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CIENCIA E POLITICA: DUAS VOCAGOES Max Weber A obra de Max Weber 6, ao lado das de Marx, Comte « Durkheim, um dos fundamentos da metodologia da Sociologia contempovinea. Dai o especial interesse que este livro teré para os leitores desejosos de informar-se acerca do pensamento sociolé ico moderno. Pela leitura dos dois ensaios aqui reunidos, pode- rao eles iniciar-se no conhecimento da contribuicdo metodolégica weberiana, ao mesmo tempo que apreciar brilhantes andlises subs- tantivas daquilo que, no entender dos seus exegetas mais auto- ritados, é 0 niicleo das preocupagies de Weber: a racionalidade. Nesses dois ensaios, 0 grande socidlogo alemao estuda a manelra pela qual a pritica cientifica contribui para o desenvolvimento da racionalidade humana e analisa com percuciéncia as con- digdes de funcionamento do Estado moderno, focalizando assim 4 oposigao bésica entre a “ética de condigéo” do cientista ¢ a “ética de responsabilidade” do politico, dois fulcros polartzadores das opgGes bumanas. CIENCIA POLITICA duas vocacdes MAX WEBER CIENCIA E POLITICA Duas Vocagdes Preficio de ‘Manoa T. Beruinck (Professor-Adjunto de Sociologia da Escola de Administragto de Empresas de S. Paulo, da Fundagio Getdlio Vargas) Tradusto de Leonnpas Hucenneno ¢ Octany Su.vetaa pa Mora Os dois textos incluids neste volume inttulam-se, no original wlemlo, Wussenschaft Als Berufe PolitikAls Beruf. Copyright © 1967 ¢ 1968 Dunkeré Hunblot, Berlim, ‘Todos 0s direitos reservados. Neohum parte deste livro pode ser reproxluzida ou usada de quelquer forma ou por qualquer meio, eletrénico ou mecfnica, inclusive fotocdpias, gravagdes ou sistema de armazenamento em baneo de dados, sem ppermissdo por eserito, exeeto nos casos de trechos curios citados em resenhas erticas ‘ou artigos derevistas, (© primeiro nimero a esquerda indica «eds, ov cecigso, desta obs, praia dezmna «leit index o uno em que esa el, ou Feeigto fol publisada .digdo Ano 14-15-16-17-18-19-20 07-08-09-10-11-12-13 INDICE Norfcia Sone Max WEBER A Crfcta Como Vocagko ‘A Poxirica Como Vocagio 17 55 t NOTICIA SOBRE MAX WEBER Max Weber nasceu em Erfurt, Turingia, Alemanba, em 21 de abril de 1864, Seu pai, Max Weber Sr., era advogado ¢ po- litico; sua riie, Helene Fallenstein Weber, era mulber culta ¢ liberal que manifestava profundos tracos pietistas de fé pro- testante. O ambiente erudito e intelectual do lar contribuin decisi- vamente para a precocidade do jovem Weber. Basta dizer que aos 13 anos de idade jd escrevia ele ensaios bistéricos penetrantes. Weber terminou os estudos pré-universitarios na primave- ra de 1882 e foi para Heidelberg, onde se matriculou no curso de Direito. Estudou também diversas outras matérias, como His- téria, Economia e Filosofia, que, em Heidelberg, cram ensina- das por eminentes professores. Depois de trés semesires 14, Weber mudou-se para Estras- burgo a fim de servir 0 exército por um ano. Quando dew baixa, retomou seus estudos universitarios emt Berlim e Goettin. igen onde, em 1886, submeten-se ao primeiro exame de Direito. Escreven em 1889 sua tese de doutoramento sobre a histéria das companhias comerciais da Idade Média; para isso, teve de con- sultar centenas de documentos espanbéis e italianos, 0 que Ibe exigin 0 aprendizedo desses idiomas. No ano seguinte, estabele- couse como advogado em Berlim; escreven, por essa época, um tratado intitulado Historia das Instituigdes Agrétias; 0 modesto titulo encobre, na verdade, uma andlise socioldgica e econémi- ca do Império Romano. Em 1893, Weber casowse com Marianne Schnitger, sua pa- rente longingua. Depois de casado, passou a levar uma vida de académico bem-sucedido em Berlim. No outono de 1894 acei- tou a cadeira de Economia da Universidade de Friburgo e, dois 7 anos mais tarde, passava a substituir o eminente Knies em Hei- delberg. Em 1898, Weber apresentou sintomas de esgotamento ner- voso e de neurose; até o fim de sua vida, ria sofrer depresses agudas intermitentes, entremeadas de periodos de trabalho in- telectual extraordinariamente intenso. A doenca 0 manteve afas- tado das atividades académicas durante mais de trés anos; resta- belecido, voltou para Heidelberg e reassumiu parcialmente as atividades docentes. Seu estado de satide nao, Ibe permitia, en- tretanto que se dedicasse inteiramente ao magistério. Em decor- réncia disso, solicitou afastamento das atividades diddticas e pro mogao para o cargo de professor titular, o que the foi concedi do pela Universidade. Apesar das crises nervosas, Weber, juntamente com Som bart, assumin em 1903 a diregao do Archiv fir Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, gue se transformou em uma das mais impor- tantes revistas de ciéncias sociais da Alemanba, até seu fecha- mento pelos nazistas, No ano seguinte, a produtividade intelectual de Weber re- cebeu novo impulso; ele publicou entio diversos ensaios aléma da primeira parte de A Etica Protestante e 0 Espttito do Capi- talismo, Em meados de 1904, Weber viajou para os Estados Uni- dos, que causaram profunda impressio sobre seu espirito anali- tico. O Joco central do seu interesse na América foi o papel da burocracia na democracia. De volta @ Alemanha, retomou suas atividades de escritor em Heidelberg, concluindo entio A Tica Protestante e 0 Espirito do Capitalismo. No periodo que medeia entre 1906 ¢ 1910, Weber parti- cipou intensamente