizar o seguinte:
Pois o Estado-nação não pode existir quando o princípio da igualdade perante a lei é
quebrado. Sem essa igualdade legal, que originalmente se destinava a substituir as
leis e ordens mais antigas da sociedade feudal, a nação se dissolve numa massa
anárquica de indivíduos super e subprivilegiados. As leis que não são iguais para
todos transformam-se em direitos e privilégios, o que contradiz a própria natureza
do Estado-nação. Quanto mais clara é a demonstração de sua incapacidade de tratar
os apátridas como ‘pessoas legais’, e quanto mais extenso é o domínio arbitrário do
decreto policial, mais difícil é para os Estados resistir à tentação de privar todos os
cidadãos da condição legal e dominá-los com uma polícia onipotente. (ARENDT,
1989, p. 323-324).
afirmação desses princípios diante de atos que flagrantemente os contradizem perde qualquer
significado. (BRITO, 2013).
O efeito boomerang no imperialismo clássico, em que quilômetros de distância
separavam a colônia do Estado-nação, demorou mais para ser sentido nas instituições
domésticas, mas não deixou de ter consequências marcantes. Já no imperialismo continental,
em que Estados-nações que perderam a corrida para a fixação de colônias em outros
continentes se voltaram para minorias étnicas e para os países vizinhos dentro da própria
Europa, os efeitos surgiram muito mais rapidamente, o que aconteceu em grande parte na
Europa centro-meridional e oriental. Segundo a análise arendtiana, as próprias noções de
nacionalismo tribal e de imperialismo continental estão fortemente ligadas, tendo como
denominador comum a tradição de pensamento racista e excludente, que não só recobre de
imutabilidade a diferença entre os homens como também a condena. (ARENDT, 1989). Dessa
forma, o racismo e os seus mecanismos separatistas, em efeito nos Estados-nações, traziam
para dentro do território doméstico formas de dominação que visavam a controlar as minorias
de etnia diferente, mas que rapidamente corromperam toda a estrutura jurídica dos estados
europeus, tornando a ilegalidade e a arbitrariedade a regra e não mais a exceção.
Segundo Arendt, essa degradação não foi acidental32, sendo um perigo inerente ao
formato do Estado-nação desde a sua origem (ARENDT, 1989), já que, de acordo com sua
análise, nação e Estado são elementos antagônicos cuja fusão não consegue ser normalizada
pela ordem jurídica. A nação toma conta do Estado com uma ideologia racista; o Estado deixa
de operar dentro da legalidade para ser um instrumento da nação; e a lei deixa de ser um
padrão permanente para servir aos interesses mutáveis da nação. E como vimos, era prioritária
para a nação a manutenção de sua identidade por meio do repúdio de qualquer fator
heterogêneo, o que gerou políticas separatistas e excludentes que causaram o surgimento de
milhões de apátridas.
Os apátridas, como visto no primeiro capítulo, são pessoas que não possuem um
status legal em nenhum Estado, e surgiram ao perderem a proteção de seu Estado de origem.
Sem um corpo político que os reconheça, reivindique-nos e lhes atribua e garanta direitos,
nenhuma lei mais se aplica a essas pessoas, e a falta de condição legal diante dos demais
32
É importante salientar que, embora esse desenvolvimento não seja acidental, também não é necessário ou
inevitável. Arendt não crê em um conceito de necessidade histórica em que os acontecimentos formam uma
continuidade inevitável de caráter peremptório. Para ela, a história é um produto da ação humana e, por isso, é
pautada pela liberdade, pela descontinuidade e pela imprevisibilidade. Dessa forma, não é possível dizer que os
Estados-nações estavam fadados a serem degradados pela nação, o que não significa que essa possibilidade não
representava um perigo presente em sua origem e que, por meio de várias contingências, veio a se realizar.
Arendt afirma que a história é “[...] de atos e feitos, e não de tendências e forças ou ideias”. (ARENDT, 2010, p.
232).
60
33
Nas palavras de Arendt: “antes que a política totalitária conscientemente atacasse e destruísse a própria
estrutura da civilização europeia, a explosão de 1914 e suas graves consequências de instabilidade haviam
destruído a fachada do sistema político – o bastante para deixar à mostra o seu esqueleto. Ficou visível o
sofrimento de um número cada vez maior de pessoas às quais, subitamente já não se aplicavam as regras do
mundo que as rodeava.” (ARENDT, 1989, p. 300-301.)
61
lhes acolhesse. Além disso, significava ainda que essa situação não era um problema
temporário, mas sim endêmico desse sistema, que só seria resolvido com a completa
assimilação. Consequentemente, Arendt afirma que esses tratados revelam claramente a
premissa operante do sistema de Estados-nações: apenas nacionais podem ser cidadãos, e
apenas se ou quando abrir mão de sua singularidade é que o diferente pode gozar de direitos.
