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Rev. Grad. USP, vol. 1, n 1, jul.

2016

Breves Considerações sobre o


Curso “Práticas de Leitura e Escrita
Acadêmicas em Humanidades”
Valéria De Marco1, Marcus Sacrini*2
1
Departamento de Letras Modernas, 2Departamento de Filosofia
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
* Autor para correspondência: sacrini@usp.br

RESUMO
Apresentamos neste relato nossa proposta de um curso, inicialmente oferecido de modo experimental e em
seguida como disciplina optativa, voltado para o treino das capacidades básicas de leitura e escrita acadêmicas.
Expomos a concepção geral do curso e acentuamos a importância desse trabalho na formação dos estudantes
de graduação.
Palavras-chave: Leitura; Escrita; Fichamento; Espírito Crítico; Formação.

ABSTRACT
We present in this report our proposal of a course, initially offered in an experimental way and after as an elective
class, focused on the training of basic skills of academic reading and writing. We broach the general conception
of the course and we highlight the importance of such a work in the education of undergraduate students.
Keywords: Reading; Writing; Taking Notes; Critical Spirit; Education.

Introdução quenta estudantes inscritos e de dez monitores. Nas


O curso de graduação “Práticas de Leitura e aulas, propusemos a leitura de textos de diferentes
Escrita Acadêmicas em Humanidades” surgiu da áreas das humanidades, tendo em vista a realização
constatação das dificuldades crescentes dos alunos de algumas tarefas que permitissem aos estudantes
ingressantes em nossa faculdade (FFLCH) em li- conscientizarem-se sobre a importância de treinar
darem de modo satisfatório até mesmo com tarefas as capacidades básicas de leitura e escrita. Antes de
básicas exigidas para o bom aproveitamento das detalhar esse núcleo do curso, cabe ressaltar que
disciplinas de suas áreas de estudo. A proposta foi montamos, no correr de 2015, duas edições expe-
formulada por um grupo de professores de diferen- rimentais dele, oferecendo-o como atividade livre.
tes carreiras em que ingressam os alunos de gra- Em ambas, houve a participação de monitores, de
duação da nossa faculdade. São eles: de Ciências modo que os inscritos recebessem um acompanha-
Sociais (André Singer e Cícero Araújo), de Filosofia mento bastante cuidadoso no correr das atividades
(Caetano E. Plastino, Marcus Sacrini e Ricardo R. propostas. No primeiro semestre de 2015, os moni-
Terra), de História (Marcos Napolitano), de Letras tores eram doutorandos e a eles a Pró-Reitoria de
(Valéria De Marco) e de Linguística (Esmeralda V. Graduação, em parceria com a de Pós-Graduação,
Negrão e Ronald Beline). Almejamos integrar ao concedeu dez bolsas do PAE. No segundo semes-
menos um docente da área de Geografia na equipe, tre, foram selecionados alunos da graduação por
de modo que todos os cursos de nossa faculdade meio do edital do Programa Unificado de Bolsas
tomem parte do projeto. USP. Insistimos aqui no papel central dos monito-
O caráter interdisciplinar do curso foi uma con- res para o sucesso desse tipo de curso, que não tem
sequência natural da presença de professores de como tarefa central a transmissão de conteúdos
diferentes disciplinas e pautou a seleção dos cin- teóricos mas se serve desses últimos para treinar
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Breves Considerações sobre o Curso “Práticas de Leitura e Escrita Acadêmicas em Humanidades”