da vida intelectual de Heidelberg, mantendo longas discusses com eminentes académicos, como seu irmio Al- fred, Otto Klebs, Eberhard Gotheim, Wilhelm Windelband, Georg Jellinek, Ernst Troeltsch, Karl Neumann, Emil Lask, Friedrich Gundolf, Arthur Salz. Nas férias, muitos amigos vi- nham a Heidelberg visitélo; entre eles, Robert Michels, Werner Sombart, 0 filésofo Paul Hensel, Hugo Mitnsterberg, Ferdinand Téennies, Karl Vossler e, sobretudo, Georg Simmel, Entre os jovens universitirios que procuravam o estimulo de Weber con- tavamese Paul Honigsheim, Karl Lowenstein e Georg Lukacs. & ‘ ‘Apés a Primeira Guerra Mundial, na qual participou ativa- mente, Weber mudowse para Viena. Durante o verdo de 1918, ‘ninistrow seu primeiro curso, depois de dezenove anos de afas- famento da cétedra, Nese curso, apresentou sua sociologia das religibes e da politica sob o titulo de Uma Critica Positiva da Concepcio Materialista da Histéria, . Em 1919, tendo abandonado 0 monarquismo pelo republi- canismo, Weber substituiu Brentano na Universidade de Muni- Gue. Suas dltimas aulas, feitas a pedidos de alunos, foram pu. Sticadas sob o titulo Histéria Econémica Geral. Ex meados de 1920, adoeceu de pneumonia. Morreu em junbo de 1920, dei- xando inacabado um livro de revisio e sintese de toda @ saa obra, intitulado Wirtschaft und Gesellschaft, que é de importdncia fundamental para @ compreensio de seu pensamento. Os numerosos trabalhos de Weber foram, sem exagero, fun- dancentais para o desenvolvimento da sociologia contempordnea, Pode-se dizer que sua obra, juntamente com a de Marx, de Comte e de Durkheim, é um dos fundamentos da metodolo- gia da sociologia moderna, Nos dois ensaios apresentados neste volume, o leitor se poderd familiarizar nao 36 com uma amostra da contribuigio me- todolégica de Weber como também com uma de suas mais bri- Ubantes andlises substantivas. Tanto a vida como a obra de Weber tém sido objeto de amplas andlises, realizadas por socidlogos famosos como Ray mond Aron, Hans Gerth, C. Wrigth Mills e Reinhard Bendix. Este prefacio no pretende, portanto, fornecer subsidios originais ‘para a compreensio do pensamento weberiano. O leitor que desejar aprojundar-se no assunto deveré reportar-se aos trabe- Ibos interpretativos escritos pelos socidlogos acima mencionados, além, naturalmente, de compulsar as obras do proprio Weber. E certo, entretanto, que a compreensao dos ensaios apresentados neste volume poderd ser facilitada por meio de algumas suges- t6es interpretativas, que 0 leitor euidard de desenvolver na me- dida em que se interesse pela obra de Weber. Alvin Gouldner, em penetrante ensaio, sugere que tanto as virtudes como os defeitas do pensamento de Weber podem ser explicados a partir das relagées estruturais que ele mante- ve durante sua vida, Mais especificamente, o pensamento de Weber teria sido influenciado principalmente pelas relagoes qite manteve com seus parentes (especialmente com a mie}, pelo clima universitirio existente na Alemanha, pelas viagens que rea. Hizou (especialmente aos Estados Unidos) e pelo clima politico da Alemanka, Esse conjunto de influéncias acabou por produsir, em We- ber, aquilo que muitos consideram a preocupacao central de sua obra: a racionalidade. A impressio que se tem é a de que seus estudos sobre religides, a andlise do surgimento do capitalismo, os estudos sobre poder e burocracia, os escritos metodolbgicos ¢ sua sociologia do Direito sto tentativas de resposta a pergun- tas tais como: quais as condigbes necessérias para 0 aparecimen- to da racionalidade?; qual a natureza da racionalidade?; quais as consegiiéncias sécio-econémicas da racionalidade? Se tal im- pressio for verdadeira, os dois ensaios que sao apresentados en seguida constituem verdadeiros marcos do pensamento de Weber pois ambos se referem especificamente a racionalidade, Para Weber, a racionalidede diz respeito a uma equagio di- ndmica entre meios e fins. Nesse particular, ele acreditava (¢ essa crenca permeou o pensamento dos socidiogos funcionalistas contempordneos, tais como Parsons, Williams, Homans, etc.) que toda acio humana é realizada visando a determinadas metas — concepcées afetivas do desejdvel — ou valores. Tais valo- res sio fenémenos culturais e possuem bases extracientificas. Em outras palavras, as definigées do que & bom e do que é mau, do que & bonito e do que é feio, do que é agradavel e do que é desagradével constituem proposicées extraempiricas. Nio se pode provar empiricamente que uma coisa seja bela ou feia, etc, Semeibantes proposigdes constituem, nas palavras de Hempel, “julgamentos categéricos de valor”. Para atingir tais metas ou obler tais valores, o homens pre- cisa agir. A aco humana pode, entretanto, ser mais ow menos eficaz para a consecucao de valores. A eficécia do comportamen- to € relativa porque (a) existem sempre diferentes formas de aco, isto &, a acto humana nao é determinada ow limitada por 10 em n+ ‘apenas um curso, mas bi sempre alternativas do curso de ago ao dispor do homem e (b) 0 homem possui uma série de va- lores que precisam ser selecionados, bierarquizados e visados. Por outro lado, a cada momento e espaco, 0 homem nio con- ‘segue fazer duas coisas ao mesmo tempo. Em linguagem so- Yisticada, pode-se dizer que o Princlpio da Complementarida- de descoberto por Bohr (segundo o qual o eléctron pode ser considerado como onda e como particula, dependendo do