(ARENDT, 1989).
Em resposta a essas reflexões, Arendt defende que o único e primeiro direito humano
é o direito a ter direitos. Como vimos anteriormente, os direitos não são garantidos pela
natureza, não existem onde quer que o homem esteja e não impedem que instituições os
afirmem. Os direitos humanos, assim como todas as leis, são políticos, e como tais precisam
de uma organização política que os fundamente. A reflexão arendtiana em relação aos direitos
humanos, portanto, visa a revelar os problemas que, em conjunto, impedem que esses direitos
funcionem, defendendo que a única forma de lidar com esses problemas e resolvê-los é trazer
a questão para o único âmbito em que ela pode ser corretamente tratada: o da esfera pública.
Por meio da ação política e do discurso é que é possível redefinir o conteúdo, as garantias e o
próprio sentido dos direitos humanos. (BRITO, 2013). Arendt, assim, discorda da solução
liberal que defende um indivíduo cuja natureza lhe dotaria de um conjunto de direitos
inalienáveis que se estabeleceriam anteriormente à comunidade política, e remete a discussão
ao plano político e democrático. O caráter político dos direitos fica evidente na forma como
Arendt apresenta o significado da perda dos direitos humanos. Nas palavras dela,
Quem perde os direitos humanos encontra-se em uma situação em que não possui
mais lugar no mundo. O mundo, ao contrário da natureza, é o espaço artificial criado pelo
homem para abrigar a sua existência, e comporta não apenas os objetos manufaturados que
permeiam a vida, como também as leis e instituições que organizam as relações entre os
homens. Sem o mundo para funcionar como intermediário e organizador, as relações humanas
não são possíveis. Para Arendt, a vida propriamente humana necessita de um grau de
mundanidade que se organiza em diferentes espaços de acordo com suas funções. A principal
divisão que Arendt faz entre esses espaços é entre os espaços público e privado. A perda do
espaço público implica, de fato, a impossibilidade de exercer direitos políticos e de participar
62
34
Arendt faz uma distinção entre propriedade e riqueza e relaciona a riqueza com o capital, visto que é ela
flutuante e instável e não tem a instabilidade da propriedade. A riqueza existe para ser consumida privadamente;
não pode substituir a propriedade em termos da função que esta ocupa na esfera pública. Enquanto a propriedade
é estável e permanente, Arendt equipara a riqueza a um processo, visto que riqueza existe, modernamente, na
forma do capital. Esse é um processo que mina a estabilidade e a permanência que a propriedade emprestava
tanto para a esfera privada quanto para a pública. Ao contrário da propriedade, a riqueza não pode proteger o
homem e servir como um refúgio, e, de acordo com Arendt, quando a modernidade substituiu a propriedade pela
riqueza, degrada também a própria esfera privada.
63
A falta de um lugar no mundo significa, dessa forma, a falta não apenas de alguns
direitos, mas de qualquer posição diante dos outros homens que seja reconhecida como tal.
Implica a impossibilidade de se relacionar com outros homens, tanto pública quando
privadamente. As relações dos apátridas com os demais foram completamente rompidas,
impedindo-os de participar do mundo, isto é, do espaço criado pelos homens para
desenvolvimento de vidas humanas. O mundo oferece a estrutura em que os homens podem se
relacionar, e os apátridas, ao perderem a cidadania, e consequentemente direitos tantos civis
quanto humanos, foram privados justamente dessa estrutura. O direito a ter direitos significa,
dessa forma, o direito de participar do próprio artefato humano, que Arendt traduz por possuir
direitos ou participar de um corpo político, visto que se trata de uma “estrutura onde se é
julgado pelas ações e opiniões”. (ARENDT, 1989, p. 330). O direito de agir e a relevância da
opinião, para terem sentido, são dependentes de estarem incluídos em uma ordem jurídica, e o
direito a ter direitos aponta para a necessidade de uma organização tal que não exclua
determinados homens dessa estrutura. É importante notar que, em determinados momentos,
Arendt chega a formular a noção de participação nessa estrutura como participação na própria
humanidade. Nas palavras dela: “só a perda da própria comunidade é que expulsa [o homem]
da humanidade” (ARENDT, 1989, p. 331), o que revela o caráter essencial da organização
político-jurídica para o indivíduo.
Entretanto, cabe questionar o que garantiria ao homem o seu pertencimento a uma
comunidade específica, garantindo assim uma posição legal que lhe permita participar no
mundo humano. Benhabib, em sua obra the Rights of Others (2004), aproxima a noção
arendtiana do direito a ter direitos da ideia kantiana de direito cosmopolita, afirmando que
Arendt fundamenta na própria ideia de humanidade o direito a ter direitos quando coloca que:
[...] a humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava
de uma ideia reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável. Esta nova situação, na
qual a humanidade assumiu de fato um papel antes atribuído à natureza ou à
história, significaria nesse contexto que o direito de ter direitos, ou o direito de cada
indivíduo de pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria
humanidade. (ARENDT, 1989, p. 332).
