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Alfabetização científica: questões e desafios


para a educação

Article in Revista Brasileira de Educação · April 2003


DOI: 10.1590/S1413-24782003000100016

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Alice Casimiro Lopes


Rio de Janeiro State University
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Resenhas

oportunidade de difusão do patriotismo qual alude insistentemente a autora. Em Parece-me, finalmente, que a
e do sentimento cívico, pela qual o exér- sua análise, o exército é descrito não grande reflexão à qual Cultura e políti-
cito realizaria sua tarefa de moralização apenas como um dos artífices do Estado ca no século XIX: o exército como
e de formação da cidadania. Nacional, sob o governo imperial, mas campo de constituição de sujeitos polí-
Porém, em virtude de suas múlti- quase como a única instituição que res- ticos no Império nos reconduz, ainda, é
plas atividades, o exército mantinha, ponde por essa significação de unidade: a questão da unidade nacional – que
ainda, quantidade de civis sob sua res- muitos insistem em decretar inteira-
ponsabilidade provisória ou permanen- Durante décadas, uma parte mente ultrapassada. Para esses, tudo
te – adultos e crianças que povoavam da oficialidade exercitou-se na ad- que a história da construção da nação e
presídios, arsenais, fábricas e colônias ministração das poucas instituições do estado brasileiros pode ainda des-
e aos quais se encarregava de fornecer de âmbito verdadeiramente nacio- pertar é a “pulsão à condenação e ao
educação. De forma que não soará nal existentes no Império, defron- elogio” que Nicole Loraux lembrava
nada excessivo dizer que o exército tando-se com os obstáculos resul- ser a bagagem mais pesada na viagem
participou ativamente e, talvez, em tantes das diferenças regionais, dos ao passado. Se para outros, no entanto,
muitos casos, de modo precursor, de poderes locais, do atraso e da po- ela permanece fonte fértil de indagações
uma obra que ocupará ainda longamen- breza do interior do país. […] Ser é porque, sabemos, elas dizem respeito
te a educação pública brasileira: a “in- militar implicava uma ação no ter- ao futuro de nossa atualidade – às possi-
corporação de um maior número de in- ritório, fazendo emergir um pensa- bilidades de construção de uma identi-
divíduos ao ritmo do trabalho mento sobre o país. (p. 343) dade comum por vias democráticas.
industrial, ao âmbito da cultura escrita,
à valorização das conquistas da ciên- Por certo, o livro de Cláudia Ma- Lilian do Valle
cia, à constituição dos nacionalismos e ria Costa Alves levantará as objeções Faculdade de Educação
à formação de cidadãos” (p. 233). que todo trabalho de seriedade e con- da Universidade do Estado
vicção produz. Entre elas, suponho, a do Rio de Janeiro
Por suas características parti- de que, valorizando o movimento de
culares no Império brasileiro, o constituição – imaginária e prática – do
exército atuou numa aliança entre exército a partir dos discursos e das CHASSOT, Attico. Alfabetização
ensino e assistência, tomando a si a evidências internas à corporação, é o científica: questões e desafios
tarefa de controle social de cama- Estado imperial o único contraponto para a educação. Ijuí: Unijuí, 1ª ed.
das sociais que, colocadas à mar- que a análise oferece para o entendi- 2000, 434 p., 2ª ed. 2001, 438 p.
gem da riqueza produzida por mento da questão à luz do contexto so-
aquela sociedade, apresentavam-se cial da época. E, de fato, uma das pou-
como perigos potenciais à ordem. cas referências às relações do exército O campo de educação em ciên-
Ao mesmo tempo, porém, em que com outras instituições está presente cias, seja no Brasil ou no exterior, vem
se submetiam tais camadas a um em uma citação à qual a autora conce- se desenvolvendo fortemente vincula-
controle estrito de seu comporta- de, infelizmente, pouca atenção: nela, do às questões relativas às metodolo-
mento, oferecia-lhes um bem social esboça-se apenas a possibilidade de gias de ensino. Apoiando-se direta ou
de acesso restrito naquela socieda- derradeira identificação do exército indiretamente em teorizações da psico-
de, a educação. Contraditoriamen- com o monopólio de sentido que origi- logia da aprendizagem e da epistemo-
te, abria uma brecha de democrati- nalmente caracterizava as intenções do logia das ciências da natureza e em
zação e oportunidade de ascensão nacionalismo moderno e do menor medida em questões de currícu-
numa sociedade altamente centralismo estatal que o acompanhou: lo e didática, numerosos trabalhos fo-
elitizada. (p. 286) “Seria uma educação sob bandeiras, ram e são produzidos visando entender
longe dos ensinos religiosos, e longe como o aluno aprende e como o profes-
O quarto capítulo trata da moder- das afeições da família” (p. 214, grifo sor pode ensinar de maneira que o alu-
nização e do projeto nacional do exérci- da autora). Ao fim das contas, como no aprenda de forma mais significativa
to, retraçando a história do exército im- entender a identidade da corporação para si e para o mundo.
perial de suas origens até a Guerra do militar: um estado dentro do estado? Ainda que sejam extremamente
Paraguai e, em seguida, nesse movi- Um estado contra o estado? Um estado profícuas as teorizações dessa área,
mento de “preparação para o poder” ao contra a sociedade? muitas vezes não se evidencia uma

