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~ a 2 s ge — Hermenéu Sul AMERICANA FACULDADE TEOLOGICA « AE piral Hermenéutica uma nova abordagem a interpretagao bfblica Grant R. Osborne Tradugao Daniel de Oliveira Robinson N. Malkomes Sueli da Silva Saraiva LJ VIDA NOVA Dados Internacionais de Catalogagao na Publicagao (CIP) (CAmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Osborne, Grant R. ‘Acspiral hermenéutica: uma nova abordagem & interpretagio biblica / Grant R. Osborne; tradugao Daniel de Oliveira, Robinson N. Malkomes, Sueli da Silva Saraiva. So Paulo: Vida Nova, 2009. Tilo origi: “The hermencutical spiral: a comprehensive introduction to biblical interpretation. Bibliografia ISBN 978-85-275-0422-5 1, Biblia — Hermentutica L, Titulo 09-0729 CDD-220.601 Indices para catdlogo sistematico: 1, Hermeneutica bfblica 220.601 PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL conhecimento do pano de fundo transformaré um sermao de um estudo bidi- mensional em um evento cinemdtico tridimensional, Nunca se pretendeu que as narrativas ¢ os discursos da Biblia fossem tratados de formas meramente bidimen- sionais, separadas da vida real, Cada um foi escrito dentro de um ambiente cultural concreto € de uma situago concreta, Sdo os estudos sociocientificos do pano de fun- do que esclarecem a situagao original, a qual, de outro modo, seria perdida pelo leitor contemporineo, David deSilva expde isso muito bem (2004118): © wr nao trata simplesmente da “Palayra de Deus” no sentido dos prineipios e ideias divinas, Ele também fala sobre a “Palayra” de Deus “tornada carne”, quando os lideres cristfios usaram as palavras, simbolos ¢ rituais — cada qual tendo sentido somente por- que ressoava nos contextos sociais ¢ cultu: is de seus autores ¢ ouvintes — para ctiar & dar forma ao grupo social distintivo que hoje chamamos de igreja, Além disso, ele trata de responder ¢ preservar aquela Palavra no meio da realidade, interagdies sociais cotidia- nas, ¢ em face de desafios reais ¢ condicionados por fatores sociais e culturais. A exegese histérico-cultural difere do estudo histérico-critico no sentido de que ela aplica dados do pano de fundo a uma passagem para melhor compreender seu significado, mas ela nfio usa isso para determinar a autenticidade ou a ampliagao editorial do texto. Considerando-se que o cristianismo é uma religiao histérica, o in- térprete deve reeonhecer que uma compreenstio da historia e cultura dentro da qual a passagem foi produzida é um instrumento indispensével para descobrir o significado “de tal passagem. A “Histéria € o aspecto diacrdnico, relative ao ambiente no qual ‘os autores sagrados produziram suas obras; ela se refere aos eventos e tempos dentro dos quais 4 revelagao sagrada de Deus ¢ expressa. A “Cultura é 0 aspecto sinerdnico e se refere aos modos, costumes, instituigdes ¢ prineipios que caracterizam qualquer era em particular, formando o ambiente no qual as pessoas administra suas vidas PANO DE FUNDO HISTORIC E CULTURAL | 199 A literatura biblica tem duas dimensdes: uma intencionalidade histérica, em que 6 autor supde certa informagio compartilhada com seus leitores originais, ¢ uma intencionalidade literéria, em que ele codifica uma mensagem no seu texto, Os autores ou discursam (literatura profética ¢ epistolar com um cardter histérico pre- sonte) ou deserevem (narrativa histérica com um cariter histérico passado) situa g0es de pano de fundo. Em ambos os casos existem “suposigdes compartilhadas* etitre 0 autor © seus leitores originais, informagdes niio encontradas no texto, i.c., dados que eles sabiam, mas nés no. Embora a pesquisa semfntica e a andl sintética possam desvendar a dimenséo literaria, um estudo do pano de fundo his- torico 6 necessario para revelar um nivel mais profundo do significado subjacente 40 texto, bem como do proprio texto. John Elliott (1993:7) esclarece que a tarefa das abordagens sécio-cientificas ¢ estudar “(1) nfio somente os aspectos sociais da forma e contetido dos textos, mas também os fatores condicionais e os resultados 'pretendidos no processo de comunicagao; [...] (2) a correlag&o do texto linguistico, ‘literario, teoldgico (ideoldgico) ¢ as dimensdes sociais; e (3) a maneira pela qual ‘esta comunicagao textual seja ao mesmo tempo wma reflexdo de e uma resposta a ‘um contexto social e cultural especifico”. A ferramenta fundamental para descobrir esses dados é a arqueologia. Mas a ‘sua relevancia para a hermenéutica é bastante discutivel. £ muito comum us ‘principalmente com propésitos apologéticos para “prover a autenticidade do re- ‘lato biblico. De fato, existe algum valor no uso da arqueologia pa ‘veracidade do registro biblico, O exemplo clissico é de W. M. Ramsay (Si. Paul the “Traveller and Roman Citizen [SHo Paulo, viajante ¢ cidadfo romano]), o grande his- foriador ¢ agndstico cujos estudos da evidéncia arqueoligica de Lucas-Atos levaram la confirmar a sua conversto, Por exemplo, 0 conhecimento recentemente adquirido da histéria do segundo milénio a.C. e dos movimentos semindmades do antigo Oriente Médio tém emprestado maior autenticidade as narrativas patriareais. William LaSor, Davi Hubbard e Frederic Bush (1982:102-107) resumem as evidéneias: (1) 08 nomes dos atriarcas se ajustam ao final do segundo milénio, mas nfo 20 pri iro milénio; (2) a viagem de Abraiio de Ur para Hard e Canad condiz. com as condigdes geogrificas Politicas do periodo; (3) 0 estilo de vida nmade pastoral dos patriarcas corresponde com as caracteristicas culturais ¢ topograficas do perfodo; (4) costumes sociais le~ ais deseritos com precisto no texto biblico refletem o periodo no qual as Eserituras 08 fixam; (5) o retrato da religio patriarcal é auténtico, especialmente a relagiio entre 6s patriarcas os santudrios locais e 0 retrato de Deus como o Deus pessoal do ela e io apenas como o Deus dos santuarios (como entre os cananeus), PANO DE FUNDO HISTORIC E CULTURAL | 199 A literatura biblica tem duas dimensdes: uma intencionalidade histérica, em que 6 autor supde certa informagio compartilhada com seus leitores originais, ¢ uma intencionalidade literéria, em que ele codifica uma mensagem no seu texto, Os autores ou discursam (literatura profética ¢ epistolar com um cardter histérico pre- sonte) ou deserevem (narrativa histérica com um cariter histérico passado) situa g0es de pano de fundo. Em ambos os casos existem “suposigdes compartilhadas* etitre 0 autor © seus leitores originais, informagdes niio encontradas no texto, i.c., dados que eles sabiam, mas nés no. Embora a pesquisa semfntica e a andl sintética possam desvendar a dimenséo literaria, um estudo do pano de fundo his- torico 6 necessario para revelar um nivel mais profundo do significado subjacente 40 texto, bem como do proprio texto. John Elliott (1993:7) esclarece que a tarefa das abordagens sécio-cientificas ¢ estudar “(1) nfio somente os aspectos sociais da forma e contetido dos textos, mas também os fatores condicionais e os resultados 'pretendidos no processo de comunicagao; [...] (2) a correlag&o do texto linguistico, ‘literario, teoldgico (ideoldgico) ¢ as dimensdes sociais; e (3) a maneira pela qual ‘esta comunicagao textual seja ao mesmo tempo wma reflexdo de e uma resposta a ‘um contexto social e cultural especifico”. A ferramenta fundamental para descobrir esses dados é a arqueologia. Mas a ‘sua relevancia para a hermenéutica é bastante discutivel. £ muito comum us ‘principalmente com propésitos apologéticos para “prover a autenticidade do re- ‘lato biblico. De fato, existe algum valor no uso da arqueologia pa ‘veracidade do registro biblico, O exemplo clissico é de W. M. Ramsay (Si. Paul the “Traveller and Roman Citizen [SHo Paulo, viajante ¢ cidadfo romano]), o grande his- foriador ¢ agndstico cujos estudos da evidéncia arqueoligica de Lucas-Atos levaram la confirmar a sua conversto, Por exemplo, 0 conhecimento recentemente adquirido da histéria do segundo milénio a.C. e dos movimentos semindmades do antigo Oriente Médio tém emprestado