Arendt explicita claramente que abolir as leis é abolir a liberdade. Liberdade só pode
existir dentro do mundo constituído pelas relações humanas e organizado por leis e
instituições humanas. Seu pensamento salienta a relação entre o participar de uma rede de
legalidade e o estar no mundo entendido como artefato humano, enfatizando os grandes riscos
políticos acarretados pela ausência de mundanidade.
Em sua análise sobre o nacionalismo tribal, que se desenvolveu principalmente no
centro e no leste europeu, Arendt argumenta que um dos fatores fundamentais que
proporcionou o isolacionismo e a vinculação quase que imediata dessa ideologia com as
teorias racistas foi o desenraizamento dos povos dessas regiões, como já mencionado
anteriormente. De acordo com ela, esses povos não viviam fixados no solo, tendo um
histórico de migrações constantes que fazia com quem eles não possuíssem de fato um lar. O
resultado disso é que eles não se identificavam com um corpo político fixo e estabelecido,
mas sim com outras pessoas de sua nacionalidade, o que fez com que eles baseassem suas
relações não na construção de um mundo comum com outros homens, mas em questões
naturais ou biológicas. Havia ausência de uma experiência de criação de instituições políticas
estáveis e permanentes que se mantêm contra o pano de fundo das mudanças naturais, porque
suas vidas eram marcadas também por constantes mudanças. Arendt identifica, portanto, uma
ausência de vínculo com o mundo artificial, afirmando que isso impulsionou ainda mais a
divisão entre esses povos e o resto do mundo, gerando isolacionismo e racismo. (BRITO,
2013).
A ausência de um vínculo com o mundo, o fenômeno do desenraizamento, gera o
isolacionismo justamente porque é o mundo que nos une. É o mundo, e não a natureza, que o
65
homem tem em comum com os demais, e é porque precisam compartilhar o mesmo espaço
que os homens relacionam-se entre si. (ARENDT, 2010). E o mundo, criado pelas ações dos
homens (em oposição à natureza, que lhe é dada), é de responsabilidade desses homens. Nesse
sentido, compartilhar um mundo significa também compartilhar a responsabilidade por esse
mundo. Vale ressaltar que, para Arendt, a desvinculação do racismo e do tribalismo em
relação ao mundo significa também uma tentativa de fugir a essa situação de responsabilidade
comum (ARENDT, 1989), que se intensifica justamente no momento em que as distâncias
geográficas diminuem e em que, graças à tecnologia, as decisões tomadas em uma parte da
Terra têm o potencial de afetar todos seus outros habitantes. Se, por um lado, a grande
intensificação do racismo nos séculos XIX e XX foi uma tentativa de negar dividir o mundo
com todos os demais, desvinculando um povo de sua relação com o outro, ao mesmo tempo
isso indica também a realidade de que o mundo humano se expandiu ao ponto de ser,
factualmente, um só35. Contra esse pano de fundo de um único mundo, Arendt contrapõe a
ideia de humanidade.
No artigo intitulado The Rights of Man. What are they?, de 1949, Arendt argumenta
que, embora o direito se materialize apenas dentro de uma dada comunidade, dependendo da
garantia tácita que os membros da comunidade dão uns aos outros; que, embora todos os
chamados direitos humanos sejam históricos e dependam das circunstâncias em que os
homens estão inseridos – o que significava, naquele momento, que eles são garantidos pela
nação –, há um direito que não obedece a essa lógica, isto é, que não se origina dentro da
nação e que precisa de mais garantias que as garantias nacionais, que é o direito a ter
cidadania (ARENDT, 1949). Esse direito não pode ser entendido por meio das categorias
filosóficas do século XVIII36, quer dizer, como um direito natural dado e anterior à instituição
de organizações políticas. Segundo Arendt, nos séculos XVIII e XIX, assumiu-se tacitamente,
de início, que a natureza é menos estranha à essência do homem que a história, e que por isso
direitos históricos foram substituídos por direitos naturais. Entretanto, a perspectiva de uma
natureza que abrigue espiritualmente o homem oferecendo um todo compreensível também já
foi ultrapassada, e tanto a natureza quanto a história já passaram a ser consideradas estranhas
ao homem. A consequência disso é que resta apenas a humanidade como garantidora dos
direitos.
35
Como afirma Arendt: “[...] queiramos ou não, já começamos realmente a viver num Mundo Único.”
(ARENDT, 1989, p. 330).
