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Crescimento populacional e desenvolvimento

sustentável

Population growth and sustainable development

Daniel Joseph Hogan

Professor do Departamento de Sociologia, coordenador do


Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais e pesquisador do
Núcleo de Estudos de População da UNICAMP

RESUMO

O artigo trata da inter-relação entre população, meio


ambiente e desenvolvimento, com uma ênfase especial na
noção de "capacidade de suporte". As formulações mais
simplistas dessa noção — que reduzem o problema à
pressão populacional quantitativa sobre os recursos
naturais — são rejeitadas. Para ser útil aos estudos
demográficos que levam em conta as perspectivas
ambientais o conceito deve ser empregado em unidades
mais desagregadas de pesquisa.

ABSTRACT

The interrelatioship between population, environment and


development is discussed with special emphasis on the
concept of "carrying capacity". The use of this concept as
merely concerning population pressures on natural
resources is rejected. The author claims that to be useful
for demographic studies talcing into account environmental
perspectives the concept should be applied to research
units with a lower level of aggregation.

As inter-relações entre população, recursos naturais e


desenvolvimento há muito têm sido objeto de preocupação
social e de estudos científicos. Da mesma maneira, a
preocupação contemporânea de promover o
desenvolvimento de países "subdesenvolvidos" tem, desde
o seu início, tomado como fator primário de planejamento a
base dos recursos naturais, e esse interesse secular tem
sido sistematicamente incorporado à naálise. A perspectiva
do meio ambiente, entretanto, trouxe uma nova dimensão
ao estudo dos recursos, que são agora reconhecidos como
mais do que um simples ponto de partida na equação do
desenvolvimento. Esta preocupação tem sido expressa
repetidamente durante as últimas duas décadas e hoje é
amplamente aceita.

Os planejadores e estudiosos de população, no entanto,


demoraram para traduzir tal consenso em modelos de
população, recursos, desenvolvimento e meio ambiente,
capazes de orientar as intervenções governamentais. De
uma parte, o fantasma de Malthus limitou a discussão a
uma questão de pressão quantitativa sobre os recursos
naturais e inibiu a pesquisa e a ação por parte daqueles
que não aceitam uma formulação tão simplista. De outra
parte, a análise ambiental exige uma perspectiva
interdisciplinar ou transdisciplinar que também demorou a
aparecer. Não é suficiente adicionar um ecologista à equipe
de ministérios de planejamento, ou aos centros de estudos
populacionais. O que é necessário é nada menos do que
uma reorientação completa do pensamento sobre o
desenvolvimento. Entre outras demandas, isto implica a
absorção dos conceitos ecológicos básicos por todas as
diferentes disciplinas que direcionam sua atenção aos
problemas de desenvolvimento. Considerando a
abrangência deste desafio, não é surpreendente que a
integração da dimensão população/meio ambiente no
planejamento do desenvolvimento ainda esteja em estágios
iniciais.

O presente texto procura delinear alguns conceitos com os


quais poderemos entender melhor a inter-relação
população/meio ambiente/ desenvolvimento. Uma atenção
especial é dada à idéia de "capacidade de suporte".
Enquanto este conceito vem há tempos sendo usado no
discurso sobre o desenvolvimento, versões mais elaboradas
(por antropólogos, por exemplo) não se orientaram para
uma direção que contribua para a formulação de políticas.

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

O conceito de desenvolvimento sustentável, como o de


desenvolvimento em si, tem uma ressonância importante
em sociedades contemporâneas — de Norte a Sul — que
lhe dá um status auto-evidente e não questionado como
uma idée force central às vésperas do novo milênio. Duas
importantes conferências das Nações Unidas (1972 e 1992)
e um grande número de outros eventos, debates, estudos e
publicações tornaram o termo um lugar-comum no
vocabulário atual. Este fato expressa uma consciência
ambiental crescente unida a uma preocupação pelo
crescimento econômico em países menos desenvolvidos. O
relatório Brundtland, Nosso Futuro Comum, talvez seja o
documento mais representativa desta nova consciência.1

É claro, porém, que "sustentável" e "desenvolvimento" não


significam a mesma coisa para todos. A redução do
consumo material em países desenvolvidos e entre as elites
dos países subdesenvolvidos, a fé no progresso tecnológico
para soluções ambientais, os apelos a um crescimento
populacional zero ou negativo, a defesa da justiça social
como pré-requisito para o desenvolvimento sustentável,
uma preocupação com as gerações futuras, a confiança no
desenvolvimento de novos substitutos para os recursos
escassos versus um vigoroso e abrangente programa de
reciclagem: todos estes temas se misturam de várias
maneiras para originar perspectivas de "desenvolvimento
sustentável" diversas e até conflitantes. Dessa forma,
enquanto a Comissão Mundial de Meio Ambiente e
Desevolvimento enfatizava uma resposta "às necessidades
do presente sem comprometer a capacidade das gerações
futuras de satisfazer às suas próprias necessidades", a
perspectiva latino-americana incluía a necessidade de um
desenvolvimento "que distribua os benefícios do progresso
econômico mais igualmente".2

Está faltando até mesmo um consenso quanto ao próprio


termo — desenvolvimento "sustentado" ou "sustentável". O
frequente intercâmbio destes conceitos esconde uma
diferença fundamental de perspectiva. A noção de
desenvolvimento "sustentado" traz à mente as teorias do
desenvolvimento econômico direcionadas à elaboração de
estratégias para romper os laços tradicionais de
organizações políticas, sociais e econômicas, com o objetivo
de atingir um crescimento econômico autônomo. Estas
teorias não contemplaram os limites do crescimento,
acreditando no otimismo pós-Segunda Guerra Mundial
acerca das possibilidades de expansão do conforto material.
Algumas preocupações ambientais hoje foram incorporadas
a tal pensamento, mas frequentemente como meros
conjuntos de variáveis a serem computadas na equação de
desenvolvimento. Para tal visão, precauções devem ser
tomadas para assegurar a provisão contínua de matéria-
prima e energia; os custos das medidas necessárias
precisam ser incluídos no sistema; e a qualidade de vida é
vista à luz do equilíbrio ambiental. Não são questionados,
entretanto, os valores colocados na continuidade da
expansão econômica característica do nosso século. E
preocupações com a justiça social, com a democracia
participativa e com satisfações não-materiais são
frequentemente vistas como pertencentes a outras esferas
de ação.