maior autenticidade as narrativas patriareais. William LaSor, Davi Hubbard e Frederic Bush (1982:102-107) resumem as evidéneias: (1) 08 nomes dos atriarcas se ajustam ao final do segundo milénio, mas nfo 20 pri iro milénio; (2) a viagem de Abraiio de Ur para Hard e Canad condiz. com as condigdes geogrificas Politicas do periodo; (3) 0 estilo de vida nmade pastoral dos patriarcas corresponde com as caracteristicas culturais ¢ topograficas do perfodo; (4) costumes sociais le~ ais deseritos com precisto no texto biblico refletem o periodo no qual as Eserituras 08 fixam; (5) o retrato da religio patriarcal é auténtico, especialmente a relagiio entre 6s patriarcas os santudrios locais e 0 retrato de Deus como o Deus pessoal do ela e io apenas como o Deus dos santuarios (como entre os cananeus), 200 | HERMENEUTICA GERAL ‘Nao obstante, existe um grande perigo em usar a arqueologia na apologetica. E uma faca de dois gumes. Jericé é um excelente exemplo. Com base nas escavagbes de John Garstang, entre 1930 ¢ 1936, os evangélicos tém afirmado que a evidéneia arqueols- gica indica que os muros na verdade cairam de dentro para fora. No entanto, alguns ainda hoje parecem nao ter conhecimento do trabalho de Kathleen Kenyon, entre 1952 € 1958, que demonstrou que as fortifieagSes de Garstang na verdade sto de um perio- do anterior, isto 6, de uma cidade do inicio da Era do Bronze, a qual foi destruida por um terremoto ¢ pelo fogo aproximadamente em 2300 a.C. (em vez de 1400 a.C., data de Garstang). Até hoje, no existe evidéncia a favor da narrativa biblica em relagdio 0s muros de Jericé. O que nao refiuta os dados biblicos (cf. Dumbrell 1985:130-139), mas indica 0s s¢rios problemas no uso apologético da arqueologia. Nao devemos che- gar a conclusdes muito precipitadas sobre a relevancia das descobertas arqueolégicas Muitas vezes os problemas excedem em valor as solugdes, e 6 desonesto usar uma ferramenta somente quando ela nos apoia ¢ negligencia-la quando nao 0 faz. Edwin Yamauchi discute a “natureza fragmentéria” da evidéneia arqueolégica (1972:146- 158). Em uma série de espirais descendentes, ele estuda a extensdo da evidencia que estd disponivel para nds. Apenas uma fragdo muito pequena do que foi feito ou escrito sobreviveu, devido & erosto do material por forgas naturais (vento, chuva, terra) ea natureza destrutiva dos humanos, Além disso, sitio apés sitio tem sido es- poliados por habitantes que roubam artefatos inestimaveis. 2, Somente uma parte dos sitios disponiveis foi investigada, Aterros sobre aterros permanecem desconhecidos na Grécia ou Siria. Por exemplo, ape- nas na Palestina 0 nimero de sitios descobertos passou de 300 em 1944 para 5.000 em 1963, chegando a 7.000 antes dos anos 70. 3. Entre os sitios inspecionados somente uma pequena parte foi escavada, Dos 5.000 na Palestina em 1963, apenas 150 haviam sido escavados em parte ¢ 86 26 se tomaram sitios importantes 4, Somente uma pequena parte de um loeal eseavado jé foi examinada devido aos incriveis custos envolvidos e & quantidade de tempo exigida, Yigae! Yadin caleulou que levariam oitocentos anos para limpar Hazor, um local de 175 acres. Algumas cidades so pequenas (Jericé abrange uma frea de sete acres ¢ Megido treze), mas muitas outras sito bastante grandes. A Babildnia com seus 2.500 acres levaria oito mil anos para ser completamente escava- da! O que pode levar a resultados distorcidos. Por exemplo, de 1894 9 1963 niio havia qualquer evidéncia para a existéncia de uma Era do Bronze em PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 201 Efeso. Entfio, em 1963, quando engenheiros turcos estavam construindo: ‘um estacionamento, enconiraram um cemitério micénio, Poucos arqueé- logos estiio dispostos a fazer afirmagées categéricas com base em dados imprecisos. 5. Apenas uma pequena parte do material descoberto foi publicada. Achados importantes podem apodrecer no poriio de um muscu durante cinquenta a setenta ¢ cinco anos. Por exemplo, 25.000 cuneiformes foram descobertos em Mari, mas aié hoje apenas 3.500 a 4.000 foram publicados. Muitos es- tudiosos se apressam em publicar novas descobertas, por isso ficam emba- ragados quando estudos posteriores demonstram que estavam equivocados. Nao € bom trocar o certo pelo duvidoso! ‘Sendo demasiado otimista, Yamauchi estima que, de um décimo do material exis- tente, devemos ter seis décimos investigados, um quinquagésimo escavado, um décimo examinado ¢ metade disso publicado. Isso significa que temos apenas 0,006 por cento de evidéneias, Se néio fossem alguns fatores que compensam os esforgos da arqueolo- gia, poderiamos ficar extremamente pessimistas quanto a0 seu valor. Nal preci mos da evidéncia completa para estudar os costumes. Porém, quanto mais evidéncia temos, ais certas sfio as conclusdes. Tanto é assim que alguns fragmentos de ceramica repre- sentando, por exemplo, a vestimenta dos egipcios seriam suficientes para demonstrar costumes domésticos. Yamauchi oferece uma discusso valiosa em termos metodologi- cos (1972:158). Ele divide a evidéncia em trés categorias: tradigoes (evidéncia escrita ‘ou oral de Herédoto, Homero, do Antigo Testamento e de outras fontes), restos mate- rinis (certimicas, escombros ¢ assim por diante) e inscrigdes. As conclusdes so mais fortes quando existem evidéncias sobrepostas de mais de uma fonte (cf. fig. 5.1). Inscrigoes Figura 5.1, Sobreposicao de fontes de evidéncia arqueolégica 202 | HERMENEUTICA GERAL O que também significa que o valor fundamental da arqueologia ¢ descritive (oferecendo um material de pano de fundo) em vez de polemico (apologético). Ela & demasiado incerta em seus resultados para ser usada como fonte priméria para a apologética. Certamente, nao quero dizer que seja inutil para a apologética, pois ela pode afirmar a veracidade basica das referéncias historicas ¢ geogréficas de Joo ou Lucas (sobre a fidelidade historica de Jodo, cf, Blomberg 2001), Porém, sua contri- buigao principal esté na informagao socioldgica, de forma que o leitor eantempori- neo possa compreender methor 0 ambiente no qual a passagem ou 0 evento biblico se desenvolveu. AREAS DE PESQUISA 1. Geogratia Os movimentos de povos ¢ a topografia da terra podem acrescentar perspectivas fantisticas ao estuco de uma passagem, Como demonstra Barry Beitzel: “A prépria historia esta, em muitos aspectos, ligada de forma inconteste as limitagdes da geo- grafia ¢ sujeita a elas. A geografia é uma forga motivadora que tanto desencadeia como impoe limites @ natureza e a esfera da histéria politica, 0 que poderiamos chamar de geopolitica (1985:2). Por exemplo, é de valor inestimavel ter um conhecimento detalhado das cidades e aldeias em que Jesus e Paulo ministraram (cf. Schnabel 2004), ou das cidades que abrigavam as sete igrejas de Apocalipse 23 (of, Osborne, 2002). Beitzel menciona dois exemplos biblicos (1985:102, 170): primeiro, uma anali- se da conquista de Canad mostra que todas as cidades invadidas se localizavam nas partes altas, enquanto que as planicies ¢ os vales, onde os carros de guerra cananeus podiam mudar o rumo de muitas batalhas, permaneceram fora de seu controle, De forma interessante, na Guerra dos Seis dias, em 1967, Israel reconquistou, quase exa- lamente, 0 mesmo territério (ef, mapa de Beitzel na p. 103, que visualiza e circuns- creve a conquista na contemporaneidade, em 1967, ao lado da conquista antiga sob ‘ comando de Josué). Mesmo passados varios milénios e com as imensas mudangas tecnolégicas, a geografia ainda determina a conquista militar, Segundo, a escolha de Cafarnaum por Jesus para sua base na Galileia pode ter sido em grande parte devida a fatores geogrificos. A cidade se situava a noroeste do “Mar da Galileia” ena “Grande Estrada Principal”, o principal caminho comercial que unia o Egito Mesopotamia, Anatureza cosmopolita ¢ o sabor internacional de Cafarnaum faziam dela um centro natural para as incursdes de Jesus na Galileia na Transjordinia, sendo ainda um bom lugar para a preparagiio da miss%o