con- texto) aplicase também ao comportamento humano, Como afir- ma um fisico, Von Pauli: “Posso escolber a observagio de um experimento A e arruinar B on escolher a observagao de B e ar- tuinar A. Nao posso, entretanto, deixar de escolber a ruina de use deles”. Em vista dessa situagao, 0 bomem estd constante- mente enfrentando e sendo obrigado a realizar opedes. O pro- blema da opgao, como sugere Raymond Aron, confere a obra de Weber um sentido existencialista. Que este problema tem in- tenso significado & coisa que se verifica pela oposigao entre “Gica de condicio” (imperativo categérico para 0 cientista) ¢ a “Gtica de responsabilidade" (moral de Maquiavel — neces- séria para a politica). Os critérios de opcio da agao humana variam, Segunda Weber, bé quatro tipos de orientagio para a agao: (a) tradi nal, baseada em hébitos de longa pritica; (b) affektueel, basea- da nas afeigdes e nos estados sensérios do agente; (c) wertra- tional, baseada em crenca no valor absoluto de um comporta- mento ético, estético, réligioso, ou outra forma, exclusivamente por seu valor e independentemente de qualquer esperanca quar to ao sucesso externo; ¢ (d) zwecrational, baseada na expecta- tiva de comportamento e objetos da situacio externa e de outros individuos usando tais expectativas como “condigdes” ou “meios” para a consecucéo bem~sucedida dos fins racionalmente escolbi- dos pelo préprio agente. B Idgico que Weber sabia que cada uma dessas orientacbes é“racional” quando se leva em conta a equacio meios-fins, Mas 0 seu interesse estava voltado para as condigdes necessdrias, para as manifestagbes e consegiléncias da orientagao zwecrational. Em A Politica Como Vocacio, tal interesse se volta para as condigGes necessdrias ao funcionamento do Estado moderno, para a burocracia como organixagao social baseada numa orien- 1 tagao awecrational de acdes e nas consegiiéncias da burocratiza- yo do Estado moderno para a sociedade em que se encontra in- serido. Para Weber, diferentes tipos de sociedades apresentant diferentes formas de lideranga politica, Entretanto, a manuten- G40 dessas liderancas depende de organizagdes administrativas que realizam a “expropriagio” politica. Séo tais organizacies que irdo, afinal de contas, determinar a “racionalidade” do sis- tema politico; sito elas que irdo exercer, com maior ou menor sucesso, 0 monopdlio do poder de uma sociedade. A “racionali- dade” de semethantes organizagoes depende, em primeiro lugar, de uma distingéo entre “viver para a politica”e “viver da po- Itica”. Ainda que Weber nao o afirme categoricamente, essa distingao ajuda a compreender as motivagoes da ago politica e, Por sua vex, gera o problema da corrupgao, na organizagao poli- tica, Em segundo lugar, a racionalidade do sistema politico au- menta na medida em que ocorrem uma diferenciagao de status- -paptis ¢ uma especializagio funcional dentro das organizagoes administrativas. A britbante e erudita anélise de Weber sugere que a diferenciacio ocorre quando bd uma especializacio entre 1 adrinistracio, que deve ser exercida sine ita et studio, ¢ a li- deranca politica, cuja agao 6, por natureza, fundamentada na ita et studium. Essa especializagdo, por sua vez, tende a mudar os critérios de alocagao de status-papéis na organizacao politica, Os critérios deixam de ser plutocriticos e passam a basear-se no de- sempenbo e no conbecimento especializado, Nao hé portanto, nessa nova organizacao, lugar para o dilettante, pois o seu “su- cesso” depende, cada vez mais, da acto especializada, Em A Ciéncia Como Vocagio, o interesse de Weber pela orientacao zwecrational se manifesta no exame da prépria pré- sica da racionalidade. Segundo ele, a Giéncia ou a pratica da Ciéncia contribui para o desenvolvimento da tecnologia, que con- trola a vida. Contribui, também, para o desenvolvimenta de métodos de pensamento, para a construcéo de instrumentos & adestramento do pensar. Finalmente, a Ciéncia contribui para 0 ““ganbo da clarexa’”. O que Weber quer dizer com isso? Quer dizer que a Ciéncia indica os meios necessdrios para atingir determinadas metas. E que tais metas devem, portanto, ser cla- ramente formuladas, a fint de se identificarem os meios de atingi- -las. Por via desse processo, entretanto, os homens ficam saben- do 0 que querem ¢ 0 que devem fazer para obter o que querem. 12 ssibilita a opcao nao sé de meios mas de metas de com- F tnbnto. Beis segundo Weber, « grande contibugio da Rioncia, Em dltima anilise, portanto, a contribuigto da pritica cientifica é, para o pensador alemito, 0 desenvolvimento da ra- cionalidade. — Tense a impressio de que 0 problema da racionalidede as- sume, por vexes, ent Weber, um carder formalista, que se ire Ghuz na adequagto entre meios ¢ fins ¢ nio no exame crtico dos fins "As expenibncias de Hiroxima e Nagaséqui, a “guerra fri sutras manifestagbes “‘racionalistas” do pés-guerra sugeriramt fos clentitas contempordneos of perigos existentes numa atitur de formalista com relagio a “racionalidade”. Weber, entretanto, era um bomem de sen tempo e 56 wnea anilice da estrulura em que estava inserido nos pode ajudar a compreender sua preacupacto com a raciondidade e a maneira como a define. ‘Ele teve a grande virtude de perceber que, na Alemanba de Weimar, at Universidades estavant sendo impregnadas por ideo- logias estranhas 2 educacio, Mais precisamente, que o fasciswto da nascente politica nacional