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Sujeito corporificado € bioética: caminhos da democracia ‘Ana Clara Torres Ribeiro(*) lade de Sao Paulo, Professora do (") = Doutora em Ciéncias Humanas pela Universic: gional (IPPUR) da Universidade Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Re: Federal do Rio de Janeiro, Pesquisadora CNPq, Estes simbolos alimentam a existéncia banal ¢ correspondem a arranjos emocionais imedistas. Trata-se do que poderia ser chamado de massificagao do senso comu que dele retira a sagacidade e as taticas que constituem verdadeiros ¢ ricos acervos a experiéneia popular, tao sistematicamente desvalorizados pela cultura dominant. Impede-se assim, por diferentes caminhos, que a construgao identitiria do jovem das classes populares seja alimentada por auténomas e divergentes configuragdes de sujeito. A sociedade que surge da reuniao dos fragmentos do “ser jovem’. realizada este testo, apresenta um estranho desenho, formado por tragos longitudinais de preces, rigor. familia e papéis tradicionais. A estes tragos sobrepdem-se perfuragdes © estilhagos em cenarios de restritas “comunidades” e valorizados grupos de referencia ‘Acredita-se que, neste desenho, escondam-se sérios desafios & competéncia dos formuladores, atuais e futuros, de politicas sociais. Estes desafios atingem, para além destas politicas, a concepgao de cidadania e de democracia que precisa ser defendida hoje. ‘Trata-se da (re)construgdo indispensavel da comunicagao _ inter-segmentos sociais, através da valorizagio do convivio em arenas que estabelegam a possibilidade de conflito entre classes e geragdes. Assim, a integragao social vislumbrada no € aquela que procura preservar os mitos da juventude ou criar rapidos e duvidosos consensos; mas, a que podera advir da plenitude da politica ¢ do respeito ao outro, inclusive em sua digna face de opositor. "Discurso tentative sobre o anonimato", Ana Clara T. Ribeiro e Alice Lourenco, aprovado para publicagao na Revista Sociedade e Estado, Vol. XVI. N.1 Ver exclusio como metafora: procedimento ideologico nao esclarecedor. O que no tem nome aproxima-se do inclassificavel e inacessivel a ciéncia. A fragilizagao da vida social, manifesta-se no tabu da morte, atinge os sem documento ¢ registro {que indica a passigem do pré-contratualismo 20 pés-contratualismo. A tendéncia a dissolugao dos poderes morais é correlata da tendéncia a desinstitucionalizagao ¢, também, a desconstrugao da meta moderna dos direitos generalizados e de plena afirmagao do individuo => sujeito (cidadao). No 4mago do tecido urbano, tais tendéncias correspondem a manifestagao do insulamento de segmentos sociais que, uma vez: consolidado, resiste 4s tentativas de gestae democratica dos recursos. Em sintese, pode ser dito que a produgao social contemporanea do anonimato decorre: (a) - da permanéneia de processos estruturais da formagao_ social brasileira, originados da colonizagao, da escravidao e das formas dominantes de apropriagao dos recursos; (b) - do apagamento de mecanismos tradicionais de reconhecimento da pessoa, decorrente da destruigdo de modos de vida; (c) - dos Resumo © texto propée a reflexdo do campo da bicética através da problematica contemporanea do sujeito de direitos, indispensdvel a democracia e @ cidadania Nesta diregdo, ¢ realizada a recuperacao de caracteristicas gerais da fase contemporanea do capitalismo: racionalizago das relagdes sociais, objetivacao da vida coletiva e afirmagao, sem controle social, da tecnociéncia. Em seus vinculos com os movimentos sociais e culturais, a bioética € compreendida como um campo de oposicao e resisténcia a face destrutiva do capitalismo. Assim, a bioética é tratada através da atual tendéncia a emergéncia de uma esfera mundializada de direitos, oposta ao predominio do economicismo e do pragmatismo difundidos pelo pensamento hegeménico. Palavras-chave' bioética, democracia, cidadania, direitos sociais, "No hay deseo inocente; no hay descubrimiento inmaculado; no hay viajero que, secretamente, no se arrepienta de dejar su tierra y tema no regresar nunca a su hogar” (Carlos Fuentes — Valiente mundo nuevo) Ao novo impeto do capitalismo, iniciado apés a recesséo do inicio dos anos 70, tem correspondido lutas e reivindicagdes pela instauragao de uma esfera mundializada de direitos e, assim, de emanacao de valores € orientagdo ética. Trata-se da potencial emergéncia, como nos diz Otavio lanni (1992; 1996), da cidadania vivida na escala mundo, expressiva do exercicio de direitos sociais na mesma escala alcangada, com 0 apoio da tecnologia de comunicagéo, pelos novos circuitos de troca de bens ¢ informagées. A construgao desta esfera mundializada de direitos, ainda praticamente inexistente, desafia as formas historicas de organizacao social e politica, trazendo 4 tona questées relativas a soberania dos Estados nacionais e as profundas diferengas entre sociedades e culturas. Precisaria ser dito, ainda, que a instauragao da nova esfera de direitos e de debate de valores tem sido detida pelo pensamento unico, pelo pensamento hegeménico. Este Gensamento, que é basicamente ‘economicista e instrumental, cria obstaculos a afirmacdo de forcas sociais politicas capazes de conter a fiiria cega do a De fato, a atual hegemonia dopensemnento neoliberal (Sader € Gentil, 1996) manifesta-se alterando, muitas vézes de maneira sutil, 0 trabalho. © saber e as normas condutoras das_praticas_profissionais. Manifesta-se, ainda, desconstruindo_instituigSes socials e identidades politicas. Este pensamento, ao apoiar-se em elementos da democracia liberal, procura ocultar a face destrutiva da nova producdo, realizada com base em linguagem, informagao e imagem. Aparentemente mais leve e menos destrutiva, a nova produgao ¢, entretanto, portadora de enormes riscos para as formas pretéritas de organizacao social e para a preservacéo de bagagens culturais que séo indispensaveis a vida coletiva. Estes riscos decorrem, justamente, do fato de que a nova produgo pressupée, de forma cada vez mais intensa(@ | manipulagéo do consumo, o que pode ser exemplificado pela ininterrupta crlagéo de novas necessidades. As consequéncias da interferéncia mercantil em bagagens culturais e praticas sociais manifestam-se_no é {eps crescimento da violéncia que, além de ter origem na pobreza e na miséria ie