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Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência*

Éric Laurent

Escolhi este título para questionar diante de vocês o uso que podemos fazer da
transferência, de acordo com as indicações que Lacan nos dá, naquilo que Jacques-Alain
Miller chamou de seu último ensino, que começa com o seminário Mais, ainda (1972-
1973)[1]. Mantive o termo “loucura” pois ele recebe um novo acento a partir do texto que
comporta o dizer provocativo de que “todo o mundo é louco, isto é, delirante”[2], texto
que data desse período. Escolhi também o termo disrupção, pois é o título sob o qual
mantivemos esse ano na ECF um ensino, através de Nouria Gründler, Dominique Laurent
e François Ansermet, e também porque é o termo escolhido por J.-A. Miller como um
sinônimo da efração que constitui o gozo na homeostase do corpo, fundamento da
repetição do Um: “nos casos aos quais temos acesso pela análise, seu modo de entrada
[do gozo] é sempre a efração, isto é, não a dedução, a intenção ou a evolução, mas a
ruptura, a disrupção em relação a uma ordem preliminar feita da rotina do discurso pelo
qual mantêm as significações, ou da rotina que imaginamos do corpo animal”[3]. A
disrupção tem aí um duplo sentido. É ao mesmo tempo a efração primeira e também suas
réplicas, que ocasionalmente perturbam as diferentes homeostases ou estabilizações que
o sujeito pôde estabelecer como defesas contra a efração súbita de um gozo desconhecido
a ele.

Mantive também o termo “loucura”. Eu poderia ter usado o termo delírio para
englobar as psicoses ordinárias, as outras, e seu modo de tratamento, uma vez que em seu
seminário de 1976, Lacan inclui a psicanálise no delírio. “A psicanálise não é uma ciência
[...] É um delírio – um delírio que espera-se que contenha uma ciência”[4]. A
generalização da abordagem do sujeito pela foraclusão generalizada é paga a um preço
que J-A Miller destacou em sua apresentação do último Lacan. Esse preço é o quase
desaparecimento do uso do termo transferência nos textos de Lacan. Notemos já que a
abordagem da transferência nas psicoses, antes extraordinárias, depois ordinárias, não
deixou de nos colocar questões, uma vez que o estatuto da relação com o Outro foi
especialmente colocado na berlinda desde a queda final da “Questão preliminar a todo
tratamento possível da psicose”, que “introduz... a concepção a ser formada do manejo,
nesse tratamento, da transferência”[5], para não dizer nada sobre ela, uma vez que isso
seria ir “para-além de Freud”[6].

O fim da “Questão preliminar” pára no ponto onde o Deus-pai é apagado diante


do Deus parceiro de gozo, “depois de declarada a falência do Nome-do-Pai - isto é, do
significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como
lugar da lei”[7]. Lacan não diz falência do Outro, mas falência do Nome-do-Pai. Acontece
então que, segundo a expressão de Schreber, antecipando George Bataille, “Deus é uma
p...”[8], em outras palavras, um parceiro de gozo. Essa revelação é uma redução que é a
chave do manejo da transferência com um parceiro de gozo sem a garantia do Nome-do-
Pai. Não estaria ela situada como preliminar à grande redução final do último ensino de