Vozes mais críticas—do movimento ambientalista, por


exemplo —questionam a compatibilidade de tais ideias de
desenvolvimento "sustentado" com o desenvolvimento
"sustentável". Caminhamos muito desde as declarações
iniciais do Clube de Roma que teria congelado os padrões
de vida materiais — com suas grandes desigualdades
internacionais — nos níveis de 1972.3 Hoje todas as versões
de desenvolvimento sustentável reconhecem a necessidade
de se elevarem os níveis de vida — necessariamente
aumentando o consumo — em países menos desenvolvidos.
Em uma situação de pobreza extrema, "o indivíduo
marginalizado pela sociedade e pela economia nacional não
tem nenhum compromisso de evitar a degradação
ambiental, uma vez que a sociedade não impede sua
degradação como ser humano".4

Mas a meta de elevar o padrão de vida em países em


desenvolvimento une-se hoje à necessidade de um
consumismo decrescente nos países desenvolvidos. The
Action Plan of the World Declaration on Survival, Protection
and Development of the Child, por exemplo, chama a
atenção para a necessidade da transformação dos padrões
de consumo em países industrializados.5 Os esforços para
aumentar a eficiência energética e a reciclagem de
materiais são vistos não como respostas finais mas como
passos iniciais em direção a uma redefinição do progresso e
do bem-estar. A implicação destas metas é a de que os
países desenvolvidos precisam procurar uma economia em
equilíbrio (steady state economy) e que um
desenvolvimento orientado por objetivos de crescimento
constante hoje não representa o modelo ao qual aspiram os
países em desenvolvimeto. Gallopin, por exemplo, insiste
em dizer que "...o desenvolvimento existente na região é
ecologicamente insustentável e portanto inviável ao longo
prazo".6 O desenvolvimento sustentável redefine o
desenvolvimento e exige mudanças de longo prazo tanto na
organização econômica do Norte quanto na do
Sul. Importantes forças culturais centradas nos valores
7

ocidentais do individualismo, do significado da vida e do


que é que dá satisfação ao homem, são temas recorrentes
nesta discussão. Em particular, o conceito de necessidades
humanas (básicas/não-básicas e materiais/não-materiais)
requer elaboração e uma ampla discussão para poder
redirecionar os esforços de desenvolvimento.
O conteúdo do desenvolvimento sustentável será
encontrado em uma melhor compreensão do conceito de
necessidades.8 A superação de problemas ambientais
exigirá mudanças fundamentais na organização social, e
não simplesmente a introdução de pequenas modificações
técnicas.9

Sem pretender a elaboração de uma teoria abrangente de


desenvolvimento sustentável, que desse conta das diversas
preocupações já mencionadas, é possível expor vários
aspectos pertinentes ao contexto latino-americano.10 Estes
aspectos servirão como pano de fundo para a discussão da
relação população/recursos que constitui a maior parte
deste texto. O desenvolvimento sustentável implica
crescimento direcionado à satisfação de necessidades
humanas básicas, usando tecnologias e matérias-primas de
maneiras que garantam que os recursos naturais
continuarão disponíveis para o usufruto e a produtividade
das gerações futuras. O desenvolvimento sustentável
envolve a confiança na ciência e na tecnologia, que
continuarão a encontrar novos usos para os recursos
conhecidos; a descobrir novos recursos na riqueza genética
não-catalogada das florestas, oceanos, pântanos, rios,
montanhas e planícies da região; e a desenvolver técnicas
para a manutenção e reprodução destes recursos.

O desenvolvimento sustentável requer uma cultura política


democrática na qual ideias diversas podem surgir e
competir umas com as outras, refinando a capacidade
humana para lidar com os problemas de recursos. Esta
cultura política irá florescer na medida em que indivíduos
participem nas decisões que afetam suas vidas.

Este entendimento da democracia é relacionado a outra


premissa do desenvolvimento sustentável: a
descentralização do poder de decisão e de atividades
produtivas. A preservação de recursos naturais será
aprimorada por meio de maior participação, implicando
soluções de menor escala para os problemas de recursos.
Reduzindo-se a escala das atividades de desenvolvimento,
reduzem-se seus impactos ambientais e aumentam as
possibilidades de participação local. Neste contexto, a
atenção dada a uma maior justiça social adquire um
significado duplo: é importante por si só, como um valor
social básico, e promove uma comunidade de interesses
necessária para a definição das prioridades da sociedade.
Assim, a discussão de limites ao consumo material é
facilitada quando ganhos e sacrifícios são igualmente
distribuídos. Estas premissas básicas de desenvolvimento
sustentável — a satisfação das necessidades humanas, a
solidariedade com as gerações futuras, a importância da
ciência e da tecnologia, a descentralização de atividades
econômicas e a democracia participativa — estão entre os
elementos mais presentes na discussão geral dessa
questão. A particular ênfase em um ou outro elemento
desta mistura leva a um diagnóstico mais ou menos radical
da situação atual na região. Mais importante, no entanto, é
que estes diferentes diagnósticos têm muito em comum no
que se refere às medidas políticas básicas que eles
implicam. Não é necessário conciliar os diversos
entendimentos de desenvolvimento sustentável para
começar a tomar as medidas necessárias. Há muito o que
fazer, e no momento é mais importante enfatizar este
programa comum.