também expressa a crise contemporénea de valores, a a I es Face a dimensdo cultural desta crise, surgem, no campo da bioética, possibildades de enfrentamento (e superado) nao apenas de processos destrutives da atual etapa do capitalismo — por exemplo: a manipulagéo genética sem limites — mas, também, de enigmas relacionados @ atualizagdo da cidadania e da democracia (Badiou, 1994). Estes so conceitos que, por excesso de uso, tem sofrido elevado ~ puncvabiy sdesyaste, petiendaforpa_mobilzadora a _acdo social Esta perda — passer ett transparece no_descrédito na politica e na burocratizacdo de_praticas_ | een pot Semocraticas Wee Por outro lado, 0 amplo recurso a referéncias a democracia pelo pensamento hegeménico também conduz ao esquecimento da relevancia historica das lutas por cidadania, colaborando para a difusdo de um ideario democratico empobrecido, mais normative e controlador do que ot efetivamente expressive de anseios socials. De fato, as_versées mais | oor : ae usuais de cidadania e democracia evitam a problematica do sujeito, o que | gsm? fe & antagénico a qualquer projeto consistente de conquista e garantia de am Or? direitos se eae Afinal, cidadania e democracia pressupdem a afirmagao de sujeitos , | ue, individual ¢ coletivamente, lutem ff ireitos © por sua garantia. Sem le eat * s Aieitos, que articulem sociedade e politica, os direitos ou inexistem ou S80_ letra morta, sendo reproduzido 9 afa: i 2 Oxy jeriéncia social social \ conargia isis, © escamoteamento da problematica do sujeito corresponde & ne sy diftusdo de discursos tecnocraticos de democracia, onde a cidadania se e ° a resume a patticipaggo em momentos eleitorais, em féruns institucionalizados ou com relagao a questées consideradas legitimas pelo ee pensamento dominante. A difuséo desta leitura de cidadania e democracia acontece de forma simultanea ao movimento de globalizagdo da economia oA pore ) Quan (lanni, 1996). Ensaia-se, desta maneira, conter processos sécio-culturais politicos, potencialmente desruptivos, oriundos da desestabilizacdo social com origem na prépria dinamica do capitalismo © desenraizamento fisico e/ou cultural de grandes contigentes Eas oD populacionais, articulado a intensidade gJ fuxos materiis e imateriais, § #2) ome torna abstratas — e descoladas da vida social imediata — as referéncias 8 pardon democracia e & cidadania, Esta tendéncia dificilmente poderd ser contida © através de retomos saudosistas ao passado, onde os cédigos democraticos tantas vézes mais alimentaram o espirito das leis do que os 4] po corpos e a acdo social. E na conquista de concretude na defesa da /[ lemocracia que desejamos assinalar a relevancia da bioética Q Trata-se da possibilidade de que, por fim, surja 0 sujeito corponificado, isto €, que o sujeito de direitos — previsto e garantido em lei —se materialize em sangue, carne e cultura, permitindo a radical superagao do idealismo e do materialismo objetivante. A apresentagdo na ‘cena politica mundial do drama humano exigiré, assim pensamos, a efetiva realizaco de um movimento de superacdo, ou seja, 0 encontro de_uma pve siatese que retina corpo € espirite-tvalores © orientagao ética) na ° ue construgao da democracia, Acreditamos que o encontro desta sintese, pode ser altamente estimulada pela bioética, 6, inclusive, indispensa atualizagdo do humanismo, L Prag ko . ‘A homogeneidade estrutural do 0 — que sustenta do apenas da ciéncia mas, também, a solidariedade e a empatia com a os ye dor alheia — é portadora de elemer a ensaveis & | idéia de direitos. Por outro lado, a articulagdo da cultura (dos valores, do espirito) na percepeao do corpo, valorizando as diferencas individuais, também é indispensavel a renovagao da democracia através do respeito a diversidade. A articulagdo entre homogeneidade / igualdade e individualidade / diferenga constitui-se, sem divida, num dos mais relevantes elementos da problematica contemporanea do sujeito, trazida pelos movimentos sociais € culturais surgidos a partir dos anos 60 (Touraine, 1998). Movimentos que também refizeram idearios de cidadania em diregdo ao aqui € agora, ou seja, A exigéncia de que direitos sejam reconhecidos de imediato e nao apés a conquista da transformacdo politica da sociedade. O dialogo, a ser valorizado, entre movimentos sociais e 0 campo da bioetica emerge na relevancia atribuida 2 situ \ediatamente vivida, ou seja, a0 corpo em situacdo e, também, na Bfffeulacdo corpo-sujeito. A idéia de corpo-sujeito instaura, de forma ampla, 0 didlogo movimentos ~ bioética no nivel da cultura e da politica, possibilitando a reflexdo da qualidade das relagées societarias contemporaneas. O corpo-sujeito exige valorizagao do olhar interdisciplinar e @ ruptura tanto do idealismo quanto do materialismo éxarcebados "Wid frequentes na compreenséo dominante das necessidades humanas, Este didlogo movimentos-bioética adquire, assim, a virtual condicao de colaborar na resisténcia ao atual fechamento sistémico do mundo, conduzido pelo pensamento Unico — tecnocrético e economicista. E ainda apresenta, caso efetivamente fortalecido, a possibilfJe de contribuir no enfrentamento dos aspectos mais lesivos da denominada tecnociéncia, que constitui a forma contemporanea de produgao do conhecimento. Nas palavras de Edgar Morin (1996:9), propositor do conceito: “A ciéncia ndo é cientifica, Sua realidade & multidimensional. Os efeitos da ciéncia néo so simples nem para o melhor, nem para 0 pior. Eles sao profundamente ambivalentes Esta ambivaléncia exige, para 0 autor, a compreensaéo da complexidade, 0 encontro de formas de perceber e compreender que superem as barreiras entre disciplinas e praticas profissionais e, também, a iresponsabilidade generalizada advinda da nova forma de realizaco da economia. A tecnociéncia representa hoje a ocidentalizacdo radical do mundo, devendo ser incluida em qualquer avaliacdo séria da possibilidade de que a nova escala da economia venha a ser acompanhada por uma compreensao inovadora de democracia, plural e culturalmente rica. A ocidentalizacao do mundo, apoiada na tecnociéncia, desconstréi orientagdes culturais para construir um universo maquinico e artificial, Qn i) responsavel por exclusdes sociais radicais. Segundo Serge Latouche (1998:58): "A identificago do Ocidente com o ‘maquinario’ sécio-técnico- econémico coloca (...) um