36
Também nesse texto, Arendt defende a importância de se compreender os direitos, tanto o direito à cidadania
quanto os direitos humanos e até mesmo os direitos civis, fora das categorias filosóficas do século XVIII, em
uma formulação que será repetida em Origens do Totalitarismo.
66
37
Em uma organização política, ainda que mundial, será necessário ter as características essenciais de qualquer
outra organização política, isto é, um corpo transitório, artificial, limitado, dependente das pessoas que o
integram, e garantidor das leis para todos os seus membros.
67
38
Universal aqui é no sentido de englobar todos os seres humanos, e não no sentido transcendente a determinado
contexto.
69
propusesse, segundo Benhabib, um dever de tratar todos os seres humanos como pessoas que
pertencem a um grupo, com direito à proteção por parte desse grupo, sendo uma reivindicação
moral de pertencimento ou certa forma de tratamento compatível com essa reivindicação.
(BENHABIB, 2004).
Retomando a noção arendtiana de direito, artificialmente criado e limitado, cuja
legitimidade depende da ação dos agentes políticos em apoiá-lo e mantê-lo, deparamo-nos
justamente com essa falta de fundamento último. No direito interno, Arendt se vale da noção
de fundação e consentimento para lidar com essa falta de fundamento último, que nada mais é
do que o reconhecimento do caráter das leis e normas que regem um corpo político: serem
dependentes dos homens que constituem essa comunidade. Tanto a política quando o direito
são contextualizados, dependentes da ação dos atores políticos de comunidades localizadas. Já
no direito internacional, Arendt afirma que é a humanidade que deve garantir os direitos
humanos, um fato inevitável. Em um registro centrado num direito artificial e contingente,
essa afirmação deve ser compreendida como reconhecimento prático de que as únicas
garantias que podem existir são aquelas que os homens mutuamente dão a si mesmos, e que,
em um mundo cada vez mais interligado econômica, cultural e ecologicamente – a tal ponto
que decisões em um Estado afetam os interesses de pessoas para muito além de suas
fronteiras, um mundo único39 – essas garantias têm de ultrapassar as fronteiras das nações.
Fundamentados moralmente ou simplesmente impossíveis de possuírem qualquer
fundamento, o fato é que a reflexão arendtiana sobre os direitos humanos evidencia um
dilema que indica a necessidade de compreendermos os direitos como artificiais e precários,
garantidos apenas politicamente, e nos afastarmos do quadro tradicional de justificação
metafísica da lei. Em uma política global em que os únicos atores são os Estados, apenas uma
comunidade específica tem a autoridade, a disposição e, mais importante, a capacidade para
garantir direitos jurídicos, e é por isso que a expulsão da teia das relações humanas significa
verdadeiramente um vácuo legal completo. O status de uma pessoa como portadora de
direitos é sempre contingente ao seu reconhecimento como membro de uma comunidade,
sendo a ausência de tal reconhecimento o problema fundamental que os apátridas enfrentam.
O mundo e a responsabilidade por esse mundo, hoje, é de fato global, isto é, abarca
todos os habitantes do planeta, e a noção de que essa é uma responsabilidade de fato da
humanidade – não de uma razão transcendental, não da história ou da natureza – remete-nos
novamente ao vínculo do direito com a política. Não existe direito sem que atores políticos
39
Sobre questões relacionadas ao problema que a globalização apresenta às fronteiras nacionais, Cf. Habermas
(2001).
70
40
Ao tratar de questões de direito internacional, uma das bases principais da crítica arendtiana aos direitos
humanos como tradicionalmente compreendidos, no nacionalismo como um princípio de organização política e
na soberania como um ideal do Estado-nação está a crítica à homogeneidade e à aversão ao outro. Em
contrapartida a isso, Arendt apenas menciona a humanidade. De certa forma, é possível perceber que a
humanidade se opõe ao racismo e ao separatismo. Se os homens existem de forma plural, o racismo destrói a
humanidade para enfatizar a noção de grupo homogêneo e separado. O racismo nega a possibilidade do
estabelecimento de vínculos entre homens. Entretanto, é justamente essa possibilidade de estabelecer relações e
vínculos de cooperação e respeito que precisa ser mantida no âmbito internacional, ou não se pode falar em
direitos internacionais, e não se pode falar em humanidade.
71
Arendt, cabe esclarecer, não recusa a conquista histórica dos direitos cívicos e
políticos representados por igualdade, liberdade individual, direitos sociais, bem como a
importância da sua tutela jurídica. O que ela critica é a forma instrumental de como a
cidadania é concebida, uma vez que esse modo demonstrou ser insuficiente para assegurar sua
plena realização. A cidadania moderna na concepção liberal representa um enfraquecimento
da cidadania em relação ao conceito arendtiano, na medida em que ocorre um desinteresse,
quando não um impedimento do exercício ativo da política pelos cidadãos. Essa limitação, em
grande parte, decorre do sistema da representação política como único meio de participação
na esfera pública.