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preocupação em interrelacionar tais conceitos científicos stricto sensu. O mesma realidade de forma um tanto
análises com o contexto social de pro- livro demonstra que investigar sobre asséptica e isenta de contradições. O
dução da ciência. O questionamento ao ciência é também investigar história e autor revisita a discussão sobre a rela-
conhecimento científico dirige-se ape- cultura de uma maneira mais ampla. É ção entre ciência e saberes populares,
nas à análise de quais conceitos podem discutir questões como cidadania, tec- visando o diálogo da escola com esses
ser ensinados aos alunos de maneira a nologias, formação de professores, lin- saberes, compreendendo suas diferen-
transmitir mais criteriosamente e de guagem, história, política, saberes po- ças, mas não as utilizando para
forma inteligível a linguagem científi- pulares e escolares, religião. hierarquizá-los. Enfrenta também o
ca. Sob outro enfoque, freqüentemente Esse livro, que como o autor mes- problema de se ensinar uma ciência
o conhecimento científico selecionado mo afirma é continuação de seus livros que é marcadamente abstrata – a ciên-
para ser transmitido nas escolas não é anteriores – Catalisando as transforma- cia dos grandes e dos pequenos núme-
problematizado como uma produção ções na educação, Para que(m) é útil o ros – e analisa possibilidades de traba-
cultural dentre outras e, como tal, sub- ensino? e A ciência através dos tem- lho que evitem o distanciamento dos
metida a interesses sociais e políticos, pos –, reúne de maneira articulada tex- alunos em relação ao conhecimento
bem como sujeita a questionamentos. tos preparados para apresentações orais científico. Não para que esse conheci-
Afinal, o conhecimento científico é e para periódicos especializados na área. mento se transforme em moeda de tro-
uma produção cultural particular, com Os dezoito capítulos (excluindo nessa ca no mercado, mas para que facilite a
as características específicas de uma contagem o convite inicial à leitura, a organização da luta social e política.
produção marcada pela pretensão de apresentação, o epílogo e a bibliografia) No segundo grupo de capítulos
ser um discurso verdadeiro e rigoroso, podem ser vistos, no meu entendimento, (cap. 3 – O impacto da tecnologia na
em constante diálogo com a empiria, como abordando centralmente quatro Educação; cap. 17 – Plugados e des-
mas ainda assim é uma produção cultu- grandes grupos de questões. plugados: uns e outros, muitas vezes,
ral. Na medida em que é uma produção Nos primeiros capítulos (cap. 1 – excluídos), o autor discute como as tec-
cultural, é uma produção empírica, mas Alfabetização científica e cidadania; nologias são produtoras de inclusões e