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Lacan? E já a primeira redução introduz múltiplas dificuldades. São essas dificuldades
que abordamos em artigos recentes, reunidos no excelente último volume da revista El
psicoanalisis consagrado a “O que não se sabe sobre a transferência”, por Miquel Bassols
e Vicent Palomera.
Vicente Palomera situa muito bem a questão da transferência nas psicoses.
"Enquanto o trabalho da transferência pressupõe um laço libidinal com um Outro na
posição de objeto, no trabalho do delírio é o sujeito como tal que toma a seu cargo,
solitariamente, não o retorno do recalcado (como dizemos na neurose), mas os retornos
no real que o assolam. Ao passo que não há auto-análise do neurótico, o delírio é um tipo
de auto-elaboração. O problema é de saber se esse trabalho pode se inserir no discurso
analítico e, se sim, como? Pode o ato analítico incidir sobre esse auto-tratamento do real
como no trabalho de transferência?” [9]
Miquel Bassols, por sua vez, desde o Congresso da NLS em Dublin, em julho de 2016,
sugeriu que o principal efeito da introdução da "psicose ordinária" - essa categoria
instável que desafiava a categorização e parecia sujeita ao paradoxo de Russel – se
ordenava apenas pelo encontro com a contingência da transferência. Ele concluiu seu
texto deste modo: "As psicoses ordinárias são clinicamente ordenadas apenas se os
fenômenos são precipitados, organizados de acordo com a lógica da transferência. É
somente assim que as psicoses ordinárias se revelam ordenadas sob transferência "[10].
Essa perspectiva voltaria a se servir da psicose ordinária para reexaminar a questão da
transferência nas psicoses em geral. Aqui também, a passagem do regime do patriarcado
ao parceiro de gozo [11] abre, em suma, um duplo caminho. Por um lado, o manejo da
transferência nas psicoses nos diz algo sobre a abordagem da transferência no último
ensino. Por outro lado, o último ensino nos permite ir mais longe e nos livrar de certos
embaraços que nos prenderam em nosso ato.

Da transferência sem Nome-do-Pai à transferência sem o Outro.

Em seu último ensino, Lacan vai resolutamente para além de Freud, mas sem, no
entanto, levantar o véu diretamente sobre o manejo da transferência. Ele chega mesmo a
rebaixá-la à antiga noção de sugestão: "A psicanálise opera – uma vez que de tempos em
tempos ela opera – por um efeito de sugestão? Que o efeito de sugestão se mantenha,
supõe-se que a linguagem mantém o que se chama o homem. Não é à toa que uma vez
expressei certa preferência por um livro de Bentham que fala da utilidade da ficção."[12].
E J.-A. Miller dá a essa aproximação todo o seu peso: "Pensar que a interpretação é um
efeito de sugestão é, eu disse, enorme. É enorme porque deixa de lado a transferência.
Além disso, a transferência é, de fato, o que está ausente nesse ultimíssimo ensino, pelo
menos nos Seminários do Sinthome e do L’Une-bévue ". Lacan, no entanto, nos deixa,
como nota J.-A. Miller, indicações para "reinventar a psicanálise" com ele, especialmente
fazendo essa ligação entre sugestão e ficção. Deve surgir disso que a perspectiva do
Sinthome é aquela dos Uns separados e não articulados. "Há aqui um radical: a cada um
seu sinthoma, [...] que convida a apreender cada um como um Um absoluto, isto é,
separado[...]. A transferência é aquela que é aplainada pela perspectiva do ultimíssimo

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ensino de Lacan. É uma perspectiva que toma a prática da análise na direção
contrária."[13]
Mas essa direção contrária, não seria ela conveniente, especialmente ao nosso
tecido da prática psicanalítica do lado das loucuras, onde não podemos nos sustentar pelo
Nome-do-Pai, na época do sinthome e do falasser? Essa maneira de deixar a transferência
de lado, uma vez que o sujeito não é mais abordado a partir do Outro, não poderia ela nos
libertar, já que precisamente "Lacan passa por cima da transferência, porque [...] a
transferência supõe um Outro bem estabelecido e bem assentado. Há transferência quando
já se supôs o saber que significaria alguma coisa "[14]? Ora, esse Outro bem assentado é
aquele que desvanece nesse campo da clínica que nos interessa. Da mesma forma, o
querer dizer algo está em questão: generalização, radicalização e direção contrária! Estas
são as perspectivas a partir das quais eu gostaria de abordar o nosso tema.