metodicamente habilidades expressivas, treino que de diversos paradigmas teóricos muitas vezes em
exige então constante avaliação e direcionamento. conflito acerca de problemáticas similares.
Os cursos experimentais motivaram a criação Diversos questionamentos preocupam os es-
da disciplina optativa FLF0506, oferecida no tudantes diante desse quadro: “como entender as
primeiro semestre de 2016. Devido à grande de- disputas conceituais pertinentes à minha área de
manda, estamos empenhados em conseguir ade- estudo?”, “como me posicionar diante dessa di-
são de novos grupos de professores para ampliar versidade teórica?”. Para bem responder a essas
o número de turmas. questões, cabe inicialmente entender a diversida-
de teórica da área como fruto de diferentes estra-
A Orientação Crítica do Pensar tégias de justificação racional das teses em pauta.
Gostaríamos de destacar minimamente as Trata-se, nesse sentido, de compreender a com-
ideias centrais que nos moveram a desenvolver plexidade inerente a certos problemas, de recusar
esse curso. Nosso norte é a concepção de gra- as respostas fáceis e dogmáticas e de inserir-se
duação como um processo de formação crítica na construção de debates racionais, em que as
dos estudantes, e não de precoce especialização. justificativas teóricas são propostas e aperfeiçoa-
Ainda que de modo muito geral, parece correto das à luz de críticas mútuas. Dessa maneira, para
apontar que o sentido da formação em humani- formar-se satisfatoriamente no campo das huma-
dades está intimamente ligado à noção de espírito nidades, é preciso dispor de uma compreensão
crítico. Sem dúvida, muito poderia ser dito acerca amadurecida acerca da diversidade de posições
dessa noção; de nossa parte, pretendemos salien- e de suas estratégias de justificação. E essa exi-
tar somente um aspecto definidor a ela comu- gência basilar não é devidamente cumprida sem
mente associado. O qualificativo “crítico” aqui um treinamento específico de capacidades inter-
em pauta marca um tipo particular de postura, pretativas e expressivas. Daí a importância de
segundo a qual não se aceitam as opiniões acerca desenvolver recursos de ensino que favoreçam
dos temas estudados passivamente, apenas por- um modo específico de percorrer a graduação,
que derivam de autoridades ou de tradições bem de cumprir as tarefas requeridas para formar-se.
estabelecidas, mas se buscam as justificativas racio- Há certas atitudes, certas perspectivas interpre-
nais que permitem sustentar o ponto de vista em tativas a serem fixadas no período da graduação
questão. Aceitar uma tese criticamente significa ser que se constituirão justamente como o maior le-
capaz de compreender e avaliar as razões ofere- gado desse período: a sedimentação de um tipo
cidas para sua legitimação, tornando visíveis os particular de orientação do pensar e do agir, a
intrincados movimentos argumentativos de que qual se fortalece no correr dos cursos exatamente
as concepções teóricas estudadas se compõem. porque é a postura que mais permite aproveitar o
É importante destacar esse último tópico. O que eles oferecem.
conhecimento produzido pelas humanidades exi- O trabalho proposto por nosso grupo de pro-
ge uma orientação crítica do pensar. Afinal, uma fessores consiste em oferecer um treino gradual
das marcas das humanidades é a pluralidade de de algumas das capacidades críticas mais básicas
concepções teóricas acerca dos problemas e de necessárias para o cumprimento satisfatório dos
práticas centrais das disciplinas. Várias são as cursos de graduação em humanidades. Propo-
posições em disputa nas áreas de estudo, e é co- mos exercícios que incentivam os estudantes a
mum que os consensos não sejam obtidos por voltarem sua atenção para os seus próprios re-
verificação empírica de fatos decisivos, mas por cursos expressivos, avaliarem a maturidade de
finos debates argumentativos entre diferentes suas habilidades acadêmicas e sanarem algumas
matrizes conceituais. Formar-se em humanida- fraquezas então reconhecidas. Trata-se, em suma,
des, em grande medida, envolve o aprendizado de propor ocasiões em que os objetos comuns
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de estudo em nossos cursos de graduação (tex- Em particular, muitas vezes os estudantes leem
tos de autores clássicos, por exemplo) não são o com uma atenção seletiva ou enviesada por
centro da aprendizagem, mas apenas o pretexto meio da qual destacam apenas fragmentos que
para tornar visíveis as capacidades conceituais- contêm teses ou passagens inferenciais que já
-expressivas requeridas para a boa compreensão lhes são familiares, o que então os leva a abdicar
e avaliação desses objetos de estudo. Propõe-se, de compreender novas ideias e pontos de vistas
assim, uma inversão do olhar estudantil, normal- divergentes de suas crenças prévias acerca dos
mente focado em tais objetos, e que deve então temas estudados. Por meio dessa atitude, muitas
se voltar para as próprias habilidades básicas de noções conceituais importantes são deixadas de
compreensão e expressão. Em nossa proposta, lado meramente por soarem, à primeira vista,
temos destacado duas das habilidades mais bási- estranhas ou complexas demais. Incapazes de
cas para o sucesso nos cursos de graduação, cer- avançar em exposições que rompem com teses
tamente não apenas de humanidades: a leitura familiares, os estudantes limitam severamente
e a escrita. No restante deste relato, vamos nos seu aprendizado, muitas vezes reproduzindo
limitar a retomar algumas ponderações sobre a versões simplificadas de concepções cujo cerne
leitura acadêmica. teórico está fora do alcance daquilo que uma
leitura ingênua consegue capturar.
Leitura e Escrita no Âmbito Acadêmico Contra essa atitude, trata-se de reconhecer,