também discursiva, histórica e, portan- cap. 2 – [Des]adjetivando a ciência; exclusões, tanto na educação como mais
to, provisória. cap. 5 – Linguagem (química) e poder amplamente no tecido social.
Essa falta de entendimento da na sala de aula; cap. 9 – Procurando Em um terceiro grupo de capítu-
ciência como uma produção cultural resgatar a ciência nos saberes popula- los (cap. 4 – Buscando um ensino mais
também contribui para a eventual não res; cap. 10 – Procurando um ensino de apolítico; cap. 6 – Procurando uma in-
compreensão, no campo da educação ciências fora da sala de aula; cap. 11 – serção numa dimensão ambiental para
em ciências, do caráter produtivo do Do fantasticamente pequeno ao fantas- educação; cap. 7 – Currículos legais e
conhecimento e das disciplinas escola- ticamente grande; cap. 12 – Procurar ilegais; cap. 16 – Sobre um continuado
res. É como se a ciência selecionada fazer imagens de um mundo quase fazer-se professor), as questões gerais
para ser transmitida na escola não fosse imaginário; cap. 15 – Sobre cartas que da educação são mais acentuadamente
obrigatoriamente recontextualizada, falam de ensino de ciências), são abor- contempladas. É quando o autor ex-
para usarmos a linguagem de Basil dadas questões mais diretamente relati- pressa mais claramente sua compreen-
Bernstein, visando atender as finalida- vas ao ensino de ciências nas salas de são de que a ciência na escola é sempre
des sociais da escolarização. aula. Nesses capítulos a preocupação uma ciência transformada em discipli-
Inicio com essa análise, pois o li- do autor é aprofundar análises já de- na e em conhecimento escolar e como
vro de Attico Chassot tem o grande senvolvidas em trabalhos anteriores, tal precisa ser investigada. É também
mérito de sintetizar reflexões sobre bem como articulá-las a novas investi- quando articula mais fortemente a
educação em ciências de forma a deli- gações. Desses textos, professores po- questão mais específica do ensino de
near a interpretação da ciência como derão extrair orientações para o traba- ciências com as discussões do campo
uma produção cultural e de forma a in- lho docente, porém tais orientações educacional mais amplo, sem as quais
cluir as ciências na educação básica no nunca são desenvolvidas como prescri- não é possível compreender o espaço
campo da história das disciplinas esco- ções, nem mesmo como proposições da sala de aula.
lares. É muito bom a existência de tex- fechadas em si mesmas. São discus- Em um quarto e último grupo de
tos como esse que para analisarem sões teóricas visando criticar um ensi- capítulos (cap. 8 – Presenteísmo é uma
ciências e educação científica não se no usualmente desvinculado da realida- conspiração contra o passado que
restringem a discutir metodologias ou de do aluno ou que enxerga essa ameaça o futuro; cap. 13 – Propostas