Nos Seminários 23 e 24, não há quase nada sobre a transferência, exceto uma
passagem precisa do Seminário de 10 de maio de 1977, a qual gostaria de comentar com
as indicações do último curso de J.-A. Miller como um todo. De maneira característica,
nessa sessão do seminário, Lacan parte daquilo que não há. Do que é marcado pelo
negativo, a transferência negativa, para chegar à transferência positiva, que não tem
existência definida. Ele evoca o recurso ao "isso se sente" [ça s’y sent], como no
Seminário 23, para designar um real que escapa a poder ser escrito como existência.
Podemos simplesmente nomeá-lo. O raciocínio deve ser seguido passo a passo. Nós
nomeamos alguma coisa negativamente, para assinalar que ela não existe, porque
sentimos que há uma existência da qual não conseguimos captar a consistência lógica.

"[...] eu tenho que escorregar - é assim que se faz - entre a transferência que
chamamos, não sei porque, negativa, e ... não sabemos sempre o que é que a transferência
positiva. Tentei defini-la sob o nome do ‘sujeito suposto saber’" [15].

É esse nível da hipótese com a qual Lacan quer romper. O efeito da hipótese, da
ficção, é transferir para o analista o lugar da causa da produção de saber em análise. A
transferência é assim reduzida à sua lógica atributiva. O analista não deve esquecer que
não é o seu ser que é a mola da operação analítica. Lacan descobre aqui sua veia
combativa contra aqueles psicanalistas da IPA, que sustentavam que o analista opera com
o que ele é: "O que importa ... não é tanto o que o analista diz ou faz mas o que ele é."
Conduzindo a uma proposição louca: "Na França, o doutrinário do ser ... mostrou-se
direto nessa solução: o ser do psicanalista é inato" [16].

Lacan varreu essa espessura do ser do psicanalista ao enfatizar, em seu ensino


clássico, que o analista ocupa o lugar de uma suposição ou de uma atribuição.

"Quem é suposto saber? É o analista. É uma atribuição, como já indicado pela


palavra suposto. Uma atribuição é apenas uma palavra. Há um sujeito, algo que está
acima, que é suposto saber. O saber é, portanto, seu atributo. Há apenas um problema: é
impossível dar o atributo do conhecimento a quem quer que seja. "[17]

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A oposição entre juízo de atribuição e juízo de existência em Freud é uma
oposição na qual Lacan se baseou de várias maneiras no curso de seu ensino. Aqui, a
referência ao juízo de atribuição vem enfatizar acima de tudo que não se trata de um juízo
de existência.

"Aquele que sabe, na análise, é o analisando. O que ele desenrola é o que ele sabe,
exceto que é um outro (mas existe um outro?) que segue o que ele tem a dizer, para saber
o que ele sabe. Esta noção de Outro, eu a marquei num certo grafo com uma barra que o
rompe. "[18].

A notação do analista como aquele que segue o que o analisando tem a dizer, é
consonante com a descrição da posição do analista como testemunha ou secretário da
elaboração que conduz o sujeito psicótico, após a falência do nome do Pai. Mas além
disso, devemos entender a ruptura do analista com sua ancoragem na suposição. Ele não
está no lugar do sujeito suposto saber, ele está no lugar daquele que segue. Há aí um
equívoco entre o "eu sou", a primeira pessoa do indicativo do verbo ser, e o "ele segue",
terceira pessoa do indicativo do verbo seguir.

Qual é então o status do Outro rompido que se deduz? Precisamos já sublinhar a


originalidade do termo rompido, que vem no lugar de barrado, que Lacan usava até então.
Por esse deslocamento, ele enfatiza o fato de que se trata de uma questão de existência,
do que pode ser afirmado ou negado a partir desse juízo. "Mas romper é negar? A análise
propriamente dita afirma que o Outro nada mais é que essa duplicidade. “Há o Um, mas
não há nenhum Outro"[19]. A formulação é radical e sutil "nenhum Outro" [rien d’Autre
= “nada mais”].