socialista estava comecando a amea- aro espiito critica e a liberdade de pensamento. Os cargos $2 enitos cram, muitas vetes, preenchidos por individuos que “iiltzeam a3 cévedras, para décursos politicos demagdgicos, de inspinagao fascista, A educagio raciondista e juridica de Weber ase bin para que ele pudesse perceber o perigo que tal prética ‘ratia nao 16 para 2 educa(ao como para o proprio futuro da ‘emanha. Dafa sua preocupagio com 4 recionalidade e com & objetividede : “Ainda, entretanto, que se descubram as causas estruturais do pensamerto weberiano ¢ suas liitagdes epistemoléieas, sua conkribuigao & Sociologia permanece central nao s6 por suas ani fises comparativas, por seu método da compreensio (erstehen), cu pela descoberta das conexses entre orientaroes valorativas Comportamentas estruturas. © peniamento de Weber petite também porgue muitas das caracteristicas da estrutura social da Republica de Weimar basicamente se repeter em outras socie- dades, em outros tempos. Manoet T. Bertincx, Ph. D. 3 A CIENCIA COMO VOCAGAO PEDIRAM-ME 05 SENHORES que Ihes falasse da cigncia como vocagao, Ora, nés economistas temos o hébito pedante, a que me agradaria permanecer fiel, de partir sempre do exame das condigdes externas do problema. No caso presente, parto da seguinte indagagdo: quais sfo, no sentido material do termo, as condigées de que se rodeia a ciéncia como vocacio? Hoje em dia, essa pergunta equivale, praticamente ¢ em esséncia, a esta ‘outta: quais séo as perspectivas de alguém que, tendo concluido seus estudos superiores, decida dedicar-se profissionalmente ciéneia, no ambito da vida universitéria? Para compreender_ a peculiaridade que, sob esse ponto de vista, apresenta a situagio alema, convém recorrer ao processo da comparagio © conhecet as condigdes que vigem no estrangeito. Quanto a esse aspecto, sio os Estados Unidos da América que apresentam os contrastes mais violentos com a Alemanha, razZo por que ditigiremos nos- sa atengao para aquele pats. Sabemos todos que, na Alemanha, a catzeia do jovem que se consagta & ciéncia tem, normalmente, como primeiro paso, 2 posicao de Privatdozent, Apés longo trato com especialistas da matéria escolhida, ¢ apés haver-lhes obtido o consentimento, 0 candidato se habilita ao.ensino superior redigindo uma tese ¢ submetendo-se a um exame que é, as mais das vezes, formal, pe- rante uma comissao integrada por docentes de sua Universidade. Ser-lhe-, entio, permitido ministrar cursos a ptopésito de as- suntos por ele prdprio selecionados dentro do quadro de sua venia legendi, sem receber qualquer temuneracio, a nfo set as taxas pagas pelos estudantes. Nos Estados Unidos da América, inicia-se a carreira académica de maneita inteiramente diversa: parte-se do desempenho da fungao de “assistente”. Trata-se de modo de proceder muito préximo, por exemplo, ao dos grandes 7 Institutos alemies das Faculdades de Ciéncias ¢ de Medicina, ‘onde a habilitagio formal 4 posigio de Privaldozent s6 & tenta- da por pequena fracio de assistentes e, com freqiténcia, em fase avangada das respectivas catreiras. A’ diferenga que nosso sis- tema apresenta em relagdo ao americano significa que, na Ale- mana, a carreira de um homem de cigncia se apsia em alicer- ces plutocréticos. Para um jovem cientista sem fortuna pessoal é, com efeito, extremamente atriscado enfrentar os azarcs da caxteira universitéria, Deve ele ter condigdes" para subsistir com seus préprios recursos, ao menos durante certo niimero de anos, sem ter, de maneita alguma, a certeza de que um dia The serd aberta a possibilidade de ocupar uma posigio que lhe daré meios de viver decentemente. Nos Estados Unidos da América reina, em oposigio ao nosso, o sistema burocratico. Desde que inicia a carreira, o jovem cientista recebe um pagamento, Trata-se de salério modesto que, freqiientemente, é apenas igual a0 de um trabalhador semi-especializado, Nao obstante, 0 jovem parte de uma situagio aparentemente estével, pois recebe ordenado fixo. E de regra, entretanto, que se possa despedi-lo, tal como séo afastados os assistentes alemes, quando nio correspondem is expectativas. E que expectativas so essas?_ Pura ¢ simples- mente que cle consiga “‘sala cheia”, Isso € algo que néo afeta © Privatdozent. Uma vez admitido, ele nio pode ser desalojado. Nao the petmitem, por certo, quaisquer reivindicagSes, mas cle adquite o sentimento, humanamente compreensfvel, de que, apds anos de trabalhos, tem o diteito moral de esperar alguma con deragio. A situacio adquitida é levada em conta — e isso ¢, com freqiiéncia, de grande importincia — no momento de even- tual “habilitagio” de outzos Privatdozenten. Surge, a partir daf, um problema: deve-se conceder a “habilitacdo” @ todo jovem cientista que haja dado provas de sua capacidade, ou deve-se ter em conta as “necessidades do ensino”, dando sos Dozenten jé qualificados 0 monopélio do lecionar?’ Essa indagacio faz sur- git um dilema penoso, que se liga a0 duplo aspecto da vocecao universitéria © que seré, dentro em pouco, objeto de considera- ges. Na generalidade dos casos, as opinides se inclinam em fa- vor da segunda solugio. Mas ela nfo faz senfo com que se acen- tuem certos perigos. Em verdade, a despeito de sua probidade pessoal, © professor titular da disciplina que se ache em causa se verd, apesar de tudo, inclinado a dar preferéncia a seus pr6- 18 prios alunos. Se posso falar de minha atitude pessoal, adotei a ditetriz. seguinte: pedia ao estudante que havia elaborado sua ese sob minha orientagio que se candidatasse e “*habilitasse” perante outro professor, em outra univetsidade. Desse procedi- mento resultou que um de meus alunos, ¢ dos mais capazes, foi aceito por colegas meus, porque nenhum destes acreditou no motivo que o levava a ptocuré-los. Existe outta diferenga entre o sistema alemio © 0 ameti- cano. Na Alemanha, 0 Privatdozent dé, em geral, menos cursos do que desejaria. ‘Tem ele, por certo, 0 dircito de oferecer to- dos 0s cursos que estejam dentro de sua especialidade. Mas, agir assim, seria considerado indelicadeza grande para com os Dozenten mais antigos; em conseqiéncia, os “grandes” cursos ficam reser- vados para os professores ¢ os Dozenten devem limitar-se 208 carsos de importincia secundéria. Em tal sistema encontram os Dozenten a vantagem, talvez involuntéria, de, durante a juven- tude, dispor de lazeres que podem ser consagrados aos trabalhos cientificos. Nos Estados Unidos da América, a organizagio é funda mentalmente diverse, E precisamente durante os anos de juven- tude que o assistente se vé literalmente sobrecarregado de tra- balho, exatamente porque € remunerado. Num departamento de estudes germanicos, 0 professor titular dé cerca de trés horas de cutso sobte Goethe ¢ isso é tudo — enquanto que o jovem as- tente deve considerar-se feliz se, ao longo de suas doze horas de trabalho semanal, a par dos exercicios préticos de alemfo, for autotizado a dar algumas ligSes sobre escritores de mérito maior que, digamos, Ubland. Instancias superiores elaboram 0 programa ¢ a ele o assistente se deve curvar, tal como ocotre, a Alemanha, com o assistente de um Instituto, Nos iiltimos tempos, podemos observar claramente que, ‘em numerosos dominios da ciéncia, desenvolvimentos recentes do sistema universitério alemio orientam-se de acordo com padrées, do sistema norte-americano. Os grandes institutos de ciéncia de medicina se transformaram em empresas de “‘capitelismo esta- tal”, J& nfo € possfvel gericlas sem dispor de recursos financei- ros considerdveis, E nota-se 0 surgimento, como alids em to- dos os lugares em que se implanta uma empresa capitalista, do fenémeno especifico do capitalismo, que é 0 de “privar 0 tra- 19 balhador dos meios de produgio”. O trabalhador — o assisten- te — nio dispde de outros recursos que nio os instrumentos de trabalho que 0 Estado coloca a seu alcance; conseqiiente- mente, cle depende do diretor do instituto tanto quanto 0 em- pregado de uma fébrica depende de seu patrio — pois o diretor de um instituto imagina, com inteita boa-fé, que aquele é sew Instituto: dirigeo a scu belprazer. Assim, a posigéo do assis- tente é com freqincia, nesses institutos, tio precéria quanto a de qualquer outra existéncia “proletardide” ou quanto a dos assistentes das universidades norte-americanas. Tal como se dé com outros setores de nossa vida, a univer-" sidade alemi se americaniza, sob importantes aspectos. Estou convencido de que essa evolucdo chegaré mesmo a atingir as disciplinas em que o trabalhador ¢ proprietério pessoal de seus meios de trabalho (essencialmente, de sua biblioteca). No mo- mento, 0 trabalhador de minha especialidade continua a set, em larga medida, seu proprio patréo, a semelhanga do artesio de euttora, no quedo de,seu mister préprio, A evolsfo se pro cessa, contudo, a grandes passos. Nao se podem negar as incontestéveis vantagens.téenicas dessa evolugio, que se manifestam em quaisquer empresas que tenham, ao mesmo tempo, catacteristicas buroctiticas e capita- listas. "Todavia, 0 novo “espirito” € bem diferente da velha atmosfera histérica das universidades alemas. Hd um abismo, tanto visto de fora quanto visto de dentro, entre essa espécie de grande empresa universitéia capitalista e 0 professor titular ¢o- mum, de velho estilo. Isto se traduz até na maneita intima de set. Nio quero, entretanto, descer a pormenores. A antiga of ginizagio univetsitéria tornou-se uma ficeio, tanto no que se refere 20 espirito, como no que diz respeito a estrutura, Hi, no obstante, um aspecto préprio da carreira universitétia que se manteve e se vem manifestando de maneita ainda mais sensivel: © papel do acaso. E a ele que 0 Privatdozent e, em patticulat, © assistente deveréo atribuir 0 fato de, eventualmente, passa- rem a ocupar uma posicio de professor titular ou de ditetor de um instituto, Claro esté que 0 arbitrério no reina sozinho em tais dominios, mas apesar disso, exerce influéncia fora do comum. Nao me consta existir, em todo o mundo, catreira em relagZo & qual o seu papel seja mais importante. Estou A vonta- 20 de para falar do assunto, pois, pessoalmente, devo a um con- curso de circunstincias particularmente felizes o fato de havet sido convocado, ainda muito jovem, para ocupar uma posicéo de professor titular dentro de um campo de especialidade em que colegas de minha idade jé haviam produzido muito mais do que eu mesmo. Com base em tal experiéncia, creio possuir visto penetrante para compreender o imerecide’ fado de numetosos colegas para os quais a fortuna nfo sorria, e ainda no sorri, € gp devido aos procssos de sdeso, jamais puderan ocupt, lespeito do talento de que sio dotados, as posigies que mere ceriam, Se 0 acaso ¢ nao apenas o valor desempenha papel tio re- evante, culpa no cabe exclusivamente, nem principalmente, as fraquezas humanas