DESENVOLVIMENTO E CAPACIDADE DE SUPORTE

A preocupação com o desenvolvimento sustentável


representa uma importante, aliás fundamental,
reordenação de prioridades e ênfases na prática do
desenvolvimento. Não se pode dizer, no entanto, que estas
preocupações estiveram inteiramente ausentes da
discussão sobre o desenvolvimento. No campo dos estudos
populacionais, estas preocupações exprimiram-se no
conceito de capacidade de suporte da população. Implícita
na noção de capacidade de suporte está a idéia que os
recursos naturais são limitados — e limitantes. Só
recentemente o conceito começou a se estender para
incluir as preocupações mais amplas conhecidas sob a
rubrica de desenvolvimento sustentável. No contexto do
debate ambiental, a capacidade de suporte geralmente é
vista no seu sentido unidimensional da pressão da
população sobre os recursos. Já que os demógrafos tem
uma compreensão muito mais complexa da dinâmica
populacional, o conceito não foi feliz enquanto uma
ferramenta útil de análise.

No contexto da preocupação com o desenvolvimento


sustentável, vale a pena reexaminar o conceito de
capacidade de suporte. Usado por antropólogos para
entender as estratégias de ocupação territorial de grupos
indígenas, o conceito aparece em estudos demográficos no
debate sobre o controle populacional. Nesta literatura, a
capacidade de suporte é quase sempre usada de forma
simplista e em altos níveis de agregação para chegar à
conclusão de que o crescimento populacional é alto. Dessa
maneira, os mecanismos da relação entre população e
recursos naturais não são identificados, especialmente
porque os que trabalham nessa linha tomam por óbvia essa
relação. A comunidade demográfica não encontrou no
conceito uma base para sua análise, rejeitando seu
conteúdo ideológico.11 A idéia de crescimento populacional
como o maior fator de pobreza e degradação ambiental deu
lugar a uma visão que incorpora a tecnologia e a
distribuição de recursos. Se 25% da população mundial
consome 75% da energia da terra, 79% dos combustíveis e
85% da produção de madeira, a relação população/meio
ambiente deve ser vista de uma perspectiva mais
complexa.12

A crise ambiental desafia os demógrafos a descobrir esses


mecanismos e a elaborar esquemas analíticos que vão além
da idéia da pressão populacional quantitativa sobre os
recursos naturais.13 Uma ênfase nos componentes do
crescimento populacional como um caminho mais frutífero
será discutida mais adiante. Os estudos sobre a morbidade,
a mortalidade e a migração oferecem um terreno fértil para
uma demografia ambiental, e a disciplina encontrará neles
sua mais rica contribuição.14 Mas a preocupação com o
tamanho absoluto da população, se não esgota a
contribuição dos demógrafos, ainda requer atenção.
Simples razões de recursos per capita, entretanto, não
melhoram nossa compreensão dessa relação
população/recursos naturais. Em que casos uma população
é grande demais? Quais são as bases desta avaliação de
tamanho? Em que níveis de consumo? Para que padrões de
cultura? Em que custo vital? Como podemos-estudar este
fenômeno sem cair no mesmo debate, simplista e estéril,
sobre muita população para poucos recursos?

Uma compreensão mais complexa do conceito de


capacidade de suporte pode aprimorar nossa capacidade
para lidar com essa relação. A UNESCO nos fornece uma
definição ampla e apropriada, que inclui tamanhos de
população, recursos, tecnologia e níveis de consumo:

"A capacidade de suporte expressa o nível de população


que pode ser sustentado por um país em um dado nível de
bem-estar. Mais precisamente, ela pode ser definida como
o número de pessoas compartilhando um dado território
que podem sustentar, de uma forma que seja viável no
futuro, um dado padrão material de vida utilizando-se de
energia e de outros recursos (incluindo terra, ar, água e
minérios), bem como de espírito empresarial e de
qualificações técnicas e organizacionais... (É) um conceito
dinâmico que pode ser estendido ou restringido de
inúmeras maneiras: em razão de mudanças nos valores
culturais, de descobertas tecnológicas, de melhorias
agrícolas ou dos sistemas de distribuição de terra, de
mudanças nos sistemas educacionais, de modificações
fiscais e legais, de descobertas de novos recursos minerais,
ou do surgimento de uma nova vontade political Nunca há
uma solução única para a equação população/recursos
naturais, pois não é somente a população que determina a
pressão sobre os recursos (e os potenciais efeitos
ecológicos associados) mas também o consumo individual
que, por sua vez, é determinado pelo sistema de valores e
pelas percepções de estilo de vida."15

A avaliação de valores e percepções de estilo de vida não


torna a questão subjetiva demais? Como podemos chegar a
uma cifra que represente a capacidade de suporte se as
soluções são múltiplas? Os valores de quem devem
determinar as noções de tamanho populacional ideal? É
nossa meta chegar a este número, ou estas soluções
múltiplas implicam uma faixa de tamanhos apropriados, em
equilíbrio com outras metas? Nos parágrafos seguintes
discutiremos algumas definições de capacidade de suporte.
Nossa hipótese é que o conceito, para ser mais útil, tem
que ser usado no âmbito de ecossistemas que fazem
sentido do ponto de vista da organização social de um dado
território. A análise desse grupo de socio-
ecossistemas não produzirá o número mágico que os
16

ambientalistas desejam para a capacidade de suporte.


Talvez seja mais importante considerar o conceito (como
será desenvolvido a seguir) como uma matriz de
possibilidades. Se é possível tornar mais explícitas as
relações entre as formas de organização social e os
ecossistemas de um dado território, teremos contribuído ao
entendimento científico e político da questão.