A barra fazia parte do ensino clássico, a ruptura acontece agora entre o Ser e o que
existe. Lacan continua enfatizando que a barra perdida recai sobre o Um de uma maneira
estranha. É preciso para isso separar o Um e o diálogo. O Um pode falar sozinho. "O Um,
eu disse, dialoga sozinho, uma vez que recebe sua própria mensagem de forma invertida.
É ele quem sabe, e não o suposto saber "[20]. Aqui encontramos a auto-elaboração que
Vicente Palomera evocou no coração do trabalho do delírio, mas Lacan argumenta que
essa auto-elaboração está fundada desde sempre na fórmula geral da comunicação. Cada
um recebe sua mensagem de forma invertida. Nossa formulação fundamental da
interpretação "Eu não faço você dizer isso ..." é assim generalizada. Não há mais
necessidade da ficção do eu no lugar de supostamente extrair o saber do lugar do
analisando. O analisando sabe, e é suficiente que ele se endereçe ao Outro que não existe
para que se produza o efeito de retorno.

Mas isso só pode operar se dermos a esse saber a sua dimensão de singularidade
radical. Não podemos saber do que isso se trata antes que esse saber seja recebido em sua
forma invertida. Essa lógica acompanha a suspensão radical de qualquer relação de
comunidade entre o analisando e o analista. É uma consequência da suspensão do “todos”

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que subsistia sob a suposição, o fantasma de um traço comum entre o analisando e o
analista. Victoria Horne-Reinoso, em um texto publicado na Revista da ECF, ressaltou a
importância do pré-requisito de "todas as mulheres são loucas... mas não totalmente" para
passar à separação dos Uns que sustentam a afirmação de que "todo mundo delira" [21].

"Propus também isso, que se enuncia do universal, mas para negá-lo - eu disse que
não existe “todos”. É assim que as mulheres são mais homem do que o homem. Elas não
são não-todas, eu disse. Os “todos” não têm traços comuns. No entanto, eles têm esse,
que é o único traço comum - o traço que eu disse unário. Ele se apoia no Um. Existe o
Um. Eu repeti isso agora para dizer que existe o Um, e nada mais [rien d’Autre]."[22]

Transferência e Sentimento: o une- bévue e o “fazer verdade”

Lacan conclui sua reformulação da transferência em um ponto-chave. A


articulação entre a "transferência negativa" e o ódio a que ele tinha se referido até então
como paixão do ser, como a paixão que visa por excelência o ser do Outro. O Outro não
existe, mas a paixão odiosa existe. Justamente porque não se detém nos atributos do
Outro, visa o real. Ela visa algo mais profundo, que é da ordem do ódio ao próximo. Em
nosso último Fórum sobre O Estrangeiro em Roma, recordei a função do ódio, enfatizada
por J.-A. Miller: "No ódio ao Outro, é certo de que há algo além da agressividade. Há
uma constante dessa agressividade que merece o nome de ódio e que visa o real no Outro.
O que faz com que esse Outro seja Outro, para que possamos odiá-lo, odiá-lo em seu ser?
Bem, é o ódio ao gozo do Outro. Essa é até mesmo a forma mais geral que pode ser dada
a esse racismo moderno tal como o verificamos. É o ódio ao modo particular com o qual
o Outro goza"[23]. O ódio está do lado do real, e mesmo que o Outro não exista, o ódio
vem primeiro em relação ao amor. É um ponto de rejeição, de expulsão do Outro que
remonta ao Ausstossung, à expulsão primordial que situa o sujeito frente ao Outro. É isso
o que Lacan encontrou lendo a Verneinung de Freud desde a fase clássica de seu ensino.
"Porque é assim que se deve compreender[...] a Ausstossung aus dem Ich, a expulsão para
fora do sujeito. É esta última que constitui o real, na medida em que ele é o domínio do
que subsiste fora da simbolização"[24]. É sobre esse pano de fundo que devemos ler a
introdução feita por Lacan, em contraponto à separação dos Uns, do lugar do sentimento
que inclui em sua nova definição o ódio e o amor. "Há o Um, e isso significa que há,
ainda assim, o sentimento, esse sentimento que eu chamei, de acordo com as unaridades
[unarités], o apoio disso que é preciso que eu reconheça, o ódio, como um ódio parente
do amor [...]"[25]. Essa hainamoração é a consequência da separação do gozo dos outros
Uns. Constatei em Roma o fato de que "Conhecer isso, saber das aporias do amor e do
gozo na vizinhança do próximo não nos condena nem ao cinismo nem à imobilidade, ou
à constatação da presença irredutível do ódio ou do mal. "[26] Aqui também, saber que
há a hainamoração não condena ao imobilismo por medo de provocar o ódio.
Lacan dá lugar, a partir do real do ódio, a uma outra dimensão. Ela se impõe a
partir do tropeço [achoppement]. Pois o “falar sozinho” do Um não está isento dessa
dimensão, pelo contrário. O traço do Unário provoca o traço do equívoco [l’Une bévue].
“Não há nada mais difícil de captar do que esse traço do une-bévue, que traduzi por