universal, PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 203 2. Politica Quando se estuda os relatos histéricos (como a historia de Israel ou a vida de Jesus), & bastante titi conhecer um pouco dos eventos politicos por tras desses relatos. Por exemplo, os profetas escreveram dentro do contexto de uma arena politica mais am- pla, e muito do que eles disseram pode ser melhor compreendido quando se leva em consideraga0o tais eventos. Muitos problemas sociais e religiosos decorriam do fato de Israel ser um estado-tampao' entre os assirios, os babildnios ¢, depois, os persas. Por exemplo, Acabe seguiu a pritica de Salomto do sincretismo e de tratados politi- cos, por isso, curante 0 seu governo, Israel adotou muitas priticas das nagdes pagiss. ‘Acestrutura de governo passou de modo progressivo para um sistema semifeudal e, no tempo de Acabe, 2 monarquia foi substituida por uma ditadura absolutista. Sob tal sistema, as justigas sociais da Tord e dos primeiros anos de Israel desapareceram, passando as classes superiores a explorar os pobres. Para uma excelente avaliagio das teorias sociocientificas relativas a quest&es como as origens de Israel, o desenvol- vimento da monarquia, a tradigo profética, 0 exilio ¢ o lugar das mulheres no Israel antigo, ver Charles Carter (1999:29-40), 3. Economia ‘Toda cultura pode ser definida de algum modo com base em sua situagio socioceo- nOmica, Hé virias dificuldades, porém, em reconstituir o pano de findo econdmico de qualquer era. F preciso estudar longos periodos de tempo ¢ generalizar apenas quando as priticas espectficas diferirem ligeiramente de um perfodo para outro. Por exemplo, € muito facil transpor as préticas vistas em Mari ou Ugarit para Israel ou Cana, Além disso, & bastante dificil fazer uma andlise qualitativa da situagao do comércio no tempo de Salomao ou de Cristo quando néo se possuem dados quantita Livos especificos sobre 0 movimento de mercadorias ou produtos, Tal aspecto se torna muito dificil de investigar, haja vista que as evidéncias (madeira, tecidos, tinturas, temperos) niio tém sobrevivido e poucos relatos tém sido encontrados (Yamauchi calcula que tenham sido usados vinte e quatro milhdes de metros de papiros para os registros do templo, mas apenas vinte € inco metros sobreviveram). Contudo, as evidéneias que possuimos sdo altamente reveladoras. Conhecer o desenvolvimento da economia semindmade dos patriarcas para a economia agréria do Israel primitivo e, depois, para a economia mercantil de Salomao bem como para a situago cosmopolita durante o periodo greco-romano nos ajuda a compreender detalhes do texto, Por exemplo, Beitzel argumenta que * Pais situado entre paises rivais (N. do.) 204 | HERMENEUTICA GERAL © Egito ndo interveio enquanto Israel conquistava a regio montanhosa de Canaa porque suas rotas de comércio nunca foram ameagadas nas planicies cananeias (1985:102). Outro exemplo: John Elliott afirma que os destinatérios de [Pedro eram moradores “estrangeiros” (1Pe 1.17; 2.11), por causa disso ndo era permitido possui- rem terra ¢, portanto, estavam limitados a trabalhar no campo ou no coméreio local (1981:677-673). O projeto romano de urbanizagdo foi bem-sucedido-na provincia da Asia (as sete igrejas de Apocalipse), mas falhou nas provincias que constitulam 0 pano de fundo de 1Pedro (norte da Galacia). Tais provincias compunham uma area predominantemente rural, Trata-se de uma regiaio que era pobre em termos econdmi- cos, um fator que com certeza contribuiu para a opressfio dos santos, o tema da epis- tola. Sabendo-se que a converstio deles havia forgado ainda uma ruptura com aliangas anteriores, a situagao dos cristéos era duplamente dificil (cf. também McKnight 1996 para um excelente uso da teoria sociolégica em 1Pedro). Embora eu questione até que ponto paroikas (“estrangeiro”) e parepidémos (“estranho”, 1.1) possam set tomados como descrigées socioeconémicas, em vez de metéforas espirituais (referentes aos que so espiritualmente alienados da sociedade), 0 material de Elliott acrescenta pro- fundidade & compreensao de 1 Pedro. Conforme Oakman (1996:131-139) salienta, a estratificagdo social era um problema importante e constantemente enfatizado nos dois Testamentos. Um exemplo disso é a quest&o do auxilio aos pobres. Havia uma linha ténue entre subsisténcia e fome, e ainda nfo se ouvira falar do capitalismo, logo, raramente as fronteiras soci ceram transpostas, Em uma sociedade baseada na honra-cesonta, a énfase nfo estava na acumulagao de bens, mas sim em manter-se a honra do sobrenome. 4. Forga militar e guerra S6 no At, 0 termo guerra aparece mais de trezentas vezes, sendo que boa parte das imagens que representam a ajuda divina (Deus como nosso “reftigio”, “forga” ou “ajuda presente”) tem origem em metiforas militares. Na condigao de ‘mica passa- gem terrestre entre a Africa e a Eurisia, a localizagtio da Palestina era essencial para as rotas de comércio e para a estratégia militar, levando as nagiies poderosas a tentar controlar a regitio. Nenhuma outra parte do mundo foi palco dle tanta disputa, 1 interessante tragar a histéria de Israc! a partir de um ponto de vista militar. Por exemplo, a derrota dos quatro reis por Abra, com apenas 318 homens (Gn 14), foi vista como impossivel em termos militares. Porém, Abratio escotheu lutar nos vales profundos do monte Hermom perto de Damasco (“Da” em Gn 14.14 provavelmente 6a Di-Jai de 2Sm 24.6, ao norte da Pereia), dessa forma, nos estreitos limites dos desfiladeitos, uma forga pequena, mas bem-treinada e dgil, obteria uma importante PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 205 vantagem, Outro fato interessante € que Israel s6 se tornou uma forga militar tecnica- mente competente nos dias de Salomfo. Apés Davi derrotar uma considerdvel forga siria com mil carros de guerra (28m 10.15-19), ele ndo se apoderou dos carros de guer- ra, provavelmente por acrediter que fariam pouca diferenga para seu exéreito, O que é surpreendente, considerando-se o fato de que por séculos os carros de guerra haviam sido a principal arma militar, Porém, somente com Salomio os carros de guenta se tor- naram comuns em Israel (IRs 10.26). Israe! ainda controlava as areas montanhosas nffo as planicies, o que ditava a sua estratégia, Os israclitas conquistavam vitdrias com base em tatieas superiores e, principalmente, pela intervengo divina, 5, Praticas culturais 1, Conhecer os costumes familiares, como 0 ritual do casamento ou as praticas edu- cacionais, € muito importante, Por exemplo, Israel praticava a endogamia, excluindo © casamento com ndo-israelitas, Algo que jé era valido no periodo patriarcal (Gn 24.4; 28.1-2). Dava-se muita énfase a ascendéncia, pois isso era crucial assegurar 2 pureza das linhagens familiares, A educagao na Antiguidade era estruturada para a ‘manutengdo das classes dos escribas e governantes, com énfase na memorizagiio e na imitago, Para os hebreus, porém, esse era um dever religioso exigido de todos, ¢ a vida didria da familia era coneebida como um instrumento de educagao religiosa. Os pais ensinavam religifo, moral e formagio profissional aos filhos. A easa era 0 cen- tro formativo até 0 periodo pés-exilio, quando as sinagogas assumiram uma fimgZio educacional. As escolas primérias tiveram inicio no século [a.C., com as criangas (ou seja, 0s filhos homens) comegando com idades entre cinco e sete anos. 2. Costumes materiais (casas, vestimentas) também podem oferecer informa- bes valiosas. Por exemplo, as aldeias israelitas foram construfdas com materiais © iio de obra inferiores ao longo do periodo do at, Omri ou Ahab, obras-primas arqui {etdnicas de Salomao, foram todas construidas por fenicios, Fora isso, predominava ‘uma arquitetura rural ristica, A maioria das casas era habitagdes de um ‘imico andar, equenas construgdes retangulares ou quadradas com pisos sujos e paredes de tijolos de barro, selados por camadas de argamassa e cal. Seu tamanho era limitado, cerca de 3 metros quadrados, pois nfo se dominava a “construgio em arcos” (colocando as pedras lado a lado numa diregdo diagonal); « habilidade dos cananeus em construir desse jeito havia intimidado os espides em Numeros 13.28. Os israelitas possuiam poueas candeias, pois 0 dleo era caro demais. Uma familia tinha em média uma can- deia, que normalmente ficava num nicho da parede ou sobre “vasilhas” ou utensilios de medir gritos, que quando virados de cabega para baixo serviam como mesa (ver Mt 5.15). Os tethados consistiam em vigas sobre as quais eram colocados ramos ou 206 | HERMENEUTICA GERAL canas, onde a sujcira se acumulava. Com frequéncia sobre eles crescia capim (SI 129.6; Is 37,27). As casas mais ricas tinham telhados de azulejo helenisticos (Le 5.19) e, uma vez que eles eram planos, muitas vezes as familias ali descansavam ‘ou até mesmo recebiam seus amigos. 