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1 José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
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GAST R O ENTEROLO GIA
A parede esofagiana apresenta 4 camadas: mucosa, músculo constritor faríngeo inferior) e por fibras muscula-
submucosa, muscular e adventícia, não existindo a camada res do esôfago cervical. Tem extensão de, aproximadamen-
serosa. te, 3cm e relaxa na deglutição. Na junção cricofaríngea, há 2
áreas de fraqueza na sua face posterior, uma acima e outra
A - Mucosa abaixo do músculo cricofaríngeo, neste músculo está loca-
lizada a maior pressão desta região (o esfíncter superior do
É composta de epitélio escamoso estratificado não quera-
esôfago). Essas áreas são propensas à formação de divertí-
tinizado. Os últimos 2cm do esôfago são recobertos por epité-
culos de pulsão: o de Zenker, acima, e o de Laimer, abaixo.
lio colunar, e esse epitélio na junção esofagogástrica é diferen-
Estes são falsos divertículos, devido ao fato de não serem
te do epitélio gástrico típico, pois não contém células parietais
constituídos por todas as paredes do órgão.
ou principais. Este pode ser chamado de epitélio juncional. A
linha Z demarca a brusca mudança de cor entre o epitélio es-
camoso e o epitélio colunar. A junção mucosa entre esôfago e
estômago é demarcada por essa linha. No entanto, a junção
esofagogástrica externa fica, geralmente, 1cm abaixo da jun-
ção mucosa. Portanto, não há coincidência da junção interna e
externa, ainda mais considerando que a mucosa desliza livre-
mente sobre a camada muscular da mucosa.
B - Submucosa
Contém plexos venosos e nervosos e representa a por-
ção mais forte e resistente da parede esofágica, sendo fun-
damental a sua inclusão nas anastomoses cirúrgicas. Nessa
camada, localiza-se o plexo nervoso de Meissner, o qual é
responsável, principalmente, pelo controle das secreções
gastrintestinais e do fluxo sanguíneo local (Figura 2).
Figura 3 - Fraqueza na face posterior da junção cricofaríngea
D - Camada adventícia
Representa apenas o tecido conectivo mediastinal em
torno do esôfago, portanto não é uma camada verdadeira.
A camada serosa está presente em todo o tubo digestivo,
Figura 2 - Camadas e inervação do esôfago exceto no esôfago. Por esse motivo, as suturas e anastomo-
ses realizadas no esôfago são consideradas de risco, com
C - Camada muscular maior incidência de complicações, como fístulas e deiscên-
cias. Além disso, a ausência de serosa também explica a dis-
É composta de fibras musculares em 2 disposições: lon-
seminação local dos tumores esofágicos.
gitudinal, mais externa; e circular, interna. Apresenta fibras
estriadas (voluntárias) no quarto superior do esôfago, pro- E - Relações anatômicas
gressivamente mescladas com fibras de músculo liso no 2º
quarto superior. A metade inferior do esôfago só tem muscu- O esôfago cervical mede em torno de 7cm de compri-
latura lisa. Entre a camada longitudinal e circular está o plexo mento e fica atrás da laringe e da traqueia. Lateralmente,
nervoso de Auerbach, que coordena a atividade motora do estão os vasos jugulocarotídeos. O nervo laríngeo recor-
esôfago. A partir da disposição das fibras musculares do esô- rente direito não tem contato com o esôfago cervical, já o
fago, formam-se os esfíncteres esofágicos, superior e inferior. esquerdo se situa junto ao ângulo formado pela traqueia e
pelo esôfago, no sulco traqueoesofágico. O ducto torácico
a) Esfíncter superior do esôfago ascende do mediastino posterior e desemboca na confluên-
O Esfíncter Superior do Esôfago (ESE), também deno- cia jugular subclávia esquerda, passando próximo ao esôfa-
minado esfíncter faringoesofágico, é formado pelo múscu- go. O acesso cirúrgico habitual é feito por meio de cervico-
lo cricofaríngeo (o qual é formado pela porção inferior do tomia esquerda.
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ANATOMIA E FISIOLOGIA DO ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
- Posterior: coluna vertebral, músculos longos do pes-
coço, artérias intercostais posteriores direitas, ducto
torácico, veia ázigos, veia hemiázigos e aorta;
- À direita: pulmão direito e arco da veia ázigos (no local
que passa sobre o brônquio principal direito para ter-
minar na veia cava superior);
- À esquerda: parte distal do arco aórtico, artéria sub-
clávia esquerda, ducto torácico, pulmão esquerdo e
Figura 4 - Relações do esôfago torácico, visualizadas em toracoto- nervo laríngeo recorrente esquerdo (Figura 5).
mia direita: (A) esôfago, (B) aorta, (C) veia ázigos, (D) diafragma, (E)
pulmão direito (rebatido superiormente) e (F) gordura pericárdica O hiato esofágico fica acima e à esquerda do hiato aór-
tico, demarcado pelos pilares musculares à direita e à es-
O esôfago torácico tem cerca de 17cm e situa-se mais querda do esôfago, que geralmente são originados do pilar
à esquerda no mediastino superior (entre a traqueia e a direito do diafragma. A membrana frenoesofágica fixa o
coluna vertebral), passa posteriormente à direita do arco anel muscular ao esôfago.
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GAST R O ENTEROLO GIA
traparietal, enquanto o plexo submucoso forma as varizes muitas anastomoses conectando a rede linfática desse ór-
de esôfago. gão à faringe e ao estômago.
De modo geral, a drenagem venosa segue a distribuição Os principais grupos de linfonodos regionais são: do
das artérias, destacando-se as veias tireóideas inferiores, esôfago cervical, as cadeias jugular interna, paratraque-
ázigos e hemiázigos (esôfago torácico), veia gástrica esquer- ais e supraclaviculares; do esôfago torácico, as cadeias
paraesofágica, mediastinal posterior, intercostais, tra-
da e veia frênica inferior (que desemboca na suprarrenal ou
queais, subcarinais e hilares; e do esôfago abdominal,
na cava inferior).
as cadeias para-aórticas e celíacas (Figura 6). O fluxo de
Na drenagem linfática, os vasos correm longitudinal-
linfáticos dos 2/3 superiores tende a ser no sentido su-
mente na submucosa antes de penetrar na muscular para perior, enquanto no terço distal tende a ser no sentido
atingir linfonodos regionais. Portanto, é possível ocorrer inferior. No entanto, todos os linfáticos intercomunicam-
metástase a distância no próprio esôfago de tumores nele -se, podendo haver padrões diferentes de disseminação
localizados. A rede linfática do esôfago é muito rica e com linfática de tumores.
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ANATOMIA E FISIOLOGIA DO ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
Figura 7 - Sistema linfático do esôfago
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CAPÍTULO
2
Doença do refluxo gastroesofágico
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
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GAST R O ENTEROLO GIA
3. Etiologia
Figura 2 - (A) Estômago e esôfago normais; (B) hérnia hiatal por
A - Hérnias hiatais deslizamento; e (C) hérnia hiatal paraesofágica
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DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFÁGICO
GASTROENTEROLOGIA
como exercício físico, tosse, esforço evacuatório, gravidez,
obesidade e presença de ascite, ou situações que cursam aparecer devido à aspiração do conteúdo gástrico refluído
com diminuição de motilidade gástrica como atonia ou ou por ação indireta desencadeada por refluxo vagal.
estase gástrica (que podem ser consequentes a diabetes, A Hemorragia Digestiva Alta (HDA) é rara, e são mais
vagotomias, alterações neuromusculares e disfunções mo- comuns quadros de anemia crônica, principalmente em
toras pilóricas ou do duodeno) e estenoses também podem casos de grandes herniações gástricas. Nestes, a isquemia
ser causas de DRGE. da mucosa também desempenha um papel importante. A
presença de úlcera sangrante no estômago herniado pelo
4. Diagnóstico hiato recebe o nome de úlcera de Cameron. Outras 2 com-
plicações relacionadas à DRGE são as estenoses e o esôfago
Os sintomas podem ser divididos em esofágicos típicos
de Barrett. As estenoses podem ser precoces ou tardias e
(pirose retroesternal e regurgitação). Aqueles que definem
requerem tratamento específico.
a DRGE, e sintomas esofágicos atípicos (dor torácica de ori-
Os exames complementares têm a finalidade de detec-
gem não cardíaca e o globus), e os extraesofágicos, que po-
tar 3 problemas: o refluxo propriamente dito, as repercus-
dem ser orais, otorrinolaringológicos e respiratórios (Tabela
sões da DRGE e as condições desencadeantes e afecções
1), e que geralmente devem ser investigados com exames
associadas (Tabela 4).
específicos para comprovar sua relação com a DRGE, ou
seja, o diagnóstico baseia-se fundamentalmente no quadro a) EED
clínico e na utilização de exames subsidiários. O exame contrastado pode caracterizar o refluxo, porém
Tabela 1 - Manifestações atípicas da DRGE
muitas vezes depende de manobras específicas durante sua
realização (decúbito dorsal horizontal e manobras de Val-
Manifestação Tipo
salva, por exemplo). Pode mostrar alterações anatômicas,
- Dor torácica sem evidência de enfermidade como a perda do ângulo de Hiss e a presença de hérnias
coronariana (dor torácica não cardíaca);
Esofágica de hiato que podem contribuir para o refluxo (Figura 3).
- Globus hystericus (faringeus); É pouco sensível para a detecção da esofagite, exceto em
- Disfagia. casos graves, em que se encontram ulcerações ou esteno-
- Asma, tosse crônica, hemoptise, bronquite, se. Contudo, é o melhor exame para caracterizar hérnia de
Pulmonar
bronquiectasia e pneumonias de repetição. hiato, podendo evidenciar alterações funcionais esofágicas
- Rouquidão, pigarro (clareamento da gargan- que sugiram a concomitância de megaesôfago ou esclerose
Otorrinolarin-
ta), laringite posterior crônica, sinusite crôni- sistêmica progressiva, além de permitir a caracterização de
gológica
ca e otite média. distúrbios de esvaziamento gástrico.
- Desgaste do esmalte dentário, halitose e
Oral
aftas.
Outros - Sialorreia e eructação.
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GAST R O ENTEROLO GIA
Figura 6 - pHmetria
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DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFÁGICO
GASTROENTEROLOGIA
- Avaliação morfológica do esôfago;
EED - Avaliação de estenoses, ulcerações e hérnia - Não identificação de esofagite.
hiatal.
- Parâmetro de predição de evolução da doença;
- Diagnóstico de distúrbios motores específicos do - Não avaliação da capacidade real de transporte do
Manometria esofágica
esôfago; conteúdo alimentar.
- Identificação do EIE para pHmetria.
Impedanciometria eso- - Acompanhamento do movimento anterógrado e
- Poucos estudos clínicos.
fágica retrógrado do conteúdo alimentar.
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GAST R O ENTEROLO GIA
6. Tratamento cirúrgico
São indicações do tratamento cirúrgico:
- Falha do tratamento clínico (principal indicação), ca-
racterizada pela manutenção dos sintomas, mesmo
com o uso correto das medicações;
- Presença de complicações da DRGE (ulceração, Barrett,
estenose);
- Sintomas respiratórios importantes: pneumonites ou
broncoespasmos de repetição devido ao refluxo; Figura 9 - Hiatoplastia e fundoplicatura pela técnica de Nissen
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DOENÇA DO REFLUXO GASTROESOFÁGICO
GASTROENTEROLOGIA
substituição do epitélio escamoso estratificado do esôfago
distal por epitélio colunar contendo células intestinalizadas
ou caliciformes, em qualquer extensão (Figura 11A). É de-
nominado “Barrett curto”, quando sua extensão é menor
que 3cm, e “Barrett longo” quando é maior que 3cm. Quan-
to mais frequente, grave e prolongado for o refluxo (e os
Figura 10 - Aspecto intraoperatório da hiatoplastia: (A) hiatoplas- sintomas), maior será a chance de aparecimento do esôfa-
tia realizada com pontos separados de algodão 2-0 em cirurgia go de Barrett.
convencional e (B) esôfago abdominal isolado Esse epitélio metaplásico é considerado substrato para
a instalação de adenocarcinoma (por meio da sequência
A principal complicação pós-operatória é a disfagia de-
metaplasia-displasia-carcinoma), daí sua grande importân-
terminada pela hiatoplastia e pela válvula antirrefluxo. Por-
cia. Portanto, deve ser diagnosticado, tratado e acompa-
tanto, é fundamental diagnosticar outro motivo para que o
nhado com bastante rigor.
doente apresente disfagia antes de empregar o tratamento
cirúrgico. Nesse sentido, é fundamental a manometria eso-
fágica. Em casos nos quais são notadas alterações motoras
do corpo esofágico, pode-se optar pela técnica de Lind (ci-
rurgia em que a válvula envolve 3/4 do esôfago ao invés de
metade com a cirurgia de Toupet), tendo em vista que essa
técnica representa uma barreira menor para a passagem
de alimentos. Em termos de contenção do refluxo (controle
por pHmetria), tanto a fundoplicatura parcial quanto a total
são equivalentes.
Figura 11 - Esôfago de Barrett: (A) microscopia evidenciando me-
A via laparoscópica é a mais indicada para a realização taplasia intestinal com células caliciformes e (B) aspecto endoscó-
das fundoplicaturas, e importantes detalhes técnicos de- pico típico
vem ser sempre respeitados, como manutenção de certa
folga de 1,5 a 2cm, fundoplicatura “frouxa”, liberação do A incidência do esôfago de Barrett é subestimada, pois o
fundo gástrico (para não determinar obstrução extrínseca diagnóstico adequado não é feito por muitos endoscopistas
do esôfago distal nem desvio do eixo esofagogástrico) e nós e pela ausência de sintomas em muitos doentes. Cerca de
sem tensão (evitando isquemia tecidual). 10% dos casos de DRGE apresentam esôfago de Barrett. A
A litíase biliar também deve ser tratada no mesmo pro- idade média dos pacientes varia em torno de 50 anos, com
cedimento cirúrgico, quando presente em pacientes que pequeno predomínio do sexo masculino. O epitélio colunar
serão submetidos a procedimentos cirúrgicos para DRGE. O por si só não causa sintomas, porém os doentes podem apre-
tratamento cirúrgico é mais efetivo que o tratamento clíni- sentar sintomas relacionados ao refluxo ou às complicações
co no controle do refluxo, com bons resultados em mais de (estenose, úlcera e câncer). O principal sintoma é a pirose.
90% dos casos. Aproximadamente 2% ao ano dos casos de esôfago de
Barrett desenvolvem câncer. Porém, os pacientes com tal
7. Complicações complicação têm riscos 30 a 125 vezes maior de desenvol-
verem adenocarcinoma de esôfago que a população nor-
- Úlceras: incidem em 5% dos pacientes com esofagi- mal. Pacientes com Barrett longo e áreas de displasia estão
te consequente à DRGE, habitualmente localizada na em maior risco.
TEG, mostra que a inflamação já se estendeu até a A EDA é o principal exame para diagnóstico do esôfago
submucosa, ou seja, um grau mais avançado da doen- de Barrett. Observa-se mudança da cor do epitélio pálido
ça. Pode ocasionar anemia devido a um sangramento escamoso para o róseo colunar bem acima da junção esofa-
crônico e insidioso; gogástrica. Devem ser feitas biópsias para confirmar o diag-
- Hemorragias: geralmente é crônica e raramente ob- nóstico endoscópico. A presença de hérnia hiatal dificulta o
serva-se hemorragia maciça; diagnóstico. Nesses casos, o pinçamento diafragmático não
- Estenose péptica: ocorre em 7 a 23% dos indivíduos corresponde à transição esofagogástrica, portanto devem
portadores de DRGE, é o estreitamento do esôfago ser identificadas as pregas gástricas e a JEG.
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GAST R O ENTEROLO GIA
Até o momento, o esôfago de Barrett não apresenta ne- dilatação. A esofagectomia está indicada a casos em que há
nhum tratamento eficaz para a regressão do epitélio me- displasia de alto grau, casos de estenose impossível de ser
taplásico; tanto a terapêutica clínica como a cirúrgica são dilatada, associação de esclerodermia e megaesôfago, e na
eficazes somente em controlar o refluxo, diminuindo o pro- presença de câncer.
cesso inflamatório e a progressão da doença.
O tratamento clínico obedece aos cuidados observados Mesmo após a correção do refluxo, é indicada endos-
para DRGE, mas não é o tratamento mais aceito. Pode ser copia para o rastreamento de neoplasia. Há autores que
realizado em pacientes que não desejam o tratamento ci- indicam a endoscopia anual e outros a indicam a cada 3
rúrgico ou naqueles de alto risco. Diminui a incidência de anos, para os pacientes sem displasia ao estudo anatomo-
complicações como estenose e úlceras, mas ainda não se patológico. Entretanto, o consenso brasileiro de DRGE suge-
sabe se altera a história natural, em caso de displasia. riu uma EDA a cada 2 anos. Aqueles com displasia de baixo
A cirurgia está indicada a todos os casos de esôfago de grau devem ser submetidos ao exame a cada 6 ou 3 meses.
Barrett sem contraindicação clínica para tal. A hiatoplastia Aqueles com displasia de alto grau devem ter o exame repe-
com fundoplicatura está indicada a pacientes com esôfago tido e, em caso de confirmação, tratados como carcinoma
de Barrett sem complicações ou com estenose possível de in situ.
8. Resumo
Quadro-resumo
- Deve-se suspeitar da DRGE, além dos quadros típicos, na presença de manifestações atípicas;
- O exame padrão-ouro para o diagnóstico de esofagite é a EDA com biópsia, e o exame padrão-ouro para o diagnóstico de refluxo pa-
tológico é a pHmetria;
- O tratamento envolve medidas higienodietéticas, medicações e cirurgia. A combinação desses elementos varia de acordo com o pa-
ciente;
- O esôfago de Barrett é lesão pré-neoplásica e requer vigilância contínua.
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CAPÍTULO
3
Afecções benignas do esôfago
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
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G ASTROENTEROLO GIA
consequente contração incoordenada ou ausente do corpo monstrar o relevo do esôfago dilatado e nível hidroaéreo
esofágico. Ao mesmo tempo, o EEI não se abre em resposta mediastinal (Figura 1). Entre outros achados, temos o duplo
à deglutição, mas é permeável à pressão de coluna líquida contorno cardíaco à direita, o alargamento de mediastino e
suficientemente elevada. a ausência de bolha gástrica.
A denervação acarreta hipersensibilidade da muscula-
tura quando é submetida a estímulos colinérgicos. A aperis-
talse e a acalasia (que significa ausência de relaxamento do
EEI) levam a estase esofágica, que estimula o esôfago a ficar
em hipertonia. No decorrer do tempo, ocorrem hipertrofia
e espessamento da parede esofágica. Mais tardiamente,
a estase alimentar enfraquece a parede esofágica, que se
adelgaça e perde a tonicidade muscular.