A questão que envolve a representação é que ela se transforma num mecanismo
político de substituição da participação, pois, ao fazer-se representar, o cidadão sai da cena
política e o representante o substitui, até porque é da natureza da representação fazer-se
substituir, de modo que a participação acaba ocorrendo de forma indireta. Esse é, na opinião
de Arendt, um dos problemas cruciais presentes nas políticas contemporâneas, pois os
representantes não passam de porta-vozes da vontade de seus eleitores, uma vez que
substituem a sua ação direta. A cidadania assim exercida acarreta problemas sérios e
intransponíveis, revelando um de seus limites, pois, na prática, o mecanismo político da
representação desconfia da capacidade política do povo, o qual, não obstante seu
voluntarismo, acaba abdicando do poder e não toma parte nas decisões políticas. Nesse
sentido, os cidadãos são excluídos da ação política, na medida em que a participação no
poder, na esfera pública, ocorre de forma passiva e indireta, por meio do sistema da
representação política. (MELLEGARI; RAMOS, 2011).
Os representantes são minorias advindas dos partidos políticos que decidem em
nome da maioria. Em outras palavras, governar tornou-se assunto de poucos especialistas
imbuídos de administrar a coisa pública. Ou, o que é pior, e não raro acontece, o governo
passa a ser formado por demagogos ou corruptos que se aproveitam do cargo para realização
dos seus próprios interesses. O sistema representativo traz no seu bojo a crença de que os
cidadãos não são capazes de gerir a coisa pública, a qual deve, por isso mesmo, ser confiada a
especialistas. O problema desse sistema é que o representante se torna um mero defensor dos
interesses privados dos seus representados, mas com o poder de governar, e o representado
torna-se livre apenas na condição de eleitor. Desse modo, a deliberação ativa de assuntos de
interesse geral é praticada por uma minoria que monopoliza o governo, comprometendo
substancialmente a participação de todos os cidadãos de forma igualitária e abrangente nas
decisões sobre questões políticas que importam a todos. (MELLEGARI; RAMOS, 2011).
72
que se identificam com o meu modo de pensar sobre determinado tema em ações recíprocas
de representação. Como afirma Arendt,
Esse processo de representação não adota cegamente as concepções efetivas dos que
se encontram em algum outro lugar, e por conseguinte contempla o mundo de uma
perspectiva diferente; não é uma questão de empatia, como se eu procurasse sentir
como alguma outra pessoa, nem de contar narizes e aderir a uma maioria, mas de ser
e pensar em minha própria identidade onde efetivamente não me encontro.
(ARENDT, 1990, p. 299).
O representante não pode ser visto como simples porta-voz formal de opiniões,
muitas vezes alheias ou, então, presentes apenas na forma de empatia sentimental, mas de
uma reflexividade de sujeitos que, de forma vicariante, colocam-se no lugar dos outros.
Assim, Arendt está convencida de que os conselhos podem representar o esforço para
o exercício de uma efetiva cidadania, uma vez que proporcionam o acesso do cidadão às
atividades públicas através de diversos segmentos da sociedade. Diante da dificuldade da
participação direta dos cidadãos nas modernas e enormes sociedades de massa, e da
inadequação do sistema partidário representativo, os conselhos (de bairro, profissionais, de
fábricas, educacionais, culturais etc.) possibilitam uma fragmentação da sociedade em espaços
públicos múltiplos, permitindo a participação dos cidadãos de forma mais direta.
A essência dos conselhos, independentemente das circunstâncias e diferenças
históricas em que aparecem, tem sido, segundo Arendt, sempre a mesma, ou seja:
Queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas
em público, e queremos ter a possibilidade de determinar o curso político de nosso
país. Já que o país é grande demais para que todos nós nos unamos para determinar
nosso destino, precisamos de um certo número de espaços públicos dentro dele. As
cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas,
pois ali só há lugar para um. Os partidos são completamente impróprios; nele, a
maior parte de nós é apenas o eleitorado manipulado. Mas se apenas dez de nós
estivermos sentados em volta de uma mesa, cada um expressando sua opinião, cada
um ouvindo a opinião dos outros, então uma formação racional da opinião pode ter
lugar através da troca de opiniões. Lá também fica claro qual de nós é o mais
indicado para apresentar nossos pontos de vista diante do mais alto conselho
seguinte, onde nossos pontos de vista serão esclarecidos pela influência de outros
pontos de vista, revisados, ou seus erros demonstrados. (ARENDT, 1973, p. 200).