3. Costumes do cotidiano afetam muito mais as passagens das Eserituras do que se possa imaginar, Até a higiene didria era mais uma questiio de costume teligioso do que pessoal. Conforme descrito em Marcos 7.3-4, os judeus lavavam’ as mios quando permaneciam em casa, mas se banhavam ¢ lavavam por completo ao voltar do mercado (onde poderiam ter mantido contato com gentios). Enquanto os romanos no tinham barba, os judeus deixavam a barba crescer, mas deviam manté-la aparada. Os jovens gostavam de usé-las longas ¢ onduladas, tendo um orgulho especial pelo cabelo espesso ¢ abundante (Ct 5.11; 2m 14.25-26). Na verdade, as ofensas con- tra Eliseu: “Sobe, calvo! Sobe, calyo!” (2Rs 2.23), poderiam ser uma maldigao em vez de apenas escérnio, visto que a calvicie levava a suspeita de lepra. © problema na Ceia do Senhor, indicado em 1Corintios 11.17-34, com certeza dizia respeito as tradigdes sociais de Corinto, especialmente a distingao entre ricos ¢ pobres, e entre 0s que possufam um patrono rico e aqueles que nfio tinham. Os ricos se recusavam a comungar com os pobres, mas comiam diante destes, ¢ nao se dispunham a distribuir sua suntuosa refeigtio e abundante vinho com os que nada tinham, ¢ que se envergo- nhavam por isso (1Co 11,21-22,33), Os abastados tratavam os sem recursos ou sem patronos como cidadaos de segunda classe. Com isso, rejeitavam o ensino do Senhor de que a igreja celebraria como “um s6 corpo” (1 Cor 10:16-17) (Thiselton 2000:850; Barton 1995:83-84). 4, Esportes e recreagao formam uma parte importante do tempo de lazer de qualquer povo, ¢ isso nao era diferente nos tempos biblicos. A coragem atlética no mundo antigo estava estritamente associada com a coragem militar. Os “homens po- derosos* de Israel eram famosos por sua velocidade (1Cr 12.8) ¢ forga (Sansiio), Embora nao haja qualquer referéncia a jogos no Ar, a arqueologia descobriu varios por exemplo, um jogo com cavilhas e uma tébua semelhante a um jogo de cartas (um desses com mais cinquenta ¢ oito buracos foi encontrado em Megido). Um jogo de dados da Suméria tem sido produzido e vendido em nossas lojas com esse nome. Os jogos no mundo antigo estavam estritamente relacionados com as festas reli © os quatro grandes jogos gregos tiveram or 08 jogos olimpicos ¢ nemeus em homenagem a Zeus, os jogos piticos, a Apolo, ¢ os Jogos istinicos, a Posidon (com intervalos de dois # quatro anos). Ao mesmo tempo, 605 judeus eram contratios a tais competiges, pois além de suas or iosas, jens serem pagiis, os atletas tinham gue competir nus. Um gindsio fora construido nas cercanias de PANO DE FUNDO HISTORICO & CULTURAL | 207 Jerusalém por Antioco IV, em 200 a.C., onde até alguns sacerdotes compareciam. A condenagto de tal lugar esté registrada em 2Macabeus 4.17. Herodes, o Grande, tarm- bém promoyeu tais competigdes, mas os judeus religiosos foram contrarios (Couslan 2000:141). No entanto, Paulo é 0 autor sagrado que usa essa imagem de forma mais constante, Em 1Corintios 9.24-27, ele relaciona dois eventos: a corrida, enfatizando ameta € 0 prémio (v. 24-26); € a luta, enfatizando a defesa para se evitar os golpes (v. 26-27), Paulo exige disciplina e treinamento rigoroso para ganhar a coroa de lou- 10s (v. 25) ¢ evitar a derrota (v, 27), e Hebreus 12.1-13 usa a imagem de uma corrida para a vida erista, 5. Miisica e arte esto entre as mais nobres atividades humanas, expressando as profundas sensibilidades da alma. ébvio o motivo de a adoragao haver se tornado uma das prineipais fungdes da musica. Porém, este € um dos aspectos mais dificeis de investigar, pois no temos os registros musicais completos (de fato, a miisiea era ensinada reproduzida sem as “partituras” atuais), e precisariamos adivinhar a par- tir de representagdes em baixos-relevos e poemas liricos quais eram as verdadeiras melodias tocadas. Werner menciona quatro tipos de misica no mundo antigo: jibilo social (Gn 31.27), militar (Jz. 7.18-20), encantamento magico (miisica paga) e ado- rago (1962:457-458). Eu acrescentaria um quinto: cangdes de trabalho ou colheita (Nm 21.17; Is 16.10). A flauta ¢ a trombeta existiam desde o inicio das tribos semind- mades, ¢ tambores foram usados no cntico de Miriam, na travessia do Mar Vermelho (Bx 15.20). Em 1Samuel 10.5, o grupo de profetas ministrou com harpas, tambores, liras e flautas, Sob a influéncia de Davi, logo uma grande tradigao de coro e orquestra se desenvolveu (28m 6.5,10), predominando ao longo da histéria de Israel. Muitos jt chamaram Israel de uma “nagao sem arte devido a proibigao de Exodo 20.4 (Dt 5.8): “Nao fards para fi imagem de escultura, nem semelhanga alguma do que ha em cima nos ¢éus, nem embaixo na terra, nem nas Aguas debaixo da terra”. Porm, essa arte idélatra censurada © uma tradigio artistica genuina se desenvol- veram centradas no taberniculo e no templo. Sem dtivida, os artestos estrangeiros fizeram a maior parte da obra no templo (IRs 7.13-14), mas a tradigao era de Israel. Os paingis esculpidos em madeira e cravados de ouro; as roma, uvas, eabagas, lirios ¢ palmeiras eram bordados nas cortinas (mas note que n&o havia nenhum animal); € © querubim esculpido no santo dos santos demonstra um amor pela arte religiosa que rivaliza com a das nagdes vizinhas. No periodo do Nr, Herodes se tornou famoso por suas realizagées artisticas ¢ arquitetGnicas, ¢ nfo somente em relagao ao templo. Ble ainda ergueu muitas edificages que empregavam o estilo € a estatudria helenisticos: 2indsios, teatros, anfiteatros e a toda a cidade de Cesarvia de Filipe. A escola de Hillel parece haver permitido essas construgdes € obras de arte desde que no fossem usacas 208 | HERMENEUTICA GERAL para fins religiosos. O proprio Gamaliel usou um anel de sinete gravado com uma cabega humana para demonstrar a mesma atitude de tolerancia. 6. Antropologia cultural, David deSilva mostra como a matriz cultural em rela- 40 as ideias biblicas é essencial para compreender o que esté por tras do texto, espe- cialmente em relagiio as ideias de honra-desonra ou purificagzo no mundo antigo, que sao to estranhas ao modo de vida ocidental (2004: 124-126). Questdes da vida rural ¢ urbana no Mediterraneo, exigéncias de pureza no mundo greco-romano, bem como no judaico, costumes familiares ctc., so importantes para se compreender 0 que de fato subjaz em determinados textos. A obra de deSilva sobre Hebreus, a luz da questo sobre a relagao honra-desonra (1995), ¢ bastante el ‘idativa, 6. Costumes religiosos Costumes religiosos controlavam cada aspecto da vida cotidiana das pessoas. Cada atividade tinha implicagdes religiosas, e a dicotomia atual entre religioso ¢ secular simplesmente nao exista. Conforme Henri Daniel-Rops afirma: “uma vez. que a auto- ridade civil se identificava com a autoridade religiosa, a lei secular era tio somente a aplicagto da lei de Deus (1962:341), © que as pessoas vestiam, como passavam seu tempo livre © como se relacionavam umas com as outras, até mesmo 0 tipo de casa em que v ndlo podem ser compreendidas sem considerar 0 contexto religioso por tras delas, Por exemplo, investigar o sineretismo pagiio-judeu no vale de Lico é bastante itil quando se estuda a heresia abordada em Colossenses. Além disso, € preciso conhecer 0 ver dadeiro objetivo