O que ocorre é uma sequência de eventos, inicialmente
há uma destruição neural (plexo miontérico de Auerbach e
degeneração das fibras aferentes vagais e do núcleo dorsal
motor do vago) esta destruição vai levar à ausência ou dimi-
nuição da peristalse esofágica, concomitantemente há o pro-
blema do relaxamento do EEI (acalasia) levando à retenção
e estase esofágica acarretando a hipertrofia, exaustão, hipó-
xia, e atrofia muscular que resulta em um esôfago dilatado
(megaesôfago). Estase esofágica é um fator que predispõe a
metaplasia intestinal e um risco aumentado do paciente com
megaesôfago, em 10 vezes em relação à população, a desen-
volver câncer, no caso, o carcinoma epidermoide. Figura 1 - Radiografia simples de tórax em paciente com megae-
sôfago chagásico: notar a área hipotransparente à direita do me-
C - Quadro clínico e diagnóstico diastino, com nível hidroaéreo superior, sugestiva da afecção
O sintoma mais frequente é a disfagia que se inicia com O estudo radiológico contrastado do esôfago (EED) deve
dificuldade à ingesta de alimentos sólidos, progredindo ser solicitado. Os achados característicos do megaesôfago são:
para pastosos, até chegar à dificuldade de beber líquidos. - Estase de contraste;
É possível observar, também, em alguns pacientes, as hi- - Dilatação do esôfago;
pertrofias das parótidas e outras glândulas salivares devido - Afilamento gradual do esôfago distal – sinal do “bico
à intensificação do reflexo esofagossalivar, podendo haver de pássaro” ou “cauda de rato”;
sialorreia. Mais de 50% dos pacientes apresentarão episó-
dios de regurgitação com a evolução da doença, o que leva
- Ondas terciárias;
a episódios de pneumonia aspirativa. - Ausência de bulha gástrica;
Outras queixas como dor tipo angina e pirose podem es- - Imagens de subtração em meio ao contraste (imagem
tar presentes, no caso da dor tipo anginosa, lembrar primei- de “miolo de pão”).
ramente de descartar problemas cardíacos. A perda de peso
A partir das imagens obtidas pelo EED podemos classifi-
também é um sinal ocasionado principalmente pelo medo
car o megaesôfago radiologicamente:
do paciente em comer (sitofobia), perda súbita deverá ser in-
vestigada, sempre lembrando de excluir a neoplasia.
Deve-se fazer o diagnóstico diferencial com outras afec-
ções que cursam com disfagia, como estenose cáustica ou
por refluxo, divertículos esofágicos, esclerodermia e neo-
plasia (do esôfago ou extrínseca).
Para o diagnóstico da doença de Chagas temos o teste
de fixação do complemento descrito por Machado Guerrei-
ro, que permaneceu como único exame para diagnóstico
da doença até a década de 1950. Atualmente são usados
os testes de ELISA, hemaglutinação indireta e imunofluo-
rescência indireta. É necessário resultado positivo em, pelo
menos, 2 métodos diferentes para confirmação diagnóstica.
Entre os exames radiológicos, o raio x de tórax avalia
a condição cardíaca (como cardiomegalia) e complicações
pulmonares de aspiração crônica. Pode eventualmente de-
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AFECÇÕES BENIGNAS DO ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
Dilatação do esôfago de até 7cm com estase, mas com o órgão
ainda em seu eixo. A ausência de peristaltismo e acalasia é fre-
quente, com amplitude e duração dos complexos alterados.
Além da disfagia, o paciente passa a ter regurgitação.
Avançado
Diâmetro superior a 7cm com perda do eixo longitudinal do ór-
gão, associado a alterações manométricas importantes, como
Figura 2 - Classificação radiológica do megaesôfago: Rezende e hipotonia ou atonia e ondas terciárias. O órgão passa a ter uma
Moreira; (A) grau I: até 4cm (calibre normal, trânsito lento com função de acúmulo de alimentos, não de transporte. Há melhora
pequena retenção de contraste); (B) grau II: 4 a 7cm (aumento mo- da disfagia e piora da regurgitação de alimentos não digeridos,
derado do calibre, presença de considerável retenção de contraste sendo comuns os quadros respiratórios por aspiração.
e ondas terciárias); (C) grau III: 7 a 10cm (grande aumento do ca-
libre, hipotonia do esôfago inferior, atividade motora reduzida ou
ausente e grande retenção do contraste) e (D) grau IV (dólico me- D - Complicações e afecções associadas
gaesôfago): acima de 10cm (alongamento esofágico dobrando-se - Desnutrição (não está associada ao grau de dilatação
sobre a cúpula diafragmática)
do órgão);
A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) é o exame solicitado - Pneumonia aspirativa;
para avaliar diagnósticos diferenciais como presença de - Esofagite, acantose e leucoplasia (agressão pela estase
neoplasia, principalmente, assim como o grau de acometi- alimentar);
mento que pode estar presente se houver doença do reflu- - Carcinoma espinocelular (estase e proliferação bacte-
xo gastroesofágico (DRGE). riana e consequente produção de substâncias carcino-
A manometria esofágica (Figura 3) é o padrão-ouro para gênicas);
diagnóstico de acalasia, nos casos de dúvida em que a EED - Afecções associadas: cardiopatia (alterações mais fre-
não demonstra dilatação, este teste define a presença da quentes do ECG são bloqueio de ramo e extrassístole),
doença: acalasia do piloro, megaduodeno, litíase biliar e me-
- Ausência do peristaltismo no corpo esofagiano (con- gacólon (observadas alterações motoras colônicas em
dição necessária e absoluta para o diagnóstico de me- 70% dos casos com megaesôfago).
gaesôfago);
- Relaxamento ausente ou incompleto do EEI; E - Tratamento
- Tônus pressórico basal do EEI elevado;
- Pressão intraesofagiana maior que a pressão intragás- a) Tratamento clínico
trica. Medicamentos que agem na musculatura lisa e esfincte-
riana diminuem a pressão do EEI, mas não causam relaxa-
A classificação mais adequada considera aspectos clíni- mento adequado dela: anticolinérgicos, nitratos, bloqueado-
cos, radiológicos e manométricos (Tabela 1). res do canal de cálcio, agonistas beta-adrenérgicos e teofilina.
Visa, fundamentalmente, ao alívio da disfagia, a nifedina e
o nitrato de isossorbida provocam alívio em 50 a 80% dos
pacientes. No entanto, efeitos colaterais como hipotensão e
cefaleia limitam seu uso.
O tratamento clínico pré-operatório é feito com o objeti-
vo de melhorar as condições gerais do paciente e consiste em
dieta hiperproteica, vitaminas, suporte enteral/parenteral.
- Dilatação endoscópica:
Indicada em pacientes com megaesôfago graus I e II,
megaesôfago incipiente, paciente com cirurgia prévia com
sintomas persistentes, pacientes sem condição cirúrgica,
Figura 3 - Manometria esofágica opção para melhorar a nutrição do paciente e gestantes.
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G ASTROENTEROLO GIA
Consiste no posicionamento via endoscópica do balão cialmente, feita pela via laparoscópica. A cardiomiectomia
pneumático no EEI insuflando-o por um período de 1 a 3 deve ter extensão de, mais ou menos, 9cm (6cm de esôfago
minutos com uma pressão de 300mmHg (10 a 12 PSI), uma e 3cm de estômago).
boa resposta deve-se alcançar um diâmetro de 3cm e uma Indica-se esofagectomia em casos avançados, grau IV,
pressão de repouso menor que 10mmHg. Apresenta um ín- preferencialmente pela via abdominal sem toracotomia
dice de sucesso de 55 a 70%, podendo alcançar um índice (via transmediastinal). A acalasia do piloro e a litíase bi-
de 90% nos casos de dilatações múltiplas. liar devem ser tratadas juntamente com o megaesôfago
Complicações apresentadas: perfuração, dor prolonga- por meio de piloroplastia e colecistectomia pela via lapa-
da, refluxo gastroesofágico, aspiração traqueobrônquica, roscópica.
hemorragia, erosões da mucosa e hematoma intramural. Pode ocorrer recidiva na cardiomiectomia incompleta
(os feixes musculares não são seccionados completamente,
- Toxina botulínica: portanto a acalasia persiste) ou se há cicatrização inadequa-
É um peptídio produzido pelo Clostridium botulinum da da miotomia (as bordas da miotomia aproximam-se no-
que bloqueia a liberação da acetilcolina na fibra pré-sináp- vamente). Isso ocorre, principalmente, quando não se faz
tica levando à paralisia reversível do músculo, produz re- a fundoplicatura ou quando há perfuração inadvertida da
sultado, em curto prazo, no alívio da disfagia nos 6 meses mucosa esofágica no momento da miotomia.
após aplicação. Os candidatos a essa terapêutica são os que
apresentaram falha no tratamento cirúrgico com múltiplas 2. Síndrome de Boerhaave
dilatações, idosos com alto risco cirúrgico e pacientes com
Síndrome descrita pelo médico holandês Boerhaave
divertículos epifrênicos associados.
compreende a ruptura esofágica secundária a aumento sú-
O tratamento definitivo depende do estado geral do pa-
bito de pressão intraesofágica. É geralmente desencadeada
ciente e da classificação do megaesôfago (Tabela 2).
por esforço intenso do vômito.
Tabela 2 - Tratamento sugerido para o megaesôfago chagásico
- Quadro clínico: o sintoma típico é de dor torácica após
vômitos violentos. Sintomas como dispneia e cianose
Classificação do podem estar presentes, se houver perfuração no esô-
Tratamentos possíveis
megaesôfago
fago intratorácico. O enfisema subcutâneo pode apa-
- Medicamentoso: pacientes oligossintomáticos; recer se a perfuração for em esôfago cervical;
- Dilatação endoscópica: tratamento transitório - Diagnóstico: história clínica, exame físico e imagens
Incipiente e pacientes de alto risco; radiológicas obtidas pelo raio x simples de tórax, EED
- Cardiomiectomia e fundoplicatura: tratamento com contraste hidrossolúvel ou EDA;
definitivo e pacientes de baixo risco. - Tratamento: em casos iniciais (com menos de 24h de
Não avançado - Cardiomiectomia e fundoplicatura. evolução), pode ser realizado com sutura da lesão e
- Cardiomiectomia e fundoplicatura: pacien- drenagem ampla do mediastino devido à contamina-
tes idosos e pacientes de alto risco; ção com uso de antibioticoterapia de grande espec-
Avançado tro. Podem-se usar tecidos adjacentes para proteger a
- Esofagectomia: equipe treinada e pacientes em
boas condições clínicas. área suturada (Figura 5). Nas lesões mais extensas com
evolução maior do que 24h, as condutas preferenciais
são esofagostomia, gastrostomia, drenagem torácica
dupla e sutura ou ressecção do esôfago, normalmente
por toracotomia.
b) Tratamento cirúrgico
O tratamento cirúrgico por meio da cardiomiectomia e
fundoplicatura (operação de Heller-Pinotti) é indicado para
o megaesôfago graus II e III. Consiste na lise da musculatura
circular do esfíncter inferior do esôfago e preservação da
túnica mucosa, com a retirada de uma faixa muscular e con-
fecção de válvula antirrefluxo parcial anterior. É, preferen-
18
AFECÇÕES BENIGNAS DO ESÔFAGO
A - Quadro clínico
Figura 5 - Alternativas para proteção de perfuração do esôfago: Disfagia alta pela obstrução da luz esofágica, não há pro-
GASTROENTEROLOGIA
(A) com retalho diafragmático; (B) com fundo gástrico e (C) com gressão da doença e alguns referem piora da disfagia no final
retalho de alça do jejuno
do dia devido à fadiga. Predominantemente, observam-se
anemia, glossite e disfagia. Outras alterações da mucosa e
3. Anéis esofágicos pele podem aparecer como leucoplasia oral, acloridria gástri-
ca, diminuição da salivação, glossite de aspecto liso e brilhan-
São também chamados de anéis de Schatzki, localizados
te com papilas gustativas tróficas, perda da elasticidade da
na transição anatômica esofagogástrica no ponto de união
pele, cabelos secos e unhas quebradiças por onicodistrofia.
do epitélio escamocolunar (linha Z). Acometem mais adul-
tos e pacientes idosos; a etiologia não está totalmente defi-
B - Diagnóstico
nida, a causa mais provável seria a agressão repetida que o
epitélio sofre durante a doença do refluxo gastroesofágico. É difícil devido ao caráter intermitente e evolução lenta.
A disfagia é um sintoma importante, podendo variar de O hemograma pronuncia uma anemia permanente, na en-
sólidos a líquidos, dor em queimação é outra queixa fre- doscopia o diagnóstico é difícil, a não ser nos casos em que
quente devido à associação com DRGE, além da impactação há impactação de alimentos na luz do esôfago. Radiologica-
de alimentos sólidos no local do anel. mente, o estudo do esôfago pode ser feito de 3 maneiras:
Os estudos radiológico e endoscópico são preferências radiografia sem duplo contraste, videofluoroscopia faringo-
no esclarecimento do diagnóstico complementar dos anéis. esofágica e deglutograma. Com EDA e os estudos radiológi-
cos é possível esclarecer quase todos os casos.
O tratamento clínico baseia-se na correção da anemia e
nos casos de disfagia e dilatação endoscópica.
4. Membranas esofágicas
São dobras da mucosa do esôfago, localizadas principal-
mente no esôfago superior acima do arco aórtico. As mem-
branas localizadas no esôfago cervical são mais frequentes Figura 7 - Aspecto radiológico de membrana esofágica em pacien-
e fazem parte da SD de Plummer-Vinson ou Peterson-Kelly. te com síndrome de Plummer-Vinson
19
G ASTROENTEROLO GIA
20
AFECÇÕES BENIGNAS DO ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
acidental, acontece em volumes maiores, tendo como con-
sequência maior potencial para lesões graves.
B - Fisiopatologia
As substâncias corrosivas mais comumente ingeridas são
a soda cáustica (hidróxido de sódio) e a potassa cáustica (hi-
dróxido de potássio). As substâncias alcalinas fortes são reco-
nhecidamente as mais corrosivas e destroem, predominante-
mente, as áreas recobertas por epitélio escamoso (orofaringe
Figura 9 - Aspecto segmentado do esôfago na radiografia contrastada e esôfago). Contudo, podem-se encontrar, também, lesões
gástricas associadas à ingestão de tais substâncias. O contato
- Tratamento: é essencialmente clínico, baseia-se no desses álcalis com tecidos orgânicos provoca intensa reação
princípio da tentativa e do erro, com bloqueadores de físico-química, com desnaturação de proteínas e gordura, que
cálcio, nitratos e nitroglicerinas associados a antide- determina, em última instância, uma necrose liquefativa. O
pressivos tricíclicos. Em casos de disfagia e dor persis- calor liberado nesse processo pode agravar a lesão tecidual.
tente, alternativas como aplicação de toxina botulínica Normalmente, são lesões que atingem até planos profundos.
via endoscópica e intervenção cirúrgica (indicada em Os ácidos fortes também provocam lesões graves, po-
disfagia intensa) podem ser adotadas. rém, como não são rotineiramente usados em produtos
industriais de limpeza, as lesões ocorrem com menor fre-
7. Esclerose sistêmica progressiva quência. O epitélio escamoso é mais resistente à ação de
ácidos, que acabam gerando lesões mais graves no estô-
Esta é uma doença do tecido conjuntivo caracterizada mago. Os ácidos determinam necrose de coagulação com
por um processo autoimune de etiologia desconhecida e precipitação de proteínas, formando uma carapaça que im-
por alterações inflamatórias, vasculares e fibróticas da pele pede a progressão da lesão em profundidade.
e de múltiplos sistemas orgânicos. Acomete, difusamente, Outras substâncias que podem levar a lesões corrosivas
fibras musculares lisas (inclusive no esôfago), determinan- são alguns antibióticos (doxiciclina), cloreto de potássio,
do alterações da motilidade esofágica, e pode apresentar sulfato ferroso e quinidina. A gravidade da lesão cáustica
alterações renais e cardíacas associadas (pior prognóstico). é determinada pelo tipo, quantidade e forma (sólida ou lí-
Alterações de pele e fenômeno de Raynaud são bastante quida) da substância ingerida e pelo tempo de contato da
comuns, os sintomas principais são pirose (70%) e disfagia substância com o TGI.
(45%), e o diagnóstico é feito pela história clínica e pelo exa-
me físico. No EED, é visualizada uma dificuldade de trânsito C - Alterações anatomopatológicas
esofágico e dilatação e, na manometria, é verificada a alte-
ração da peristalse nos 2/3 distais do esôfago e hipotonia As lesões podem ser classificadas em superficiais e pro-
do EIE. O tratamento é sintomático, e raramente é necessá- fundas. As primeiras manifestam-se por edema, eritema,
rio o tratamento cirúrgico. formação de bolhas ou pequenas úlceras isoladas, e as úl-
timas compreendem as ulcerações circunferenciais, poden-
8. Estenose cáustica do envolver toda a espessura da parede, configurando uma
perfuração. As alterações costumam seguir uma cronologia
bem estabelecida:
A - Epidemiologia - Fase aguda: edema nas primeiras horas, seguido de
A ingestão de agentes corrosivos e o seu contato com delimitação da lesão nas formas de erosões ou úlceras;
o tubo digestivo alto levam ao quadro agudo da lesão - Após a 1ª semana: desprendimento de áreas de ne-
cáustica, o qual pode evoluir cronicamente para estenose. crose e processo regenerativo local;
A maioria dos pacientes envolvidos com esse tipo de aci- - 2ª semana: diminuição do processo inflamatório e iní-
dente recupera-se sem sequelas. No entanto, lesões graves cio do processo de fibrose, que termina por volta da 6ª
podem determinar complicações sucessivas e até óbito semana. A estenose, em geral, ocorre em lesões mais
na fase aguda. Até 1/3 dos pacientes que sofreram lesões extensas e se processa a partir da 6ª semana.