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l’Unbewust, que significa inconsciente em alemão. Mas traduzido por une-bévue, isso
quer dizer uma outra coisa – um obstáculo, um tropeço, um deslizamento de palavra a
palavra”[27]. Vamos dar uma olhada nessa nova versão de tropeço isolada por J.-A.
Miller: “Em seu Seminário dos Quatro conceitos [Lacan] define o inconsciente pelo
tropeço, isto é, pelo une-bévue. Mas em seu Seminário 24, isso significa outra coisa. Lá,
o tropeço ou o deslizamento de palavra em palavra, como fenômeno, se situa em um
tempo anterior àquele onde pode aparecer o inconsciente. O inconsciente aparece no une-
bévue apenas na medida em que acrescentamos uma finalidade significante, na medida
em que acrescentamos uma significação”[28].
E é aí que se insere uma nova versão da transferência positiva. É uma
transformação pelo acréscimo de sentimento, uma transformação pelo acréscimo de
significação que permite um novo uso do parceiro de gozo para superar os obstáculos do
une-bévue do sujeito confrontado pela lalíngua e sua instabilidade, seus deslizes
permanentes. "Lacan dá um nome a essa transformação por acréscimo de significação.
Ele se refere a isso como um fazer-verdadeiro [faire vrai]: "A psicanálise é o que faz
verdadeiro... O inconsciente vem depois, porque acrescentamos sentido: Nós
adicionamos um toque de sentido, mas ele permanece um semblante" [29].
O semblante permanece então sujeito a um regime distinto da Verdade. O
semblante, submetido ao "fazer verdadeiro", permite ao sujeito restaurar uma homeostase,
apesar dos tropeços, apesar da instabilidade fundamental da lalíngua, apesar da
homofonia primordial[30]. É necessário então o apoio do analista, para além da função
da testemunha, do suporte, do secretário. Ele é aquele que faz verdadeiro o tropeço. "É
claro que o analisando produz o analista, disso não há dúvida. É por isso que me questiono
sobre esse estatuto do analista, a quem deixo o seu lugar de fazer verdadeiro, de
semblante[...] "[31].
O que foi apresentado, no tempo da "Questão Preliminar", como o horizonte de
um tratamento possível da psicose, uma estabilização da metáfora delirante graças a uma
ficção não-edipiana, é agora generalizado na forma de uma homeostase regida pelo
princípio do prazer como defesa contra a disrupção do gozo. Mas Lacan introduz aí uma
nova dimensão ao considerar que a homeostase do princípio do prazer é sinônimo de
repouso e sono. J.-A. Miller deu uma transcrição dessa versão da psicanálise que constata
o Outro rompido e restabelece um lugar do analista como semblante, entendido no sentido
de um fazer novo: o fazer verdadeiro. Esse fazer verdadeiro se opõe ao fazer ser
contemporâneo do Outro, que inclui o significante da Lei [32]. "Vemos então em que
consistiria a psicanálise. Ela consistiria em reconduzir ao princípio do prazer através do
efeito de sugestão. [...] A sugestão é o efeito natural do significante. É assim que entendo
porque Lacan pode dizer que há contaminação do discurso pelo sono[...]. O que é que
Lacan desenha como o uso do que chamamos, chamávamos, de interpretação? É
instrutivo ver que ele então traz de volta o princípio do prazer, e que reconhece para ele
um lugar no nível do Um"[33]. Ao final do percurso, a sugestão é reconduzida ao seu
fundamento primeiro: o impacto do significante no corpo, permitindo um certo tratamento
da disrupção do gozo, seu temperamento em direção a uma homeostase graças à auto-
elaboração de uma ficção não-padrão. Essa é a importância da definição que Lacan dá do
fim da análise nas conferências americanas de 1975. "Uma análise não deve ser levada