Desse modo, o sistema de conselhos, como entende Arendt, não nega a representação
política, mas define as bases sobre as quais ela pode operar no contexto das atuais
democracias parlamentares. Não se trata, ademais, de incluir todos os cidadãos diretamente, o
que seria praticamente impossível, mas de multiplicar os espaços públicos onde mais pessoas
possam participar da política em diversos níveis. Eles constituem uma alternativa democrática
ao sistema de partidos.
Dessa maneira, a participação efetiva e direta do cidadão, mediante a discussão
dialógica das opiniões, pode garantir que interesses e direitos sejam escolhidos e levados
adiante por seus representantes. Nesse contexto, observa a autora, a representação que ocorre
no sistema de conselhos se distingue das “elites” no modelo representativo partidário, pelo
fato de que, no sistema de conselhos, o espaço público, no qual os participantes elegem os
seus representantes, pode ser constituído potencialmente por todos aqueles que estejam
efetivamente interessados na coisa pública, sem que seja preciso fazer parte dos meandros das
negociações internas das máquinas partidárias e do monopólio de nomeações. Em outros
termos, a elite dos conselhos, em suas várias instâncias federativas, seria “autoescolhida” a
75
(LAFER, 1979, p. 101). Ocorre que o pensar não fundamenta o querer e o julgar, próprios
para a apreciação de situações particulares e específicas. Destarte, tanto a vontade como o
juízo são autônomos ao pensamento porque se referem especificamente a particulares. O
querer visa o futuro, porque a vontade torna-se intenção para a decisão do que virá a ser. Já o
julgar é uma atividade ligada à construção mental da subsunção entre um geral dado e um
particular já ocorrido, referindo-se a situações passadas (ARENDT, 1978a).
Ao discutir a vontade, a autora menciona, no segundo volume de The life of mind, o
posicionamento de Duns Scotus, que foi mestre de Guilherme de Ockham. Duns Scotus foi
um dos primeiros autores a tratar da vontade como faculdade que permite ao homem mostrar
sua dualidade de ser singular, ao permitir à mente ultrapassar seus próprios limites.
(ARENDT, 1978a). Segundo Lafer, “a quintessência do pensamento de Scotus é a de postular
a contingência como um modo positivo do ser” (LAFER, 1979, p. 113), apontando para a
singularidade que não se subsume no geral como livre arbítrio ou liberdade na escolha de
atos. Tanto Scotus como Ockham privilegiaram a singularidade e a intersubjetividade como
fatores fundamentais do relacionamento entre homens. E foi esse privilégio que contribuiu
para o surgimento, já na Idade Moderna, da categoria dos direitos humanos.
Seguindo esse caminho, Arendt elaborou um apêndice ao segundo volume de A vida
do espírito, referindo-se à atividade de julgar, tomando como ponto de partida a Crítica do
juízo do filósofo alemão Emmanuel Kant. Para Kant, o juízo é a atividade de subsumir o
particular no geral: é o que conhecemos por juízo determinante e que hodiernamente se sujeita
à hermenêutica, à ideia de razoabilidade e à Tópica. A razoabilidade implica a adequação
entre os fatos, as circunstâncias em que se produziram, as circunstâncias em que se
encontrava o agente e as normas interpretadas segundo a sua finalidade, objetivando a busca
do senso comum. Já a Tópica representa a busca do comum no Direito e na Política,
procurando encontrar princípios que os transcendem por intermédio da prudência. A Tópica
constitui-se de um juízo retórico fundamentado na prudência e não na demonstração, sofrendo
influências do juízo reflexivo. (FIORATI, 1999).
Não obstante, existem situações que nem mesmo a razoabilidade constitui critério
para propiciar um julgamento justo. No mundo em que vivemos, o mundo do animal laborans
(ARENDT, 2010), essas situações são muito comuns, uma vez que se perderam o senso
comum e o mundo comum responsável pela noção de razoabilidade. Apesar disso, sabemos
que o animal laborans precisa de regras que aparecem por intermédio das leis, costumes e
convenções expressas em palavras. Como o consenso expresso no animal laborans diz
respeito às necessidades ligadas à manutenção da vida, que não surgem num mudo construído
80
e compartilhado pelos homens, esse consenso expressa-se em termos vagos, ambíguos, sobre
pontos específicos tangentes a uma realidade que se demonstra desconectada e fragmentada.
(FIORATI, 1999).
Essas leis, acordos, costumes e convenções expressam padrões universais vagos. Em
consequência, torna-se impossível o ato de julgar, uma vez que não existe uma regra geral
determinada e clara à qual se deva subsumir o caso. É necessário um novo juízo, o juízo
reflexivo, que permite ao julgado julgar o particular sem subsumi-lo diretamente no geral.