que se manifestam, evidentemente, na sele- do a que me refiro e em qualquer outra. Seria injusto imputar 4 deficiéncias pessoais que se manifestam no quadro de faculdades ‘cou de ministérios responsabilidade por uma situagdo que leva tio grande mimero de mediocridades a desempenharem fungdes importantes nas carreiras universitérias, A razio deve ser bus- cada, antes, nas leis que regem a cooperacio humana, especial- mente a cooperagio entre organizagdes diversas, e, em nosso caso particular, a colaboracgo entre as faculdades que ptopdem ‘0s candidatos ¢ 0 ministério que os nomeia. Podemos tecorret ‘1 um paralelo com a eleigo dos papas que, 20 longo de sécalos numerosos, nos vem fornecendo 0 mais importante exemplo concreto desse tipo de selegio. © cardeal que se indicava como “favorito” raramente vinha a ser eleito. Regra geral, elegia-se ‘© candidato ntimero dois ou ntimero trés. Ocorre fenémeno idéntico nas eleigies presidenciais dos Estados Unidos da Amé- rica, $6 excepcionalmente 0 candidato mimero um ¢ mais proe- minente & “escolhido” pelas convencées. nacionais dos partidos: na maioria das vezes, escolhe-se 0 candidato mimero dois e, com freqiéncia, o niimero tres, Os norte-americanos j4 chegaram mesmo a ctiar expresses técnicas e socioldgicas pata caracterizar essas categorias de candidatos. Seria, ¢ claro, interessante exa- minar, a partir de tais exemplos, as leis de uma selegio que se faz por ato de vontade coletiva, mas esse no é 0 nosso propé- sito de hoje. Essas mesmas leis se aplicam também as eleicdes nas assembléias universitdrias. E devemos espantar-nos nao ‘com os efros que, nessas condigées, sfo freqtientemente come- 21 tidos, mes sim com 0 fato de que, guardadas todas as propor- es, constata-se, apesar de tudo, que hé niimero igualmente con- siderdvel de nomeagdes justificadas. $6 em alguns paises em que © Parlamento tem iofluéncia no caso ou em nagées em que os monarcas intervém por motives politicos (o resultado & 0 mesmo em ambas as situagées), tal como acontecia na Alemanha até época recente ¢, de novo, em nossos dias, com os detentores do poder revolucionétio, é que podemos estar certos de que os mediocres ¢ os artivistas so os tinicos a terem possibilidade de ser nomeados. “ Nenhum professor universitério gosta de relembrar as dis- cusses que se travaram quando de sua nomeagio, porque clas raramente so agradaveis. Posso, entretanto, declarar que, nos umerosos casos que sfo de meu conhecimento, constatei, sem excecio, a existéncia de uma boa vontade preocupada com evi- tar que na decisio interviessem razSes outras que nfo as pura- mente objetivas. & preciso, por outro lado, compreender clatamente que as deficiéncias observadas na selesio que se opeta por vontade co- letiva no explicam, por si mesmas, 0 fato de que a decisfo re- Jativa aos destinos ‘universitétios é em grande porcdo, deixada a0 “acaso”. ‘Todo jovem que actedite possuir a vocagio de cien- tista deve dar-se conta de que a tarefa que 0 espera reveste du- plo aspecto. Deve ele possuir nfo apenas as qualificagées do cientista, mas também as do professor. Ora, essas duas carac- terfsticas nfo s4o absolutamente coincidentes, & possivel ser, a0 mesmo tempo, eminente cientista e péssimo professor. Penso na atividede docente de homens tais como Helmholtz ou Ran- ke que, por certo, nao sto excegées. Em verdade, as coisas se passam da seguinte maneira: as universidades alemis, parti- culatmente as pequenas, entregamse, entre si, 2 mais ridicula concorréncia para atrair estudantes. Os locadores de quartos para estudantes, primérios como camponeses, organizam festas em honra do milésimo aluno ¢ apteciariam organizar marchas & Juz de tochas, pata saudar o milésimo seguinte. A renda que advém da conttibui¢do dos estudantes é, impotta confessé-lo, condicionada pelo fato de outros professores que “atraem grande niimero de alunos” sministrarem cursos de disciplinas afins. Ainda que se faca abstracfo de tal circunsténcia, continuard a 22 ser verdade que o niimero de estudantes matriculados coustitui ‘um critério tang(vel de valor, enquanto que o mérito do cientis ta pertence a0 dominio do imponderivel. Dé-se freqiientemente (e é natural) que se utilize exatamente esse argumento para res- ponder aos inovadores audaciosos. Fis por que tudo quase sem- pre se subordina a obsessio da sala cheia e dos frutos que daf decorrem, Quando de um Dozent se diz que é mau professor, isso equivale, na maioria das vezes, a pronunciar uma sentenga de morte universitéria, embora seja cle 0 primeito dos cientistas do mundo, Avalia-se, portanto, o bom ¢ 0 mau professor pela assiduidade com que os Senhores Estudantes se disponham a hot réfo. Ora, é indiscutivel que os estudantes procuram um deter- minado professor por motivos que so em grande parte — parte tdo grande que é dificil acreditarmos em sua extenso — alheios A cigncia, motivos que dizem respeito, por exemplo, ao tempera- mento ow a inflexdo da voz. Experiéncia pessoal jé bastante am- pla ¢ reflexo isenta de qualquer fantasia condaziram-me a des- confiar fortemente dos cursos procurados por grande massa de estudantes, embora 0 fato pareca inevitdvel. A democracia deve set praticada onde convém. A educacio cientifica, tal como, por tradigao, deve ser ministrada nas universidades alemas consti- tui-se numa tarcfa de aristocracia espiritual, ¥ indtil querer dissimuléJo. Ora, é também verdade, por