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longe demais. Quando o analisando pensa que está feliz de viver, basta "[34]. É preciso
entender que essa felicidade de viver, essa satisfação, é uma satisfação do Um. Ela se
situa ao contrário da satisfação articulada ao Outro, aquilo que Lacan indicou em "Função
e campo ..." onde " a questão do término da análise é a do momento em que a satisfação
do sujeito encontra meios de se realizar na satisfação de cada um, isto é, de todos aqueles
com quem ela se associa numa obra humana. [35]". J.-A. Miller comentando essa
passagem em seu último curso acha isso "desconcertante" [perplexifiant]. "Não
percebemos exatamente que aqueles que se associam a uma obra humana, seja ela uma
escola ou um partido, brilham pela compatibilidade de sua satisfação, percebemos ao
invés disso que eles se arrancam os cabelos" [36].
No entanto, Lacan abre lugar, em contraponto à ficção auto-reguladora e à
satisfação do Um, para uma nova abordagem da interpretação. Aquela que funciona na
direção contrária do uso comum da ficção, como um despertar.

A interpretação como jaculação

No Seminário 22, lição de 11 de janeiro de 1975, Lacan questiona se a nova


formulação dá o efeito de sentido que a interpretação dá, a partir do momento em que as
três consistências R, S, I são homogêneas. E ele chega a separar a fala e a interpretação,
como separa a interpretação do papel da transferência. A interpretação presentifica um
mais-além da palavra: "A interpretação analítica [..] vai muito além da fala. A palavra é
um objeto de elaboração para o analisando, mas sob os efeitos do que diz o analista - pois
ele diz. Formular que a transferência tenha aí um papel, não é nada, não esclare nada.
Tratar-se-ia de explicar como a interpretação funciona, e que ela não implica
forçosamente uma enunciação"[37]. Para explicar a eficácia da interpretação, ele vem
colocar a existência do efeito de sentido real. "O efeito de sentido a se exigir do discurso
analítico não é imaginário. Também não é mais simbólico. É preciso que seja real. O que
me ocupa nesse ano é pensar qual pode ser o Real de um efeito de sentido"[38]. Esta
interpretação não é da ordem de uma tradução por acréscimo de um S2 em relação a um
S1. É a interpretação que não visa a concatenação ou a produção de uma cadeia
significante. Ela registra o novo objetivo de amarração do nó em torno do acontecimento
de corpo e da inscrição que pode ser notada (a) em um uso renovado. "O que estamos
colocando com o nó borromeano vai contra a imagem da concatenação. O discurso em
questão não forma cadeia [...]. Portanto, surge a questão de saber se o efeito de sentido
em seu real está no uso das palavras ou na sua jaculação[...]. Acreditávamos que era nas
palavras. Ao passo que, se nos dermos ao trabalho de isolar a categoria do significante,
podemos ver que a jaculação guarda um significado isolável"[39].
A escolha da jaculação em oposição à palavra nos faz questionar. É preciso notar
que em francês o nome jaculação e o adjetivo jaculatório provém de discursos distintos,
o humanista e o religioso. [40]
O novo uso que Lacan quer dar à jaculação não é nem humanista nem religioso.
Ele vem de seu uso lacaniano próprio. Ele já qualificara o texto poético de “jaculação”,
por Pindare[41]. Pode-se falar também de jaculações místicas, a propósito de Angélus
Silesius [42]. Ou ainda faz-se do Poordjeli de Serge Leclaire “uma jaculação secreta, uma