21
G ASTROENTEROLO GIA
Os locais mais suscetíveis à lesão (em virtude da relativa paciente já pode deglutir líquidos. Sua finalidade é detectar
demora do trânsito) incluem o esôfago superior na altura a localização e a extensão das lesões estenóticas esofágicas
do cricofaríngeo, o esôfago médio na impressão broncoaór- e diagnosticar possíveis lesões no piloro e no antro gástrico,
tica e o esôfago distal imediatamente proximal ao esfíncter que podem também sofrer estenose. A EDA é o melhor exa-
esofágico inferior. Dependendo da profundidade da lesão, me para verificar a magnitude da lesão e pode ser feita já
podem ocorrer, na fase aguda, perfuração esofágica ou rea- nas primeiras 48 horas. Avalia a extensão e a gravidade da
ções periesofágicas que determinam retrações e aderência lesão aguda e determina quais os pacientes que merecem
de órgãos adjacentes. atenção redobrada, diferenciando-os daqueles que podem
Na fase aguda (de 7 a 10 dias), a alimentação oral é ser tratados em ambulatório.
impossível, e é recomendado aporte alimentar alternati-
vo. Passada a fase aguda, a maioria dos indivíduos volta a E - Complicações
alimentar-se gradativamente, todavia uma pequena parcela
Entre as complicações imediatas destacam-se o edema
volta a apresentar disfagia após 6 semanas, quando se inicia
de laringe, traqueobronquite, pneumonite, hemorragia,
a reação cicatricial no esôfago.
mediastinite, fístula traqueobrônquica e aortoesofágica;
Após a estenose, o paciente tende a desenvolver desnutri-
essas 3 últimas são muito graves e potencialmente fatais.
ção e desidratação progressiva, salvo quando orientado ade-
Tardiamente, pode ocorrer estenose esofágica ou es-
quadamente na fase aguda. A maioria dos casos de estenose
tenose antropilórica (esta última mais em decorrência da
acontece no 1/3 médio do esôfago, seguido pelo esôfago pro-
ximal e, por último, pelo esôfago distal. Lesões que acometem ingestão de ácidos fortes). O encurtamento esofágico pela
somente a mucosa e a submucosa do esôfago raramente evo- reação cicatricial pode causar hérnia hiatal, com conse-
luem com estenose, ao passo que a lesão da camada muscular, quente desenvolvimento de doença do refluxo gastroeso-
sobretudo a lesão esofágica extensa e circunferencial, evolui fágico importante. Há ainda elevação do risco de carcinoma
com estenose e disfagia grave e de difícil tratamento. espinocelular em portadores de estenose cáustica de longa
evolução em 1.000 vezes, geralmente de 20 a 30 anos após
D - Diagnóstico o evento agudo.
É importante ressaltar as possíveis complicações psi-
É importante a caracterização da ingestão de substância cossociais, em relação a paciente que receberá tratamen-
corrosiva, associada ao quadro clínico dramático de dor, sialor- to ambulatorial por toda a vida, e em casos graves que, na
reia e odinofagia, e é muito importante a determinação do tipo maioria, já apresentavam doença psiquiátrica de base, prin-
de agente ingerido e de sua quantidade. Pode haver dificul- cipalmente nas tentativas de suicídio.
dade respiratória, indicando aspiração do agente. Os exames
subsidiários no 1º atendimento não fornecem maiores infor-
F - Tratamento
mações. As radiografias do tórax e do abdome podem mostrar
sinais que sugiram complicações, como as perfurações. O tratamento da estenose cáustica envolve medidas clí-
O EED não é recomendado na 1ª semana, porém é mui- nicas e cirúrgicas, de acordo com a extensão e a gravidade
to útil nas fases mais tardias, após 4 a 6 semanas, quando o da lesão (Figura 10).
22
AFECÇÕES BENIGNAS DO ESÔFAGO
Medidas caseiras como, por exemplo, oferecer leite, vadora, com antibioticoterapia, jejum e NPT, desde que os
substâncias ácidas diluídas (vinagre) e líquidos oleosos com pacientes estejam estáveis e não apresentem piora clínica.
o intuito de neutralizar a substância alcalina não têm valor Após a resolução do quadro agudo de perfuração, progra-
comprovado e devem ser evitadas. Agentes neutralizantes ma-se a reconstituição do trânsito alimentar por meio de
tampouco devem ser utilizados, pois a neutralização forma esofagocoloplastia retroesternal.
calor, que pode agravar a lesão. Deve-se iniciar jejum por O tratamento das complicações tardias como doença do
24 a 48 horas associado à hidratação ou Nutrição Parenteral refluxo gastroesofágico (DRGE), câncer e estenose cáustica
GASTROENTEROLOGIA
Total (NPT). Analgésicos e sedativos devem ser prontamen- do esôfago deve ser realizado, de preferência, em institui-
te iniciados, principalmente para as crianças, e o acompa- ções com experiência em cirurgia do esôfago e nos casos
nhamento psiquiátrico deve ser solicitado para aqueles que de estenoses cáusticas. A disfagia intensa e a intratabilida-
tentaram o suicídio. de clínica do refluxo com bloqueadores H+ e pró-cinéticos
O uso de substâncias eméticas é contraindicado, pois determinam o tratamento cirúrgico da DRGE, que pode ser
pode levar o esôfago e a faringe a nova exposição às subs- feito por meio da confecção de válvula antirrefluxo (fundo-
tâncias corrosivas. A sondagem nasogástrica para a remo- plicatura) ou da ressecção do esôfago nos casos de esteno-
ção da substância do estômago também não deve ser utili- se grave.
zada, pois pode ocasionar vômitos e evoluir com perfuração Os pacientes desenvolvem câncer porque o esôfago é
do esôfago/estômago, enfraquecidos pela lesão corrosiva. submetido a processo inflamatório crônico após a lesão
O tratamento agudo depende da profundidade da le- cáustica, o qual se perpetua devido ao reflexo instalado
são. Em pacientes com lesões superficiais, pode ser iniciada e aos procedimentos de dilatação. Assim, está predispos-
ingestão líquida, evoluindo para alimentação normal após to a desenvolver carcinoma epidermoide. Contudo, ra-
24 a 48 horas. Naqueles com lesões ulceradas maiores ou ramente é possível encontrar adenocarcinoma associado
necrose, deve-se introduzir dieta enteral por sonda naso- à estenose cáustica. Tal situação está presente em casos
entérica, após 24 horas do acidente, associada a suporte de esôfago de Barrett secundário ao refluxo. A suspeita
clínico. Nos casos de necrose, devem-se observar possíveis do surgimento de neoplasia é a recidiva da disfagia 20 a
sinais de perfuração por, no mínimo, 1 semana. Antibióticos 30 anos após a ingestão do corrosivo, e a conduta diante
profiláticos e corticoides estão contraindicados. de tal situação obedece à de tratamento do câncer de
esôfago.
Nos casos de estenoses, pode-se optar por tratamento
Na estenose cáustica do esôfago, os sintomas principais
conservador. As dilatações podem ser realizadas pela técni-
são a disfagia e a sialorreia. Nesse caso, é comum o encon-
ca anterógrada ou retrógrada quando se dispõe de gastros-
tro de pneumonias de repetição em virtude das aspirações
tomia. A dilatação anterógrada é realizada com a passagem
frequentes. O diagnóstico da estenose é obtido, principal-
de sondas sucessivamente de maior calibre, de acordo com
mente, por EED ou EDA. O 1º demonstra a extensão da es-
a resistência encontrada e o cuidado de evitar perfuração.
tenose de característica inflamatória, sem falhas de enchi-
Os procedimentos são ambulatoriais e repetidos semanal-
mento abrupto, e estuda a viabilidade do uso do estômago
mente ou quinzenalmente. Para os portadores de lesões
no tratamento cirúrgico. O último demonstra a viabilidade
mais extensas em que as dilatações não são possíveis ou
da mucosa da faringe e do esôfago proximal à estenose. A
devem ser repetidas em intervalos muito curtos de tempo
principal técnica cirúrgica nesses pacientes é a esofagocolo-
(em um período de 6 a 8 meses), indica-se o tratamento plastia, pela possibilidade de manutenção do reservatório
cirúrgico. gástrico, e de não haver a necessidade de ressecar o esô-
O tratamento cirúrgico é dividido em tratamento de fago.
emergência ou tratamento de complicações tardias. O 1º
deve ser realizado quando há necrose ou perfuração na fase
aguda ou perfuração após dilatação endoscópica. O diag- 9. Resumo
nóstico de perfuração é realizado a partir do quadro clínico Quadro-resumo
de dor torácica, hematêmese e sepse, e de exames radioló-
- O tratamento de megaesôfago depende da correlação entre
gicos, como o raio x de abdome e tórax, mostrando pneu- quadro clínico, achados radiológicos e manométricos;
moperitônio ou pneumomediastino. A endoscopia também
- O tratamento da estenose cáustica do esôfago divide-se em
pode ser empregada nesse sentido. medidas para a fase aguda e crônica;
Nos casos de necrose extensa ou de perfuração do esô-
- A manometria pré-operatória permite o diagnóstico diferencial
fago, este deve ser removido, sem a realização de toracoto- das alterações funcionais do esôfago, de tratamento clínico.
mia (esofagectomia total trans-hiatal), seguida de esofagos-
tomia, gastrostomia ou jejunostomia com drenagem ampla
do abdome e do mediastino. Não se deve tentar conservar
o órgão, pois trata-se de esôfago doente.
As lesões pequenas e bloqueadas, ou seja, sem maiores
repercussões clínicas, podem ser tratadas de forma conser-
23
CAPÍTULO
4
Câncer de esôfago
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli
Allan Garms Marson / Rodrigo Ambar Pinto
1. Epidemiologia
Trata-se da 6ª causa de morte por câncer no mundo,
que acomete mais homens do que mulheres (3 a 5:1), cujo
tipo histológico mais comum é o espinocelular, entretan-
to, nos Estados Unidos, o adenocarcinoma chega a 70%
dos casos.
- Carcinoma espinocelular (CEC): as principais afecções
predisponentes são o megaesôfago (a estase esofági-
ca aumenta a concentração de nitritos decorrente da
maior quantidade de bactérias redutoras de nitrito na
luz do esôfago), estenose cáustica e raramente tilose
(hiperceratose palmoplantar e papilomatose de esôfa-
go, que constitui a única síndrome genética comprova-
damente associada ao câncer de esôfago), síndrome
de Plummer-Vinson e os divertículos de esôfago;
- Adenocarcinoma: 2 fatores vêm sendo relacionados
com o aumento da incidência desse tipo de câncer, a
obesidade e a DRGE. O esôfago de Barrett decorrente
da ação prolongada do refluxo gastroesofágico é consi-
derado um fator predisponente.
Dentre os fatores agressivos e pró-carcinógenos da mu-
cosa esofágica, destacam-se o tabagismo e o etilismo. O Ris-
co Relativo (RR) relatado para o etilismo é de 2,4 e, para o
tabagismo, 2,3; para os usuários de ambos, o RR é mais de
20. Vale destacar que os tumores de cabeça e pescoço e as
neoplasias do trato respiratório sofrem igualmente os efei- Figura 1 - Carcinoma de esôfago associado a megaesôfago avançado
24
CÂNCER DE ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
jacentes ou metastizar amplamente por via hematogênica. A
ausência de serosa favorece a disseminação local do tumor.
Por contiguidade, ocorre a invasão da árvore traqueobrôn-
quica, da aorta e do pericárdio (fatores de irressecabilidade).
A disseminação por continuidade é marcante nesse tipo
de tumor e pode ocorrer pela submucosa de forma não vi-
sível macroscopicamente. Assim, nas ressecções esofágicas,
não se admitem margens com menos de 10cm na cirurgia
com intenção curativa.
A disseminação linfática é frequente e acontece mesmo
em fases precoces em que a invasão na parede esofágica
ultrapassa a camada muscular da mucosa. A extensa drena-
gem linfática mediastinal em comunicação com as cadeias
abdominais e cervicais confere ao tumor de esôfago alto
poder de disseminação para esses 3 sítios, independente da
localização. Pela via hematogênica, a disseminação é mais
tardia e geralmente indica a fase final da doença. Os órgãos
mais acometidos são o fígado (30%), os pulmões e os ossos.
25
GAST R O ENTEROLO GIA
3. Diagnóstico
Quanto ao quadro clínico, a disfagia progressiva é o sinto-
ma mais frequente, que se inicia com dificuldade para inges-
tão de sólidos evoluindo para alimentos pastosos e líquido.
Geralmente, a queixa é referida no nível da localização do
tumor, e, quando o acometimento ocorre em mais de 50%
da luz do órgão, tem característica progressiva, havendo tam-
bém perda rápida de peso, odinofagia e regurgitação. Na fase
avançada da doença, pode ocasionar sintomas decorrentes
de invasão de estruturas adjacentes, como tosse e expecto-
ração (fístula esofagobrônquica e ou aspiração), dor torácica
ou rouquidão (invasão dos nervos laríngeos recorrentes com
paralisia da prega vocal). A doença espalha-se para linfono-
dos subjacentes e supraclaviculares que, quando palpáveis,
recebem o nome de sinal de Troisier. Figura 5 - Apresentação do câncer de esôfago no EED: (A) aspecto
Tabela 1 - Principais diagnósticos diferenciais no câncer de esôfago vegetante, (B) serrilhado, (C) espiralado e (D) afunilado
Afecção Característica
Pode-se comprovar, a partir do EED, a presença de even-
Ocorre disfagia em menos de 10% dos portado-
Estenose por
res de DRGE. Geralmente, é lenta, progressiva e
tuais fístulas esofagobrônquicas ou esofagomediastinais
refluxo (Figura 6). O EED com duplo contraste (ar + bário) pode de-
referida junto ao apêndice xifoide.
Disfagia com as mesmas características da este- tectar tumores de até 1cm de diâmetro. Retrações e alte-
nose por refluxo. Os dados epidemiológicos e os rações de eixo do esôfago, determinadas por fixações em
Megaesôfago achados de Esôfago-Estômago-Duodenografia estruturas vizinhas, também podem ser observadas nesse
(EED) e Endoscopia Digestiva Alta (EDA) fazem o
diagnóstico. tipo de exame.
Pacientes de idade avançada com disfagia alta A EDA está indicada a todos os casos, pois permite o
Divertículo que se acentua durante a ingestão têm, como diagnóstico histopatológico por meio da biópsia. Um mé-
faringoesofá- sintomas concomitantes, abaulamento cervical todo utilizado durante a endoscopia é a cromoscopia com
gico durante a refeição e a regurgitação. O EED faz o
lugol, que permite a avaliação mais minuciosa da mucosa
diagnóstico.
identificando áreas não coradas, que podem representar
O raio x contrastado de Esôfago, Estômago e Duodeno neoplasia, facilitando a realização de biópsias dirigidas, ou
(EED) tem como finalidades o diagnóstico, a localização, a seja, aumenta a sensibilidade do exame.
avaliação da extensão da doença e do estudo do estômago
e duodeno para o planejamento cirúrgico. Podem ser de-
tectados facilmente os tumores avançados e as anormali-
dades do exame, representadas por rigidez da parede, úlce-
ras, massas vegetantes (falhas de enchimento abruptas) e
estase com dilatação a montante (Figura 5).
26
CÂNCER DE ESÔFAGO
GASTROENTEROLOGIA
a coluna vertebral ou, ainda, ângulo de contato do tumor
com a aorta maior que 90° – sinais de invasão da aorta. A
TC é um importante exame para a avaliação de metástases
em sítios de disseminação da doença (fígado, pulmão e su-
prarrenais); não há vantagens no estadiamento do uso da
ressonância sobre a tomografia.
A laringobroncoscopia, para avaliar comprometimen-
to da árvore traqueobrônquica (Figuras 8A e B), deve ser
realizada especialmente nos tumores proximais e médios
torácicos, com o objetivo de comprovar histologicamente a
invasão da árvore traqueobrônquica ou a fistulização.
4. Estadiamento
O estadiamento, fundamental para o planejamento Figura 8 - Estadiamento do câncer de esôfago: (A) TC de tórax evi-
denciando grande comprometimento tumoral de esôfago toráci-
terapêutico, tem como objetivo avaliar a profundidade da
co; (B) broncoscopia evidenciando invasão da árvore respiratória e
invasão do tumor na parede esofágica, a disseminação lin- (C) TC abdominal evidenciando meta hepática
fonodal e a ocorrência de metástase a distância.
Essa avaliação pode ser realizada por Tomografia Com- A ultrassonografia endoscópica é o método mais eficaz
putadorizada (TC), que é o principal método no estadia- para definir a profundidade da lesão (T), sendo muito útil
27
GAST R O ENTEROLO GIA
para lesões restritas à parede do órgão, e permite a ava- Profundidade da Linfono- Metás- Sobrevida
Estágio
liação de linfonodos periesofágicos, possibilitando ainda a infiltração dos tases 5 anos
biópsia transesofágica. Qualquer
IV Qualquer T M1
Atualmente se utiliza a tomografia por emissão de pó- N
sitrons (PET-CT) ou o PET-scan, com o objetivo de avaliar Qualquer
IVA Qualquer T M1a <5%
N
funcionalmente lesões suspeitas, assim como metástases a
Qualquer
distância. Diversos estudos vêm demonstrando a acurácia IVB Qualquer T M1b <1%
N
desses métodos, e sua utilização no estadiamento atual-
mente encontra evidências sólidas na literatura, mas o ele- - Câncer precoce de esôfago
vado custo impede a utilização rotineira.
A sociedade japonesa ainda classifica o câncer precoce
Tabela 2 - Classificação TNM – UICC 2004 em 2 categorias distintas:
T Tumor primário.
- Câncer precoce propriamente dito: invade até submu-
cosa sem metástase linfonodal;
Tx Tumor não pode ser avaliado. - Câncer superficial atinge até submucosa com ou sem
T0 Sem evidência de tumor. metástase.
Tis Carcinoma in situ.
A diferenciação é importante devido à sobrevida do pa-
T1 Tumor invadindo lâmina própria ou submucosa.
ciente: os que são tratados cirurgicamente sem metástase
T2 Tumor invadindo até muscular própria. apresentam uma sobrevida em 5 anos de cerca de 80%, en-
T3 Tumor invadindo até adventícia. quanto pacientes com metástase apresentarão uma sobre-
T4 Tumor acometendo estruturas adjacentes. vida de dentro de 5 anos de 50%.
N Linfonodos regionais.
Tabela 4 - Classificação histológica do câncer superficial
Nx Linfonodos não podem ser avaliados.
M1 Limitado ao epitélio. Não apresenta metástase linfonodal.
N0 Linfonodos regionais não comprometidos.
Invade a lâmina própria. Não apresenta metástase linfo-
N1 Linfonodos regionais comprometidos. M2
nodal.
M Metástases.
Atinge a muscular da mucosa. Risco de metástase linfo-
Mx Metástases a distância não podem ser avaliadas. M3
nodal: 8 a 9%.
M0 Sem metástase a distância. Invade 1/3 superior da submucosa. Risco de metástase
Sm1
M1 Com metástase a distância ou presença de linfonodos não linfonodal: 10 a 12%.
regionais. Invade 2/3 da submucosa. Risco de metástase linfonodal:
Sm2
- Para os tumores do esôfago torácico inferior: 22%.
· M1a: metástase em linfonodos celíacos; Invade toda a submucosa. Risco de metástase linfonodal:
Sm3
· M1b: outra metástase a distância. 36 a 44%.