SOBRE A CAPACIDADE DE SUPORTE

O conceito tem uma atração intuitiva para aqueles que


tentam pensar os limites que o mundo natural coloca ao
bem-estar do homem. Na literatura ambientalista, é lugar
comum afirmar que o maior desafio e a maior ameaça à
humanidade são os de exceder a capacidade de suporte.
Quase sempre o conceito tem uma qualidade auto-evidente
que dispensa rigor na sua definição. Kirchner et al oferecem
uma definição que difere muito pouco entre os autores
científicos ou políticos:

"A capacidade de suporte de uma região determinada é a


população máxima de uma dada espécie que pode ser
sustentada indefinidamente, deixando lugar para mudanças
sazonais e aleatórias, sem qualquer degradação da base de
recursos naturais que diminuiria esta população máxima no
futuro."17

Grande parte da bibliografia, quando oferece uma definição


precisa de degradação, parece enfatizar a produção de
alimentos.18 O crescimento demográfico é sustentado
somente com o crescimento da produção de alimentos, e
um declínio na produção per capita leva a uma deterioração
do ambiente natural e indica que a capacidade de suporte
foi excedida. A partir do texto agora clássico de Boserup,
ninguém deixa de mencionar que o progresso tecnológico
pode alterar a relação entre tamanhos populacionais e
recursos.19 Se é a pressão demográfica crescente que
requer ou permite o progresso tecnológico — como Boserup
assegura — ou se é este último que permite a expansão
populacional, essa é uma questão que continua em debate.
O crescimento populacional produz saltos tecnológicos? Ou
os dois processos avançam juntos, lentamente, o que
permitiria manter e aumentar o nível de vida?

Diferentes autores mencionam variáveis diferentes, dentre


as quais os padrões de consumo da sociedade são
especialmente importantes. Outros textos mantêm-se em
um nível ainda abstrato, como a definição da UNESCO
citada acima, ou reduzem o conceito a um indicador do uso
de energia per capita.20 Este procedimento tem a vantagem
de ser quantificável e permitir comparações, e estudos
internacionais como os de Masarang investiram nessa
direção. Um importante estudo da FAO (relatórios
publicados em 1978, 1982 e 1984) incorporou
explicitamente estes fatores, numa base regionalizada,
para chegar a estimativas da capacidade de um país ser
auto-suficiente em alimentos. No projeto FAO/UNESCO
para a elaboração de um mapa de solo do mundo, e no
estudo anterior, Agriculture: Toward 2000, que apresentara
outros dados (por exemplo sobre irrigação), foram
determinadas zonas agro-ecológicas e feitas estimativas
dos potenciais de solo e de zonas climáticas específicas por
colheita. O primeiro relatório regional a ser publicado (para
a África) levou a UNFPA a perguntar: "podem as
estimativas do potencial de colheita das zonas agro-
ecológicas serem convertidas em estimativas do potencial
de capacidade de suporte da população? E se assim for,
podem estas estimativas de potencial populacional ser
comparadas com dados de população do presente e
projetadas para identificar áreas criticas onde os recursos
da terra são insuficientes para satisfazer as necessidades
alimentícias?"21 Estimativas foram feitas considerando-se
cenários de desenvolvimento tecnológico baixo,
intermediário e alto. As variações do tamanho populacional
segundo níveis de tecnologia agrícola são explicitadas, e
indicam faixas abrangentes de capacidade de suporte.
Estas faixas (em âmbito mundial) estão dentro das
projeções da ONU para populações de tamanhos
estabilizados.

Assim, diferentes cenários foram produzidos,


demonstrando-se a diversidade de soluções possíveis. O
estudo evitou a pressuposição de homogeneidade de
condições com respeito aos territórios nacionais, algo
inevitável em estudos que abrangem o universo de
Estados-nação, como o de Maserang. Reconhece-se que a
capacidade de suporte se refere a regiões, e não a um país
como um todo. Esse estilo de pesquisa, no entanto, produz
conjuntos de correlações cujos níveis de generalidade não
contribuem muito para a compreensão dos mecanismos
envolvidos na relação terra/tecnologia/população.

A longa tradição antropológica de ecologia humana mede a


produção e o consumo de energia em grupos primitivos,
um procedimento que também favorece a comparabilidade.
Desenvolveu-se toda uma tradição de modelos
quantitativos sobre o tópico. Os Massai do Great Rift
22

Valley ou os Bosquímanos do Kalihari, no Sul da África,


contudo, não nos oferecem situações complexas o
suficiente para se prestarem a analogias com o mundo
moderno.23 Sem entrar no debate interdisciplinar desta
tradição, é importante, entretanto, qualificar sua utilidade
para a compreensão de uma sociedade moderna e
complexa. Inúmeros fatores decisivos têm pouca variação
em sociedades primitivas em comparação com as
modernas. Isso não significa que não exista
diferenciamento social em tais grupos; somente se
reconhece que seus limites de riqueza e pobreza são mais
estreitos. Da mesma maneira, relações de poder existem
em grupos primitivos, mas a distância entre os poderosos e
os fracos é muito maior em sociedades modernas. A
hipótese de Boserup, por exemplo, originalmente
desenvolvida para explicar os avanços na agricultura
primitiva, é muito mais convincente no livro de 1965 que
em sua mais recente tentativa de generalizar estas relações
para situações muito mais complexas.24 Tais situações
requerem que as hipóteses verificáveis do modelo sejam
especificadas em níveis mais baixos de generalização. Isso
sugere o perigo de um raciocínio por analogia:

"A longo prazo é evidente que o avanço da tecnologia e da


acumulação de capital e o declínio da importância da
agricultura na estrutura de produção e na distribuição da
força de trabalho reduzem em grande parte a dependência
da população humana em relação à fertilidade natural e à
disponibilidade de matéria-prima em seus próprios
ambientes."25 (Minha ênfase.)