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fórmula jubilatória, uma onomatopéia”[43], assimcomo faz-se do “Fort-Da” uma
jaculação. Mas é no Seminário sobre o objeto da psicanálise que ele dá o sentido mais
geral desta jaculação, retomando as primeiras frases do primeiro seminário sobre a ação
do mestre zen: "[...] todos sabem que o exercício Zen tem alguma relação, mesmo que
não saibamos bem o que isso quer dizer, com a realização subjetiva de um vazio. E não
estamos forçando nada ao admitir que para quem quer que seja, o contemplador médio,
verá essa figura, se dirá que há algo como uma espécie de momento culminante, que deve
ter relação com o vazio mental que se trata de obter e que seria obtido nesse momento
singular, brusquidão que sucede a espera que se realiza às vezes por um palavra, uma
frase, uma jaculação, até mesmo uma grosseria, um gesto ofensivo [pied de nez] um chute
na bunda. É bem certo que essas espécies de palhaçada não têm sentido a não ser em
relação a uma longa preparação subjetiva[...]”[44]. Notemos aqui, de maneira crucial, a
ligação da produção do vazio subjetivo e da jaculação.
Portanto, a jaculação inclui o valor do ardente, ou do entusiasmo, mas para
designar um uso do significante tal como ele desperta no sentido de produzir o vazio da
significação. O que é chamado de jaculação no Seminário 22, como designando um efeito
de sentido real, torna-se no Seminário 24 o significante novo. "Quando ele pede um
significante novo, se trata de fato de um significante que poderia ter outro uso, ... um
significante que seria novo, e não simplesmente porque assim haveria um significante a
mais, mas porque, no lugar de ser contaminado pelo sono, esse novo significante
provocaria um despertar. "[45].
Esse despertar está ligado à produção de um efeito de sentido real como produção
de um vazio subjetivo. Isso é consoante com o foco do último ensino sobre o furo e não
sobre a cadeia.
Assim, em seu último ensino, Lacan desenha, literalmente, com o nó, uma
modalidade de tratamento da disrupção do gozo pelo une-bévue. Para isso ele reformula
os termos clássicos dos instrumentos da operação psicanalítica: o inconsciente, a
transferência, a interpretação, para propor novamente: o falasser, o ato, a jaculação,
sujeitos à lógica do Há-Um. A jaculação é central em todas as consequências que J.-A
Miller nos fez ouvir. Esse conjunto de ocasiões define o enquadre teórico de uma prática
da clínica das loucuras sob transferência e do tratamento da disrupção do gozo que se
produz, particularmente em consonância com a desordem no Outro que supõe a
abordagem desse campo. A leitura justa dos trabalhos do nosso Congresso supõe esse
horizonte do último ensino, embora Lacan sempre ganhe mais ao ser lido "em bloco"[46].
Precisamos de um bloco orientado, pois, de outro modo, permaneceremos “ocidentados”
[occidentés] na última curva de Lacan, tão propícia à prática contemporânea da
psicanálise.

NOTAS
[*] Intervenção no 11º congresso da AMP em Barcelona “As psicoses ordinárias e as
outras, sob transferência”, Abril, 2018.
[2] Lacan J., « Lacan pour Vincennes ! » Ornicar ? 17-18,1979, Paris, Navarin, p. 278.
[3] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé
dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 23 mars