por tras da tradigto oral e das proibigbes farisaicas antes de estudar seus embates com Jesus ¢ Paulo no Nr. Una leitura atenta das priticas da oragiio pode demonstrar 0 valor desses costu- mes, No século I, os judeus oravam trés vezes por dia e recitavam 0 Shemé (Dt 6.4, 5-9; 11.13-21; Nm 15.37-41) de manha e a noite. Os judeus em geral oravam de pé, © se ajoelhavam ou se prostravam somente em momentos solenes. Eta comum orar em voz alta com as mios erguidas (1Tm 2.8; unir as mios em oragio nfo apareceu antes do século 5 4.C.) ¢ 0s olhos baixos (Le 18.13). Também era costume o fiel se vestir com um manto de oragao (0 talif) e com os filactérios ou amuletos (0s /efilin). A oragao (lefilah) consistia em uma série de béngaos litiirgicas, codificadas ao final do século nas “Dezoito Béngdos”. Apés essa parte litirgica, o individuo apresentaria pedidos pessoais a Deus. Jesus praticava essas oragdes (Me 1.35, prece matinal; Me 6.46, oragio da noite), mas as transcendia ao comegar frequentemente na “alta madrugada” (Mc 1,35) e, as vezes, orando durante a noite (Le 6.12), Lucas em ‘espe- cial enfatiza a vida de oragao de Jesus (cf. Le 5.16; 6.12; 9.18, 28). Jesus transformou iam, tudo tinha em esséncia uma dimensio espiritual. Muitas passagens PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 209 ‘© ensino da primeira oragao em sua teologia do “Aba”, que apresentava uma nova intimidade na comunhao entre a pessoa e Deus (cf. J. Jeremias 1967 contra Barr). 7. Resumo Berkeley Mickelsen segue Eugene Nida (Message and Mission [Mensagem e Mis- sfo]) em relago a influéncia da diversidade cultural na comunicag&o (1963:170- 172), Qualquer comunicagéo acontece quando uma “fonte” envia uma “mensagem” a um “receptor”. Deus, a fonte suprema, fala por meio dos autores humanos das Escrituras (a fonte imediata) dentro das diversas culturas de seu tempo. Os receptores da mensagem a interpretam do interior de outras culturas. Portanto, a tarefa do re- ceptor na estrutura cultural contemporfinea é captar a estrutura total dentro da qual 0 autor sagrado se comunicou e transferir a mensagem para o nosso prdprio tempo. Os aspectos culturais ticitos ajudam os intérpretes a atingir através das palavras a men- sagem subjacente, que fora compreendida pelos leitores originais, mas se encontra encoberta para o leitor atual. O processo se torna um preltidio necessario aplicagao do texto nas situagdes de hoje (cf. fig. 5.2). Além disso, nos iiltimos quarenta anos, uma enorme explostio de conhecimento aconteceu em virtualmente toda firea de ana- lise do pano de fundo. Em obras como 0 Dictionary of New Testament Background [Dicionario de pano de fundo do Novo Testamento] da [VP (2000), em recentes di- ciondrios como 0 Anchor Bible Dictionary (1992) e no conjunto dos varios volumes da IVP (quatro sobre o NT ¢ os dois primeiros sobre 0 AT com outros por vir), como também em recentes comentitios detalhados, esses dados esto prontamente dispo- niveis ao piblico. significado textual situegao cultural original principios profundos situagbes paralelas nos dias de hoje aplicagaocontextualizacao Figure 5.2. Passos a partir do texto original para a aplicagéo contemporanea © pano de fundo cultural niio somente aprofunda @ nossa compreensdio do texto original, mas também oferece uma ponte para o atual significado do texto (ver cap. 17) Uma descrigao dos costumes pressupostos ou dirigidos no texto nos permite separar 210 | HERMENEUTICA GERAL 0s prineipios subjacentes (as doutrinas dirigidas no contexto original) daquilo que std na superficie (a contextualizagao dos principios mais proftundos da situagdo ori- ginal). A partir dai poderemos identificar situagées semelhantes hoje ¢ permitir que 0s principios profundos nos sejam dirigidos mais uma vez. FONTES ESPECIFICAS PARA O MATERIAL DE PANO DE FUNDO. 1. Alusées ao Antigo Testamento Ha mais alusdes ao at do que citagdes diretas (cf. cap. 14, “O Antigo Testamento no Novo Testamento”), embora a maioria dos estudos sobre o tiso do AT no NT se con- cenirem nas citagbes. Como Douglas Moo declara, as alus6es poderiam na verdade cartegar maior énfase porque o autor pressupunha © conhecimento de scus leitores (1983:169). O que signifiea que a fonte ¢ o significado das alusdes devem ser revela- dos para se capturar o significado original da passagem. Indico cinco principios para se encontrar e avaliar as alusdes: 1. A redagio ¢ o estilo apontam para uma passagem do At? Algo que poderia muito bem demonstrar uma aluséio deliberada. No entanto, o estilo é dificil de avaliar. Existem os semitismos (0 estilo 6 hebraico ou aramaico em vez de grego) ¢ 0s septua- gintismos (devido a influéncia da Septuaginta [0 Antigo Testamento traduzido para 6 grego}), que entretanto podem ser reflexos inconscientes em yez de conscientes do at, Sem alguma semethanga Linguistica, a possibilidade de uma alusdo nao deve ser forgada, mas a possibilidade de um “eco” ainda pode estar presente, caso 0 contetido aponte nessa diregao. 2. Considerar as caracteristicas do escritor individual, O primeiro livro de Pedro, © de Hebreus ¢ o Apocalipse, por exemplo, apresentam uma incidéneia muito elevada de alusdes. No caso de tais livros, uma alustio potencial tem maior probabilidade. 3. 0 reflexo do pano de fundo do Ar da sentido ao contexto? Se nao houver conformidade com a ideia desenvolvida na passagem, menos provavel. Porém, se © contexto é favordvel, a alustio ou eco acrescentard riqueza ao significado da passa~ gem, Por exemplo, o uso de Isafas 53.10,12 em Marcos 10.45 (Mt 20.28) acrescenta © tom do Servo de Javé que expia “o pecado de muitos” (Is 53.12). Muitos estudiosos (como Hooker 1959:140-147) defendem que (1) 0 vocabulirio (“Servo”, “para’’) nao 60 usado em Isaias 53 (cf. 0 principio 1); (2) a escassex de alusdes a Isafas 53 nos Eyangelhos torna qualquer alustio aqui duvidosa (cf. 0 prineipio 2); ¢ (3) 0 imagindrio da expiagio nao se ajusta ao contexto (cf. 0 prinetpio 3). Porém, Moo responde que embora o paralelo linguistico nao seja exato, o significado conceitual ce Marcos 10.45 € to proximo de Isafas 53 que uma alusio é altamente provavel (1983:122-127). PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 211 Além disso, embora os Evangelhos no contenham muitas alusdes diretas a Isaias 53, hé muitos reflexos indiretos (ver o quadro em Moo 1983:163-164) e esses podem ter grande forga, Por fim, como D. A. Carson demonstra (1984a:432-433), & comum, no ensino de Jesus, ele comegar com a morte do eu dos dise{pulos (Me 10.4344) e ilustrar a ligo com o modelo da sua morte expiatéria (Me 10.45). Em resumo, 0 uso de Isaias 53 em Marcos 10.45 & possfvel, e se forna um exemplo poderoso da atitude de servigo requerida aos disefpulos ali. 4.C. H. Dodd argumenta que uma alusio ou citagio pressupde muitas vezes 0 context do AT original subjacente a alusto € no s6 da propria alusio (1952:126- 133). Eis uma questo importante, embora, para saber até que ponto ela é verdadeira, seja necessitio saber 0 contexto imediato do Nr, Por exemplo, alguns pensam que o clamor de desamparo em Mareos 15.34 ("Deus meu, Deus meu, por que me desam- paraste?”) deveria ser compreendido A luz de todo o salmo (SI 22, cf. v. 22-31) como uma declaragao de £8 que deposita confianga no Deus que justifiears (ef. Trudinger 1974:235-238). Entretanto, isso ignora a dbvia verdade do contexto, pois a declara- ‘go ocorre na cruz e 0 sentido de abandono é supremo. O lamento é aqui enfatizado, embora todo 0 salmo ainda possa estar no contexto maior. A ago de gragas pode ser proképtica no clamor, antecipando a alegria posterior da ressurteigo, 5. Nao interpretar demais, E comum, especialmente para os estudiosos do Ar, fraduzir toda a sua defalhada exegese da passagem do aT para o contexto do Nr. An- tes, devemos procurar determinar (com base na interagaio entre os contextos do At € Nr, eno modo como a passagem do At’é tratada nos textos do Segundo Templo Judai- co) tanto 0 aspecto do significado realgado na esfera do Nr quanto 0 modo como 0 autor do NT compreendia a passagem do Ar. Por exemplo, Hebreus 2.12-13 apresenta ‘uma interessante justaposigao de trés passagens: Salmos 22.22 (v, 12), Isafas 8.17 (v. 13) ¢ Isafas 8.18 (v. 13). A primeira vista, as passagens do AT parecem desconexas ¢ deseoordenadas, mas quando observamos seu significado no contexto do AT ¢ 0 com- paramos com o desenvolvimento de Hebreus 2, tudo comega a fazer sentido, As és, num breve resumo, falam de temas sobrepostos: vitéria em meio ao softimento (V. 12), confianga em meio ao julgamento (v. 13) € a promessa em meio ao julgamento (v. 13) As duas iltimas passagens so concomitantes no texto de Hebreus, mas tratadas sepa- radamente nessa epistola, Em meio ao julgamento de Deus (Is 8), 0s remanescentes depositam sua confianga nele (v. 17b) € se tornam seus filhos (y, 18a). 