Outro problema comum a estes estudos é o da tautologia


com respeito aos indicadores. O crescimento populacional
leva uma região a exceder sua capacidade de suporte. O
crescimento é medido por um índice ou por um volume de
população. O que indica que a capacidade de suporte está
sendo excedida é o declínio da razão recursos/população
(por ex., toneladas de grãos per capita ou consumo de
calorias per capita). Na equação "o crescimento
populacional leva ao declínio da capacidade de suporte", a
população entra dos dois lados. A superpopulação é medida
pela superpopulação. Para o meio ambiente, o mesmo
problema existe. Keegan et al., por exemplo, quando
passam do estudo simples e abstrato da capacidade de
suporte para os meios práticos de utilização do conceito em
situações complexas, caem na mesma armadilha.26 Se for
tudo incluído no lado ambiental da equação (recursos,
tecnologia, cultura, estilos de consumo etc.), é impossível
considerar a população como uma variável independente.

A complexa matriz que resulta da especificação de todos


estes fatores não servirá para verificar se a população
(medida pelo tamanho ou pelo índice de crescimento) é
"dependente da densidade" nem para calcular o tamanho
ideal de uma população. A matriz pode, entretanto, nos
mostrar o campo de relações no qual a atividade humana
opera em seu esforço contínuo para equilibrar quantidades
numéricas e recursos. A análise do conjunto de
ecossistemas permitiria à sociedade estabelecer as relações
necessárias para o desenvolvimento sustentável. O objetivo
não é chegar a nenhum número mágico de tamanho ideal
de população, e sim a condições mais claras para a tomada
de decisões. Como todos os valores não podem ser
maximizados em todos os ecossistemas, a sociedade e seus
planejadores precisam pesar os ganhos e perdas
envolvidos. Hipóteses verificáveis serão derivadas a partir
da matriz das relações população/ambiente, mas a matriz
em si não é verificável. Esta talvez seja a maior dificuldade
com grande parte da literatura sobre a capacidade de
suporte: o esforço para estabelecer relações causais diretas
por meio do que é fundamentalmente uma tautologia. A
tautologia nem sempre é uma ferramenta inútil na ciência.
Definir um fenômeno por tautologias pode ser útil para
clarificar sua complexidade. A dificuldade reside em
tentativas de, mediante correlações estatísticas, provar a
tautologia como se fosse uma hipótese.

Entre as visões de senso comum de ambientalistas, de um


lado, e a tradição antropológica, de outro, a demografia
malogrou em ocupar seu próprio espaço. Além de
referências genéricas no contexto de discussões
introdutórias da questão ambiental, a demografia
praticamente ignorou a questão da capacidade de suporte.
Esta noção certamente não assumiu um lugar importante
no rigor conceituai que caracteriza a disciplina. Hoje,
procurando remediar seu distanciamento da questão
ambiental, a demografia precisa refinar conceitos tomados
do senso comum e os integrar a análises de dinâmica
demográfica. Da mesma perspectiva estrutural/institucional
que tem caracterizado a análise demográfica na América
Latina, onde o neomalthusianismo foi trocado por outras
visões, é necessário investir hoje em um "pós-
neomalthusianismo". O desafio hoje é como conceber a
relação população/recursos em um contexto no qual os
termos deste debate foram estendidos de maneira
significativa. Seguindo a tradição antropológica, será útil
trabalhar com regiões delimitadas onde as relações entre a
dinâmica demográfica e as mudanças ambientais podem
ser observadas. Se desejamos entender os processos
distintos e identificar os mecanismos das relações entre
eles, estudos internacionais com enormes bancos de dados
não serão o primeiro passo. Considerando a necessidade de
entender a relação entre processos naturais e sociais,
propomos a utilização do ecossistema como unidade de
estudo.

As bacias hidrográficas são um destes ecossistemas, e uma


escolha estratégica para a observação e a análise das
relações sócio-demográfico-ambientais. Não estando
delimitadas somente por critérios politico-administrativos,
elas são uma unidade "natural" suficientemente grande
para revelar as conseqüências ambientais da ação humana
e as conseqüências sócio-demográficas dos limites naturais.
Ao mesmo tempo, as atividades econômicas, apesar de
serem diversas, tendem a guardar uma certa
homogeneidade quanto ao nível de desenvolvimento. A
comparação de bacias hidrográficas nos permitiria entender
melhor a dinâmica das relações no interior de cada uma
delas.

Ao mesmo tempo, essa comparação pode iluminar as


relações entre os ecossistemas que compõem uma unidade
política (região, província ou nação) com sua sociedade
inclusiva. Um fator primordial das sociedades
contemporâneas complexas é o seu nível de
interdependência regional. A divisão social e territorial do
trabalho no moderno Estado-nação significa que cada
região (ou cada ecossistema) tem que ser compreendido na
sua relação com as outras. O Estado-nação pode não ser
um ecossistema distinto, mas é uma realidade sócio-política
inescapável. A importância de fronteiras nacionais pode ser
maior que aquelas dos ecossistemas na determinação da
relação do homem com um bioma específico. É esta
importância que nos leva a estudar os ecossistemas
existentes em um país.
Em um dado país, a capacidade de suporte "total" não é a
soma das capacidades de suporte dos ecossistemas
componentes. Nenhum país tem como meta única
maximizar o tamanho populacional. Para um nível
específico de bem-estar, em um determinado país, alguns
ecossistemas terão destinos distintos: agricultura,
mineração, indústria ou lazer, por exemplo. Isto significa
que a capacidade de suporte de um ecossistema é
determinado não só por seus recursos naturais, mas pela
definição social que recebe. Conseqüentemente, a
capacidade de suporte da população de um país depende
de sua política regional de desenvolvimento, que alocará
papéis específicos a regiões específicas. O todo, resumindo,
é menor que a soma de suas partes. As análises das
relações população/meio ambiente revelarão as tensões
implícitas nessas vocações. Se o reordenamento das
prioridades de desenvolvimento resolverá tais tensões ou
se requererá escolhas mais difíceis, isso só poderá ser
determinado mediante uma análise de região a região. Os
cálculos da capacidade de suporte encontrados na literatura
especializada não levam tais fatores em consideração.