problema. Apesar_de o Ocidente nao ser universalizével_como ‘modelo_de_civilizagdo', enquanto ‘maquina’ ele € slicer parr aaceneae aaa -aeen aaeE reproduzivel” — gE reprodug3o maquinica de comportamentos considerados eficientes Jconstitui um resultado direto e um pressuposto da fase contemporanea do capitalismo (esciarecendo a relevancia da bioética pelo que representa de resgate, inclusive politico e filosofico, da pau humanista de valores.) A extensdo da tecnociéncia, sem reflexdo da complexidade, a completa ocidentalizagao da experiéncia social e 0 predominio do mercado resultam em objetivacéo do mundo, na rapida transformacao_de_sujeltos a em objetos @ de seres_humanos plenos em corpos aproximados de "idealzaben ida maquina sficiente, Neste contetol 6) umenia| = ressubjetivagdo das relagées societarias, onde, cabe salientar, novamente se aproximam movimentos sociais e bioética wt, © novo Estado de direito, que deverd incluir 0 exercicio da ow ve cidadania na escala mundo, pressup6e a valorizagao do humano genérico cs — questo que sustenta a reflexao ética — e 0 reencantamento do mund: © reencantamento da experiéncia humana (Maffesol, 1997), a ressubjetivacao das relagdes sociais e a superacdo da leitura do corpo como maquina ou vitrine dependerao da resisténcia oferecida a sedugdo exercida através das técnicas de manipulagao da vida social. le oo A necessidade da ressubjetivacdo das relagées sociais toma-se A\ey evidente quando observamos que a eficdcia e 0 desempenho adquirem predominio, como diretrizes da agdo considerada legitima, sobre a compreensdo e a empatia entre seres humanos. A exigéncia ideolégica de eficiéncia, descolada da ética, corresponde ao dominio, sem controle | oat emer Se ee ee pure Our ‘superado por boas inténgées ou leis abstratas, j4 que a superagao exige a eco eh troge emergéncia de um humanismo presentificado, de um humanismo praticado (Santos, 1967), de um humanismo afetivamente corporiicado, FY Os direitos humanos, reconhecidos a partir revolugao burguesa, precisar& economicismo_e _da_ot zt De_outra_forma, para isto, _suportar, transformando-se._a_presséo do peimanecerao, como afirma Alain Badiou (op cit), com um teor moralista, perdendo a sua influéncia sobre as praticas sociais e sendo utilizados, como instrumentos de controle, pelos paises hegeménicos e culturas dominantes E frente 2 esta necessidade de renovacdo da pauta humanista que a valorizagao dos vinculos entre bioética, movimentos e democracia podera contribuir na lena instauracdo de novas forcas sociais instituintes (Chaui, 1989), capazes de realizar 2 mediacao ativa entre experiéncias soci s e direitos garantidos e usufruidos, A racionalizagao do mundo (Morin, op cit) s6 sera contida através do debate direto da qualidade das relacdes societariaBYal debate pressupée o recurso permanente a ética e @ raz4o, envolvidas No exame € na critica da vida social imediata, A falta deste envolvimento traz como resultado pragmatismo efou sensibilismo; ambos incapazes de orientar a luta pela democracia e pela instauracao da esfera mundial de direitos. A raz8o encontra-se, hoje, duplamente ameacada: de um lado, pelo conformismo ao fechamento sistémico do mundo, @ desrazao (Morin, ic ib), @, de outro, pelo misticismo, A bioética representa, em contraste, uma possibilidade de resistencia & secundarizagéo do sujelto coletivo, percebida como inexoravel por aqueles que afirmam que a modemidade encontra-se superada. indo esta corrente de pensamento, aps a eclosdo das grandes a cientificismo, o sujeito aparece descentrado, inserido nas miitiplas facetas da vida social (Laclau, 1986; Lyotard, 1988). A propria multiplicagao de movimentos socials 2 partir eos arros 60, SUSTEMta Esta nha ‘A questéo mais abrangente dos sujeitos coletivos perderia, desta Was da modernidade, sustentas pelo evolucionismo e pelo 6tica, relevancia analitica, ao mesmo tempo em que a liberdade passaria a ser experenciada em jogos sociais cada vez mais plurais. As condigdes de Elio © Omuwek, ere sujeito se mesclariam a identificagées circunstanciais e fluidas. Os direitos deixariam, portanto, de ser generalizaveis, para serem, cada vez mais. 2 Nesta linha de pensamento, cuja sensibilidade para os processos “ noves € indubtével, a desinstitucionalizagéo das relacées sociais que caracteriza a contemporaneidade retiraria, crescentemente, substancia aos * sujeitos da modemidade. Negatividade e positividade conviviriam 6 expressdo de identidades segmentares, ee diagnéstico que aponta, ainda, para a crescente desestabiliza le arenas politicas institucionalizadas Esta seria a destruigao criativa do tempo presente, naquilo que conceme a reconfiguracao da vida politica. Tempo em que se mesclam ‘enormes perdas sociais e ganhos relacionados a liberagao de experiéncias @ protestos retidos pela modemidade, to marcada pelo controle da vida social e pela destruicéo da diversidade cultural. A crise da modemidade, neste sentido. @ do Ocidente, do seu prof Ciylizatorio A esta leitura — que em alguns dos seus angulos mais estimulantes permite, ao nosso ver, a critica 4 modemidade de dentro da er? propria modemidade — o campo da biostica responde ampliando 0 didlogo ese em tomo dos desatios do presente © atraves da proposta de uma possivel o-= preservar incdlume o discurso tantas a vézes autoritario e disciplinador da modernidade, Esta seria apenas a 20 seu esfacelamento ni forma conservadora, e até mesmo reacionaria, de enfrentamento dos desafios do presente A reflexividade, 0 poder mais extraordinario da modernidade que consiste na produgao reflexiva da propria experiéncia social (Giddens, 1990), permite ir além dos limites do pensamento conservador e do diagnostico politico da pos-moderidade. O corpo, assim coma o-espaca, __unifical_o isulefto"esfageiado, Ja que ekige” a consitesc#n—racional de, wes ultrapassavel da exclusividade pretendida por idearios que enaltecem . versées apenas estetizantes da vida social. Por mais que as Clinicas se assemelhem a shopping centers ou hotéis, ali continuam a acontecer a dor, 0 sofrimento e a morte. Por mais que 0 espetaculo do mundo seja transformado em imagens volateis, aumentam 0 medo, a violéncia e a inseguranga E, ainda, por mais que, por exemplo, 0s astros do esporte sejam transformados em pecas centrais de grandes interesses e envoltos em formas