Arendt toma emprestado a Kant a afirmação de que “o juízo reflexivo se opera através de
pensar no lugar do outro” (ARENDT, 1978b, p. 257, tradução nossa), possibilitando o
alargamento do raciocínio ligado ao pensamento sobre o que o outro pensa. Para Arendt, o
julgamento reflexivo que se preocupa com os particulares não se baseia em critérios gerais
universais, mas sim em opiniões. Disso resulta o fato de que é o juízo reflexivo, comumente
utilizado na vida política, o mais democrático: todos podem ter opiniões. Trata-se de algo
semelhante à Tópica, que é um pensamento problemático que tem como ponto de partida o
caso concreto sobre o qual se emitem opiniões. (FIORATI, 1999).
Se o juízo é a faculdade de pensar um particular buscando um geral correspondente,
problemática se torna a inexistência de um geral. Portanto, é necessário criar um critério que
permita uma comparação entre particulares, que funcionaria como um critério geral. Esse
critério terminaria por conduzir a generalização dos juízos reflexivos.
Analisando Kant, Arendt afirma ser o gosto ou senso estético um dos critérios para o
juízo reflexivo, porque emitido acerca de um mundo comum e comunicável por palavras. O
gosto e a opinião vindos a público pela comunicação e pela persuasão mostram não somente a
concordância com o próprio eu, mas principalmente uma concordância potencial com os
outros. Para Kant, a capacidade de julgar é a
Faculdade de ver as coisas não apenas do próprio ponto de vista, mas na perspectiva
de todos aqueles que porventura estejam presentes: o juízo pode ser uma das
faculdades fundamentais do homem enquanto ser, na medida em que permite a sua
orientação no mundo comum. (ARENDT, 1978b, p. 275, tradução nossa).
potencial. Isto por um lado significa que esses juízos devem se libertar das
condições subjetivas pessoais, isto é, das idiossincrasias que determinam
naturalmente o modo de ver de cada indivíduo na intimidade e que são legítimas
enquanto são apenas opiniões mantidas particularmente, mas que não são adequadas
para ingressar na esfera pública e perdem toda a validade no domínio público, [...]
como lógica para ser correta depende da presença do eu, também do juízo, para ser
válido, depende da presença dos outros. Por isso o juízo é dotado de uma certa
validade específica, mas não é nunca universalmente válido. Suas pretensões à
validade nunca podem se estender além dos outros em cujo lugar a pessoa que julga
colocou-se para as suas considerações. O juízo, diz Kant, é válido para toda pessoa
individual que julga, mas a ênfase na sentença recai sobre o que julga não sobre o
outro que julga. (ARENDT, 1978b, p. 274-275, tradução nossa).
É possível constituir uma ética sobre o respeito pelas atividades do corpo: comer,
beber urinar, dormir, fazer amor, falar, ouvir etc. impedir alguém de se deitar à noite
ou obrigá-lo a viver de cabeça abaixada é uma forma intolerável de tortura. Impedir
outras pessoas de se movimentarem ou falarem é igualmente intolerável. O estupro é
crime porque não respeita o corpo do outro. Todas as formas de racismo e exclusão
constituem em última análise, maneiras de negar o corpo do outro. Poderíamos fazer
uma releitura, a única, de toda a história da ética moderna sob o ângulo dos direitos
dos corpos, e das relações de nosso corpo com o mundo. (ECCO, 1994, p. 7).
esclarecedor do princípio da esperança, uma vez que indica, pelas histórias julgadas
e contadas, a permanente possibilidade de um novo começo – de um initium. O
juízo, em outras palavras, não justifica o mundo, mas confirma o nosso lugar no
mundo ao asseverar a nossa conexão com a realidade através da responsabilidade
inerente à mediação entre o particular e o geral. (LAFER, 1988, p. 305).
84
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por outro lado a humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana,
não passava de uma ideia reguladora, tornou-se de fato inelutável. Esta nova
situação, na qual a humanidade assumiu antes um papel atribuído à natureza, ou à
história, significaria nesse contexto que o direito a ter direito, ou o direito de cada
indivíduo pertencer a humanidade, deveria ser garantido pela própria humanidade.
(ARENDT, 1989, p. 332).
Para Kant, o direito do estrangeiro a não ser tratado com hostilidade não é uma
questão de filantropia, mas de direito e hospitalidade. (KANT, 2004). Segundo ele, o direito à
liberdade, que é originário, tem como consequência o direito sobre o solo. A convivência
85
entre pessoas de diferentes Estados, não só econômicos, mas, no sentido amplo, uma
“frequentação mútua e até misteriosa”, está fundamentada no direito à hospitalidade universal.
(KANT, 2004, p. 51).