No território nacional, as condições sócio-ambientais são


extremamente diversas. De uma parte, existem áreas
densamente ocupadas e ambientalmente degradadas, com
uma infra-estrutura sócio-econômica similar à de muitos
países desenvolvidos. A sociedade nacional investiu muito
nestas áreas e espera um retorno deste investimento.
Enquanto preocupações ambientais recebem uma atenção
sempre crescente, ninguém sugere que esse
desenvolvimento deva ser interrompido. O que se quer, no
máximo, é que os esforços sejam direcionados à procura de
modelos de crescimento compatíveis com o limite
ecológico. Por outro lado, há áreas ainda totalmente
virgens, que a sociedade agora define como reserva de
espécies animais e vegetais expulsas ou não existentes no
restante do território. O que é "capacidade de suporte" em
áreas tão distintas? A questão nos leva para além das
considerações acerca dos recursos localmente disponíveis,
mas ao mesmo tempo nos amarra a uma análise destes
recursos. A análise do conceito não dispensa uma
perspectiva local nem pode se restringir a esta perspectiva.
O conceito de capacidade de suporte pode ser um
instrumento útil para este fim.

Uma definição abrangente, então, de capacidade de


suporte, incluindo não apenas o abastecimento alimentício,
mas outras necessidades humanas básicas e não-
básicas27 — uma definição que leve em conta critérios
culturais, e que admita o aumento ou a redução da
capacidade de suporte pelo progresso tecnológico, pelo
aumento da igualdade social, pelo aumento nos níveis de
educação e saúde, por descobertas de novos recursos
minerais ou por forças políticas ou ideológicas — pode
mapear o campo de relações entre população e meio
ambiente. O avanço na nossa capacidade de entender
essas relações e de planejar para o desenvolvimento
sustentável requer estudos locais comparativos e
específicos ao ecossistema. Nem estudos de caso isolados
nem dados nacionais ou continentais agregados serão
suficientes.

MEIO AMBIENTE E CRESCIMENTO POPULACIONAL

Voltando nossa atenção para as relações entre os


componentes do crescimento populacional (fecundidade,
mortalidade e migração) e o meio ambiente, encontramos
uma área promissora para análises pouco exploradas por
especialistas de população. Na discussão que vem a seguir,
a atenção recairá na fecundidade e nas migrações. A
mortalidade e a morbidade (ou a questão da saúde e meio
ambiente) têm recebido uma atenção mais sistemática, e
nossa intenção é chamar a atenção para as lacunas dos
estudos populacionais. A fecundidade é menos estudada em
termos de ambiente. Seria um exagero, entretanto, afirmar
que esse espaço teórico é um território virgem. Estudos da
fisiologia da reprodução e de ecotoxicologia identificaram os
agentes químicos que são mutagênicos e teratogênicos,
sem contudo, dar um balanço das conseqüências atuais ou
potenciais para a fecundidade. Na sua crítica das pesquisas
sobre o tema, Bongaarts avalia o conhecimento científico
do impacto da nutrição na fecundidade.28 O que mais
chama a atenção é a falta de estudos e a precariedade da
sabedoria convencional. As pesquisas verdadeiramente
comparativas são raras e existem várias lacunas em nosso
conhecimento. Estabelecendo a distinção entre desnutrição
e fome (no caso desta última, o efeito é mais forte e mais
evidente), e concentrando-se na primeira, Bongaarts
conclui que "a desnutrição crônica moderada tem apenas
um pequeno efeito sobre a fecundidade, e o decréscimo
resultante na fecundidade é muito pequeno".29 Esta
conclusão é significativa porque vários dos fatores
ambientais que afetam o homem o fazem pela nutrição e
porque este é um dos aspectos mais pesquisados da
questão. Se o nosso conhecimento do elo
nutrição/fecundidade é tênue, como ele será no que
concerne aos inúmeros outros fatores?

Em sua discussão dos fatores biológicos que podem limitar


a fecundidade natural, Gray refere-se, além da nutrição e
da lactação, à menarca, à menopausa e à esterilidade
resultante da sífilis, da gonorréia e da malária, isso sem
mencionar substâncias químicas.30 Em todos estes casos, é
notável quão precário é o nosso conhecimento. É quase
sempre impossível avaliar os efeitos de qualquer um destes
fatores em uma população. Comentando o trabalho de
Gray, Belsey acrescenta às causas da esterilidade outras
doenças como a cachumba e a esquistossomose. Esta
última é um claro exemplo da proliferação de uma doença
devido a fatores ambientais:

"Embora tanto o Schistosoma mansoni quanto


o haematobium podem ser encontrados nos genitais, a
importância da esquistossomose para a fecundidade e as
perdas gestacionais é, na melhor das hipóteses,
desconhecida... Um relatório recente de Bullough sugere
uma participação maior dobilharziaris na infertilidade do
que até hoje se reconhece."31

Um estudo recente da OMS, baseado em testes feitos em


2.000 homens saudáveis em cinco continentes, concluiu
que houve um declínio de 40% na contagem de esperma
nos últimos 50 anos, devido ao stress e a fatores
ambientais como a poluição. Os agrotóxicos, por exemplo,
podem diminuir a fertilidade masculina.

As estimativas de teratologistas variam de 2% a 10% sobre


a porção de defeitos congênitos atribuídos a fatores
ambientais, incluindo drogas e álcool. Outros 20% são
atribuídos a fatores genéticos, enquanto 70% são de
origem desconhecida.32 A margem potencial para causas
ambientais é óbvia. Mas as conclusões sobre a questão
ainda são aproximadas e parciais, e a pesquisa nesta área é
cheia de lacunas.