- Para os tumores do esôfago torácico superior: M: Mucosa; SM: submucosa.
· M1a: metástase em linfonodos cervicais;
· M1b: outra metástase a distância. 5. Tratamento
- Para os tumores do esôfago torácico médio:
· M1a: não aplicável; O câncer de esôfago é uma afecção de tratamento mul-
· M1b: metástase em linfonodo não regional ou outra metás- tidisciplinar, envolvendo cirurgia, quimioterapia e radiote-
tase a distância. rapia. A cirurgia pode ser radical e paliativa, de acordo com
o estadiamento da lesão e as condições gerais do paciente.
Tabela 3 - Relação entre estadiamento e taxa de sobrevida para
A - Medidas pré-operatórias
câncer de esôfago
Profundidade da Linfono- Metás- Sobrevida A cura só pode ser alcançada através da cirurgia, mas
Estágio antes da realização do procedimento é importante avaliar
infiltração dos tases 5 anos
0 Tis N0 MO >95%
o estado nutricional do paciente. Perdas ponderais maio-
res que 20% do peso devem receber um suporte nutricional
I T1 N0 MO 80 a 50%
que pode ser realizado através de sonda enteral por 15 dias,
IIA T2/T3 N0 MO 40 a 30% minimizando as complicações cirúrgicas.
IIB T1/T2 N1 MO 30 a 10%
T3 N1 MO B - Ressecções radicais
III Qualquer 15 a 10%
T4 M0 A esofagectomia é considerada uma cirurgia de grande
N
porte, e o paciente deve apresentar condições clínicas para
28
CÂNCER DE ESÔFAGO
tal. As ressecções esofágicas são realizadas por via mista, ou princípios a serem respeitados são anastomose sem tensão
seja, abdominal e torácica, abdominal e cervical sem tora- (comprimento adequado do órgão interposto), boa vascula-
cotomia ou esofagectomia em 3 campos (Figura 9). rização, disposição anatômica e capacidade funcional. Para
a anastomose, tanto o cólon quanto o estômago podem ser
utilizados. A esofagogastroplastia tem sido mais empregada
pela facilidade do procedimento em relação à coloplastia,
pois necessita de unicamente 1 anastomose e dispensa o
GASTROENTEROLOGIA
preparo de cólon (Figura 10).
.
Figura 9 - (A) Esofagectomia por laparotomia e cervicotomia
(trans-hiatal) e (B) esofagectomia em 3 campos (laparotomia, to-
racotomia e cervicotomia)
A esofagectomia em 3 campos (laparotomia, toracoto- Figura 10 - Confecção de tubo gástrico: o órgão foi levado pelo
mia e cervicotomia) representa opção de ampla disseca- mediastino, e a anastomose foi feita com o esôfago cervical por
ção do esôfago e dos linfonodos mediastinais, cervicais e cervicotomia
abdominais, de tal forma que oferece a maior radicalidade
possível. Assim, os portadores de tumores ressecáveis do É importante saber que o órgão interposto para a anas-
1/3 médio com boas condições nutricionais e respiratórias tomose cervical pode ser passado pelo próprio leito de esô-
são os principais candidatos a tal procedimento, lembrando fago (com resultado funcional melhor) ou pela via retroes-
que lesões mais precoces têm melhores resultados. Atual- ternal, que deixa o mediastino livre para a possível ação de
mente, devido ao grande avanço da medicina minimamente radioterapia adjuvante, além de prevenir a disfagia numa
invasiva, utiliza-se a laparoscopia em substituição ao acesso possível recidiva local. Seja qual for a técnica cirúrgica utili-
por toracotomia na região torácica. zada, é obrigatória a piloromiotomia ou a piloroplastia, que
A esofagectomia transmediastinal, ou seja, por meio de evita a obstrução pilórica pós-vagotomia.
laparotomia, frenotomia e cervicotomia (sem a necessida- A sobrevida global para os tumores de esôfago em 5 anos é
de de toracotomia), é uma opção cirúrgica bastante consi- de, no máximo, 25%. O estadiamento e o diagnóstico precoce
derável, pois permite a ressecção do esôfago com linfade- da afecção selam o prognóstico e a evolução em longo pra-
nectomia ampla da região abdominal e torácica até o nível zo. O câncer de esôfago, geralmente, é diagnosticado em fa-
da carina, com a vantagem de poupar o doente da toraco- ses avançadas quando já representa doença sistêmica. Nestes
tomia e de suas consequências. É uma boa opção cirúrgica casos, a sobrevida chega a, no máximo, 10%. Melhores resul-
para as ressecções esofágicas por doenças benignas (mega- tados dependem de diagnóstico precoce, do seguimento dos
esôfago, lesões cáusticas etc.) e as neoplasias ressecáveis
grupos de risco e do planejamento terapêutico individualizado
de 1/3 inferior e superior do esôfago. Além disso, pode ser
e multidisciplinar (com nutrólogos e radioterapeutas).
empregada aos pacientes com tumores do 1/3 médio, mas
Os tumores da cárdia e da TEG são estudados separada-
que, devido ao estado geral e nutricional, não suportariam
mente pela sua localização anatômica peculiar e diferentes
uma toracotomia. A principal crítica a essa técnica consiste
tratamentos. Dependendo de sua localização e extensão
na ausência de radicalidade, pois não há visualização com-
(limitado a cárdia, extensão ao esôfago ou ao estômago),
pleta do tumor, o que dificulta sua retirada em bloco e de
define-se o tratamento cirúrgico, que pode variar de eso-
estruturas adjacentes possivelmente acometidas.
fagectomia total + gastrectomia proximal, esofagectomia
É consensual que, nos casos de câncer do esôfago, inde-
pendentemente da situação, a ressecção total é a melhor distal + gastrectomia total ou esofagogastrectomia. A linfa-
opção terapêutica e deve, portanto, ser sempre utilizada. O denectomia é a mesma preconizada para o câncer gástrico,
tipo preferencial de anastomose é a esofagogástrica cervi- ou seja, linfadenectomia ampla a D2.
cal, que, apesar de apresentar fístula em até 15% dos casos,
tem mortalidade quase nula. C - Tratamento paliativo
Em qualquer técnica empregada, a reconstrução do O planejamento terapêutico deve levar em conta o es-
trânsito deve ser a mais simples e eficaz possível. Assim, os tadiamento do tumor e as condições clínicas do doente.
29
GAST R O ENTEROLO GIA
Considerando que a grande maioria dos tumores de esôfago dos semelhantes se comparados ao uso de cirurgia e radio-
é diagnosticada em fase tardia, muitos doentes não apresen- terapia exclusivas no tratamento do CEC de esôfago.
tam condições para tratamento radical; passa-se, então, ao A quimioterapia como modalidade única é a técnica me-
objetivo da restauração paliativa da capacidade de degluti- nos eficaz para o tratamento e, como paliação, traz pou-
ção ou de nutrição. Deve-se levar em conta que os pacientes cas e insignificantes melhoras. Sua principal atuação é no
se encontram geralmente em regular ou mal estado geral, pré-operatório, em conjunto com a radioterapia para tratar
por isso procedimentos que aliviem os sintomas de forma rá- micrometástases e reduzir o tamanho do tumor para me-
pida devem ser eleitos; exemplos são cirurgia que desviem o lhorar os índices de ressecção. As drogas mais utilizadas são
trânsito da porção do tumor (bypass), gastrostomia endoscó- cisplatina e 5-fluorouracil. Atualmente, é preconizada como
pica ou colocação de prótese via endoscópica (Figura 11). Na método neoadjuvante, apresentando resultados promisso-
prótese endoscópica, mesmo sendo um procedimento rela- res com relação à ressecabilidade (tumores irressecáveis
tivamente simples, os índices de complicações ultrapassam passam a serem ressecáveis) e ao controle de metástases
20% com mais de 10% de mortalidade. Além de não ser inó- linfonodais peritumorais.
cuo, oferece uma paliação insatisfatória da disfagia (não tem A quimioterapia e a radioterapia neoadjuvante (antes
atividade motora) e não pode ser empregado em tumores de do tratamento cirúrgico) podem aumentar os índices de
1/3 proximal (até 20cm da Arcada Dentária Superior – ADS), ressecabilidade dos doentes que respondem ao tratamento
pois causa sensação de corpo estranho. Por outro lado, re- com redução do tumor (dowstaging).
presenta ótima opção aos casos de fístulas esofagobrônqui-
cas, com oclusão de até 80% dos casos. 6. Resumo
Uma alternativa ao alívio da disfagia é a quimioterapia
associada à radioterapia, com controle e redução da massa Quadro-resumo
tumoral. A principal complicação consiste na fístula traqueo- - A incidência de adenocarcinoma de esôfago está aumentando
esofágica, porém esta pode ser tratada endoscopicamente. em decorrência de casos de esôfago de Barrett;
- O CEC de esôfago tem maior potencial de disseminação linfáti-
ca e a distância;
- A cirurgia é a principal forma de tratamento, entretanto nem
todos os pacientes têm condições de suportá-la. Nesses casos, é
possível a combinação de radioterapia e quimioterapia.
D - Quimioterapia e radioterapia
A radioterapia tem papel importante no tratamento das
neoplasias de esôfago de várias maneiras, aliviando, inclu-
sive, a disfagia em 80% dos pacientes; seus resultados são
superiores quando em associação à quimioterapia.
Não se faz radioterapia a portadores de fístula traqueo-
esofágica e de próteses. Há trabalhos que mostram resulta-
30
CAPÍTULO
5
Anatomia e fisiologia do estômago
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
31
GAST R O ENTEROLO GIA
2. Suprimento sanguíneo
A irrigação sanguínea do estômago pode ser dividida entre vasos que seguem pela pequena e pela grande curvatura, e
pelo fundo gástrico (Tabela 2 e Figura 3).
Tabela 2 - Divisão da irrigação sanguínea
Cranial Caudal
Artéria gástrica direita (ramo da artéria hepática) ou
Pequena curvatura Artéria gástrica esquerda (ramo do tronco celíaco).
artéria gastroduodenal (ramo da artéria hepática).
Artéria gastroepiploica esquerda (ramo da artéria Artéria gastroepiploica direita (ramo da artéria gas-
Grande curvatura
esplênica). troduodenal).
Fundo gástrico Artérias gástricas curtas ou vasos breves (ramos da esplênica).
32
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO ESTÔMAGO
GASTROENTEROLOGIA
das artérias, sendo tributárias do sistema porta hepático
ou de suas tributárias (veias esplênica e mesentérica supe-
riores). O equivalente venoso da artéria gástrica esquerda
também é conhecido como veia coronária e drena direta-
mente para a veia porta.
A drenagem linfática acompanha o retorno venoso gás- Figura 4 - Inervação do estômago (nervo vago)
trico. A linfa proveniente do estômago proximal acompa-
nha a pequena curvatura e drena nos gânglios linfáticos 4. Fisiologia
gástricos superiores, em torno da artéria gástrica esquer-
da. A região inferior do estômago drena para os gânglios
A - Secreção gástrica
suprapilóricos e omentais para finalmente terminar nos
gânglios celíacos. A porção esplênica ou superior (grande A secreção gástrica é dividida em 2 fases: estimulação e
curvatura) drena inicialmente para os linfonodos pancre- inibição (Tabela 3). No jejum, há uma secreção ácida basal
áticos e esplênicos para daí drenar também para os gân- de 2 a 5mEq/L de ácido hidroclorídrico. Durante a refeição,
esse valor aumenta para 15 a 25mEq/L.
glios celíacos. Assim como as veias e as artérias, os lin-
fáticos do estômago comunicam-se livremente na parede Tabela 3 - Estimulação e inibição da secreção gástrica
gástrica e apresentam numerosas comunicações intramu- Estimulação Inibição
rais e extramurais. Consequentemente, tumores gástricos Ocorrência pela visão e Ocorrência pela visão
que acometem linfonodos muitas vezes disseminam-se in- calor e calor
tramuralmente além de sua região de origem para grupos Cefálica Estímulo vagal via acetil- Estímulo vagal via
ganglionares distantes. colina acetilcolina
A drenagem linfática geralmente acompanha as veias Ação na célula parietal Ação na célula parietal
gástricas, sendo importante no momento da linfadenecto- Estímulo mediado pela Estímulo mediado pela
mia cirúrgica. gastrina gastrina
Ação na célula parietal Ação na célula parietal
Gástrica
3. Inervação Ocorrência quando o ali-
Ocorrência quando
o alimento chega ao
mento chega ao estômago
estômago
O estômago apresenta inervação autonômica simpáti-
Ocorrência quando
ca e parassimpática. A inervação parassimpática é formada Ocorrência quando o ali-
o alimento chega ao
pelo nervo vago que tem origem no núcleo vago no assoa- mento chega ao duodeno
duodeno
lho do 4º ventrículo, atravessa o pescoço na bainha carotí- Intestinal
Menor importância Menor importância
dea penetrando no mediastino, onde se divide em vários Via gastrina produzida no Via gastrina produzida
ramos ao redor do esôfago. Estes ramos se juntam acima duodeno no duodeno
do hiato esofagiano formando os nervos vagos direito e es-
querdo (Figura 4) que inerva o estômago. O ramo direito As células principais secretam a pró-enzima pepsinogê-
nio que, na presença de pH ácido ≤4, é convertida em pep-
segue em posição posterior ao estômago e apresenta uma
sina, dando início à digestão proteica e estimulando a libe-
divisão celíaca. O ramo esquerdo é mais anterior e possui
ração de gastrina no estômago. A secreção do pepsinogênio
o ramo hepático, que inerva o fígado e as vias biliares, e
é estimulada pelo estímulo vagal, pela histamina, gastrina,
continua ao longo da curvatura menor como nervo anterior colecistocinina (CCK) e secretina. A inibição da secreção
de Latarjet. acontece por via somatostatina.
A inervação simpática deriva das fibras pré-ganglionares O muco e o bicarbonato são secretados pelas células
do VI ao VIII nervos espinhais torácicos, com sinapse bila- da superfície, rica em anidrase carbônica. Forma-se um gel
teral com o gânglio celíaco. Acompanham o suprimento mucoso (glicoproteínas) com pH alto no epitélio gástrico,
vascular. que protege a mucosa do ácido. Os fatores que estimulam
33
GAST R O ENTEROLO GIA
C - Funções do estômago
De maneira geral, o estômago tem as funções de arma-
zenamento e digestão. Pode funcionar como reservatório de
grande quantidade de alimentos por algumas horas, quando
ocorrem mistura, trituração e fragmentação dos alimentos
para esvaziamento regular. Durante esse período, acontecem
os primeiros estágios da digestão de proteínas e carboidra-
tos, com pequena absorção de alguns outros elementos.
5. Resumo
Quadro-resumo
- Anatomicamente o estômago divide-se em 4 regiões (cárdia,
fundo, corpo e antro);
- O suprimento sanguíneo é multiarterial; sendo 2 artérias em
pequena curvatura e 2 na grande curvatura;
- Os retornos venoso e linfático ocorrem paralelamente e são
importantes no momento da linfadenectomia cirúrgica;
- É no estômago que ocorrem os primeiros estágios da digestão;
ele é responsável, principalmente, pelo armazenamento e mis-
tura dos alimentos ao suco gástrico.
34
CAPÍTULO
6
Dispepsia e Helicobacter pylori
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
Pontos essenciais II), que incluíam, ainda, dor localizada no centro do abdo-
me. Os pacientes manifestando sintomas de pirose retroes-
- Definição de dispepsia; ternal ou outros compatíveis com refluxo gastroesofágico
- Abordagens terapêuticas; não devem ser rotulados como apresentando dispepsia.
- Erradicação do H. pylori. A American Gastroenterology Association considera que
esses indivíduos devem ser definidos como apresentando
1. Definições doença do refluxo gastroesofágico, mesmo que apresentem
endoscopia sem evidências de esofagite.
Dispepsia é definida como a sensação de dor ou des-
conforto esporádico ou persistente na parte superior do ab-
dome. É uma síndrome clínica extremamente comum, com 2. Epidemiologia
etiologias e manifestações clínicas diversas, exigindo uma Dispepsia é um diagnóstico frequente, com prevalên-
abordagem crítica para economia de recursos, sem preju- cia variando entre 30 e 40%, dependendo da população
ízos ao paciente. Estatísticas americanas sugerem que, a estudada, sendo dispepsia funcional o diagnóstico mais
cada ano, 25% da população apresentam sintomas dispép- comum. A incidência é de cerca de 1% ao ano. A maioria
ticos, porém a minoria procura atenção médica; representa
dos dispépticos permanece sintomática por longos pe-
cerca de 2 a 5% das consultas com médicos generalistas. Em
ríodos, apesar dos períodos de remissão espontânea. O
muitos casos, os pacientes não apresentam doença orgâni-
risco de desenvolver doença ulcerosa péptica, contudo,
ca associada (dispepsia funcional). Contudo, apesar de ser
não parece ser diferente da população assintomática. A
uma condição benigna, deve-se considerar que está asso-
prevalência é menor em idosos e parece ser discretamen-
ciada a absentismo e custos com medicamentos e exames
te maior no sexo masculino. Cerca de 25% dos pacientes
subsidiários; além de ser o 1º sintoma associado a patolo-
procuram atenção médica devido a essa queixa. Quando
gias gástricas graves (neoplasias, por exemplo).
submetidos à Endoscopia Digestiva Alta (EDA), 50 a 60%
O Consenso International Roma Committee III definiu
dispepsia como a presença de 1 ou mais dos seguintes sin- dos dispépticos têm dispepsia funcional, 15 a 20% apre-
tomas: sentam úlcera péptica, 20 a 30% apresentam doença do
- Sensação de plenitude pós-prandial (síndrome do des- refluxo gastroesofágico, e 0,5 a 2% são portadores de ne-
conforto pós-prandial); oplasia gástrica.
Alguns dados epidemiológicos são importantes, como a
- Saciedade precoce (definida pela incapacidade de con-
cluir uma refeição de tamanho normal); idade, por exemplo, pois doenças orgânicas frequentemen-
te causam mais sintomas dispépticos em pacientes com
- Dor epigástrica ou queimação (síndrome de dor epi- idade superior ou igual a 50 anos. Úlcera péptica e neopla-
gástrica).
sias gástricas são mais frequentes com o avançar da idade,
Tais critérios são preferidos para utilização na prática clí- o que não se observa em relação à dispepsia funcional e à
nica em relação aos critérios previamente utilizados (Roma doença do refluxo.