sofisticadas de monitoramento dos gestos, 0 corpo continua a ter as suas necessidades ¢ limites, como demonstram os joelhos de tantos ‘atletas, E neste nivel que a técnica alcanca a sua impoténcia, assim Tomo, © dinheiro. E também neste nivel, num outro exemplo, que o empresariamento da morte néo consegue fazer sorrir, por mais que funerarias procurem, agora, aligeirar 0 drama humano e reduzir os sentidos profundos da velhice A falta de resposta as indagagées do corpo, a sua finitude, e @ falta iar de resposta a finitude do espaco (da Terra, do corpo da sociedade), tem estimulado, como anteriormente dito, 0 crescimento do misticismo e da mistificagao da vida social. Afinal, 2 busca do sentido da_vida também orienta @ agdo social. A razdo ndo pode afastar-se desta busca, a menos que se aceite a completa ideologizacéo da vida coletiva, tornando secundaria a luta por direitos generalizaveis, Scenes Slay OX besos DeNereatea YS © campo da bioética, além de questionar 0 dominio das forcas sistémicas e sem controle da técnica e do mercado — e, portanto, a objetivagao do mundo —, resiste a fragmentacdo social, a fratura do tecido da sociedade. Ao acionar o humano genético e a possibilidade historica da ‘experiéncia empatica retine, ye~Corpo-sujeitd, 0 geral © 0 especifico, 0 ocorpo-sulelt Universal eo singular. Este corpe=que-restifa dos elos entre matéria e espirito, significa um firme caminho para a definicéo da pauta eee / poe a Além disto, no plano das praticas. 0 corpo-sujeito pode permitir a | resisténcia a reificagao mercantil da vida social, Trata-se, aqui, do possivel seiomo, culturalmente enriquecido—ac_tuno_identitario e politico. Q sno identitério_inscreve-se na face organica da existéncia, na vida percebida ¢ _ sentida, onde “somos © que somos” ¢ ndo a nossa traducéo em imagens} See re ev BSI guinformagges. O corpo da bioética alimenta e fortalece o uno identitrio._ uma vez que, reunindo sociedade e natureza, é sobretudo cultura e politica, ou jamais poderia ser almejada a sua aproximagao do sujeito de direitos Esta_é uma extraordindria_mutagao sociale politica, O corpo ingividdal, © corpo social (movimentos sécio-culturais) e © corpo coletivo fen (espace) surgem, agora, potencialmente reunidos na reflexéo de valores e_ , tv a préenchidos de forga sociale noliica Assim, a refiexividade, aberta pela Coe) modemidade, emerge como potgncia-deSer, permitindo transformar, trazendo-o para o centro da luta poF direitos, 0 corpo passivo (2 pac a ctiado pelo discurso competente (Chaui, op cit), pelas narrativa modemidade sue © corpo-sujeito precisa ser apreendido, assim, como ambito 11* reflexivo, material-espiritual, de uma nova cidadania. Esta possibilidade ge 7 possibiices ‘ versées imagéticas de sade, pelo monitoramento do corpo que o transformam em corpo-maquina, em eficiéncia desejada pura e integral ” © corpo-sujeito sofre, em seu processo de afirmagao ética e politica, antagonismos que precisam ser rompidos. Estes antagonismos manifestam-se. de um lado, em discursos e praticas que enfatizam o treinamento, 0 aumento do desempenho do corpo — mantido em seu status de corpo-maquina —, e, por outro, em representacdes falsificadas de prazer e bem-estar. Estes discursos, praticas e representacdes impedem a _afirmagao do corpo-sujeito, assujeitando-o as _malhas instrumentais das praticas mercantis. A_mistificagao_do corpo também encontra-se_relacionada ao i individualisme e, portanto, distante do debate de valores necessario & afirmagao do sujeito da bioética_ Esta ¢ uma tendéncia contemporanea que tem impedido a real socializagao do conhecimento do corpo e a construgao intersubjetiva da finitude da vida 6 esta tendéncia, indicativa da atual crise de valores, que torna a. tantas novas especializagdes profissionais, associadas aos males com origem na objetivagao da vida Por fim, poderiamos dizer que © corpo-maquina, estimulado pelo monitoramento da vida através das novas tecnologias, e o corpo-imagem decorrente da estetizagao da existéncia, constituem verdadeiros epicentros =} da alienagao contemporanea. E por isto que 0 corpo-sujeito da bioética adquire atualmente tanta relevancia A reflexo do corpo-sujeito conduz & formulagdo de algumas questées que consideramos especialmente importantes: () =a ioe! sociais, dificimente pode ser concebida como mais uma , em seus vinculos ativos com os movimentos Sspecializapao_profissional. Acsifar este enfoque sem Questionamentos significaria reduzir os seus significados culturais mais amplos, que excedem, envolvendo-os, a pratica médica e a pesquisa cientifica (i) = _0 como-suiaite nao deve ser substituido, a0 nosso ver, por especialistas extermos ao campo da satide: pelo fildsofo, pelo socidlogo ou pelo antropolégo. Estes profissionais podem colaborar, apenas, no discemimento e na defesa das condigdes de emergéncia do sujeito mas, nunca ocupar © seu lugar. Referéncias bibliogréficas Badiou A. Para uma nova teoria do sujeito, Rio de Janeiro, Relume- Dumara, 1994. Chaui M. Cultura e Democracia, Sao Paulo, Cortez, 1989, 4” ed Giddens A. 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Igualdade e diversidade: 0 sujeito democratico, Bauri EDUSC, 1998. Mareas do tempo: violéncia e objetivagao da juventude ‘Ana Clara Torres Ribeiro’ e Alice Lourengo”” “Paz & a possibilidade de nos sabermos sem rancor excessivo, faliveis. finitos, limitados, necessariamente ultrapassiveis. Ela exige, portanto, aceitagao — do que ¢ novo ¢ dessemelhante, pela conscignecia que devemos ter de que jamais possuiremos, a respeito de coisa alguma, a tiltima palavra” (Helio Pellegrino ~ A Introdugao: a experiéncia do presente As fases do ciclo da vida so podem ser refletidas através dos vincul entre geragdes, isto é, das praticas ¢ valores que conduzem a reprodugat social, sejam estes observados no plano imediato das familias ou no amago das relagdes Sociedade - Estado. Nas orientagdes culturais que estabelecem a periodizagao da vida, so reunidos impulsos estimulados pelo corpo a fungdes e papéis sociais Orton cn, afermores O ciclo vital envolve expectativas geradas em torno de uma certa temporalidade, que é simultaneamente aquela da existéncia individual ¢ a de | determinadas totalidades sociais: nagdo, regiao, classe social. Portanto, Ore mudangas na projego destas totalidades atingem a organizagao do ciclo