2, Alus6es intertestamentais As citagdes diretas da literatura intertestamental so escassas, mas as ideias geradas durante aquele perfodo sao eruciais para se compreender a doutrina do Nr. Muitos dos 242 | HERMENEUTICA GERAL partidos judaicos no tempo de Cristo (firiseus, saduceus, essénios) se desenvolveram durante aquela época; logo, os costumes e a cultura do wr tém ali seus antecedentes. ‘Além disso, a tradigto oral se origina em tal momento, e doutrinas como a crenga na ressurteigdo dos mortos ou no batismo tem ali fortes raizes, As literaturas sapiencial © apocaliptica se desenvolveram e silo importantes fontes para passagens como 0 Ser- mao da Montanha, © Discurso no Monte das Oliveiras ou 0 Evangelho de Joao. Visto que a literatura apécrifa © pseudepigrafica ¢ semelhante aos documentos do Qumran, discutirei os principios para usar este material na subsegflo seguinte, 3. Paralelos de Qumran No inicio de 1950, como resultado de um fervor idealista apds a descoberta e publi- cagdio dos Manuscritos do Mar Morto, estudiosos tomaram decisées apressadas em relagao a influéncia de Qumran no nr. Por exemplo, Joo Batista foi visto como um essénio; considerou-se que Jesus fora modelado no Mestre da Justiga (0 “fundador” da seita); afitmou-se que a igreja era o equivalente cristao da comunidade de Qumran; © Evangelho de Joao € a Epistola aos Hebrens foram declarados como documentos essénios; e supds-se que muitas priticas (como 0 batismo) e erengas (como a pneu- matologia ¢ a escatologia) dependiam de Qumran. Porém, numa avaliagiio posterior muitos desses pontos foram firmemente modificados (desses pontos apenas Hebreus ainda é considerado por alguns como muito influenciado por Qumran), William LaSor resume a atual opinio critiea quando declara que os dois grupos (Qumran € 08 cristios) diferem em suas perspectivas historicas essenciais, mas se assemelham nas perspectivas religiosas (1972:247-254), Historicamente, eles surgem em perfodos diferentes, sendo que Qumran nao pode confirmar ou contestar dados co NT. Eles so movimentos independentes que se desenvolveram de modos diferentes, e Qumran niio pode ser um antecessor das ideias cristas, Porém, Qumran e o cristianismo eram ambos seitas judaicas sectérias com expectativas escatolégicas semelhantes; assim Qumran oferece um valioso paraleto as ideins judaicas e cristis. Como Michael Wise (2000:264) declara, os Manuseritos do Mar Morto representam um movimento judai- 0 apocaliptico com forte paralelo com 0 eristianismo, ¢ o Mestre da Justiga (confor- me visto nos “Hinos do Mestre”) também se via como mais do que um profeta, o qual por revelagio divina ofereeia a forma final da Tord e procamava a vinda iminente do reino, A chave é ter um método particular para utilizar os panos de fundo de Qumran (¢ também dos intertestamentais). 1, Usar wna boa traduedo. Millar Burrows 6 uma tradugao especialmente boa, mas falta versificagao. Geza Vermes ¢ Dupont-Sommer também silo tradugSes boas, mas, para uma tradugdio num tinico volume, Wise, Abege ¢ Cook (1996) é a melhor PANO DE FUNDO HISTORICO € CULTURAL | 213 ¢ inclui 0 material recentemente publicado. Uma boa tradugiio pode evitar térprete entenda mal o texto. E claro que usar 0 original hebraico ¢ muito melhor, 0 que nem sempre é possivel. jue 0 in 2, Estudos das patavras. Para um estudo de palavra, use a concordancia de K. G. Kuhn (1960) e seu suplemento em Revue de Qumran 4 (1963): 163-234, como também a enciclopédia de L. H. Schiffman e J, C. VanderKam (2000), Sao obras importantes para investigar as ideias por meio da literatura essénia. 3, Paralelo. Antes de sugerir um paralelo, estude as nuances teolégicas exatas de Qumran ou da passagem intertestamental antes de aplicé-lo a um trecho do Nr, Nesse momento, as fontes secundarias so uteis, e ha uma literatura crescente explorando a fundo 0s livros intertestamentais (como nas séries da Anchor Bible). Considerando- se que as opinides variam amplamente, seri importante checar mais de uma fonte. Melhor ainda, investigar passagens paralelas ¢ concluir o significado por si mesmo, antes de aplicé-lo a0 NT. 4, Passagens interiestamentais. Antes de usar uma citagdio intertestamental para interpretar uma passagem do Nr, certifique-se de que a primeira seja um verdadeiro paralelo ¢ nao somente um possivel paralelo. A chave € verificar o grau de intensi- dade em que duas passagens, em seus respectivos contextos, se justapdem. Deve-se ainda comparar @ amplitude da sobreposig&io com outros paralelos em potencial, ¢ determinar quais possibilidades so as mais proximas & passagem do Nr. Somente entio sera possivel considerar a passagem intertestamental como um paralelo valido. 4. Paralelos rabinicos © principal problema é a datagao das tradigdes talmidicas, Embora esse problema seja superado de algum modo pelo cuidado com que os rabinos preservaram o mate- rial, ha muitos debates sobre quais materiais de fato se ajustam a situago anterior a 70 4.C. A partir desse ano, quando o templo foi destruido pelos romanos, o judaismo foi forgado a redefinir a esséncia de sua adorago e seu ritual, As coisas nunca mais foram as mesmas, € muitos costumes escritos no Talmude posterior teve suas origens no judaismo pés-70 4.C. A Mixné — uma colegio de sessenta ¢ dois tratados que compilou as tradigdes orais relativas a seis t6picos principais: a agricultura (a partir da Tord), as estagdes santas (sabado ¢ festas), o casamento ¢ a vida familiar, 0 gover- no €0 conffito, o templo e as leis de pureza — foi codificada por volta de 200 d.C. Os outros escritos rabinicos — o Tosefta, o Midrash ¢ os dois Talmudes — foram com- postos entre 300-1000 d.C. Muitos (por exemplo, Jacob Neusner, Joseph Fitzmyer) acreditam haver pouca, se houver alguma, continuidade entre os fariseus do tempo de Jesus ¢ 08 rabinos do periodo posterior. Mas, parece nfo haver muita razo para 244 | HERMENEUTICA GERAL um ceticismo tao radical, © muitos, como E, P, Sanders, acreditam que uma abertura critica é a melhor resposta (ver Maccoby 1999:898-899), Richard Longenecker lista quatro linhas das tradigéies talmitidicas que ele acre- dita ser pertinentes: (1) as priticas ¢ os costumes considerados pelo rabi Johanan ben Zakkkai, que, por serem muito antigos, comegavam com “nossos rabinos ensinaram” ‘ou algo parecido; (2) os ensinos dos rabinos que viveram antes de 70 d.C. ou que tis veram suas raizes naquele perfodo (como Pirke Aboth 1-2); (3) as passagens que nfo sejam reagées a oposigdes religiosas (principalmente ao cristianismo) ow & opresstio politica, e que ndo se originem em um debate ou uma situagio posterior; (4) liturgias antigas, confissbes ¢ orages como a Shemé ou as Dezoito Béngios (1975275). No entanto, muitos contestam até mesmo essa lista, Por exemplo, Neusner argu- menta que nao podemos assumir a validade da datagio talmidica, mas devemos questionar até mesmo os textos que afirmam ser anteriores (1983:105). Neusner de-~ fende as técnicas da critica da forma no uso do material rabinico? Coneordo com as trés adverténcias de Sanders (1977:60-61) e acrescento uma quatta: 1, Nao devemos acreditar que tais discussdes rabinicas continuaram automa- icamente sendo visdes farisaicas, Embora a maioria dos estudiosos defenda com firmeza a continuidade bisica dos dois grupos, todos concordam que citagdes rabini« cas individuais nfo podem ser tomadas como representativas do farisaismo. Esse é © problema com a volumosa obra de Herman Strack ¢ Paul Billerbeck (1961-1965) que colocam citagdes dos rabinos dos séculos itt e IV ao lado de passagens do Nr sem questionar se elas na verdade refletem o farisaismo do século I. 2. Nao devemos supor que o material anterior seja auténtico, que ele de fato represente 0 periodo afirmado. Os rabinos antigos podem ter editado e recriado mui- tas das declaragdes. No entanto, creio que podemos ser mais otimistas que Sanders. Como ocorte com as dleclaragies de Jesus, hé mais confiabilidade na compilagtio das citagdes rabinicas do que muitos estudiosos concedem. O énus da prova é do cético, éle ¢ quem precisa refutar a credibilidade dos documentos. 