35
GAST R O ENTEROLO GIA
36
DISPEPSIA E HELICOBACTER PYLORI
GASTROENTEROLOGIA
Inespecífica Predominam outros sintomas
ansioso ou neurótico. Assim, há grande dificuldade em ca-
racterizar se essas alterações são causa ou consequência da - Dispepsia do tipo ulcerosa: as queixas de dor epi-
dispepsia. gástrica assemelham-se às da úlcera péptica, muitas
vezes com periodicidade e melhora com ingestão de
D - Hipersecreção gástrica substâncias alcalinas. A dor localiza-se no epigástrio e
pode irradiar-se para outros locais, mas, geralmente,
A presença de sintomas, muitas vezes similares aos da não é de forte intensidade. Pode apresentar caráter
doença ulcerosa péptica, levanta a possibilidade de fisio- de clocking (acordar durante a noite devido à dor) ou
patologia semelhante, particularmente em relação à hiper- ritmo associado à alimentação (melhora ou piora com
secreção de ácido e a maior ativação de pepsina. Porém, a ingestão de alimentos), embora esses dados não se-
diversos trabalhos mostraram que não há correlação entre jam suficientes para diferenciar úlcera péptica de dis-
hipersecreção ácida e dispepsia funcional. Além disso, di- pepsia funcional. A presença de vômitos frequentes,
ferentemente da úlcera péptica, a maioria dos dispépticos perda de peso ou disfagia é característica de gravidade
funcionais não melhora com a supressão ácida. Portanto, em doença orgânica e exige investigação diagnóstica
embora os sintomas sejam semelhantes, a fisiopatologia é precoce. Pacientes com maior idade apresentam do-
diferente e, consequentemente, o tratamento também. ença orgânica com maior frequência. Sintomas dispép-
ticos associados a sintomas digestivos baixos (evacua-
E - Infecção pelo Helicobacter pylori ção ou eliminação de gases) sugerem o diagnóstico de
A associação da bactéria à doença ulcerosa péptica é doenças intestinais;
inequívoca, o que levanta a hipótese de sua participação na - Dispepsia do tipo dismotilidade: predomínio de sinto-
dispepsia funcional. Entretanto, em diversos estudos não se mas sugestivos de alteração de motilidade, como ple-
identifica a presença da bactéria estar associada ao maior nitude epigástrica, empachamento, saciedade preco-
grau de dispepsia funcional. Até o momento não existem ce, náuseas (principalmente matinal) e vômitos, sendo
evidências de o H. pylori ser fator determinante dos qua- a dor de menor intensidade e referida frequentemente
dros dispépticos ou mesmo da piora desses quadros. como desconforto ou sensação de peso abdominal;
- Dispepsia do tipo inespecífica: os pacientes desse gru-
F - Irritantes da mucosa gastrintestinal po referem sintomas vagos, com características de sin-
tomas digestivos altos, como eructação ou aerofagia,
Tabagismo, álcool, café e condimentos têm relação com
mas mantendo relação com a alimentação. Em alguns
dispepsia. Alguns trabalhos demonstram que o tabagismo
casos, sintomas semelhantes aos da úlcera péptica
propicia resistência à cicatrização de úlceras e está associa-
superpõem-se aos que sugerem alterações motoras,
do à maior recidiva. Alterações do fluxo sanguíneo mucoso
sem haver claro predomínio de um ou outro grupo de
podem explicar essas observações. O uso de condimentos,
manifestações.
como pimenta, parece apresentar ação similar aos anti-
-inflamatórios, com potencial de lesar a mucosa gastrintes- Ao avaliar pacientes com suspeita de dispepsia, é im-
tinal. Poucos trabalhos documentaram uma relação causal portante não considerar certos sintomas relacionados ao
isolada entre álcool, fumo, cafeína e dispepsia. Conceitual- trato digestivo baixo (tenesmo, urgência fecal, cólica intes-
mente, a dispepsia associada aos anti-inflamatórios é consi- tinal e meteorismo) como parte de um quadro dispéptico.
derada orgânica. A 1ª conduta em pacientes com sintomas Em pacientes com dispepsia tipo dismotilidade e dispepsia
dispépticos em uso de tais medicações é a retirada da me- inespecífica, é necessário excluir causas orgânicas não di-
dicação, antes de procedimentos diagnósticos ou de outras gestivas, como doenças metabólicas, distúrbios hidroele-
intervenções terapêuticas. trolíticos, endocrinopatias, infecções crônicas, doenças do
tecido conectivo, distúrbios do humor, entre outras. Tam-
bém é importante tentar identificar sinais ou sintomas que
5. Diagnóstico possam indicar gravidade e maior probabilidade de doença
História, exame físico e uso criterioso e apropriado dos orgânica, o que é denominado pela literatura de sinais de
exames complementares levam ao diagnóstico correto da alarme (Tabela 3). Esses sinais podem ser resumidos na si-
dispepsia na grande maioria dos casos. Existem 3 apresen- gla DISPEF (Disfagia, Icterícia, Sangramento, Perda de peso,
tações principais de dispepsia funcional (Tabela 2). alteração de Exame Físico).
37
GAST R O ENTEROLO GIA
Tabela 3 - Sinais de alerta na síndrome dispéptica deve ser tranquilo, evitando discussões. Devem ser evitados
- Disfagia ou odinofagia; líquidos, sobretudo gasosos, e refeições muito vultosas.
- Icterícia; O médico deve lembrar-se da possível relação entre
- Sangramento (hematêmese, anemia e sangue nas fezes);
emoções e sintomas dispépticos, e de que alguns pacientes
podem beneficiar-se de psicoterapia.
- Perda de peso não intencional;
Nos casos de dispepsia do tipo ulcerosa indica-se antiá-
- Vômitos persistentes; cido ou bloqueador H2. Na dispepsia do tipo dismotilidade,
- Deficiência de ferro inexplicada; indicam-se pró-cinéticos. A terapia empírica é utilizada por
- Massa palpável e linfadenopatia; 2 a 4 semanas, e, se o paciente apresenta melhora, man-
- História familiar de câncer gástrico; tém-se o tratamento por 4 a 12 semanas, no máximo. Em
- Cirurgia gástrica prévia. casos refratários, deve-se tentar supressão ácida adequada
com bloqueadores H2 ou inibidores de bomba de prótons
Desde que o paciente não apresente sinais de alarme, em dose plena (Tabela 4).
parte da literatura recomenda que se considere exames
Tabela 4 - Dose plena de bloqueadores H2 e inibidores de bomba
complementares, principalmente endoscopia, somente a
de prótons
partir dos 45 anos de idade. Aos pacientes com menos de
45 anos, sem sinais de alarme, indica-se a prova terapêutica Cimetidina, 800mg/dia, ranitidina, 300mg/
Bloqueador H2
dia, e famotidina, 40mg/dia.
com pró-cinético associado a antiácido em dose baixa. Se,
em 2 semanas, o paciente apresenta alívio dos sintomas, Inibidores de bom- Omeprazol, 40mg/dia, pantoprazol, 40mg/
ba de prótons dia, e esomeprazol, 40mg/dia.
pode-se manter o tratamento, em média por 4 semanas,
mas até um máximo de 8 a 12 semanas. Caso o doente não Lesões agudas da mucosa gástrica tendem a ser super-
apresente melhora em 2 semanas ou haja recidiva dos sin- ficiais e podem cicatrizar rapidamente. O inibidor de bom-
tomas com a suspensão da terapêutica medicamentosa, ba de prótons é associado à cicatrização de mais de 90%
deve-se iniciar investigação armada. das úlceras pépticas, e a doença do refluxo também pode
Outra abordagem possível é a terapia empírica contra apresentar melhora importante com essas medicações. A
H. pylori em pacientes com menos de 45 anos e dispepsia presença do H. pylori poderá ser mascarada na vigência do
sem causa orgânica evidente. O problema é que grande nú- uso de inibidores de bomba de prótons, podendo apresen-
mero de pacientes é tratado para o agente sem apresentar tar resultados falsos negativos.
infecção, por isso a maior parte da literatura defende o tes- Dentre os agentes pró-cinéticos, a bromoprida e a dom-
te não invasivo para pesquisa da bactéria. Em nosso meio, peridona são os mais utilizados e devem ser administrados
essa abordagem não é recomendada. Uma 3ª abordagem de 15 a 30 minutos antes de cada refeição principal. A me-
é a realização de endoscopia digestiva alta em todos os pa- toclopramida também pode ser utilizada, em dose de 10mg
cientes com sintomas dispépticos, com pesquisa opcional antes das refeições. Os antiácidos, como a associação de
de H. pylori por meio da histologia. hidróxido de alumínio e magnésio, são utilizados de 1 a 2
Nos casos em que ainda há dúvida diagnóstica, outros horas antes das refeições e podem ser suficientes para con-
exames que podem ser considerados são hemograma, bio- trole de sintomas.
química, pesquisa de sangue oculto nas fezes e ultrassono- Os protetores de mucosa, como o misoprostol, são outras
grafia de abdome (para descartar cólica biliar). Em nosso drogas potencialmente utilizáveis, mas apresentam, como
meio, há um número aumentado de parasitoses, como giar- efeitos colaterais, diarreia e abortamento. O sucralfato na
díase e ancilostomíase, que podem evoluir com sintomas dose de 1g antes das refeições e antes de dormir também
dispépticos e até com anemia ferropriva, o que justifica pro- tem sido utilizado, mas com resultados menos evidentes.
toparasitológicos seriados de fezes nesses pacientes. Os antidepressivos têm grande potencial para tratamento
de dispepsia, devido à grande associação de sintomas como
6. Tratamento depressão e ansiedade nesses pacientes. São mais frequen-
temente recomendados os antidepressivos tricíclicos e dro-
A 1ª conduta em um paciente com dispepsia é verificar gas que interferem na recaptação de serotonina. Em alguns
quais medicações ele está usando. Caso esteja em uso de estudos, amitriptilina em dose baixa (50mg/dia) produziu
anti-inflamatórios não esteroidais, a simples descontinuação significativa melhora dos sintomas e dos índices de qualidade
pode ser suficiente para a melhora. Redução da ingesta de de vida. Contudo, o tratamento padrão da dispepsia ainda é
cafeína e abstinência ao cigarro e ao álcool podem melhorar feito com pró-cinéticos, bloqueadores H2 e antiácidos.
os sintomas, mas o benefício de maiores restrições dietéti-
cas é questionável. O paciente deve evitar alimentos que, em
ocasiões anteriores, causaram sintomas dispépticos. Reco-
7. Helicobacter pylori
menda-se, ainda, que o indivíduo se alimente vagarosamen- Identificado pela 1ª vez em 1982 por Marshall e Warren,
te, para facilitar a digestão. O ambiente em que se alimenta o H. pylori é um espiroqueta Gram negativo. Esse micro-
38
DISPEPSIA E HELICOBACTER PYLORI
-organismo não é invasivo, e o único local a colonizar no particular do adenocarcinoma, após o início da terapia de
ser humano é a região pilórica. Morris conseguiu determi- erradicação desse agente. Porém, a maioria considera que
nar que 3x105 UFC é a quantidade mínima necessária para não há influência positiva nem negativa do H. pylori na do-
causar infecção. A transmissão ocorre, principalmente, via ença do refluxo. O Consenso Brasileiro considera que o H.
oral-oral e oral-fecal, e raramente é secundária a vetores pylori não causa nem prejudica a evolução dos pacientes.
ou por água contaminada. A infecção é, em geral, adquirida
na infância, e a minoria dos pacientes apresenta reinfecção B - Diagnóstico
GASTROENTEROLOGIA
após erradicação. Os sintomas são muito variáveis. A EDA também demons-
Algumas características do micro-organismo possibili- tra achados variáveis, como gastrite, erosões e espessamen-
tam seu crescimento e aumentam seu potencial patogêni- to da parede gástrica. O diagnóstico pode ser feito por testes
co, como produção de urease e de catalase, que diminui não invasivos como a medida da urease, ou por meio da peça
o pH e facilita seu crescimento; flagelos, que facilitam sua histológica obtida por biópsia com endoscopia.
movimentação até o local de seu desenvolvimento; e vários
tipos de adesinas, que facilitam sua adesão ao epitélio gás- C - Tratamento
trico (o potencial patogênico é extremamente dependen-
Após a descoberta do H. pylori, o tratamento da doença
te desse processo). Também são importantes a virulência
ulcerosa péptica foi modificado, e procedimentos cirúrgicos
(embora não invasivo, o micro-organismo causa agressões
que eram comuns passaram a ser cada vez menos necessá-
devido à liberação de fatores bacterianos) e a persistência
rios. A terapia de erradicação do H. pylori diminuiu a taxa de
(devido à inacessibilidade). Quanto à virulência, ocorrem
recorrência das úlceras para menos de 10% (Tabela 5). Di-
citólise epitelial e ruptura das zônulas de oclusão pelas ci-
minuiu também a necessidade do uso da terapêutica antis-
totoxinas, e há, também, indução de resposta imune infla-
matória (quimiotaxinas, lipopolissacarídeos, moduladores secretora de manutenção, a incidência das complicações e
imunes e estimulação antigênica). os custos (comparando à terapia antissecretora). O sucesso
Diferentes cepas do H. pylori apresentam potencial di- com essa terapia é similar à erradicação do H. pylori, porém
ferenciado de desenvolver complicações, como a úlcera a recorrência é extremamente diminuída com a erradicação
péptica. Além dos genes de virulência CagA e VacA, fatores (Tabela 6).
socioambientais, como status socioeconômico na infância, A associação da infecção pelo H. pylori ao desenvolvi-
abastecimento de água e até mesmo a dieta, influenciam mento de linfoma MALT também é bem documentada pela
a virulência do H. pylori. O HLA-DQB1, associado a maior literatura. Estudos demonstraram que pacientes com está-
risco de desenvolver adenocarcinoma gástrico e úlcera duo- gios iniciais do linfoma MALT se beneficiam com a erradi-
denal, também está mais presente em pacientes infectados cação do H. pylori, com índices de cura variando entre 60 e
pelo H. pylori com tipo sanguíneo O. 93%. Ainda precisa ser definido se a cura é duradoura, pois
o PCR de tais pacientes continua positivo, o que não signifi-
A - Fisiopatologia ca que não houve regeneração.
Em pacientes com predisposição genética para o de- Tabela 5 - Indicações de erradicação
senvolvimento de úlcera gástrica, a infecção da mucosa do - Úlcera gastroduodenal ativa ou cicatrizada;
estômago pelo H. pylori leva à pangastrite crônica, o que - Linfoma MALT de baixo grau;
facilita a ulceração da mucosa. A bactéria está presente em - Pós-cirurgia para câncer gástrico avançado, em pacientes
60 a 80% desses pacientes. submetidos à gastrectomia parcial;
Nos pacientes propensos à úlcera duodenal, a infecção - Pós-ressecção de câncer gástrico precoce (endoscópica ou
da mucosa gástrica pelo H. pylori determina uma disfunção cirúrgica);
das células D do antro gástrico, que deixam de suprimir a - Gastrite histológica;
função das células G, com hipergastrinemia e consequente - Pacientes de risco para úlcera/complicações que utilizarão AI-
metaplasia gástrica duodenal. A presença da bactéria deter- NEs cronicamente, inclusive derivados do ácido acetilsalicílico
mina uma inflamação crônica, mais especificamente uma (AAS), mesmo que em baixa dose;
antrite crônica, que facilita a lesão ulcerosa no duodeno. A - Pacientes com história prévia de úlcera ou hemorragia diges-
infecção pelo H. pylori é o maior determinante da ocorrên- tiva alta que deverão usar AINEs inibidores específicos ou não
cia dessa lesão, presente em até 95% dos pacientes com da COX-2;
úlcera duodenal. - Indivíduos de risco para câncer gástrico;
A relação do H. pylori com o refluxo gastroesofágico não - Pacientes com gastrite crônica autoimune, como a associada à
é bem estabelecida. Alguns autores postulam que o 1º é fa- anemia perniciosa, bem como pacientes com imunodeficiên-
tor protetor contra a doença do refluxo e apresentam como cia comum variada (aumento do risco de neoplasia gástrica e
linfoma MALT, respectivamente).
prova o aumento de incidência do câncer de esôfago, em
39
GAST R O ENTEROLO GIA
40
CAPÍTULO
7
Doença ulcerosa péptica
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
41
GAST R O ENTEROLO GIA
B - Patogênese
A doença resulta da redução da defesa normal da mu-
cosa contra o ácido luminar e irritantes, e da alteração da
Tabela 2 - Classificação endoscópica de Sakita
cicatrização da mucosa. Existe um desequilíbrio entre os
agentes de agressão e de reparo da parede gástrica (Figura
A (Active) – Ativa. Úlcera arredondada/ovalada com fundo de
2). A secreção ácida, em geral, é normal ou baixa, diminuin-
fibrina espessa
do com a idade. A gastrite está quase sempre presente e,
A1 Margem edemaciada
quando severa, associada à atrofia das células oxínticas. O
Desaparece o edema marginal e forma-se um anel eri- refluxo duodenal para o estômago também é um fator im-
A2
tematoso
portante, pela presença de agentes citotóxicos como sais
42
DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA
biliares e lisolecitina, que causam agressão à mucosa. Entre os exames de imagem, a radiografia contrastada
O H. pylori é um importante fator de risco e pode ser en- mostra lesão oval, circundada por edema, com convergência
contrado em 65 a 95% dos pacientes com úlceras gástricas e de pregas. O duplo contraste detecta 80 a 90% das lesões.
80 a 95% dos pacientes acometidos por úlceras duodenais.
Entre os fatores relacionados com a patogenicidade dessa
bactéria estão o aumento de secreção ácida, metaplasia
gástrica, resposta imune do hospedeiro e diminuição dos
GASTROENTEROLOGIA
mecanismos de defesa da mucosa (há redução da produção
de muco e bicarbonato).
Os AINEs inibem a cicatrização normal e os mecanis-
mos citoprotetores. A úlcera ocorre em 10% dos usuários
desses anti-inflamatórios, e o sangramento é 2 vezes mais
comum nessa população. Está relacionada diretamente ao
tempo desses medicamentos. Outros fatores estão associa-
dos ao aumento do risco para desenvolvimento de úlceras,
podendo-se destacar o tabagismo e o alcoolismo. O 1º está
associado tanto à formação quanto à recorrência de úlcera
gástrica. Até o momento, não existem trabalhos consisten-
tes que mostrem alguma associação à dieta.
Também podemos incluir na patogênese a síndrome
de zollinger-Ellison, que consiste em uma tríade clínica,
responsável por hipersecreção de ácido gástrico, doença
ulcerosa péptica grave e tumor de células não beta das
ilhotas pancreáticas. Estão localizados, geralmente, na ca-
beça do pâncreas, na parede duodenal ou nos linfonodos
regionais, há uma propagação da produção de gastrina
que aumenta a produção ácida levando à formação de úl-
ceras pépticas.