vital, naquilo que envolve o investimento da sociedade dedicado a sua propria continuidade no futuro. E, aliés, nos vinculos entre existéncia individual e \ projegdes societarias que se insereve a atuagio das insttuigd} Entretanto, 0 teor do f|ovo economicismd) (Ribeiro e Silva, 1999) er — verencial, pragmatico e operacional — (Altera a natureza das instituigdes)_na Sy medida em que(fende a transpor a dinamica desejada para a produc : Gemporalidade especifica da reproducao social, que é eivada de memérias 5 lenta decantagao de vivéncias e gestos) E neste sentido que as transformagdes yee? dentroduzidas na organizago da economia tem se apropriado de espacos sociais C oly 2) OF _ pe Professora do Instituto de Pesquisa ¢ Planejamento Urbano ¢ Regional (PPURVUFRI ¢ Pesquisadora NP * Socidlogia, Bolsista de Apoio Técnico do Laboratorio da Conjuntura Social: tecnologia © territério (LASTRO) do IPPUR/UFRI gue guardavam, até recentemente, relativa autonomia'. Tal apropriagao (manifesta-se através de mudangas no ensino ¢ no trabalho e, ainda, na difusio de atitudes tecnicamente codificadas, monitoradas avaliadas.] Sem divida, a sociedade brasileira tem recebido, de forma intensa ¢ desigual, 0s impactos de um vasto movimento de atualizagao das relagdes societarias, que Milton Santos associa a difusdo das inovagdes teenolbgicas, & slobalizagio dos circuitos produtivos e a gceleragao da vida social, que € mals 1996). A forga adquirida pelo intensa_nos_paises_perifrigos (199%: 97 movimento de atualizagao” apoia-se na expansdo da industria cultural, que ocorre associada a gestdo politica ¢ cultural dos mercados. 2 ‘A atualizagao pode ser melhor interrogada através dos seus efeitos na co “juventude”, cujas fronteiras etarias nao sao idénticas nas diferentes classes sociais € conjunturas. Com relagaio ao jovem, refletido de forma_genérica, pode-se afirmar que as exigéncias trazidas pelo Gijuste A mudanga ‘contempordnea criam crescentes obstaculos a projegao da vidal De fato, a énfase no imediato e no instantaneo, estimulada pela técnica e pela gestdo hegeménica de recursos, alimenta, com novos contetidos ¢ significados, representagdes sociais da experiéneia de “ser jovem”; assaciando_—esta experiéncia, 4 agilidade, 4 velocidade ¢ aos riscos impulsionados pela propria técnica, como indicam os esportes radicais, apoiados em instrumentos ou no controle, desejado absoluto, do corpo (Ribeiro, 1997). ite Constata-se, através do monitoramento do corpo, a manifestagao de comandos da nova economia, conduzida pela relevancia atribuida a administragéo ¢ pela conseqitente exaltagdo do desempenho e da eficacia® "Nas palavas de Leila Linhares Basted (1999-75) “A trnsformago do cidado em consumo «a retvete te etnotgs a esse novo status exclu fda a popula que no pode ser serva do mercado, © formnalisnne srriicn costuma utlizar a expresso “0 que no esti nos autos nfo pertence ao mundo’ para exe falquer clemento intolerivel 4 logica processual. O formalismo econo ) entende que aquele que ‘esta io mercado ndo pertence ao mundo, desumanizando os sujeitas $0 cy ada nove acontecer a5 coisis preexistentes mudam o seu conteido e também muda 8 significagio (.) Na verdade, os eventos mudam as coisas, transformam os cbjetos, dando: Nes, Wt A) aatrreree” govas caracteristicas(.. Diane da nova historia ¢ da nova geografia é 0 nosso saber que nen, ont calve, cabendo-nes reconsirUi-lo através da percepgio do movimento conjunto das coisas ¢ dos eventos (Santos, 1996: 116, 117) + -ayjesmo sem estar doente, tomamse produtos para dormir, ficar desperto, em forma, tornar-se enefsive inathants a meméria, © rendimento, suprimir a ansiedade, o estresse, ete, O que equivale a ouiras tants proteses quimicas para um corpo percebido como deficienle em vista das esieinelay do. mundo Eontemporineo, para que cle permanega alerta num sistema cada vez mais ativo ¢ expen (© corpo deve froduit as emogoes exigidas Sem hesitr. Nao se trata de cada um se ater ans limites do seu humor, mis de program+-lo” ~ David Le Breton - “O fim do corpo” Jornal do Brasil 17/9/01 Nesta mesma diregao, num rapido exame da industria cultural, pode ser visualizada a “pinga” dirigida as novas geragdes, que €alfamente seletiva: numa de suas pontas, a da infincia, antecipa-se a representagdo de papéis antes restritos 4 idade adulta, que, em verdade, so papéis desempenhados de forma crescentemente insegura. E, na outra ponta, promete-se 0 alargamento indefinido da juventude, idealizando-a em sua capacidade de acompanhar 0} ritmo da modernizagao econdmica. Falsas certezas convivem com incerteza produzida, valorizada e, até mesmo, enaltecida. Assim, (fa periodizagao da vida, limites tem sido manipulados e alterados, como se 0 individuo pudesse suportar a continua modificagao de necessidades e anseios:] Também a promessa do rejuvenescimento,\este ambiguo produto da técnitar (des)organiza 0 diilogo inter-geracional, da mesma forma que, de outro Angulo de observagao,(@ produgao estudada do erotismo desfigura sentidos da adolescéncia e da juventudé)Em sintese, pode-se dizer que 0 grescente nto_de_proces economia, transforma a representagdo do tempo da existéncia individual ¢ coletiva, aproximando-o, idealmente, daquele da técnica digital, que, ironicamente, recebe a denominagao de “tempo real”. Este tempo, que é 0 do artificio, introduziu intengdes de exatidao e quantificagao absolutas nos calculos da existéncia. Trata-se, aqui, da[possibilidade de manipulagao da experiéncia subjetiva do “ser jovem”, na qual So envolvidas faixas etarias heterogéneas:\No mesmo sentido,{a temporalidade das técnicas atinge a projegao de totalidades sociais, tentando submeté-las ao ritmo dissolvente da presentificagao (Santos, 199 Exemplificam este processo, orientagdes gerenciais que, desobrigadas “do planejamento de longo prazo, enfatizam metas que buscam a fragmentagao elou a subordinagao de condigdes herdadas, sejam elas contextos sociais ¢ institucionais, regras morais’, formas de organizagao da experiéncia de classe ou corpos — mentes”. © Nesta diresao, pode ser citado o contratualismo como orientagio da moral hegeménica ¢ os seus limites. Nas palavras de Emst Tugemdhat (1996; 82): “O contratualismo é, portanto, uma posigo, minimalista perfeilamente real e em condiglo de se manter. 