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de ensino de história da ciência; cluídos, na academia e o quanto se mais sobre este “novo modismo edu-
cap. 14 – Islamismo: vencendo aprende nos assentamentos do Movi- cacional”, trazido ao Brasil pelos neo-
[pré]conceitos; cap. 18 – A farsa ou o mento dos Sem Terra. Faz isso de uma liberais no poder.
embuste Sokal) é que se revela espe- forma agradável, sem assumir um dis- Marise faz um percurso absoluta-
cialmente o lado do autor como histo- curso populista, que como já discutiu mente original, que termina por abrir
riador das ciências. Sua pesquisa nesse Claude Grignon, pode igualmente ser espaço para nova linha de investigação
campo tem fortes associações com seu legitimista, por cercear a possibilidade da relação entre trabalho e educação.
entendimento de que pela história das de setores populares ampliarem seus Ela parte da análise das mudanças
ciências é possível a construção de um saberes. É o contador de histórias fa- atuais no processo de trabalho e na or-
ensino em uma perspectiva mais crítica lando mais alto do que o professor uni- ganização da produção e suas repercus-
e mais fecunda para os alunos. Porém, versitário regido pelos cânones acadê- sões socioistóricas no processo da for-
nesse livro, ele extrapola igualmente o micos, porém sem deixar de ser mação para o trabalho, chegando até
campo específico da educação em ciên- rigoroso. Trata-se do contador das múl- aos fundamentos psicopedagógicos da
cias para refletir sobre questões de gê- tiplas e entrelaçadas histórias de co- prática educativa. Com isso, traz a
nero e religião, bem como sobre as vai- nhecimentos que vivenciou e produziu. questão do trabalho para dentro da sala
dades e querelas do meio acadêmico. Sua postura é a de socializar suas de aula, ultrapassando a tradicional di-
Assim, o livro se constitui como próprias leituras e suas incursões pela cotomia entre estudos macro e micro,
uma crítica contundente ao internet, não como quem afirma ser na literatura educacional brasileira.
cientificismo que atravessa nossa so- esse o único caminho do conhecimen- Embora tenha tido como principal
ciedade e, portanto, nossas escolas, to, mas como quem conta o seu cami- objetivo a apreensão da essência do
procurando desconstruir a imagem de nho, suas idas e vindas, seus múltiplos deslocamento conceitual da qualifica-
uma ciência asséptica e isenta. Contra- diálogos ao longo da vida (de seus ses- ção à competência, seus motivos e seus
põe-se ao esquema confortável em que senta anos), um possível caminho a ser significados, Marise vai além e estabe-
muitos cientistas se colocam ao separar explorado por outros, das formas mais lece uma relação entre trabalho e peda-
sua produção científica propriamente diversas. gogia, desvelando o caráter interessado
dita da aplicação de sua produção. Os Entendo assim que se trata de um da pedagogia das competências na re-
limites entres esses contextos são mais livro que se constitui como uma contri- produção das relações capitalistas de
tênues quando nos vemos diante da buição inegável para o campo da edu- produção, no espaço escolar e na arena
inter-relação de saberes socialmente cação em ciências, tendo como públi- política – apesar da contemporânea rou-
elaborados e da rede de ligações políti- co-alvo não apenas os pesquisadores e pagem pós-moderna. O resultado é que
cas e econômicas que se institui na professores dessa área, mas todos a autora leva aos professores, na sala de
ciência contemporânea. aqueles que se interessam pelos rumos aula, pistas seguras para entender o que
Por outro lado, também nesse da educação no país. está por detrás das novas diretrizes e
louvável percurso de crítica a uma vi- parâmetros curriculares nacionais. Aos
são asséptica da ciência, o autor con- Alice Casimiro Lopes sindicalistas, proporciona elementos de
cretiza seu objetivo inicial: dialogar Faculdade de Educação reflexão sobre o papel da escolarização
com os leitores. Seu texto flui, apresen- da Universidade Federal na elevação do nível de consciência po-
ta-se como uma conversa com o(s) do Rio de Janeiro lítica da classe trabalhadora.
leitor(es), e assume inclusive o propó- Além de uma dimensão ético-po-
sito de analisar e questionar limitações lítica definida, em prol da classe tra-
de seus próprios trabalhos anteriores, RAMOS, Marise Nogueira. A pedago- balhadora, a autora apresenta sólida
como quando menciona o quanto assu- gia das competências: autonomia ou argumentação teórica. Mostra erudi-
miu uma postura eurocêntrica em seu adaptação? São Paulo: Cortez, 2001, ção, não no sentido de uma construção
livro A ciência através dos tempos. 320p. teórica puramente ornamental, como
Dessa forma, na sua própria escrita, o diz Coutinho1, mas no sentido da
autor se propõe a relacionar razão e
emoção, questões teóricas centrais para Um livro imprescindível! As
1
Carlos Nelson Coutinho, Cultura e socie-
a educação de hoje e o relato de histó- pessoas que o lerem deverão concor-
dade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas, 2ª
rias cotidianas, demonstrando o quanto dar comigo: é referência obrigatória
ed. ampliada, Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
se aprende, seja entre excluídos e in- para todos os que queiram entender

Revista Brasileira de Educação 173

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