Existem, portanto, duas razões que explicam porque a


fecundidade é a maior lacuna no nosso conhecimento da
relação população/meio ambiente. Primeiro, há pouca
pesquisa sobre isso, em razão do que as afirmações são
sempre qualificadas, apontando para relações possíveis
mas não provadas. A necessidade de pesquisa médica e
demográfica nesta área é enorme. Em segundo lugar, os
fatores ambientais aparentemente contam pouco para
determinar os níveis e os padrões de fecundidade. Quando
é possível quantificar uma relação, os efeitos desses fatores
não são grandes se comparados a outros determinantes. Os
aspectos qualitativos, entretanto, ganham, importância
quando os índices de fecundidade caem e serão cada vez
mais importantes no futuro. Esterilidade, subfecundidade,
nascimentos prematuros, abortos espontâneos e defeitos
congênitos são relacionados a fatores ambientais e estes
vão requerer sérios esforços de pesquisa no futuro.33

Quando consideramos a migração, é intuitivamente óbvio


que questões relativas a recursos afetam a direção, o
volume e a composição das correntes migratórias. Quer em
termos de disponibilidade de recursos, quer de capacidade
de suporte, ou até em termos de degradação ambiental,
considerações desse tipo sempre estiveram presentes em
análises de migração. Estudos de população e meio
ambiente, no entanto, ainda requerem uma revisão
sistemática de como estes fatores afetam a atratividade
dos diferentes destinos. É também necessário avaliar a
degradação ambiental como um fator de expulsão. A
substituição de pequenos agicultores por gado, o êxodo
rural de assentamentos recentes, e o rápido
empobrecimento do solo em regiões de florestas tropicais
oferecem exemplos que merecem atenção.

Um complexo conjunto de mecanismos migratórios


contribui para a composição e a direção das correntes
migratórias, para o agravamento da pressão ambiental na
origem e no destino e para a imposição do ônus ambiental
sobre os pobres. Tais mecanismos, embutidos na estrutura
social, foram objeto de muita análise demográfica durante
as últimas décadas. Mas suas relações com as mudanças
ambientais não são bem entendidas e requerem pesquisas
mais intensas.

A seletividade migratória muitas vezes age para subtrair do


campo os agricultores mais capazes de atender às
exigências de sustentabilidade ambiental, deixando para
trás os mais indefesos e pobres de recursos, em solos
degradados e propensos à erosão. De outra parte, os
migrantes melhor qualificados ocupam empregos em
setores mais especializados da economia, localizados em
centros urbanos ou em distritos menos atingidos pela
poluição, pela falta de água e por sistemas de esgoto ou de
coleta de lixo deficientes. As cidades mais degradadas, e os
distritos mais degradados destas cidades, são ocupados
pelos mais pobres dos pobres, agregando-se um fator
ambiental ao peso da desigualdade social.34

A migração pendular inter- e intra-metropolitana tem


emergido como um mecanismo significativo, levando a que
trabalhadores qualificados residam em bairros com maior
infra-estrutura ambiental, enquanto os menos qualificados
ocupam os distritos menos equipados. Assim, mesmo
dentro da região metropolitana, a segregação
residencial direciona o ônus do peso ambiental aos pobres;
mais ainda, esta segregação residencial é congelada por
padrões de migração pendular que resultam em que até
mesmo os bons empregos em áreas degradadas sejam
ocupados por residentes de áreas melhor equipadas.35

Os índices de rotatividade são mais um fator que serve


para manter o status quo em áreas urbanas degradadas. A
falta de amenidades urbanas leva à residência de curta
duração, em comparação a distritos mais bem servidos. A
rotatividade constante significa que o desenvolvimento da
comunidade local ou o esforço em prol de melhorias no
bairro sofrem perda de continuidade e são lentos para
acumular o momentum necessário para afetar a política
pública.36

A migração sazonal freqüentemente é uma evidência de


que os trabalhadores rurais abandonam suas terras
erodidas e gastas, que mal sustentam uma produção de
subsistência, para trabalhos temporários em setores
agrícolas modernos. De uma parte, solos empobrecidos não
permitem uma agricultura independente nestas áreas; de
outra, a disponibilidade de salários sazonais no setor
moderno esfria as pressões por medidas corretivas. As
áreas atrasadas (as terras áridas no nordeste, por
exemplo) são abandonadas para sofrerem uma degradação
ainda maior, enquanto a agricultura moderna de grande
porte em regiões mais ricas (por exemplo, a do Sudeste) é
servida por uma força de trabalho de baixo custo.

A urbanização não é em si incompatível com a qualidade


ambiental. De fato, a concentração populacional deve servir
para racionalizar o acesso à saúde e a serviços de
saneamento e de educação. A disponibilidade total de
terras é aumentada, permitindo — junto com ganhos na
produtividade agrícola — a manutenção de áreas maiores
em florestas e outros ecossistemas naturais. Se as cidades
brasileiras sofrem sérios problemas ambientais, estes
devem ser atribuídos à desatenção à infra-estrutura
ambiental durante as décadas de alto crescimento da
economia e das cidades. A concentração da terra e de
renda impediu os investimentos em saneamento urbano,
habitação, transporte público e controle da poluição. Os
obstáculos institucionais para se lidar com o crescimento
rápido também foram um fator importante.

É claro que as regiões mais urbanizadas são também


aquelas onde as melhorias ambientais urbanas têm tido
maior sucesso. Os males da concentração populacional são
agravados em "mega-cidades"; e não há nenhuma dúvida
de que a dimensão dos problemas é aumentada pela
dificuldade de efetuar políticas públicas em cidades tão
grandes e diferenciadas. O Banco Mundial identificou a
proteção de ambientes urbanos como uma de três setores
que mais requerem a atenção da política urbana e de
planejadores de desenvolvimento nos anos 90 (os outros
são o aumento da produtividade urbana e a diminuição da
pobreza). Os impactos da crise ambiental urbana são de
curto prazo, resultando "de congestionamentos, da poluição
do ar e das águas, do saneamento inadequado, da coleta e
remoção de lixo irregulares, e da destruição de terras
livres".37 Estes fatores também contribuem para os
problemas de longo prazo como a intensidade de energia e
uso de recursos e a concentração de esgotos e de
emissões. Mas se duas das dez maiores cidades do mundo
estão no Brasil, é importante lembrar que outras nesta lista
(New York e Tóquio, por exemplo) fizeram grandes
progressos em melhorias de ambientes urbanos.