6 que nao alcanga muito Tonge (..) © contratualismo contém fambém um sentido vélido de fundamentagio ~ cada qual fundamenta para si, que ¢ racional para ele submeter-se, contanto que os outros também estejam preparados para tal ~ mas isto nao ¢ a fundamentagao de fuma moral (..) Para aquele que tem um lack of moral sense (falta de sentimento moral) seja por motives patologicos, seja por decisio prépria, a quase moral contratualista permanece naturalmente sempre possivel © hecessiria, uma vez que cla no pressupe uma consciéncia, Pode-se assim dizer que ela é a moral daquele {que nao tem do moral” 3 Leila Linhares Barsted (op cit:70) chama a atengdo para 0 fato de que “Noam Chomsky , tendo como cenirio os Estados Unidos, uilizou a expressto ‘a palavra que nio se menciona’ para explicar a rejcigao ou © “apagamento” da categoria “classe” nos discursos hegem@nicos daquele pats” Antecipagao e objetivagao: 0 que esperar? Novos elementos culturais tém colaborado na racionalizagao do descarte de segmentos das classes populares que, embora jovens, nao se ajustam as molduras simbélicas da juventude ¢ nao interessam aos comandos da gestao da economigyom estas rapidas palavras, indica-se que os processos envolvidos no(acesso-a idade adultap, portanto, a construgdo cultural do envelhecimento, contém, —atualmente, (pressdes, contraditérias — quase avassaladoras}) por um lado, a navegagao né incerteza, que constitu a alavanca da fase contempordnea do capitalismo, e, de outro, { exigéncia de adesio]a crengas que orientem a relagdio presente => futuro e, portanto, a afirmagdo num mundo comandado pela competitividade e pelo individualismo (Santos, 2000). Nao surpreende, portanto, que aumente rapidamente, ¢ nao apenas nas classes populares e nas faixas etdrias vinulaveis tradicionalmente a juventude, ( adesao a crengas religiosas ruidefJstes fornecem um terreno de ccertezas praticas e operacionais em diregao ao Tuturo — concebido, inclusive, para além da vida ~ e, ainda, para o presente, afirmando-se como um possivel caminho para a aceitagao da caréncia e da dor e, também, como codigo para a identificagao de “comunidades” em contextos societarios em crise®, Nas palavras de um jovem de dezessete anos, morador do Complexo da Maré: “Eu me sinto morando numa comunidade. Eu me sinto muito bem morando numa comunidade. Eu nao chamaria isso aqui de favela. Apesar de tudo que tem, 0 que acontece, eu nao chamaria de favela mesmo”, ‘A vivéncia da incerteza tem limites, por mais que 0s novos dministradores afirmem o contrario, ao transferirem elementos da dinamica io mercado para_a conduta esperada dos individuos ¢ das coletividades (Ribeiro, 1998),/No estimulo a rapida adesao a valores “seguros”, comungam contraditérias tendéncias culturais e imagens: )desde a fisionomia do fabsolutamente novo, que encobre mentes conservadoras, até o abrigo em © Giacomo Marramao (1997), a0 refletir 0 fendmeno da secularizacao, valoriza a obra de Peter Berger. Este amor teri salientado que “quanto mais avanga, mais 0 processo de secularizagio “modemizagao’ de deregados.sociais humanos se defronta com insuperiveis limites (..) (inclusive) limites imternos’ (-) derivados prineipalmente da necessidade de sentido que experimentam os individuos e os grupos sociais nreoossidade que emerge diretamente das experiéncias de ‘frustraglo’, da crise permanente de ‘identidade’ ¢ do deficit de integragao comunitiria” (p.103). aparéncias rigidas, que oculta mentes envoltas em desespero e inseguranga Nas palavras de uma depoente’ que teve o seu filho assassinado pela policia: “Para mim, depois que ele morreu, eu até falei, meu Deus, esse menino o senhor me deu emprestado porque foi um menino que s ficou dezesseis anos aqui na terra comigo. O senhor levou. Eu, entao, me conformo” ‘A adesio a valores considerados imutaveis constitui a contra-face esperivel da objetivagao do outro e da veloz modernizago em curso da sociedade brasileira, que acontece sem promessas convincentes de integragao social. Esta adesdo indica impossibilidade de reflexdo transformadora do sentido ético da vida, 0 que constitui um dos custos sociais mais altos, ¢ nado contabilizados, da mudanga econémica. Como suportar a construgao inovadora de valores, que sempre exige © questionamento de expectativas, face a inseguranga, 4 morte dos filhos ¢ a redugao do futuro coletivo ao presente amplificado? Como enfrentar, sem nenhum alivio espiritual, a objetivagao incessante da existéncia que decorre da afirmagao, sem peias, do modelo de subjetivagaio e de individualizagao das elites? Nas palavras de Jurandir Freire Costa 1997: 71, 72): “(..) da. perspectiva destes individuos (pertencentes as elites brasileiras), os pobres e miseraveis so cada vez menos percebidos como pessoas morais (...) Os que estdo no topo da hierarquia social nao vém os que desprezam como adversarios de classe, interesses ou costumes. Vém neles uma sorte de Gsiduo social inabsorvivel, com o qual se deve aprender a conviver, a condigao de poder puni- lo ou controla-lo em caso de insubordinagao. Em suma, as elites nao mais de preocupam em legitimar os valores de sua visio de mundo” ] ‘tual modernizagao trouxe, portanto, algo novo: a anulagao do outro, desacreditado, inclusive, como opositor ¢ a possibilidade de que a politica, em seus elos com a economia, se realize sem 0 controle social decorrente da busca de legitimidade{&J mais, que a politica, assim realizada, possa ser considerada como 0 limite da democracia. Sabemos, porém, que@ poder exercido sem esforgos de legitimagao significa, necessariamente, violéncia.