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2011, inédit.
[4] Lacan J., « Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre»,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 11 janvier 1977, Ornicar ? n° 14, Paris, Navarin,
p.8.
[5] Lacan J., « Question préliminaire à tout traitement possible de la psychose », Écrits,
Paris, Seuil, 1966, p. 583.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Ibid.
[9] Palomera V., « Transferencia y posición del analista en las psicosis. Entrevista », El
psicoanalisis n°32, Barcelona, Escuela Lacaniana de Psicoanalisis, avril 2018, p. 76.
[10] B a s s o l s M . , « L a s p s i c o s i s o r d e n a d a s b a j o transferencia », El
psicoanalisis n°32, Barcelona, Escuela Lacaniana de Psicoanalisis, avril 2018, p. 42.
[11] Laurent D., L’ordinaire de la jouissance, fondement de la nouvelle clinique du
délire», La Cause du désir, n°98, Paris, Navarin, 2018, p.27.
[12] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre»,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 17 mai 1977, Ornicar ?n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 20.
[13] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan » enseignement
prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon
du 14 mars 2007, inédit.
[14] Ibid.
[15] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait del’une bévue s’aile à mourre »,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 17.
[16] Lacan J., « La Direction de la cure et les principes de son pouvoir », Écrits, Paris,
Seuil 1966, p. 590. Et la note [22] p. 645).
[17] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre»,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[18] Ibid.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Horne-Reinoso V., « Point de folie à l’ère du parlêtre », La Cause du désir, n°98,
Paris, Navarin, 2018, p. 68.
[22] Ibid.
[23] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Extimité » enseignement prononcé dans le
cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon du 27 novembre
1985, inédit.
[24] Lacan J., « Réponse au commentaire de Jean Hyppolite », (1954), Écrits, Paris, Seuil,
1966, p. 388.
[25] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre»,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.

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[26] Laurent E., « L’étranger extime, I », Lacan quotidien, n°770, 22 mars 2018.
[27] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre»,
Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[28] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement
prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon
du 14 mars 2007, inédit.
[29] Ibid.
[30] Milner J-C, « Back and forth from Letter to Homophony», Problemi international,
vol. 1,n°1, 2017, Society for Theoretical Psychoanalysis.
[31] Lacan J., Le Séminaire, livre XXIV, L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre
», Texte établi par J.-A. Miller, leçon du 10 mai 1977, Ornicar ?, n°17-18, Paris, Navarin,
1979, p. 18.
[32] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé
dans le cadre du département de psychanalyse, leçon du 11 mai 2011, inédit.
[33] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement
prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon
du 14 mars 2007, inédit
[34] Lacan J., « Conférences et entretiens dans des universités nord-américaines », Yale
University, Kanzer Seminar, 24 novembre 1975, Scilicet, 6/7, Paris, Seuil, 1976, p. 15.
[35] Lacan J., « Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse », Écrits,
Paris, Seuil, 1966, p. 321.
[36] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, L’Être et l’Un », Enseignement prononcé
dans le cadre du département de psychanalyse, leçon du 6 avril 2011, inédit.
[37] Lacan J., Séminaire XXII, « R.S.I », Séance du 11 février 1975. Texte établi par J.-
A. Miller, Ornicar ? , n° 4, p.95-96.
[38] Ibid.
[39] Ibid., p. 96-97.
[40] Dictionnaire historique de la langue Française, Le Robert.
[41] Lacan J., Le Séminaire, livre VIII, Le transfert, texte établi par Jacques-Alain Miller,
Paris, Seuil, 2001, leçon du 21 juin 1961, p. 433. – Lacan parle de la « jaculation célèbre
de Pindare ».
[ 4 2 ] L a c a n J . , L e S é m i n a i r e X I I I , « L ’ o b j e t d e l a psychanalyse » (1965-
1966), Séance du 1er décembre 1965, inédit
[43] Lacan J., Le Séminaire XII, « Problèmes cruciaux pour lapsychanalyse » (1964-
1965), le 27 février 1965, inédit.
[ 4 4 ] L a c a n J . , L e S é m i n a i r e X I I I , « L ’ o b j e t d e l a psychanalyse », op.cit.
[45] Miller J.-A., « L’orientation lacanienne, Le tout dernier Lacan », Enseignement
prononcé dans le cadre du département de psychanalyse de l’université Paris VIII, leçon
du 14 mars 2007, inédit.
[46] Como destaca o trabalho coletivo muito interessante coordenado por Leonardo
Gorostiza, Lacan en Bloque, Grama, 2017.

Tradução: Arryson Zenith Jr.

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Fonte original em francês: http://www.hebdo-blog.fr/disruption-de-jouissance-folies-
transfert/

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