3. Nao devemos assumir que o material possui uma concepgio unificada. Ele é variado ¢ muito eclético, Muitas das segSes, na verdade, envolvem um dialogo rabi- nico apresentando os dois lados da questo, Um padrao comum religioso amarra tudo num conjunto, mas no apresenta uma perspectiva tinica sobre questdes isoladas, Por exemplo, muitas citagdes famosas demonstram uma corrente miségina dentro do judaismo (por exemplo, “antes queimar as palavras da Lei a dé-las a uma mulher" * Ayers (1983:135-136) € Neusner (1983:99-144) concordam que a escola de Hillel dos fariscus foi a precursora dos tabinos do século 11. PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 215 [p. Sofa 192}), as quais silo frequentemente apresentadas como a posi¢fio judaica, mas sfio apenas uma das linhas do judaismo. O direito das mulheres foi defenclido muitas veres (0 divércio era prerrogativa do marido, mas a mulher tinha o direito de solicitar corte para o obrigar a se divorciar dela) e, quando necessério, as mulheres ocuparam posigdes de lideranga (cf. Stagg & Stagg 1978:51-53). 4, Devemos considerar a possibilidade de que o NT ¢ os rabinos tenham se apro- priado de uma tradigo judaica comum, Geza Vermes postula essa hipdtese como solugio para o problema que surge quando uma fonte judaica parece estar por tras de uma passagem, mas nao se pode provar sua existéncia antes de 70 d.C. (1982:373). Ble gostaria de considerar o nr como um testemunho vilido das crengas judaicas do século Ie, como tal, estudé-lo como parte da linha de desenvolvimento do Targum até o Midrash. Quando considerados a partir dessa perspectiva rabinieca (e targimica), . Devemos também ter cuidado para niio aplicar essa concepefo de maneira indevida, ignorando a dimensio histérica (os pri- os materiais adquirem uma nova relevan meiros trés itens destacados). Porém, como uma possibilidade adicional, ela pode ser extremamente titi. 5. Paralelos helenisticos Uma vez que os panos de fundo helenisticos tém sido to mal empregados pela esco- Is da historia das religides, alguns negam virtalmente a relevancia das ideias gregas sobre as ideias judaicas como panos de fundo apropriados para um estudo do Nr. Porém, desde a obra de Martin Hengel (1980:110-126), os estudiosos tém reconheci- do que as ideias helenisticas permearam o judaismo antes do perioda macabeu ¢ da era crista, Com o inicio da misstio universal essa influéneia aumentou, ¢ precisamos considerar os paralelos gregos bem como os judaicos em toda a literatura do Novo ‘Testamento. T, D, Alexander apresenta quatro razdes para se considerar a literatura greco-romana como pano de fundo: (1) a histéria biblica ¢ “parte de uma histéria real”, algo mais evidente nos Evangelhos ¢ Atos, nos quais os eventos acontecem num ambiente judaico helentstico. (2) A propria Biblia é “parte de uma ‘literatura real”, conforme se percebe nas epistolas, que seguem as convengdes das cartas gre~ co-romanas. (3) Os autores ¢ os leitores dos livros biblicos habitavam “em um mundo social real”, e os problemas descritos (por exemplo, em Lucas e Paulo) eram questdes sociais do século I. (4) Os povos da Biblia “enfrentavam dilemas politicos reais” (por exemplo, Jesus diante de Pilatos, ou Paulo diante de Festo) (1995:109-113). Fica claro que todos os eventos do Nr aconteceram no mundo romano e, portanto, nenhum estudo pode estar completo sem considerar as pressdes politicas, sociais ¢ religiosas que os cristaos primitivos enfrentaram, 216 | HERMENEUTICA GERAL Aqui, é claro, pretendo repetir as adverténcias sobre o uso de material helenis- tico, mencionadas no capitulo dois, bem como os principios para a interpretagao no resumo a seguir, Os panos de fundo helenisticos podem ser extremamente titeis para se compreender as epistolas encderegadas as igrejas gentias e muitos dos costumes individuais mencionados — por exemplo, atitudes greco-romanas em relago as mu- Theres em 1Corintios 11.2-16 ou 1Timéteo 2.9-15, Eles também ajudam a esclareeer detalhes relativos as viagens missiondrias, bem como as priticas de adivinhagdio por tras de Simfo, 0 Mago (Atos 8) ou a escrava possessa (Atos 16). Davi Aune oferece um excelente exemplo de panos de fundo helenisticos (1983:5-26), mostrando de forma convincente que a cena da sala do irono de Apocalipse 4—5 ¢ construida se- gundo a imagem da ceriménia da corte imperial romana, O que se ajusta A énfase ao longo do livro que se ope ao culto imperial, ¢ oferece excelentes exemplos para os sermbes de hoje que tratam do problema da relageio da igreja com o estado, (Para uma primorosa avaliagiio das fontes de material de pesquisa, ver Alexander 1995:114-118; Stanton 1999:464-473). 6. Resumo Uma vez que jé discuti outras fontes de paralelos (Filo, Josefo, os Targums) no ca pitulo trés, nao as tratarei aqui, mas resumirei esta segdio com uma discusséo geral sobre os critérios, (1) Devemos ter certeza de que a evidéncia vem do mesmo periodo da passagem a ser estudada; 0 uso de ma qualidade dos dados de um periodo (e.g., a pritiea gnéstica do séeulo 111 para interpretar conceitos cristios do século I) tem levado muitos a fatsas teorias. (2) Devemos checar a confiabilidade da evidéncia: nao raro, paralelos talmédicos foram livremente apresentados como pano de fundo para eventos do Nt, como o julgamento de Jesus, sem averiguar a confiabilidade deles para o judafsmo do século I. (3) Nao devemos ser seletivos na recotha de evidéneias: se no as procurar de modo amplo, podemos perder o verdadeiro paralelo, como os costumes greco-romanos ¢, também, o judaismo nas passagens sobre a escravidio. (4) Noo trabalhar apenas com a situagio do momento, mas com o desenvolvimento historico subjacente: muitas vezes os fatores que conduziram a um estado de coisas sfo {Zo importantes quanto a propria situag%o, Por exemplo, 0 desenvolvimento da tradigao oral no judaismo € crucial para se compreender mnitas das situagdes de conffito entre Jesus e o judatsmo, (5) Lembrar que os relatos biblicos também ofere- cem dados hist 08. Os estudiosos frequentemente negligenciam o prdprio texto © supdem que todos os dados devem se originar de fontes externas. O que muitas vezes E desneces: io, pois a explicagio ou esté presente na propria passagem estudada ou em passagens paralelas PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 217 (A SOCIOLOGIA COMO UMA FERRAMENTA PARA INTERPRETAR AS ESCRITURAS Tem-se tomado cada vez mais popular o emprego de métodos sociolégicos atuais, para se estudar, de forma mais profunda, a influéncia da sociedade e dos costumes no texto biblico. Isso, em parte, é resultado de um sentimento de que o método historico- critic tem produzido um vacuo na atual compreensto das Escrituras. Muitos @m declarado que o trabalho dos tiltimos quarenta anos “faliu”, afirmando que, como resultado, “o estudo biblico-teologico da Igreja parece ter ficadlo estagnado™ (Edwards 1983:431). Conforme T. F. Best explica, a critica da forma (¢ da redagao), mesmo com sua énfase no “ambiente vital” dos textos, nflo descreveu a situaedo histrica ow social por tras da dimensio literaria ¢ teolgica: “Mesmo Paulo, que