Se a concentração populacional e até o tamanho da cidade


não são intrinsecamente problemáticos, as duas coisas são,
no entanto, grandes problemas para o mundo
subdesenvolvido. Mesmo com programas adequados e
investimentos públicos em áreas urbanas, a distribuição
populacional permanecerá uma preocupação fundamental
para as políticas de desenvolvimento. Existem soluções
para os mais urgentes problemas ambientais encontrados
nas cidades, e uma combinação de vontade política e
recursos financeiros irão longe na direção de se estabelecer
um melhor equilíbrio entre população e meio ambiente. Mas
estas soluções reparadoras necessariamente serão
implementadas nas cidades já existentes. O desafio que o
planejamento de longo prazo deve encarar é o da
integração de considerações ambientais com as futuras
decisões de locação de grandes atividades econômicas.

As regiões costeiras, por exemplo, são caracterizadas por


dois aspectos que merecem atenção especial. Em primeiro
lugar, elas são ecologicamente frágeis, i.e., seus ciclos
naturais são facilmente rompidos pela atividade do homem
e de difícil restauração. Elas desempenham papéis
essenciais na reprodução de várias espécies, especialmente
dos crustáceos, e são as únicos habitats de várias outras.
Em segundo lugar, são também de beleza insuperável e
têm sido objeto de desenvolvimento turístico de grande
alcance, com muito potencial para expansão. A preservação
deste potencial turístico requer a preservação da beleza
costeira natural: é precisamente este aspecto "natural" que
as populações urbanizadas procuram.

Mas para o Brasil nos anos noventa, são os problemas


ambientais urbanos (já que a grande maioria da população
vive em centros urbanos) que exigem mais atenção.
Especialmente importante são as taxas de urbanização, que
requerem níveis de investimento em infra-estrutura e
capacidades político-administrativas nem sempre
disponíveis. As respostas institucionais para os problemas
ambientais de cidades de crescimento rápido são
dificultadas não só por estruturas governamentais
antiquadas, mas também pela escala absoluta do desafio.
Os países desenvolvidos nunca tiveram que prover serviços
em tal ritmo, e as técnicas administrativas disponíveis não
são adequadas à tarefa.

O conseqüente prejuízo ambiental de curto e longo prazos e


os desafios para os desenvolvimento sustentável são muito
sérios. Grande parte dos danos causados em períodos de
urbanização acelerada não podem, ou é proibitivamente
caro fazê-lo, ser remediados. As terras livres em áreas
metropolitanas foram ocupadas; as florestas que protegem
as bacias hidrográficas foram destruídas; os rios em muitos
casos foram canalizados e enterrados; e padrões
residenciais se estabeleceram. As mudanças em
microclimas, a necessidade de viagens diárias longas, a
ausência de áreas verdes ou as construções em terras
propensas à erosão ou à inundação, nada disso poderá ser
facilmente desfeito ou mudado.

O problema a ser encarado diz respeito a se somente as


áreas urbanas responderão à necessidade de criação de
empregos ou se o acesso a terras — mediante a reforma
agrária — permitirá ao setor agrícola absorver o
crescimento populacional. Neste caso, a questão será a do
custo ambiental do crescimento de populações rurais.

CONCLUSÃO

A diversidade cultural, econômica e ecológica do país é a


característica mais saliente de uma análise da inter-relação
entre população, meio ambiente e desenvolvimento. Da
desertificação dos pampas gaúchos ao desmatamento da
Amazônia, da poluição causada pelo parque industrial
paulista ao envenenamento por mercúrio dos garimpeiros,
o Brasil sofre de todos os males ambientais
contemporâneos. Embora a queda da fecundidade e os
altos níveis de urbanização diferenciam sua dinâmica
demográfica de outras partes do mundo, as diferenças
internas são grandes. A despeito dos recursos abundantes
e de uma densidade populacional favorável, os padrões
regionais variam consideravelmente.

A discussão de capacidade de suporte de distintos


ecossistemas dentro do território nacional pode contribuir
para uma avaliação dos ganhos e perdas envolvidos em
uma política de desenvolvimento. A grande diversidade
regional aponta para a necessidade para um planejamento
local específico. Ao mesmo tempo, uma análise dos
determinantes e das conseqüências ambientais dos
componentes do crescimento populacional permite separar
os fatores significativos com respeito a problemas
específicos, e oferece uma base mais objetiva para a
formulação de políticas.
Apesar da diversidade mencionada, existem alguns
problemas comuns. Os mais importantes são os
relacionados ao saneamento urbano e à reforma agrária.
Os altos níveis de urbanização criaram grandes demandas
de quantidade e de qualidade de água; a infra-estrutura
sanitária, que não acompanhou o crescimento demográfico,
agora exige investimentos em grande escala. A reforma
agrária, há muito tempo identificada como uma
necessidade social inescapável, se acompanhada por
crédito agrícola e adequados programas de extensão, é
capaz de interromper a degradação de solos por
desmatamento e erosão e diminuir o ritmo da migração
rural-urbana.

Embora os problemas sejam graves e diversificados, a


grande base de recursos, as taxas declinantes de
fecundidade e a densidade relativamente baixa apontam
para a possibilidade de conciliar desenvolvimento e
preservação de recursos naturais. As soluções estão
disponíveis mas exigirão compromissos financeiros,
mudança institutional, e acima de tudo, uma reorientação
dos objetivos de desenvolvimento.

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