O quadro clínico caracteriza-se por epigastralgia que A endoscopia digestiva alta é, hoje, o exame mais em-
piora com alimentação, geralmente após 30 minutos, com pregado para o diagnóstico e possibilita biópsia (Figura 3B e
episódios mais longos e severos que a úlcera duodenal, com C). Para realizar a pesquisa de H. pylori, a biópsia de mucosa
dor classicamente em 4 tempos (sem dor-come-dói-passa). com exame histológico é o padrão-ouro, mas também pode
O paciente diminui a ingestão alimentar e pode ter perda ser feito o teste de urease com o fragmento de mucosa. Ou-
de peso, anorexia e vômitos. Cerca de 20% dos pacientes tras possibilidades são o teste sorológico para o diagnóstico
são assintomáticos. inicial e o teste respiratório para o controle do tratamento.
43
GAST R O ENTEROLO GIA
Em úlceras refratárias ao tratamento, deve-se realizar a do- te tivesse uma úlcera pré-pilórica ou uma úlcera duodenal
sagem sérica de gastrina para afastar doenças raras como a concomitante, a vagotomia não se mostrou capaz de dimi-
síndrome de Zollinger-Ellison. nuir os índices de recidiva, portanto, não é indicada.
44
DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA
GASTROENTEROLOGIA
- Vagotomia troncular ou seletiva + piloroplastia: a sec-
ção deve ser feita adjacente à porção intra-abdominal
do esôfago, acima dos ramos celíaco e hepático;
- Vagotomia superseletiva: são sinônimos vagotomia
das células parietais e vagotomia gástrica proximal.
Preserva a inervação pilórica. Tal procedimento é rea-
lizado dissecando-se os nervos de Latarjet da pequena
curvatura do estômago, de um ponto de cerca de 7cm
proximal ao piloro até um ponto, pelo menos, 5cm
proximal à junção gastroesofágica (no esôfago). Em
centros especializados, a recidiva com essa técnica gira
em torno de 10 a 15%, ligeiramente maior do que a
vagotomia + piloroplastia;
- Vagotomia troncular + antrectomia: é a mais efetiva,
com menor índice de recidiva (menor que 2%); entre-
tanto, é a mais mórbida.
A - Perfuração
Ocorre em 7% dos pacientes hospitalizados por úlce-
Figura 4 - Aspecto endoscópico de úlceras duodenais; à direita, ob- ra péptica e em cerca de 7 a 10 casos por 100.000 habi-
servar a presença de 2 úlceras tantes/ano, e em até 60% das úlceras duodenais e 20%
das úlceras gástricas e antrais. No duodeno, frequen-
temente a úlcera anterior perfura, e a úlcera posterior
C - Tratamento
sangra (kissing ulcers – Figura 6). É a causa mais habitual
O tratamento clínico é semelhante ao da úlcera gástrica. de abdome agudo perfurativo levando a óbito em 15% dos
Os bloqueadores de bomba de prótons são os mais eficazes casos, com risco maior em idosos, mulheres e portadores
na cicatrização de úlcera duodenal. Há alto índice de recor- de úlceras gástricas.
45
GAST R O ENTEROLO GIA
C - Obstrução
Ocorre em úlcera duodenal ou pré-pilórica crônica e é a
complicação menos frequente, em 2 a 4% das úlceras duo-
denais. Pode melhorar após internação, em decorrência da
redução do edema em torno da úlcera.
O paciente relata saciedade precoce e história longa de
doença péptica, apresenta vômitos não biliares após a ali-
mentação, com conteúdo semidigerido, e, ao exame físico,
perda de peso, desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos
Figura 6 - Pneumoperitônio (alcalose metabólica hipocalêmica hipoclorêmica e acidúria
paradoxal). Ao exame físico, o abdome pode estar distendi-
O tratamento baseia-se na compensação dos distúr- do ou apresentar peristaltismo visível de Kussmaul.
bios clínicos e no procedimento cirúrgico. Na úlcera duo- Confirma-se o diagnóstico com exame radiológico con-
denal, faz-se sutura da úlcera, podendo usar o omento trastado, em que se observa passagem de pouco ou ne-
para reforço (Figura 7) e, caso o paciente se encontre es- nhum bário para o duodeno (Figura 8). A endoscopia vê a
tável, pode-se associar à vagotomia para diminuir o risco deformidade e não consegue ultrapassar o aparelho. Além
de recidiva. disso, pode realizar biópsia e descartar neoplasia.
46
DOENÇA ULCEROSA PÉPTICA
GASTROENTEROLOGIA
Figura 8 - Raio x contrastado mostrando obstrução
5. Tratamento das úlceras pépticas san- Figura 9 - Aspecto endoscópico de úlceras pépticas com sangra-
grantes mento, segundo a classificação de Forrest – FIa (hemorragia em
jato); FIb (hemorragia em gotejamento; FII (hemorragia recente);
O tratamento inicial visa à estabilização hemodinâmica FIIa (vaso visível); FIIb (coágulo aderido) e FIII (sem hemorragia)
com reposição volêmica à custa de cristaloides e sangue;
associado ao uso de bloqueadores de bomba de prótons.
A endoscopia fornece o diagnóstico, verifica se há sangra- Tabela 4 - Classificação de Forrest para as úlceras pépticas
hemorrágicas
mento ativo e possibilita o tratamento (Figura 9), entretan-
to não deve ser realizada até que o paciente esteja estável Forrest Descrição endoscópica
hemodinamicamente. Ia Sangramento em jato proveniente da lesão
Ib Sangramento difuso proveniente da lesão
IIa Presença de coto vascular
IIb Presença de coágulo aderido ao fundo da úlcera
IIc Presença de pontos de hematina e fibrina
III Ausência de sinais de sangramento
47
GAST R O ENTEROLO GIA
6. Resumo
Quadro-resumo
- Clinicamente, é possível diferenciar a úlcera gástrica da duodenal;
- O H. pylori está relacionado principalmente com as úlceras duo-
denais;
- Com o advento de medicações como os inibidores de bomba
de prótons, o tratamento cirúrgico acaba sendo reservado aos
casos de intratabilidade clínica, ou às complicações como he-
morragia, perfuração e obstrução.
48
CAPÍTULO
8
Tratamento cirúrgico de obesidade mórbida
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
1. Introdução
2. Definição e classificação
A prevalência da obesidade vem aumentando de modo
significativo nas últimas décadas. Atualmente, estima-se A obesidade pode ser definida como alteração da com-
que 10% dos brasileiros sejam obesos. Segundo a Organi- posição corporal, com determinantes genéticos e ambien-
zação Pan-Americana da Saúde, a incidência de obesidade tais, traduzida pelo excesso de peso relativo ou absoluto
infantojuvenil no Brasil cresceu 240% nos últimos 20 anos. das reservas corporais de gordura, que ocorre quando,
Hoje, a obesidade é considerada uma epidemia mundial. cronicamente, a oferta de calorias é maior que o gasto de
As doenças relacionadas a ela figuram entre as principais energia corporal e que resulta, com frequência, em preju-
causas de mortalidade nos países desenvolvidos e têm sua ízos significativos para a saúde. Inúmeras classificações fo-
incidência aumentada em nosso meio. ram propostas para a obesidade (Tabela 1). O IMC, que é a
49
GAST R O ENTEROLO GIA
massa do indivíduo dividida pelo quadrado da altura, defi- to pacientes com alto risco cirúrgico e obesidade mórbida
nido em kg/m2, é utilizado para classificar os pacientes em podem ter mais prejuízo que benefícios em uma operação.
diversas categorias (Tabela 2). Desde 1991, quando o consenso do National Institute of
Health dos Estados Unidos recomendou os preceitos vigen-
Tabela 1 - Classificação sugerida pela Sociedade Americana de Ci-
rurgia Bariátrica
tes para a indicação cirúrgica, inúmeras associações e órgãos
governamentais vêm corroborando suas premissas, como a
Eutrofia <25kg/m2
Sociedade Americana de Cirurgia Bariátrica, a Federação In-
Sobrepeso 25 a 30kg/m2
ternacional para Cirurgia da Obesidade, a Sociedade Brasi-
Obesidade 30 a 39kg/m2 leira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica, dentre outras. Em
Obesidade mórbida 40 a 49kg/m2 1999, o Ministério da Saúde do Brasil reconheceu a gastro-
Superobesidade 50 a 65kg/m2 plastia como um dos procedimentos cobertos pelo Sistema
Super/superobesidade >65kg/m2 Único de Saúde, estabelecendo os seguintes critérios para
indicação: portadores de obesidade de grandes proporções,
Tabela 2 - Classificação sugerida pela Organização Mundial de com duração superior a 2 anos, com IMC maior que 40kg/m2
Saúde (OMS) e resistente aos tratamentos conservadores (dietas, medica-
Sobrepeso >25kg/m2 mentos, exercícios e psicoterapia), e obesos com IMC supe-
Obesidade >30kg/m2 rior a 35kg/m2 portadores de doenças associadas (diabetes,
Obesidade classe I 30 a 34,9kg/m2 hipertensão, artropatias, apneia do sono e hérnia de disco)
Obesidade classe II 35 a 39,9kg/m2 que tenham situação clínica agravada pela obesidade.
Obesidade classe III ou obesidade Foram levantadas algumas contraindicações para a
40kg/m2 ou mais operação, mas, a cada dia, deixam de ser absolutas para se
mórbida
tornarem relativas. As principais são pneumopatias e car-
diopatias graves, cirrose hepática, insuficiência renal, não
3. Indicação do tratamento concordância com cuidados médicos prévios, dependência
A redução da expectativa e da qualidade de vida e a pre- de álcool ou outras drogas e algumas doenças psiquiátricas
sença de doenças relacionadas ao excesso de peso, além (esquizofrenia, depressão incontrolável e bulimia).
do insucesso frequente dos tratamentos conservadores A seleção de pacientes para o tratamento cirúrgico deve
(estudos da década de 1990 indicam que cerca de 90% dos ficar a cargo de uma equipe multidisciplinar (incluindo psi-
pacientes submetidos ao tratamento clínico para a obesida- cólogo, nutricionista, endocrinologista e cirurgiões) capaz
de – dietas, spas etc. – apresentam recidiva em até 5 anos), de identificar aspectos individuais que possam interferir
favorecem a aceitação do tratamento cirúrgico por um nú- nos resultados cirúrgicos, a partir de uma visão global do
mero crescente de médicos e pacientes. O racional para a paciente em questão, conhecendo seus anseios, expecta-
indicação cirúrgica baseia-se, principalmente, na falha do tivas e capacidades para que se torne agente ativo do pro-
tratamento clínico nos pacientes obesos e nos resultados cesso terapêutico. É fundamental afastar doença endócrina
satisfatórios da perda de peso causada pela operação, asso- como causa da obesidade (síndrome de Cushing). O pacien-
ciado ao melhor controle das comorbidades, além de dimi- te deve ainda ter capacidade intelectual de compreender
nuir a mortalidade relacionada à obesidade. todos os aspectos do tratamento proposto, seus riscos e a
Os tratamentos conservadores para a obesidade mór- importância do acompanhamento em longo prazo.
bida, baseados em dietas hipocalóricas, exercícios físicos, Limites de idade para a operação, pois cada vez mais é
drogas que inibem a ingesta ou a absorção de alimentos e realizada em adolescentes e em pacientes mais idosos, não
alterações do comportamento, raramente obtêm bons re- devem ser rigorosos, e as contraindicações clínicas clássicas
sultados em longo prazo. Demonstrou-se que a maioria dos devem ser avaliadas individualmente, para não privar os pa-
pacientes recupera o peso perdido em 5 anos. cientes de prováveis benefícios com a cirurgia ou colocá-los
A cirurgia bariátrica é, hoje, o tratamento com resulta- em risco excessivo para o procedimento.
dos mais expressivos e duradouros para a obesidade mórbi-
da. Apresenta melhora objetiva das comorbidades como hi-
pertensão arterial, diabetes mellitus, úlceras nos membros
4. Técnicas operatórias
inferiores, perfil lipídico alterado, insuficiência respiratória, O tratamento cirúrgico visa uma perda e um controle
pseudotumor cerebral, entre outras. Também traz incre- de peso duradouro, melhora das comorbidades, recupe-
mento na qualidade de vida, na autoestima, no humor e na ração da autoestima, reintegração à sociedade e aumento
afetividade interpessoal. na expectativa e na qualidade de vida. Podem-se dividir as
Pacientes portadores de graves comorbidades relacio- operações para o tratamento da obesidade mórbida, grosso
nadas à obesidade podem ter indicação de cirurgia, mesmo modo, em restritivas, disabsortivas e mista. Cada uma des-
que não atinjam um grau expressivo de obesidade, enquan- sas categorias traz vantagens e desvantagens.
50
TRATAMENTO CIRÚRGICO DE OBESIDADE MÓRBIDA
A - Técnicas restritivas passar a ingerir doces. Atualmente, deve ser indicada ape-
nas em casos selecionados, tendo sido amplamente substi-
As técnicas restritivas tiveram seu auge na década de
tuída nos EUA pelas derivações gastrojejunais desde a dé-
1980, quando a gastroplastia à Mason foi a operação ba-
cada de 1990.
riátrica mais realizada (posteriormente abandonada).
Atualmente, vem ganhando força a colocação de bandas b) Balão intragástrico
gástricas laparoscópicas ajustáveis, com grande aceitação No início dos anos 1990, passaram a fazer parte do arse-
GASTROENTEROLOGIA
principalmente na Europa e na Austrália, onde já são consi- nal terapêutico do tratamento da obesidade os balões intra-
deradas, por muitos serviços, um procedimento bariátrico gástricos, como forma de preencher parcialmente o estôma-
de 1ª escolha, tendo demonstrado resultados duradouros go (Figura 4). Esse procedimento visa à sensação de sacie-
em longo prazo. dade precoce ao paciente, diminuindo, assim, o volume de
Tais procedimentos se baseiam, exclusivamente, na res- alimentos ingeridos. As principais complicações decorrentes
trição à ingesta de alimentos pela redução do volume da câ- de seu uso são a obstrução pilórica e a obstrução intestinal
mara gástrica, levando à saciedade precoce e consequente decorrentes de sua migração. Atualmente, é utilizado basica-
redução da quantidade calórica de cada refeição. De modo mente no preparo pré-operatório de pacientes obesos.
geral, as técnicas restritivas puras são mais comumente indi-
cadas como “ponte” aos doentes que precisam perder peso
antes de serem submetidos a procedimentos de maior porte,
ou que não querem ser submetidos à cirurgia bariátrica.
a) Gastroplastia vertical com bandagem – cirurgia de
Mason
Dentre as várias técnicas restritivas propostas, a gastro-
plastia vertical com bandagem introduzida por Mason em
1982 merece atenção por ter dominado o cenário norte-
-americano da cirurgia bariátrica na década de 1980. A sim-
plicidade técnica, o baixo custo, a baixa morbimortalidade Figura 4 - Balão intragástrico
e os bons resultados iniciais foram responsáveis pela rápida
popularização do método. A operação consiste na septação c) Banda gástrica
do estômago em uma bolsa proximal superior rente à pe- O conceito de uma prótese ao redor do estômago sem
quena curvatura, por intermédio da abertura de um orifício gastroplastia foi introduzido por Molina em 1983. A ideia foi
por grampeamento circular seguido de grampeamento li- aprimorada por Kuzmak, em 1986, que criou uma prótese
near, formando uma câmara proximal com 5cm de compri- de silicone oca, inflável por punção transcutânea, capaz de
mento e 1,5cm de diâmetro, com capacidade de 20 a 40mL. permitir a calibração do orifício de esvaziamento da câmara
Essa bolsa é envolvida por uma banda inelástica (Figura 3). gástrica proximal para a distal (Figura 5). Em pouco tempo,
o procedimento passou a ser realizado por via laparoscópi-
ca, tendo ganhado muitos adeptos e tornando-se bastante
popular na Europa, onde a operação bariátrica é realizada
com mais frequência.
Modificações técnicas, como a proposta por MacLean, Figura 5 - Banda gástrica com dispositivo de calibração
realizando a separação das câmaras gástricas com grampe-
ador linear cortante, foram tentadas, mas os bons resulta- Nos EUA, a partir de 2003, as bandas ajustáveis passa-
dos em longo prazo não ultrapassam 20%, principalmente ram a ser indicadas como procedimento de 1ª escolha em
devido à adaptação alimentar dos pacientes, que podem casos selecionados. Há alguns anos, no Brasil, há serviços
51
GAST R O ENTEROLO GIA
que também executam esse procedimento como 1ª esco- ções técnicas que podem ser utilizadas de acordo com cada
lha. O procedimento videolaparoscópico de colocação de paciente e a experiência do serviço. As principais técnicas
bandas gástricas ajustáveis consiste na implantação de uma utilizadas baseiam-se em derivações gastrojejunais e bilio-
prótese de silicone circular inflável ao redor da porção mais pancreáticas.
proximal do estômago, criando uma pequena cavidade ca-
a) Derivações gastrojejunais
librada por um balão intragástrico de volume predetermi-
nado. Essa banda é fixada ao estômago por meio de pontos Tais técnicas associam uma limitação mecânica de um
gastrogástricos entre as partes proximal e distal à prótese, reservatório gástrico mínimo, com ou sem anel para retar-
de modo a impedir ou dificultar a sua migração. dar seu esvaziamento, à limitação funcional tipo dumping
Um grande atrativo das bandas gástricas ajustáveis é causada por uma gastrojejunoanastomose. Trata-se, por-
a possibilidade de reversão do procedimento, em caso de tanto, de técnicas mistas, em que o fator mais importante
necessidade. Entretanto, os resultados em longo prazo ain- parece ser o restritivo. São consideradas os procedimentos
da são discrepantes e necessitam de um acompanhamento padrão-ouro para a cirurgia bariátrica nos EUA e também a
pós-operatório frequente para haver bons resultados. 1ª opção no tratamento da obesidade mórbida na maioria
dos serviços brasileiros.
d) Gastrectomia vertical
Também realizada a partir da análise da cirurgia de
Mason, além de procedimento inicial da gastrectomia em
cirurgia de duodenal switch; consiste na gastrectomia lon-
gitudinal tornando o estômago residual em tubo com cerca
de 1cm de largura, a partir da cárdia até a incisura angularis
pela pequena curvatura. Trata-se de um procedimento res-
tritivo, limitando a câmara gástrica a cerca de 50 a 200mL.
Além disso, acredita-se que tenha implicações no controle
de fome e saciedade pela retirada do fundo gástrico.