\) Testa entrevista © as dems ctadas neste texto, realizadas em 2001 com paricipantes do Programa Jovens Pela Paz do Governo do Estado do Rio de Janciro, fazem parte do acervo da pesquisa “Micro-conjuntura informagdo e oportunidad nas metropoles brasileiras”, desenvolvida com apoio CNPq no IPPUR/UFRI. pe pale > eae De fato, observa-se, hoje, a simbiose entre o maximo de artificialismo na configuragao do meio geografico, prometendo a superagdo de todas barreiras materiais a experiéncia completa da vida, ¢ a maxima objetivagao do outro’, isto é, a sua redugao a atividades e atos, em qualquer esfera da vida social. E nesta direg’io que Jurandir Freire Costa analisa 0 alheamento das elites: conseiéncia da qualidade violenta dos seus atos. Se o possivel objeto da violéncia nada tem a oferecer-Ihe, entéo nao conta como pessoa humana e pouco importa © que venha a sofrer; se, ao contrario, tem algo que interessa ao violentador, sua tinica qualidade relevante € a de ser suporte dos objetos ou predicados desejados, ¢ 0 que quer que Ihe acontega é igualmente irrelevante para quem deseja apenas apropriar-se daquilo que cobiga. Ao contrario da crueldade inspirada na rivalidade ameagadora, real ou imaginaria, a indiferenga anula | quase totalmente o outro em sua humanidade” (op cit: 70.71) |] ems estado de alheamento, o agente da violéncia nao tem A acelerada atualizacdo da vida social estimula o aumento da indiferenga e do conformismo, inclusive no que concerne ao exercicio de papéis tradicionais, mesmo que vividos de forma limitada ou, apenas, ansiada. Contém elementos de ajuste certeza possivel, o fenémeno da maternidade na adolescéncia nos setores populares, que nao pode ser atribuido apenas @ 3): desinformagao, como salienta Diana Dadoorian ( 1994: 3 “Nas classes populares, esse somadesejo (gravidez hormonal) se traduz, freqiientemente, no desejo positivo da adolescente de ter 0 filho. A gravidez hormonal se transformara numa_ gravidez ‘simbolica’, isto é, numa maternidade precaria. Apesar das condigdes econémicas ¢ sociais desfavoraveis (...), 0 desejo de ter 0 filho era predominante entre essas jovens, sendo necessario localizar a origem desse desejo (...) As jovens mies entrevistadas (...) relataram que 0 filho representa “tudo” para elas, que desejam 0 melhor para eles, que eles estudem. trabalhem ¢ que nao Ihes falte ada”. A historia da humanidade parte de um mundo de coisas em conflito para um mundo de ages em conto. No inicio, as agies se insialavam nos interstices as Forgas nalurais, enquanio hoje & o nana que acu Gis intersticios. Antes, a sociedade se instalava sobre lugares naturais, pouco modificados pelo homem, hoje, os Gventos naturais se 20 em lugares cada vez mais artificiais, que alteram 0 valor, a significagio dos acontceimentos natursis” (Santos, 1996: 117). ‘A expansao desses processos indica crise societaria, que impde a condugao da reprodugao social, de forma predominante, no aqui e agora. Esta é uma condigao da vida coletiva que abre caminho para a inovagao cultural, ja que possibilita o abandono de memorias ¢ narrativas; porém, que exige. sobretudo, a conduta controlada, 0 ajuste ao imediato, o alheamento ¢ a indiferenga. Nas palavras dos jovens depoentes: “(...) eu ja perdi varios amigos porque trabalhavam, mas no: final da semana sempre faziam alguma coisa a mais pra poder obter um dinheirinho a mais, ¢ nisso acabaram falecendo”, “(...) eu tive muitos amigos que trabalhavam. ‘estudavam, comegaram a sair da escola pra poder ficar na bagunga & hoje em dia nao sao mais vivos”. O que significa esta experiéncia, em suas conseqiiéncias de longo curso, na formagdo da juventude das classes populares? Como mapear os efeitos subjetivos da impossibilidade de dignificar a morte de amigos, quando: ‘ainda constata-se que instituigdes, que deveriam proteger a vida, também a ameagam? “£ dificil eles (a Policia Militar) transmitir seguranga porque, no caso, os vereadores, presidentes, falam ‘a gente ‘botou mais de 500 mil homens na sua comunidade para transmitir mais seguranga” Mentira. Coisa que a gente nao ta tendo é seguranga porque, antes, bem ou mal, a gente ficava na rua tranqililo. Agora, €é dez horas no maximo, a gente tem que estar dentro de casa. Porque a gente corre © risco de ser parado no meio da rua, de ser espancado, de forjarem, botar alguma coisa e dizer que a gente tava, fumando, alguma coisa assim” (jovem de dezoito anos, morador em favela do Rio de Janeiro), A experiéncia do presente é portadora, para esses jovens, de destrutivas e, até mesmo, fatais ameagas, que envolvem, constantemente, as tentativas de construgdo da_identidade. Compreende-se, portanto, que a religido e a sociabilidade adquiram um carater instrumental na_ garantia da propria sobrevivéncia. Afinal, a identidade encontra-se em risco. A qualquer momento, a leitura social do individuo pode ser invertida e transmutada em argumentos que justificam a exclusdo ea morte: “Eu cresei aqui, infancia, adolescéncia, ta sendo tudo aqui. Entdo, no adianta nada eu sair daqui pra me mudar e ir pra um lugar pior, entendeu? E igual seguranga: eu me sinto seguro aqui (isto apesar da anterior referéncia @ agao da Policia Militar). Nao adianta nada eu ‘sair daqui e ir pra outro lugar e la eu nao me sentir seguro porque as pessoas ndo me conhece. Por mais tempo que eu fique la, as pessoas nao sabem como foi a minha vida, como eu cresci, como foi a minha educagao. Aqui, as pessoas que me conhecem sabem como a minha mde me educou, sabem como é que nos somos” Fragmentos do espelho: identidade e subjetividade ‘A juventude tem sido 0 objeto de sucessivas mitificagdes. A propria abstragao da categoria juventude, hoje cada vez mais manipulada, impede o mapeamento cognitivo indispensdvel 4 sua transformagao em sujeito. A juventude como esperanga constitui, desta otica, uma representagao social que possui a dupla face de consolar os mais velhos, ja que thes atribui relevancia pedagégica, e de exigir dos mais jovens que reduzam o sua anulagdo no presente. Porém, como preservar até mesmo esta representagao, também ela impeditiva da condigao de sujeito, frente ao império do instantineo e do fugaz? Apenas a articulagao do “ser jovem” a outros elementos da cultura e, especificamente, das identidades sociais pode permitir o aleance da condigao I de sujeito. Entretanto, o aumento da violéncia, cuja complexidade nao deve ser reduzida'', tem estimulado a difusao de novas representagdes sociais que, por vezes, engolfam investimentos identitarios em leituras rapidamente consensuais da realidade social, tal como a que decorre do uso generalizado da dicotomia violéncia (qual guerra?) e paz (que paz, como indaga o Rappa?). Uma paz sem projeto? Uma paz que reproduz a naturalizagao do “ser jovem™? Uma paz em que o violento, a qualquer momento, pode ser aquele que protesta contra a violéncia? ‘Nas palavras da mae antes citada: “Eu ndo vou dizer que vai haver paz. Paz é pra aqueles que estao ali lutando com Deus, na presenga de Deus. Essas pessoas tém paz. Mas essas pessoas que esto no mundo, aonde elas vao encontrar a paz? Se vem um fala de matanga com