outro lado, que den- te todas as tatefas pedagépicas, a miais dificil € a que consiste ‘em expor problemas cientificos de mancira tal que um espirito io preparado, mas bem-dotado, possa compreendélo ¢ formar ‘uma opinifo prépria — 0 que, para nés, cortesponde ao tinico éxito decisive. Ninguém o contestaré, mas nfo é, de maneira al guma, o niimero de ouvintes que daté a solugéo do problema. ‘Aquela capacidade depende — para voltar a nosso tema — de ‘um dom pessoal e de maneira alguma se confunde com os conhe- cimentos cientificos de que seja possuidora uma pessoa. Contra- riamente 20 que se dé na Franca, a Alemanha no tem uma cor- porasio de imortais da cincia, mas sio as universidades que de- vem, por tradigio, responder as exigéncias da pesquisa ¢ do ensi- no. ‘Serd mera coincidéncia o fato de essas duas aptidées se en- contrarem no anesmo homem. ‘A vida universitéria estd, portanto, entregue a um acaso cego. Quando um jovem cientista nos procura para pedir con- selho, com vistas A sua habilitagio, &nos quase impossivel as- 23 sumit a responsabilidad de She aprovar o des{gnio. Se se trata de um judeu, a ele se diz com naturalidade: lasciate ogni sperar za, Impdese, porém, que-a todos os outros candidates também se pergunte. “‘Vocé se actedita capaz de vet, sem desespeto nem amargor, ano apés ano, passar 4 sua frente mediocridede apés mediocridade?” Claro est4 que sempre se recebe a mesma resposta: “Por certo que sim! Vivo apenas para minha voca- gio”. Nao obstante, eu, pelo menos, s6 conheci muito poucos candidatos que tenham suportado aquela situacéo sem grande prejutzo para suas vides interiores. Eis af o que era necessério dizer acerca das condigSes exte- riores da ocupagio de cientista. Crefo que, em verdade, os senhores esperam que eu Ihes fale de outro assunto, ou seja, da vocarao cientifica propriamente dita, Em nossos dias e referida a organizacio cientifica, essa vo- cago é determinada, antes de tudo, pelo fato de que a ciéncia atingiu um estégio de especializagao que ela outrora nfo conhe- cia e no qual, ao que nos é dado julgar, se manterd para sempre. A afirmagio tem sentido nio apenas em relagio as condigées externas do trabalho cientifico, mes também em relagéo as dis- posigées interiores do proprio cientista, pois jamais um indivi- duo poderd ter a certeza de alcancar qualquer coisa de verdadei- ramente valioso no dominio da ciéncia, sem possuit uma rigoto- sa especializacio. Todos os trabalhos que se estendem para 0 campo de especialidades vizinhas — é experiéneia que nés, eco- homistas, temos de tempos em tempos e que os socidlogos tém constante e necessariamente — levam a marca de um resignado reconhecimento: podemos propor aos especialistas de discipli- nas afins perguntas ‘iteis, que eles nfo se terlam formulado tao facilmente, se pattissem de seu proprio ponto de vista, mas, em contrapartida, nosso trabalho pessoal permanecerd inevita- velmente incompleto. $6 a especializacio estrita permitiré que © trabalhador cientifico experimente por uma vez, e certamen- te nfo mais que por uma vez, a satisfacio de dizer a si mesmo: desta ver, consegui algo que permanecerd, Em nosso tempo, obra verdadeiramente definitiva e importante € sempre obra de espe- ialista, Conseqiientemente, todo aquele que se julgue incapaz de, por assim dizer, usar antolhos ou de se apegat a idéia de que © destino de sua alma depende de ele formuler determinada con- jetura e precisamente essa, a tal altura de tal manuscrito, fart 24 melhor em permanecer alhcio ao trabalho cientifico. le jamais sentiré o que se pode chamar a “‘experiéncia” viva da ciéncia, Sem essa embriaguez singular, de que zombam todos os que se mantém efastados da ciéncia, sem essa paixdo, sem essa certeza de que “milhares de anos se escoaram antes de vocé ter acesso a vida e milhares se escoatio em silencio” se voc€ niio for ca- paz de formular aqucla conjetura; sem isso, voce nfo possuird jamais a vocagio de cientista ¢ melhot seté que se dedique a Sutra atividade. Com efeito, pare o homem, enquanto homem, nada tem valor a menos que cle possa fazé-lo com paixto. Outta coisa, entretanto, € igualmente certa: por mais inten- sa que seja essa paixio, por mais sincera e mais profunda, ela nao bastard, absolutamente, para assegurar que sc alcance éxito. Em verdade, essa paixio nao passa de requisito da “inspiracio”, que € 0 tinico fator decisive. Hoje em dia, achase largamente disseminada, nos meios da juventude, 2 idéa de que a ciéncia se tetia transformado numa operagéo de célculo, que se realizaria fem laboratérios © escritérios de estatfstica, ndo com toda a “alma”, porém apenas com o auxilio do entendimento frio, 2 semelhanga do trabalho em uma fabrica. Ao que sc deve desde Jogo responder que os que assim se manifestam néo tém, fre- glientemente, nenhuma idéia clara acerea do que se passa uma fabrica ou num laboratério. Com efeito, tanto num caso coro no outro, € preciso que algo ocorra ao espirito do trabalhador — e precisamente a idéia exata — pois, de outra forma, ele nun- ca seré capaz de produzit algo que encetre valor. Essa inspira- Gio néo pode ser forgada. Ela nada tem em comum com 0 célculo frio. Clero esté que, por si mesina, ela nfo passa tam- bém de um requisite, Nenhum sociélogo pode, por exemplo, acreditar-se desobrigado de executar, mesmo em seus anos mais avancados ¢, talvez, duranté meses a fio, operagdes triviais. Quando se quer