52
TRATAMENTO CIRÚRGICO DE OBESIDADE MÓRBIDA
anel de silicone de 6,2cm de circunferência, 3cm acima da c) Troca duodenal ou duodenal switch
extremidade distal da pequena bolsa gástrica, circundando- A gastrectomia vertical com preservação pilórica e do
-a. A alça distal da enterotomia realizada a 50cm do ângulo bulbo duodenal, associada à anastomose duodeno ileal, foi
de Treitz é passada ao andar superior do abdome por via proposta por Picard Marceau, de Quebec, em 1993; Dou-
transmesocólica e interposta entre as 2 câmaras gástricas. glas Hess em 1994, nos EUA; e Baltasar em 1995, na Espa-
Então, é realizada gastrojejunoanastomose terminolateral. nha. Baseada em uma operação proposta por DeMeester
A anastomose jejunojejunal é feita 100cm abaixo da gastro-
GASTROENTEROLOGIA
para o tratamento da gastrite alcalina, essa variação técnica
enteroanastomose. E a indicação de drenagem cavitária e das derivações biliopancreáticas de Scopinaro vem sendo
de gastrostomia varia de acordo os serviços. utilizada em alguns centros com resultados semelhantes
b) Derivações biliopancreáticas – cirurgia de Scopinaro aos das outras derivações biliopancreáticas.
Dentre as operações mistas, as derivações biliopan- O duodenal switch, como é mais conhecida essa ope-
creáticas são as que têm o maior efeito disabsortivo. A má ração, consiste em uma gastrectomia vertical, retirando-se
absorção dos nutrientes é responsável pela manutenção dos parte do estômago relacionada à grande curvatura gástrica
resultados da cirurgia. O componente disabsortivo é secun- com preservação de toda a pequena curvatura, secção do
dário a uma derivação gastroileal, e o restritivo, a alguma for- duodeno em sua 1ª porção, sepultamento do coto duode-
ma de gastrectomia. São, em outras palavras, gastrectomias nal, duodeno ileoanastomose terminoterminal a 250cm da
parciais com gastroileoanastomoses em Y de Roux. válvula ileocecal e anastomose ileoileal a 100cm acima da
A perda de peso definitiva observada nesses pacientes válvula ileocecal (Figura 9).
não está sujeita a variações individuais de dieta, havendo
eliminação dos nutrientes ingeridos em excesso. Defende-
-se que há uma capacidade limitante de absorção de ener-
gia dos carboidratos e gorduras. Também devido à pre-
ponderância do componente disabsortivo nessas técnicas,
observam-se maiores índices de complicações nutricionais
pós-operatórias que nas derivações gástricas.
O italiano Nicola Scopinaro descreveu, em 1979, as pri-
meiras derivações biliopancreáticas em estudos experimen-
tais iniciados em 1976. Na técnica de Scopinaro, realiza-se
uma gastrectomia horizontal com coto gástrico de 200 a
400mL de capacidade, anastomose desse coto aos 250cm
terminais do íleo (canal alimentar) e da porção proximal do
intestino (canal biliopancreático) ao íleo, 50cm acima da
válvula ileocecal (canal comum). A colecistectomia é feita
rotineiramente (Figura 8).
5. Vias de acesso
Todos os tipos de operações bariátricas feitas na atuali-
dade podem ser realizados por via aberta ou videocirurgia.
Devido aos resultados superiores e à recomendação de que
seja o procedimento bariátrico de 1ª escolha nos EUA, as
derivações gastrojejunais em Y de Roux foram mais bem es-
tudadas quanto à via de acesso.
Várias séries com numerosos pacientes demonstram se-
gurança e resultados semelhantes da laparoscopia aos das
séries históricas com a via aberta, no entanto esses assun-
tos ressaltam a difícil curva de aprendizado, sendo neces-
sária experiência em videocirurgia avançada e em cirurgia
Figura 8 - Operação de Scopinaro bariátrica para a implementação de um programa.
53
GAST R O ENTEROLO GIA
54
CAPÍTULO
Síndromes pós-operações gástricas
9 José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / / Yeda Mayumi Kuboki
Figura 1 - (A) Gastrectomia subtotal e (B) gastrectomia total com esofagectomia distal
55
GAST R O ENTEROLO GIA
A reconstrução do trânsito intestinal pode ser feita de necessitar apenas de 1 anastomose. A técnica à Billroth II,
várias maneiras, com pequenas diferenças entre as des- apesar de também contar com apenas 1 anastomose, tem
crições originais. As mais utilizadas na prática diária são a o inconveniente da passagem biliar pelo estômago, o que
gastroduodenoanastomose (Billroth I), gastrojejunoanasto- aumenta o risco de câncer gástrico e de boca anastomótica;
mose (Billroth II) e a jejunojejunoanastomose em Y de Roux além de facilitar o refluxo gastroesofágico de componente
(Figura 2). biliar e com maior dificuldade de controle. A intussuscep-
A reconstrução à Billroth I é indicada predominante- ção jejunojejunal também é relatada e se manifesta pela trí-
mente para afecções benignas com obstrução pilórica; caso ade hematêmese, obstrução alta e pós-operatória de cirur-
haja necessidade de ressecção de grande porção gástrica gia gástrica. A reconstrução em Y de Roux é, hoje, a técnica
(para que se tenha margem livre de neoplasias, por exem- de eleição na maioria dos serviços. Apesar da necessidade
plo); a distância para a reconstrução inviabiliza a técnica. de 2 anastomoses, por essa técnica, a alça biliar não entra
Tem a vantagem de ser a reconstrução mais fisiológica e de em contato com o estômago.
Figura 2 - (A) Gastroduodenoanastomose (BI); (B) gastrojejunoanastomose (BII) e (C) jejunojejunoanastomose em Y de Roux
As complicações pós-gastrectomias podem ser preco- Quando o paciente tem bom estado geral, sem sinais
ces, quando ocorrem no período de pós-operatório recen- de irritação peritoneal e há orientação da fístula para o
te, ou tardias, se posteriores. Dentre as primeiras, serão exterior, a conduta é expectante, com suporte clínico,
abordadas as deiscências e fístulas, as úlceras recidivadas drenagem prolongada e antibioticoterapia. Nos casos em
ou de boca anastomótica e a gastroparesia. Quanto às tar- que há choque séptico, líquido livre em toda a cavidade e
dias, serão discutidas a síndrome de dumping, a gastrite al- comprometimento do estado geral, a melhor conduta é a
calina, as síndromes da alça aferente e da alça eferente, e os laparotomia exploradora com reabordagem e drenagem do
distúrbios nutricionais. cotoduodenal.
As anastomoses entre o estômago e o intestino delgado,
tanto no Billroth II quanto no Y de Roux, raramente apre-
2. Deiscências e fístulas sentarão deiscência ou fístula, desde que sejam respeitados
Os pacientes submetidos à gastrectomia com recons- os princípios básicos de técnica cirúrgica. Na presença de
trução à Billroth II ou Y de Roux podem apresentar ruptura uma dessas situações, é conveniente nova intervenção para
da sutura do coto duodenal. Isso é o mais comum em pa- confecção de nova anastomose.
cientes gravemente debilitados ou com o coto duodenal de
difícil manuseio cirúrgico por alterações anatômicas locais. 3. Úlceras recidivadas
Tal complicação acontece em 1 a 5% das gastrectomias e
é temida por sua alta morbimortalidade. Atualmente, o ín-
dice de mortalidade dessa situação está próximo aos 10%. A - Hemorragia digestiva
A liberação de secreção biliopancreática na cavidade Os pacientes com doença ulcerosa que sangram após o
peritoneal pode causar quadro grave de sepse abdomi- tratamento cirúrgico para úlcera são um desafio para o ci-
nal com risco de morte. Geralmente, os pacientes apre- rurgião. Costumam ser pacientes graves com várias comor-
sentam febre, dor abdominal, leucocitose e hiperami- bidades e que foram submetidos a procedimentos menores
lasemia. Os sintomas podem iniciar-se entre o 3º e o 7º na hemorragia inicial, como a simples rafia da úlcera. Nes-
dias pós-operatório. O diagnóstico pode ser confirmado ses indivíduos, a melhor conduta seria a vagotomia troncu-
por avaliação bioquímica do líquido drenado ou por exa- lar associada à ressecção gástrica, do tipo antrectomia, pois
mes de imagem. é a operação com o menor índice de recidiva. Entretanto,
56
SÍNDROMES PÓS- OPERAÇÕES GÁSTRICAS
são pacientes graves que, geralmente, não suportam uma 5. Síndrome de dumping
operação de grande porte.
Refere-se a sinais e sintomas que ocorrem após a in-
B - Úlcera recorrente gestão de alimentos devido à remoção de uma porção do
estômago ou alteração do mecanismo esfincteriano pilóri-
A incidência de úlcera recorrente varia de 1 a 30%, de- co. Há passagem rápida dos alimentos para o jejuno ou o
pendendo da técnica utilizada. Pode apresentar-se de 2 ma- duodeno, ocasionando sintomas precoces, quando de 10 a
GASTROENTEROLOGIA
neiras: como úlcera de boca anastomótica ou úlcera pós- 30 minutos após as refeições, ou tardios, quando de 1,5 a 3
-vagotomia gástrica proximal. horas. Tais condições manifestam-se por sintomas vasomo-
A causa mais comum da úlcera de boca anastomótica é tores e gastrintestinais.
a conduta operatória inadequada ou insuficiente, principal- Essa síndrome ocorre em menos de 1% dos pacientes
mente a vagotomia gástrica incompleta e a ressecção gás- submetidos à vagotomia gástrica proximal e em mais de
trica econômica. Após a correta determinação da etiologia 50% dos submetidos à gastrectomia parcial. Apesar dos sin-
da recidiva ulcerosa, cerca de 80% dos pacientes necessi- tomas semelhantes, as síndromes de dumping precoce e de
tarão de tratamento cirúrgico. Já a úlcera recorrente após dumping tardio têm substratos fisiopatológicos diferentes e
a vagotomia tem caráter mais benigno e pode responder devem ser abordadas separadamente.
melhor ao tratamento clínico. Entretanto, até 50% precisam
de nova intervenção cirúrgica. A - Dumping precoce
Causas mais raras como a hipercalcemia e a síndrome Trata-se da forma mais comum, inclusive após gastrec-
de Zollinger-Ellison, além do uso de drogas ulcerogênicas, tomia parcial com reconstrução a Billroth II, especialmente
devem ser sempre lembradas no diagnóstico diferencial. se mais de 2/3 do estômago foram removidos.
Outro importante fator de risco para a recorrência de úl- - Patogenia: devido à ausência da fase antropilórica da
cera é a infecção persistente pelo H. pylori, que deve ser digestão (consequente à ablação, derivação ou des-
tratada. truição do piloro), o quimo chega com rapidez ao del-
gado, o alimento passa em estado hiperosmolar, ou
4. Gastroparesia seja, chega ao delgado um bolo alimentar hipertônico,
causando um desvio do líquido extracelular para a luz
A maioria dos pacientes submetidos à vagotomia apre- do intestino que acarreta distensão do lúmen da alça,
senta estase gástrica no período pós-operatório, pois com- desencadeando respostas autonômicas e gastrintes-
promete a resposta do relaxamento receptivo. Pode ocor- tinais. A participação de estímulos neuro-hormonais
rer sensação de plenitude gástrica, distensão abdominal, pode causar sintomas vasomotores mesmo na ausên-
eructações ou vômitos. A vagotomia gástrica proximal afeta cia de diminuição do volume extracelular. Liberação de
pouco o esvaziamento gástrico de sólidos, mas as vagoto- peptídio vasointestinal ativo (VIP), serotonina, bradici-
mias troncular e seletiva o fazem significativamente. nina e enteroglucagon, dentre outros, deve desempe-
Como os procedimentos de drenagem gástrica (piloro- nhar papel importante na gênese dos sintomas;
plastia e gastroenteroanastomose) são sempre associados - Quadro clínico: inicia-se, em geral, 20 a 30 minutos
às vagotomias mais amplas, comumente não há obstáculo após a ingestão de uma refeição, geralmente rica em
mecânico. Nos casos de vagotomia gástrica proximal, como carboidratos, apresenta plenitude gástrica, náuseas,
a função antropilórica estando intacta, as queixas dos pa- vômitos, eructações, cólicas abdominais e diarreia ex-
cientes são mais relacionadas à distensão do fundo gástrico plosiva. Os sintomas vasomotores são fraqueza, ton-
e podem se manifestar por dor no ombro. Alguns pacientes tura, desmaio, palidez, visão turva, diaforese, rubor,
podem ter dilatação gástrica após gastrectomias amplas, taquicardia e palpitação;
pelo fato de uma pequena câmara gástrica não suportar o - Diagnóstico: se baseia na história clínica associada
volume de uma refeição habitual. aos sintomas do paciente. Em casos duvidosos, uma
O quadro clínico, em geral, é autolimitado, e a obser- seriografia gastrintestinal e o estudo do esvaziamento
vação clínica é a melhor opção. São recomendados fracio- gástrico com radioisótopo podem auxiliar, assim como
namento da dieta, ingestão de alimentos pastosos e líqui- o teste provocativo em que o paciente ingere 200mL
dos, e uso de pró-cinéticos. Em casos graves e prolongados, de solução de glicose a 50% e água levando ao apare-
pode-se optar pela dieta parenteral até o restabelecimento cimento dos sintomas;
da função digestória. - Tratamento: consiste em medidas clínicas como fra-
O tratamento cirúrgico é reservado aos casos que não cionar a dieta, diminuir a ingestão de carboidratos e
respondem à terapêutica clínica após 1 mês e que tenham deitar-se após as refeições, levando ao alívio dos sin-
diagnóstico de complicações confirmado, como distorções tomas na maioria dos casos. A utilização de antiespas-
de anastomose, úlceras de boca anastomóticas ou insufici- módicos pode causar o mesmo efeito. Alguns autores
ência no procedimento de drenagem. propõem análogos da somatostatina, como a octreoti-
57
GAST R O ENTEROLO GIA
6. Gastrite alcalina
Quando a barreira pilórica é quebrada, por meio de pi-
loroplastia, gastrectomia ou anastomose gastroentérica,
pode haver passagem do líquido alcalino biliopancreático Figura 4 - Tratamento da gastrite alcalina pela conversão de BII
para o estômago em quantidades excessivas (Figura 3). em Y de Roux
58
SÍNDROMES PÓS- OPERAÇÕES GÁSTRICAS
7. Síndrome da alça aferente de drenagem gástrica, melhora o quadro na fase aguda. Nos
casos com obstrução mecânica comprovada e naqueles que
Tal síndrome é secundária à obstrução da alça aferen- não respondem com tratamento inicial, podem ser neces-
te, na anastomose com o estômago ou antes dela, prova- sárias uma reintervenção cirúrgica com gastrectomia e nova
velmente nos casos de alças aferentes longas (Figura 5), anastomose gastrojejunal, de preferência em Y de Roux.
a causa da obstrução ocorre por acotovelamento da alça,
volvo da alça, formação de uma hérnia interna, estenose
GASTROENTEROLOGIA
da anastomose, aderência, úlcera da boca anastomótica, in-
tussuscepção jejunogástrica ou até um carcinoma. Deve-se
lembrar que só acontece nas reconstruções a Billroth II. O
quadro clínico clássico é de dor abdominal, principalmente
após as alimentações, com vômitos biliosos em jato, pode
apresenta-se aguda ou cronicamente. Ao contrário da gas-
trite alcalina, na síndrome da alça aferente o paciente relata
melhora dos sintomas após os vômitos. O diagnóstico pode
ser feito por meio de raio x contrastado ou, eventualmen-
te, tomografia. Como os sintomas são geralmente crônicos,
secundários ao mau esvaziamento da alça aferente no es-
tômago, o tratamento é, frequentemente, cirúrgico, com
conversão da anastomose a Billroth II em Y de Roux.
59
CAPÍTULO Câncer gástrico
60
CÂNCER GÁSTRICO
GASTROENTEROLOGIA
1 diagnosticado de câncer gástrico antes dos 50 anos;
- 3 parentes de 1º ou 2º grau, diagnosticados de câncer
gástrico em qualquer idade.
61
GASTR O ENTEROLO GIA
Tipo I Polipoide
Figura 3 - Classificação do câncer gástrico precoce
Ulcerado, limites
Tipo II
bem definidos
Ulcerados, limites
Tipo III
bem imprecisos
Infiltrativo, linite
Tipo IV
plástica
Figura 4 - Câncer gástrico precoce
B - Classificação histológica de Lauren, 1965
Pela classificação de Lauren, os tumores podem ser divi- 5. Diagnóstico
didos em 2 subtipos: intestinais e difusos.
- Tipo intestinal: tem padrão glandular e caracteriza-se Pacientes com lesões pequenas podem ser assinto-
pela presença de células neoplásicas coesas formando máticos. Apenas 30 a 40% apresentam sintomas, como dor
estruturas tubulares e uma massa discreta. A partir do epigástrica, emagrecimento, anorexia, anemia e náusea.
epitélio normal, ocorre instabilidade gênica, levando Nos casos avançados, os sintomas são mais prevalentes.
inicialmente ao aparecimento de metaplasia intestinal A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) é o método diagnós-
(substituição de epitélio gástrico por elementos histo- tico de escolha (Figura 5). Além de fazer o diagnóstico, já
lógicos que reproduzem o epitélio duodenal) e, pos- possibilita o início do estadiamento, indicando se o tumor é
teriormente, de displasia ou adenoma, câncer preco- precoce ou avançado, seu tamanho e sua localização. A ra-
ce, câncer avançado e metástases, sequencialmente. diologia convencional contrastada praticamente não é mais
Normalmente, acomete indivíduos idosos. É bem ou utilizada nos dias atuais como método diagnóstico.
moderadamente diferenciado, tem melhor prognósti-
co que o tipo difuso e localiza-se mais comumente no
antro e na pequena curvatura;
- Tipo difuso: inicia-se em um epitélio normal (não há
processo de metaplasia). Ocorre instabilidade gênica
que pode levar ao desenvolvimento de câncer preco-
ce, câncer avançado e metástases. As células cancero-
sas infiltram-se difusamente na parede do estômago. É
um tumor produtor de mucina e composto por células
separadas ou pequenos agrupamentos de células com
secreção mucinosa distribuída por todo o citoplasma
das células, ou dispersa no estroma. Acomete indiví- Figura 5 - Câncer gástrico Borrmann I
duos mais jovens, é indiferenciado e tem pior prognós- Não há marcador tumoral específico com benefício com-
tico que o tipo intestinal. provado na utilização clínica para os pacientes com câncer
gástrico. Entre os mais utilizados, destacam-se:
C - Câncer gástrico precoce - CA 19-9: aumentado no câncer de pâncreas, colorretal
Define-se câncer gástrico precoce aquele que não ul- e de estômago;
trapassa a submucosa (Figura 3), não importando acometi- - CA 72-4: presente em cerca de 50% dos pacientes com
mento linfonodal. A importância do diagnóstico de tumores câncer gástrico, principalmente nos estadios III e IV;
62
CÂNCER GÁSTRICO
- CEA: está aumentado em 10 a 30% dos pacientes com principalmente quando o tumor é infiltrativo e a mucosa é
câncer gástrico. Associado a pior prognóstico. normal à endoscopia.