ela? Agora, a senhora analisa 0 cristio e o incrédulo, O inerédulo vai falar de matanga. O cristo vai falar de matanga? Nao, vai dar uma palayra, so Jesus...” Desta forma, para a depoente, nao ha paz, a nao ser aquela dos cemitérios e a transmitida pelo discurso religioso. Também para os jovens entrevistados, a percepgao de paz tende a estar circunscrita as relagdes upiiterpessonis e a referéncias muito proximas do cédigo religioso, como MP indicam as seguintes afirmagdes: “Paz é nunca desejar o ruim para o ae proximo”: “Como alcanga a paz? Sendo feliz. Desejando a felicidade para o "yur proximo”. Por outro lado, a percepgdo mais forte da violencia € daquela que gi acontece no lugar de moradia, através das facgoes do trafico e da agdo da policia. Além disto, esta é uma juventude para a qual a vivéncia da sexualidade chega carregada de risco, de ameagas de doenga e morte. Desta maneira. ‘| violéncia, que a cerca, também foi introduzida no prazer. Como nao buscar a realizagdo mais rapida da vida? Como nao concordar com 0 possivel? Uma destruigdo invisivel acompanha a destruigao visivel. A auto-protegio explica a redugdo da experiéncia social, que termina por concretizar, ao nivel da relagdo individuo - sociedade, a fragmentagdo da sociedade. O fendmeno da (4 | fragmentagao precisa ser reconhecido nos processos que constroem a |} * identidade social. Nao basta analisa-lo ao nivel dos macro processos econdémicos e espaciais. A juventude ameagada e limitada tem sido envolvida por recorrentes imagens de amor romantico, como a veiculada, por exemplo, pela_miisica sertaneja, grande difusora de simbolos de “bom comportamento” ¢ de caminhos para a acomodagao. Estes simbolos alimentam a existéncia banal e correspondem_a arranjos emocionais imedistas. Trata-se do que poderia ser chamado de[massificagdo do senso comunt_jjue dele retira a sagacidade ¢ as taticas que constituem verdadeiros € ricos adervos da experiéneia popular, tao sistematicamente desvalorizados pela cultura dominante. Impede-se assim, por diferentes caminhos, que a construgdo identitaria do jovem das classes populares seja alimentada por auténomas € divergentes configuragdes de sujeito. Esta possibilidade encontra-se circunserita, na sociedade brasileira, aqueles cuja subjetividade € valorizada e, até mesmo, exarcebada, ou seja, 0 jovem de familias que tem renda suficiente para permitir que a inseguranga e a incerteza sejam vividas, em algum momento, como conquista subjetiva e como decisaio pessoal, frente a um quadro heterogéneo e conflituoso de valores. A sociedade que surge da reunido dos fragmentos do “ser jovem”, realizada neste texto, apresenta um estranho desenho, formado por tragos longitudinais de preces, rigor, familia e papéis tradicionais. A estes tragos sobrepdem-se perfuragdes € estilhagos em cenarios de restritas comunidades” e valorizados grupos de referéncia. Acredita-se que, neste desenho, escondam- se sérios desafios a competéncia dos formuladores, atuais e futuros, de politicas sociais. Estes desafios atingem, para além destas politicas, a concepgao de cidadania e de democracia que precisa ser defendida hoje. Trata-se da (re)construgdo indispensavel da comunicagdo —_ inter- segmentos sociais, através da_valorizagao do convivio em arenas que estabelegam a possibilidade de conflito entre classes geragdes. Assim, a integragdo social vislumbrada nao é aquela que procura preservar os mitos da juventude ou criar rapidos e duvidosos consensos; mas, a que podera advir da plenitude da politica e do respeito ao outro, inclusive em sua digna face de opositor Talvez a esperanga navegue em aguas subterrdneas, ocultas para aqueles. que permanecem presos 4 aparéncia dos fatos, as imagens mais obvias permitidas pelos arranjos de fragmentos precariamente vislumbrados. E neste diregdo que Hélio Pellegrino convida a pensar: “© ser humano é, desde sempre, um criador de mitos. O mito esta. para a alma assim como 0 lengol subterréneo esta para a superficie da terra. Se cavarmos o chido, vamos encontrar, nas camadas profundas, a agua que canta. O mesmo ocorre com relagdo a geologia da mente. Por debaixo da crosta de adaptagao ao cotidiano utilitério, tantas vezes arido e desfigurado por ansiedades estéreis, corre o rio perene de onde brotam as fantasias criativas da alma, E dele que nos chega o pasmo de nos acharmos, diante do real, como quem escuta 0 oceano povoado de vozes. Quem nos chama?™ (1988: 190) Quem chama 0 jovem? E 0 jovem, a quem chama? Talvez aqueles que enriquegam o seu imagindrio, garantam 0 seu auto-respeito, favoregam a ampliagdo de sua experiéncia social ¢ que, sobretudo, reconhegam a sua condigaio de sujeito. Este é um caminho acidentado, como afirma Jorge Luis Ferreira de Almeida (2001), como é aquele da conquista da cidadania no Brasil. Ha que se resistir ao emudecimento do outro, @ sua transformagao em objeto, a destruigiio de sua visibilidade nos espagos piiblicos. Hoje, mais do que ontem, a fala de protesto é destruida, através de sua facil associagao ao comando do trifico, a ilegalidade. Esta € uma forma especifica de violéncia, que submete as classes populares aos que se apropriam de seus espagos ¢ da vida dos seus filhos. Esta forma de violéncia submete, os que protestam, a mediadores que legitimem a sua fala e que transmitam os seus sentimentos. Trata-se de um aprisionamento da experiéncia politica, que ¢ alimentado por uma real conspiragdo do siléncio, que precisa ser denunciada e rompida. Nela, mais uma vez, cria-se 0 circulo vicioso da exclusio: se me calo, submeto-me ¢, se falo, sou submetido. E nesta diregao que se oferece a leitura de mais um, tltimo, depoimento: “(..) a maioria das vezes eles falam que esses protestos so feitos por traficantes, Ento, quer dizer, eles nao dao a minima. Fiz um protesto pro bem do meu tio (acusado de envolvimento com o trafico de drogas) em frente a delegacia. Levamos muita gente. Isso levou a nada: ‘Olha 14, ta vendo, ele é tao conhecido ta dentro que até protesto tao fazendo pra liberar ele, pra tu ver como o cara é quente’. Tudo € motivo pra poder incriminar a pessoa, nada € a defesa, tudo sempre é contra”. { - ALMEIDA, Jorge Luiz Ferreira de — 200] — “Maquina perversa: como ‘se produz pobres politicos”. Dissertagao de Mestrado, IPPUR/UFRJ

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