atingir um resultado, nfo se pode impunemente, fazer com que o ttabalho seja executado pot meios mecfinicos da que esse resultado seja, freqiientes vezes, de significa- reduzida, Contado, se nio nos acudir ao espfrito uma “idéia” precisa, que oziente a formulagéo de hipéteses, ¢ se, en- quanto nos entregamos a nossas conjeturas, nfo nos ocorre uma idéia” relativa a0 alcance dos resultados parciais obtidos, no chegaremos nem mesmo a alcangar aquele m{nimo. Notmalmen- te, a inspitagio 86 ocorre apés esforgo profundo. Nao hé divi- 25 da de que nem sempre € assim. No campo das ciéncias, a intui- Go do diletante pode ter significado t2o grande quanto a do especialista ¢, por vezes, maior. Devemos, alids, muitas das hi- péteses mais frutiferas ¢ dos conhecimentos de maior alcance a diletantes. Estes no se distinguem dos especialistas — con- forme o julzo de Helmholtz a respeito de Robert Mayer — se- nifo por auséncia de seguranga no método de trabalho e, amiuda- damente, em conseqiiéncia, pela incapacidade de verificar, apre- ciat e explorar o significado da prépria intuigao. Se a inspiragio no substitui o trabalho, este, por seu lado, ‘nfo pode substituir, nem fotcar o surgimento da intuiglo, 0 que a paixio-também nao pode fazer. Mas 0 trabalho e 2 paixio fazem com que sut- ja a intuicio, especialmente quando ambos atuam ao mesmo tem- po. Apesar disso, a intuigio nfo se manifesta quando nés 0 queremos, mas quando ela o quer. Certo é que as melhores idéias nos ocotrem, segundo a observagio de Ihering, quando nos encontramos sentados em uma poltrona e fumando um cha- ruto ou, ainda, segundo o que Helmholtz observa a respeito de si mesmo, com precisfo quase cientifica, quando passeamos por uma estrada que apresente ligeiro aclive ou quando ocorram circunstincias semelhantes. Seja como for, as idéias nos acodem quando no as esperamos € no quando, sentados A nossa mesa de trabalho, fatigamos o cérebro a procurélas. verdade en- tretanto, que elas nfo nos ocorreriam se, anteriormente, nijo hou- vvéssemos tefletido longamente em nossa mesa de estudos € no houvéssemos, com devocao apaixonada, buscado uma resposta, De qualquer modo, 0 estudioso esté compelido a contar com 0 acaso, sempre presente em todo trabalho cientifico: ocorrerd ou no ocotreré a inspiragio? Pode dar-se que alguém seja traba- Thador notdvel, sem que jamais lhe ocorra uma inspiracio. Co- meter-seia, alifs, erto grave, se se imaginasse que tio-somente no campo das ciéncias é que as coisas se passam de tal modo € que num esctitério comercial elas se apresentam de maneira inteiramente diversa do modo como se apresentam em um labo- ratério. Um comerciante ou um grande industrial que no te- ham “imaginacio comercial”, isto é, que nfo tenham inspira- do, que nfo tenham intuigées geniais, nfo passarao nunca de omens que tetiam feito melhor se houvessem permanecido na condicéo de funcionétios ou de técnicos: jamais criaro for- mas novas de organizagéo. A intuigéo, ao contrério do que jul- 26 ‘gam os pedantes, nfo desempenha, em ciéncia, papel mais im- portante do que o papel que Ihe toca no campo dos problemas da vida pritica, que 0 empreendedor moderno se empenha em resolver. De outta parte — e é panto também freqiientemente esquecido — 0 papel da intuigéo nfo ¢ menos importante em ciéncia do que em arte. E pueril acreditar que um matemético, preso a sua mesa de trabalho, pudesse atingir resultado cienti- ficamente wtil através do. simples manejo de uma régua ou de uum instrumento mecinico, tal como a méquina de calealar. A imaginagdo matemética de um Weierstrass é, quanto a seu sen- tido ¢ resultado, orientada de maneira inteiramente diversa da maneira como se orienta a imaginacio de um artista, da qual se distingue também, e radicalmente, do ponto de vista da quali dade; mas 0 processo psicolégico ¢ idéntico em ambos os casos. ‘Ambos equivalem a embriaguez (“‘mania”, no sentido de Pla. to) ¢ “inspiragio”, As intuig6es cientificas que nos podem ocorrer dependem, portanto, de fatores ¢ “dons” que so por nés ignorados. Essa verdade incontestével serve de pretexto, aos olhos de certa men- talidade popular (disseminada, 0 que € compreensivel, especial- mente entre os jovens), para levar & devogio {dolos, cujo culto, hoje em dia, se faz ostensivamente, em todas as esquinas e em todos os jornais, Esses idolos sfo os da “‘personalidade” ¢ da “experiéncia pessoal”. Hi, entre esses {dolos, ligacdes estreitas, pois, um pouco por toda’ a parte, predomina a idéia de que « experiéncia pessoal constituiria a personalidade e se incluiria em sua esséncia, Tortura-se o espfrito para fabricar “experién- cias pessonis”, na convicsio de que isso constitui atitude digna de uma personalidade e, quando nfo se aleanca resultado, podese, a0 menos, assumir o at de possuir essa graga, Outzora, em lin: gua alemd, a “experitacla pessoal” era chamada “sensacéo”, E creio que, naquela época, tinha-se idéia mais clara do que seja a personalidade e do que ela significa. Senhoras e senhores! $6 aquele que se coloca pura ¢ sim- plesmente ao servico de sua causa possui, no mundo da ciéncia, “personalidade”. E no € somente nessa esfera que assim acon- tece. Nio conheco grande artista que haja feito outra coisa que no 0 colocarse ao servico da causa da arte e dela apenas. Mes- mo uma personalidade da estatura de Goethe, na medida em que 27

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