Entretanto, segundo Kant, a passagem do “direito à visita” a um “direito de
residência” depende de um contrato entre aqueles que chegam e o país de destino. Não é
automático, mas é um complemento necessário do “direito dos povos” que deve ser garantido
em todos os lugares da terra. (FELICIO, 2004). Diz o autor: “a violação dos direitos em um só
lugar da terra é sentida em todos os outros”. (KANT, 2004, p. 54).
A referência da análise kantiana é o cidadão cujo estatuto moral garante a adesão às
normas do contrato em outro país, o qual é precondição para o direito à hospitalidade.
Pertencer à humanidade, portanto, passa em primeiro lugar pela condição de cidadão em seu
próprio país e pela adesão às normas de cidadania no país de destino. A ampliação do
conceito de cidadania, além das fronteiras nacionais, não se sobrepõe ao estatuto legal em
cada um dos Estados. O pertencer à humanidade possibilita, do ponto de vista moral, como
decorrência do direito ao solo e à liberdade, transitar de um país ao outro levando consigo os
seus direitos de cidadão devidamente adequados à legalidade de cada país.
A leitura arendtiana da moral cosmopolita kantiana e de suas consequências políticas
deve ser realizada com cautela. Se, para ela, a natureza não concede direitos, o mero
pertencimento à humanidade também não poderia conceder. A dimensão ontológica da
humanidade deve ser compreendida e articulada à sua dimensão política. O direito a ter
direitos no plano internacional implica a construção de um espaço político, um artifício, além
das fronteiras nacionais, onde as condições de isonomia e pluralidade possibilitam que cada
indivíduo seja livre para o direito a ter direitos.
Não se trata de uma nova metafísica em que o ser humano, o pertencer à
humanidade, substitua a natureza humana como fundamento de direito. Ao contrário, é a
existência de um espaço político internacional que garanta a dimensão ontológica da
humanidade para que ela possa fundar o direito. A humanidade não é nem o resultado final da
história, como em Kant, nem a manifestação do espírito absoluto, como em Hegel, mas o
resultado da ação humana.
Um espaço político internacional não significa a ilusão totalitária de um Estado
internacional subordinando a diferentes nações, mas um espaço político que garanta a tutela
dos direitos humanos independentemente dos Estados nacionais, onde a “humanitas” do
homem possa se desvelar como mero resultado da natalidade.
86
A barbárie totalitária que rompeu radicalmente com a tradição dos direitos humanos,
chegando aos campos de concentração e de trabalho, exigia das nações responsabilidade sem
a qual o próprio conceito de humanidade estaria fortemente comprometido. A criação da
Organização das Nações Unidas, em 1945, com o objetivo de se constituir um organismo
internacional sem as limitações da Liga das Nações, que teve sua origem em 1919, foi uma
resposta para impedir o ressurgimento de um novo desastre humanitário. A sua estrutura,
entretanto, era o espelho do mundo que emergia depois da guerra. No seu conselho de
segurança, o órgão de maior importância estratégica, garantia-se o poder de veto das grandes
potências emergentes e vitoriosas – os Estados Unidos, a União Soviética, a Inglaterra e a
França.
O compromisso efetivo com os direitos humanos não estava garantido com a carta de
fundação de 1945; todavia, ela criava uma Comissão de Direitos Humanos que se propôs a
elaborar uma declaração. Depois de três anos de debates, em 10 de Dezembro de 1948, foi
aprovada, pela Assembleia Geral, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, com o voto
de quarenta e oito países, nenhum voto contra e oito abstenções dos países do bloco soviético,
da Arábia Saudita e da África do Sul. (HUNT, 2009).
No seu preâmbulo, a Declaração explica “que o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. Reconhece também, visando o
passado recente,
[...] que o desrespeito e o desprezo pelos direitos humanos têm resultado em atos
bárbaros que ofenderam a consciência da humanidade e que o advento de um mundo
em que os seres humanos tenham liberdade de viver sem medo e privações foi
proclamado como a aspiração mais elementar do homem comum. (HUNT, 2009, p.
206).
Portanto, é fundamental que “os direitos humanos sejam protegidos pelo estado de direito,
para que o homem não seja compelido a recorrer, em última instância, à rebelião contra a
tirania e a opressão”. (HUNT, 2009, p. 239).
A fé reafirmada nos direitos humanos e o compromisso dos povos das Nações
Unidas em respeitá-los, refletindo a complexidade política do mundo pós-guerra, são
amenizados nas conclusões do preâmbulo, quando se afirma que “A Assembleia Geral
proclama esta Declaração Universal dos Direitos Humanos como um ideal comum a ser
alcançado por todos os povos e todas as nações”. (HUNT, 2009, p. 230).
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REFERÊNCIAS
ZIZEK, Slavoj. Alguém Disse Totalitarismo? Cinco intervenções no (mau) uso da noção.
São Paulo: Boitempo, 2013.