de fato se dei- xava viver om suas cartas, foi inexoravelmente reduzido a um propagador de ideias" (1983:182), O desejo ¢ reproduzir nilo apenas os pensamentos, mas 0 mundo do pen- samento do texto biblico. A sociologia estuda as relagdes humanas e as mudangas sociais que formam uma sociedade. Como disse John Gager se deveria em especial diferenciar entre “deseri- glo social” “interpretagao sociolégica” (1982:259), A primeira lida com 0 “o que” do texto, tentando descobrir 0 pano de fundo que nos ajudaré a identificar os fatores soeiais, leis ete. por tris de uma deckaragao particular, Por exemplo, poderiamos estu- dar os costumes do século | a respeito de se “cobrir a cabega” em 1Corintios 11.2-16 (cf. Thiselton 2000: 828-833). Philip Richter nomeia trés tipos de estudos descr! itivos (1984:78-81). © estudo mais frequente é o do ambiente social no qual Israel ou a igreja se desenvolveram, como 0 monumental retrato do pano de fundo econdmico, social ¢ racial de Joachim Jeremias sobre a Jerusalém do século 1 (1967). Também importante a descrigdo da hist6ria social de um grupo em termos de movimentos ¢ eventos, conforme a obra de Carolyn Osiek e Davi Balch sobre a centralidade da casa para o desenvolvimento da igreja primitiva (1997). Por fim, os estudos analiticos tra~ gam o desenvolvimento sdcio-histérico de uma classe ou seita, como o debate sobre 0 nivel social dos cristos primitivos, se eles se infiltravam por toda a saciedade de cima para baixo (0s ricos, conforme E. A. Judge e Abraham Malherbe), ou de baixo para cima (os pobres, conforme Gager e Theissen). A interpretagio sociolégica estuda o “porqué” subjacente ao texto e usa a atual teoria sociolégica nfo apenas para compreender o significado de um texto, mas para 3 Howard Clark Kee acrescentaria outros tipos de estudo: dinfimica social e papéis sociais, situando os Dapéis de lideranga dentro de estrutura da sociedacle; andlise antropolbgica eidentidade de grupo, as qa estudam 0 sistema de simbolos por tris da organizagao social; e uma sociologia do conhecimento, que analisa os pressdes sociais intemas e externas no sistema de erenga (1989:32-64). This especializagdes ‘agregam detalhes & ampla categoria da “interpretagdo sociol6gica”. 218 | HERMENEUTICA GERAL recriar‘a dinéimica social que conduziu a produgao do texto. O estudo socioldgico em- prega com bastante frequéncia as aluais teorias sociol6gicas para explicar aspectos da histéria judaica ou crista Por exemplo, Norman Gottwald usa um modelo de “revolta camponesa”, tomada de algum modo de Max Weber, mas principalmente de Karl Marx, para discutir que a conquista de Canad nio ocorreu por conta de uma invasiio externa, mas antes por causa de uma revolta das classes mais baixas ¢ insatisfeitas em Canail (1979). © estudo de Gager (1975) primeiro descreve a igreja primitiva como um movimento militarista, comparando-a aos “cultos cargo” da Melanésia (que tam- bém tinham lideres carisméticos ¢ grupos de seguidores crrantes). Gager entéo usa a teoria da “dissonan cognitiva” (L.. Festinger) para explicar como 0 cristianismo sobreviveu como movimento militarista, De acordo com a teoria, a igreja se adaptou a0 fracasso de suas expectativas profticas refazendo sua escatologia e instituindo a misstio universal. Em ambos os casos, vitias teorias ¢ modelos antropoldgicos sto aplicados a histéria biblica para determinar “o que realmente aconteceu”. O movimento atual de andlise sociolégica (para uma excelente histéria resumida, ver Horrell 1999:4-12) teve seu precursor na corrente da Universidade de Chicago, particularmente na obra de Shailer Matthews (The Social Teachings of Jesus [Os ensinos sociais de Jesus], 1897) ¢ Shirley Jackson Case (The Social Origins of Chris- danity [As origens sociais do cristianismo], 1923). Porém, sua base tedrica nao era forte ¢ essa corrente teve vida curta. Como explica Edwin Yamauchi (1984:176), © “pai da sociologia” foi Auguste Comte (1798-1857), que abriu caminho para um “estudo cientifico” do desenvolvimento da sociedade a partir de formas simples para as complexas, Herbert Spencer (1820-1903) aplicou as teorias evolutivas de Darwin na mudanga social ¢ Karl Marx (1818-1883) uniu a teoria dialética de Hegel ao mate- rialismo de Ludwig Feuerbach, ao estabelecer a economia como a causa priméria da divisiio da sociedade. Max Weber (1864-1920) inaugurou a era modema; ele teorizou que so os sistemas de valor ¢ néo 0 econdmico que oferece os grfios para 0 moinho do desenvolvimento saciolégico. Em seu estudo sobre Israel (1952), Weber propés que 0 conceito de alianga levou Israel a unidade, e os lideres carisméticos durante 0 tempo dos Juizes moldaram-no numa forga coesa. A outra grande figura foi Emile Durkheim (1858-1917), o primeiro a ver a sociedade como um todo organico con- tendo muitas partes relacionadas, Sua visio funcionalista teve um impacto duradouro no método sociol6gico. Nas iiltimas décadas essa abordagem mostrou-se bastante influente, especialmente nos estudos biblicos. Bruce Malina descreve trés grandes modelos (1982:233-237). A abordagem funcional-estruturalista acredita que a sociedade consiste em certos padrdes espe- rados de interagao (estruturas) que sdo controlados através de objetivos ¢ interesses PANO DE FUNDO HISTORICO E CULTURAL | 219 (fungdes) compartilhados. Em comparagao com a critica da forma, que isola as tra- digbes concorrentes em Israel ou na igteja, o funcionalismo as percebe como um todo integrado e procura determinar os grandes fatores que geraram tais movimentos. Conforme se defende na critica literétia, a tendéncia em reconhecer a unidade do texto biblico ¢ um valioso corretivo para os excessos hist6rico-riticos. O segundo é 0 modelo do conflito que estuda a sociedade em termos das discordncias ¢ politicas de poder entre os varios grupos de interesses que esto representados na estrutura maior. Arreconstituigtio das mudangas que estas pressdes impGem numa sociedade € a tarefa dessa abordagem. Finalmente, 0 modelo simbolico estuda a sociedade em termos de seu sistema de valores mais profundo, daquilo que as pessoas, as coisas e os eventos significam dentro da estrutura social. As aspiragées ¢ expectativas compartilhadas de uma sociedade determinam sua estrutura, Com relagao a igreja, por exemplo, a primeira abordagem estudaria como as suas partes componentes (apéstolos, presbiteros, igrejas locais, os homens ¢ as mulheres como individuos) se relacionam, tanto dentro da sociedade eristi quanto dentro das sociedades judaicas ¢ greco-romanas que englobavam a igreja. O modelo do conilito indicaria as tensGes na igreja (judaismo vs helenismo, tradigao vs falso ensino etc.) ¢ no império em geral (cristo vs judeu vs grego), articulando-as para compreender 0 desenvolvimento da igreja. O modelo simbélico investigaria simbolos especificos, como 0 poder, a autoridade (Holmberg, 1978) ou a pureza ritual (Malina, 1981), usando-os como chaves para interpretagaio da igreja primitiva. PROBLEMAS NA ABORDAGEM SOCIOLOGICA Muitas criticas podem ser formuladas contra a validade dessa nova escola de pes- quisa. Bengt Holmberg nomeia seu capitulo a esse respeito de “Finding the Body — And Losing the Soul?” [Descobrir 0 corpo — e perder a alma?] (1990), um titulo inteligente. Derek Tidball (1984: 106) compara o uso da critica sociocientifica com 0 “cortejer um crocodilo”, usando a metéfora de Winston Chiarchill sobre as relagdes Politicas com 0 bloco oriental, dizendo: “Quando ele abre a boca nfo é possivel dizer se estd tentando sorrir ou se esté se preparando para devorar!”. Resumirei aqui as dificuldades do estudo socioldgico. 1. Uso impréprio de modelos E facil ler as situagdes histérieas & luz das teorias atuais sem se perguntar se tais modelos na verdade se ajustam ou no aos dados antigos, problema que David de~ Silva chama de “o perigo do anacronismo” (2004:127). A antiga “Vida de Jesus” foi remodelada pelos estudiosos segundo © modelo atual do tedlogo liberal. Muitos

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