A leitura talvez seja a atividade acadêmica em primeiro lugar, que o texto acadêmico é, ao
mais básica com a qual os estudantes se defron- menos idealmente, um todo estruturado argumen-
tam. O enorme conhecimento acumulado nas tativamente, no qual todas as partes cumprem
diversas áreas das humanidades é transmitido funções específicas na realização de sua tarefa
principalmente por textos de diferentes gêne- global: defender posições. Em seguida, cumpre
ros, e somente a sua leitura metódica permite a acentuar que a boa leitura acadêmica deve ser
inserção aprofundada nos amplos campos con- capaz de recuperar o movimento expositivo com-
ceituais de que as disciplinas estudadas se cons- pleto do texto tal como estruturado pelo autor. Essa
tituem. Ocorre que, por serem alfabetizados e, nos parece a perspectiva correta para enfrentar
assim, exercerem cotidianamente a leitura em um texto acadêmico: buscar a reconstrução or-
diferentes contextos práticos, os estudantes denada de todas as suas partes (e não somente
pouco refletem por si sós acerca das exigências daquelas que chamam a atenção, normalmente
contidas em uma leitura especificamente acadêmica. por familiaridade, do leitor) e respeitar, nessa re-
Em sentido muito geral, espera-se desse tipo de construção, as posições efetivamente defendidas
leitura, ao menos em seu nível mais básico, o pelo autor, sem misturá-las com as opiniões do
estabelecimento da posição do autor acerca do leitor acerca do tema em destaque. Esse último
tema discutido no texto em pauta. Seja em re- aspecto da leitura acadêmica supõe assumir, ao
lação a um artigo, capítulo ou mesmo livro, a menos inicialmente, uma postura de neutralidade
leitura exigida nos cursos de graduação é aque- valorativa em relação às posições defendidas no
la capaz de reconstruir tanto a posição defendida no texto lido, de modo que seja possível expor tais
texto quanto o seu caminho expositivo aí contido. Por posições sem distorcê-las por meio das opiniões prévias
mais evidente que isso possa parecer, trata-se de do leitor acerca do assunto lido. A leitura acadêmica
um objetivo não imediatamente acessível para deve envolver um primeiro momento de recons-
muitos estudantes habituados a certos estilos trução valorativamente neutra da posição do au-
de leitura (talvez legítimos em outros contextos tor, o que muitas vezes falta em outros tipos de
cotidianos) que impedem a devida compreen- leitura, nas quais é cabível posicionar-se imedia-
são das posições defendidas nos textos lidos. tamente contra ou a favor das posições expostas.
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Por sua vez, a leitura acadêmica, assim nos pare- dos cursos já realizados, esse treino específico
ce, deve fomentar uma ocasião de compreensão dos fichamentos gera um significativo acréscimo
respeitosa em relação à posição do autor (inde- de compreensão dos temas tratados nos demais
pendentemente de discordâncias acerca das teses cursos da graduação. Trata-se de uma proposta
ali expostas), a qual deve ser recuperada em sua relativamente simples e que tem trazido resulta-
totalidade expositiva. dos promissores.
Para que a leitura acadêmica cumpra essas
metas gerais, propomos técnicas que auxiliam os Referências Bibliográficas
estudantes a tomarem consciência de seus esque- CARNIELLI, Walter A. & EPSTEIN, Richard L.
Pensamento Crítico: o Poder da Lógica e da Argumenta-
mas habituais de leitura e a os aperfeiçoarem de
ção. São Paulo: Rideel, 2009.
modo ordenado. A principal técnica explorada,
FOLSCHEID, Dominique & WUNENBURGER,
em diversos níveis de complexidade, é aquela Jean-Jacques. Metodologia Filosófica. Trad. NEVES,
dos fichamentos. Por meio dos fichamentos, alme- P. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ja-se sistematizar a reconstrução dos movimentos GOLDSCHMIDT, Victor. “Tempo Lógico e Tempo
Histórico na Interpretação dos Sistemas Filosó-
expositivos do texto lido. Trata-se de tornar visí-
ficos”. In: A Religião de Platão. Trad. PEREIRA,
veis todos os passos argumentativos ali presentes, Oswaldo Porchat & PEREIRA, Ieda Porchat. São
o que possibilita capturar as posições defendi- Paulo: DIFEL, 1963, pp.139-147.
das conforme a ordenação lógica planejada pelo GUEROULT, Martial “Lógica, Arquitetônica e
autor, sem misturar incautamente as opiniões Estruturas Constitutivas dos Sistemas Filosóficos”.
Trad. ALMEIDA, P. J., Trans/Form/Ação, vol. 30,
prévias do leitor e sem limitar-se a salientar so- n. 1, 2007, pp. 235-246.
mente aquelas partes que lhe parecem familiares. PORTA, Mario Ariel González. A Filosofia a Partir de
Por mais simples que um fichamento possa ser, seus Problemas. São Paulo: Edições Loyola, 2003.
sua prática marca a fronteira entre uma leitura SAUNDERS, Clare et al. Como Estudar Filosofia. Trad.
descompromissada ou enviesada e uma leitura Figueira, Vinicius Porto Alegre: Grupo A, 2009
acadêmica séria, porta de entrada para a com- VELASCO, Patrícia Del Nero. Educando para a
Argumentação: Contribuições do Ensino da Lógica. Belo
preensão crítica das grandes concepções teóri- Horizonte: Autêntica, 2010.
cas que demarcam o campo das humanidades. VIEIRA NETO, Paulo. “O que É Análise de Texto”.
Em nosso curso, os professores expõem textos In: LIMONGI, Maria Isabel de Magalhães et al.
ligados a cada grande área das humanidades, e Seis Filósofos na Sala de Aula. São Paulo: Berlendis &
Vertecchia, 2006.
cabe aos estudantes, com a ajuda dos monitores,
WALTON, Douglas N. Lógica Informal. Trad.
produzirem fichas de leitura em grau crescente FRANCO, Ana Lúcia R. & SALUM, Carlos A. L.
de complexidade. Conforme a avaliação final São Paulo: Martins Fontes, 2006.
Publicado em 05/07/2016.

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