A ecoendoscopia possibilita estadiamento locorregional
6. Estadiamento do tumor. No caso de câncer gástrico precoce, oferece uma
ideia mais precisa da profundidade da invasão tumoral, tor-
O estadiamento dos pacientes com câncer gástrico tem iní- nando-se indispensável quando se pensa em tratamentos
cio com a história clínica em busca de sinais e sintomas sugesti- não cirúrgicos. Ainda é pouco disponível em nosso meio.
GASTROENTEROLOGIA
vos de doença avançada ou metastática, como perda de peso, Atualmente, vem-se utilizando, assim como no estadiamen-
aumento do volume abdominal, icterícia, dor abdominal, vô-
to de câncer do esôfago, métodos como o PET-scan e a PET-CT
mitos, disfagia, hemorragia digestiva etc. Depois de anamnese
para lesões suspeitas no estadiamento convencional (CT/USG).
e exame físico cuidadosos, devem-se solicitar exames comple-
A laparoscopia diagnóstica pode ajudar no estadiamen-
mentares, de acordo com a disponibilidade de cada instituição,
to abdominal, principalmente na suspeita de implantes
a fim de prosseguir com o estadiamento que só estará completo
depois das fases intraoperatória e anatomopatológica. peritoneais que não foram confirmados pela tomografia
O ultrassom de abdome pode ser um bom método para ou paracentese nos casos de ascite. Pode avaliar também
detectar metástases hepáticas, mas ruim para avaliar in- a localização do tumor, a invasão da serosa gástrica, as me-
vasão locorregional do tumor gástrico. Em casos de lesões tástases hepáticas que afloram na superfície (70 a 90%), o
pequenas à endoscopia, pode ser um bom método para o comprometimento linfonodal e dos epíplons, a fixação do
estadiamento abdominal, juntamente com a endoscopia. tumor a estruturas adjacentes e, como já descrito, a disse-
A Tomografia Computadorizada (TC) de abdome é um minação peritoneal (Figura 7).
método muito eficaz, tanto para tumores menores como
para tumores gástricos avançados. Possibilita a avaliação de
metástases hepáticas, da presença de linfonodos aumen-
tados e de invasão de estruturas adjacentes, fazendo um
estadiamento locorregional. O tumor pode apresentar-se
como um espessamento da parede gástrica, e a tomografia
pode sugerir disseminação peritoneal quando mostra irre-
gularidade peritoneal, que pode vir acompanhada de ascite
(Figura 6). A Ressonância Nuclear Magnética (RNM) de ab-
dome tem as mesmas vantagens da tomografia.
63
GASTR O ENTEROLO GIA
Tabela 6 - Estadiamento TNM - UICC 2004 possibilitam gastrectomia subtotal, sobretudo se bem dife-
Estadio T N M renciados (Figura 8).
0 is 0 0
IA 1 0 0
1 1 0
IB
2a/b 0 0
1 2 0
II 2a/b 1 0
3 0 0
2a/b 2 0
IIIA 3 1 0
4 0 0
IIIB 3 2 0
4 1, 2 e 3 0
IV 1, 2 e 3 3 0
Qualquer Qualquer 1
Observação: a classificação e o estadiamento TNM - UICC 2010
encontram-se no anexo, ao final do livro.
7. Tratamento
A cirurgia-padrão com intuito curativo é a gastrectomia
com linfadenectomia D2, isto é, linfadenectomia estendida
determinada sempre pela localização do tumor. Portanto,
uma linfadenectomia D2 de um tumor de fundo gástrico
não retira os mesmos linfonodos de uma linfadenectomia Figura 8 - (A) Produto de gastrectomia total com linfadenectomia
D2 de um tumor de antro. D2 e (B) leito operatório após a linfadenectomia do hilo hepático e
Deve-se deixar margem cirúrgica proximal da lesão a retirada da cápsula pancreática
maior que 2cm no câncer gástrico precoce, maior que 5cm
no câncer gástrico avançado bem diferenciado, e maior que A ressecção endoscópica pode ser realizada somente em
8cm no câncer gástrico avançado indiferenciado (classifica- tumores restritos à mucosa, bem diferenciados, sem ulcera-
ção de Láuren). A margem distal sempre deve ser de 4cm do ção e menores que 2cm. A laparoscopia é um bom método,
duodeno, exceto nas gastrectomias em cunha. principalmente para câncer gástrico precoce. Também é pos-
O tipo de gastrectomia, total ou subtotal (retirada de sível gastrectomia e linfadenectomia D2, contudo é necessá-
4/5 do estômago, devendo restar apenas 1 ou 2 vasos cur- rio um cirurgião experiente, e tal método não traz grandes
tos), dependerá da localização do tumor e da margem cirúr- vantagens. Pode ser útil nas cirurgias paliativas (Figura 9).
gica desejada. Tumores proximais normalmente necessitam No câncer gástrico, a preferência da maioria dos servi-
de gastrectomia total, e tumores distais bem diferenciados ços é a reconstrução em Y de Roux.
64
CÂNCER GÁSTRICO
GASTROENTEROLOGIA
va, nos casos de dor e sangramento.
8. Prognóstico
O principal fator prognóstico é o estadio TNM. A di-
ferenciação do tumor é outro fator; quanto mais indife-
renciado, pior o prognóstico. Além disso, tumores mais
proximais tendem a ter pior prognóstico. E pacientes com
marcadores tumorais elevados (CEA, CA 19-9, CA 72) têm
pior sobrevida.
Tabela 7 - Percentual de sobrevida em 5 anos
EUA Alemanha Japão Brasil
Geral 17,5 36,5 63,5 89
IA 59 85,2 69,2 80
IB 44 69,2 89,9 72
II 29 43,7 71,2 47
IIIA 15 28,6 47,9 -
IIIB 9 17,7 28,8 -
IV 3 8,7 11,5 -
9. Resumo
Quadro-resumo
- A maioria dos pacientes com câncer gástrico é assintomática
ou apresenta sintomas inespecíficos;
- O câncer gástrico precoce, que não ultrapassa a submucosa,
pode ser curado com ressecção local em até 95% dos casos;
- Os princípios do tratamento curativo são a ressecção com
margens e a linfadenectomia alargada (a D2).
65
CAPÍTULO GIST
66
CÂNCER GÁSTRICO
a Tomografia Computadorizada (TC) de abdome é conside- Tabela 1 - Risco de comportamento biológico agressivo no GIST,
rada o padrão-ouro (Figura 1). Tal exame permite determi- segundo Fletcher et al.
nar localização do tumor, seu tamanho, densidade da lesão Risco de
Tamanho (cm)
Índice mitótico
e presença de metástases. O PET-CT tem papel na detecção malignidade (/50 CGA)
de metástases e na avaliação da resposta terapêutica, mas Muito baixo <2 <5
ainda não é considerado um exame mandatório na condu- Baixo 2a5 <5
ção do caso. <5 6 a 10
GASTROENTEROLOGIA
Intermediário
5 a 10 <5
>5 >5
Alto >10 Qualquer índice
Qualquer tamanho >10
4. Tratamento
A ressecção cirúrgica completa é o tratamento padrão
para o GIST, pois é a única modalidade capaz de proporcionar
cura. A quimioterapia e a radioterapia têm papel pouco re-
levante, exceto no uso de quimioterápicos específicos como
terapia-alvo. É desnecessária a biópsia prévia se a lesão é
ressecável, principalmente pela dificuldade de caracteriza-
ção histológica e também pelo fato de tais lesões em vísceras
ocas se localizarem abaixo da mucosa e, portanto, com risco
à punção, reservando-se a casos de doença inicialmente ir-
ressecável, de preferência guiada por USG endoscópica.
O objetivo da cirurgia é a ressecção completa com mar-
gens livres e cápsula intacta, sendo suficientes as ressec-
ções em bloco com margens de 1 a 2cm. A videolaparosco-
pia pode ser feita em lesões menores que 5cm, e a ressec-
ção videoassistida em tumores maiores.
As lesões com suspeita de invasão de órgãos adjacentes
devem ser tratadas com cirurgia radical por meio da ressec-
ção em monobloco do órgão acometido. A técnica cirúrgica
deve ser meticulosa para prevenir a ruptura intraoperatória
do tumor, que está associada a um pior prognóstico. Não há
benefício em ressecções anatômicas ou linfadenectomias.
Entretanto, durante a cirurgia, devem ser avaliados cuida-
dosamente o fígado e o fundo de saco de Douglas.
Após a ressecção primária, muitos pacientes desenvol-
Figura 1 - (A) Tomografia computadorizada evidenciando lesão re- verão recorrência, e, em alguns casos, a ruptura do tumor
trogástrica, hipervascular, encapsulada, com umbilicação central,
no intraoperatório leva à recorrência no peritônio. A média
compatível com GIST e (B) achado intraoperatório de lesão em pa-
rede gástrica posterior de tempo de recorrência é de 1,5 a 2 anos, e os principais
locais de recidiva são o peritônio e o fígado, sendo a chance
A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) pode detectar uma de cura desses pacientes com nova cirurgia extremamente
parcela razoável das lesões, principalmente as gástricas, e baixa (<10%). A ressecção macroscópica total é possível em
o ultrassom endoscópico pode ser utilizado para facilitar a cerca de 85% dos pacientes com tumor primário localizado,
localização da lesão e guiar punções. Entretanto, devido à obtendo-se margens microscópicas livres em 70 a 95% dos
natureza hipervascular dos GISTs e à possibilidade de im- casos. Os GISTs gástricos tendem a exibir um curso clínico
plantação de células tumorais, as punções aspirativas de- mais favorável que os provenientes do intestino delgado, e
vem ficar restritas aos casos em que o diagnóstico pré-ope- os tumores de cólon se associam a índices de recorrência si-
ratório pode modificar a conduta. milares aos situados no delgado.
O prognóstico depende, principalmente, de 2 fatores: o A sobrevida em 5 anos com cirurgia exclusiva R0, isto
tamanho do tumor e o número de mitoses por Campo de é, ressecção completa macro e microscópica, é de 54%,
Ganho de Aumento (CGA). Nos tumores extragástricos, con- aproximando-se de 100% para tumores com menos de
tudo, tais fatores exercem menor influência. Fletcher et al., 2cm e baixa contagem mitótica, e menos de 25% para os
2002, estimaram o potencial de malignidade dos GISTs com tumores metastáticos. A sobrevida mediana é de 66 meses.
base nesses 2 itens. Ainda não há consenso quanto à conduta após ressecções
67
GASTR O ENTEROLO GIA
5. Resumo
Quadro-resumo
- Os GISTs são as neoplasias mesenquimais mais comuns do TGI,
e seu diagnóstico normalmente requer confirmação imuno-
-histoquímica;
- Sempre que possível, o tratamento deve ser realizado com ci-
rurgia, respeitando-se uma margem de segurança e sem neces-
sidade de linfadenectomia;
- A quimioterapia com imatinibe pode ser usada como neoadju-
vância em tumores irressecáveis, como terapia única ou adju-
vância após a ressecção.
68
CAPÍTULO
12
Anatomia e fisiologia do intestino delgado
Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
Pontos essenciais
- Subdivisões anatômicas;
- Diferenciação intraoperatória entre o jejuno e o íleo;
- Relações anatômicas do duodeno.
1. Anatomia
A - Subdivisões e limites
O intestino delgado inicia-se no piloro e estende-se até
o ceco, tendo, em média, de 4 a 6m de comprimento no
adulto. O duodeno corresponde à 1ª porção do intestino Figura 1 - Anatomia topográfica do duodeno
delgado (Figura 1), inicia-se no piloro gastroduodenal e
A 3ª porção (horizontal) passa anteriormente à vértebra
termina na flexura duodenojejunal, onde está fixado pelo
L3, sendo retroperitoneal, e tem como principais relações
ligamento suspensor (ângulo ou ligamento de Treitz) e é
anatômicas a veia cava inferior, a aorta e a veia mesentérica
subdividido em 4 porções. inferior (todas passando posteriormente).
A 1ª porção (superior) é a mais móvel delas e mede cer- A 4ª porção (ascendente) é curta, retroperitoneal e fi-
ca de 5cm, sendo sua 1ª metade totalmente móvel e com xada pelo ligamento de Treitz, na topografia de L2. Suas
um mesentério, o omento maior e o ligamento hepatoduo- principais relações anatômicas são, anteriormente, a raiz
denal fixados a essa parte. A 2ª metade, por sua vez, é fixa- do mesentério e, posteriormente, o músculo psoas maior
da à parede posterior. Suas principais relações anatômicas esquerdo e aorta.
são, anteriormente, o lobo quadrado do fígado e a vesícula O jejuno e o íleo compõem, respectivamente, a 2ª e a
biliar; posteriormente, o ducto colédoco, a veia cava infe- 3ª porções do intestino delgado, e não há uma demarca-
rior e a artéria gastroduodenal; e inferiormente, o colo do ção clara entre eles. Normalmente, 60% do comprimento
pâncreas. do delgado correspondem ao íleo. Uma das diferenças in-
A 2ª porção (descendente) é retroperitoneal e localiza- traoperatórias entre eles é a espessura da parede, maior
-se à direita das vértebras L1 a L3. É nessa porção que o duc- no jejuno proximal, diminuindo distalmente, e mais delgada
to colédoco e o ducto pancreático principal desembocam, no íleo distal. Constituem a porção mesentérica e móvel do
formando a ampola hepatopancreática (ampola de Vater). intestino delgado, começando no nível da flexura duodeno-
Suas principais relações anatômicas são, medialmente, a jejunal e terminando no nível da fossa ilíaca direita, onde se
cabeça do pâncreas e, posteriormente, o hilo renal direito. estabelece a continuidade com o intestino grosso.
69
GAST R O ENTEROLO GIA
A
A
B B
Figura 2 - (A) Mucosa e camada muscular do íleo e (B) mucosa e Figura 3 - (A) Suprimento sanguíneo do jejuno e (B) suprimento
camada muscular do jejuno sanguíneo do íleo
70
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO INTESTINO DELGADO
A drenagem venosa é paralela à arterial, feita por meio na B12 (em complexo com o fator intrínseco secretado pela
da veia mesentérica superior. mucosa gástrica). Todas elas são absorvidas no íleo distal,
A drenagem linfática é realizada tanto pelos numerosos assim como a vitamina C, a tiamina e o ácido fólico.
linfonodos submucosos das placas de Peyer (mais numero-
sos no íleo distal) quanto pelos ductos linfáticos dentro do
mesentério, que, em última análise, drenam por meio de
linfonodos regionais e terminam na cisterna do quilo. De-
GASTROENTEROLOGIA
sempenha um papel importante para o transporte de lipí-
dios absorvidos na circulação, para a defesa imunológica e
para a disseminação de células cancerígenas.
2. Fisiologia
A - Motilidade
Os alimentos são propelidos através do intestino del-
gado por uma série complexa de contrações musculares. A
musculatura lisa do intestino sofre ciclicamente oscilações
espontâneas do potencial de membrana, como um ritmo
de marca-passo, com origem no duodeno, tendo uma fre-
quência progressivamente menor do duodeno para o íleo.
Há 2 tipos básicos de contrações: a chamada estacio-
nária (ou não propagada), que provoca a segmentação, a
qual mistura o quimo aos sucos digestivos e expõe repeti-
damente a mistura à superfície de absorção, e a peristáltica
(propagada), caracterizada por movimento propulsivo curto
e fraco que migra a aproximadamente 1cm/s por uma dis-
tância de 10 a 15cm, antes de diminuir. O tempo de trânsito
médio de uma refeição sólida é de 4 horas da boca ao cólon.
O plexo mioentérico é responsável, principalmente, pela
atividade peristáltica, enquanto o submucoso regula a se-
creção e a absorção. As contrações são estimuladas pelo
parassimpático e inibidas pelo simpático.
B - Absorção
A água é absorvida por todo o intestino delgado, prin-
cipalmente em sua porção proximal, por mecanismo pas-
sivo. Eletrólitos também são absorvidos, sendo o potássio
por difusão passiva, e o sódio, o cálcio (no jejuno distal) e
o ferro (principalmente no duodeno e jejuno proximal), por
transporte ativo. Os lipídios, insolúveis em água, sofrem
ação da lipase e acabam sendo absorvidos com eficiência
na presença de ácidos biliares, formando as micelas. Estas
liberam monoglicerídeos e ácidos graxos para penetrarem
nas células epiteliais, onde são ressintetizados e liberados
na linfa como quilomícrons.
Os carboidratos são inicialmente digeridos pela amilase
salivar e, posteriormente, pela amilase pancreática. Sua ab-
sorção é feita, principalmente, pelo duodeno e jejuno pro-
ximal. As proteínas, inicialmente desnaturadas e digeridas
no estômago, são digeridas por proteases pancreáticas no
intestino, que as transformam em aminoácidos ativamente
absorvidos nos 100cm proximais do jejuno.
Por fim, algumas vitaminas também são absorvidas no
delgado, entre elas as lipossolúveis (A, D, E e K) e a vitami-
71
CAPÍTULO Alterações funcionais dos intestinos
13 Fábio Carvalheiro / José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
72
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
GASTROENTEROLOGIA
Edemas aumento das perdas patia perdedora de B - Manifestações clínicas e etiologias
fecais de antitripsina proteínas)
Diarreia, cólicas abdominais, flatulência, distensão ab-
(antiprotease)
dominal, esteatorreias, perda de peso, fraqueza e pareste-
Noctúria, distensão Distensão de alças sias são as manifestações mais comuns do paciente com má
Água
abdominal de delgado no raio x
absorção intestinal. As doenças a seguir podem ser causas
Intolerância ao Teste de tolerância de má-absorção:
Lactose
leite de lactose
- Insuficiência pancreática exócrina: provocada por
processos inflamatórios, crônicos e neoplásicos. De-
A - Fisiopatologia vem ser lembradas em pacientes com antecedente de
A absorção de micronutrientes não é igual em todo o tra- ressecções cirúrgicas parciais ou totais do pâncreas;
to digestivo. A absorção dos diferentes elementos (proteínas, - Insuficiência hepatobiliar: a diminuição dos sais bilia-
carboidratos e ácidos graxos simples) inicia-se no duodeno res no duodeno determina a insuficiência de digestão
e se completa nos primeiros 100cm do intestino delgado. do bolo alimentar e nos processos de absorção de gor-
Também é a região em que há a absorção de ferro, cálcio e duras e vitaminas lipossolúveis. Exemplos: obstáculos
vitaminas hidrossolúveis. A absorção de água e eletrólitos é intra ou extra-hepáticos à drenagem da bile, causando
realizada tanto no delgado quanto no cólon. Os nutrientes colestase;
são absorvidos ao longo de todo o delgado, com exceção de - Hipersecreção gástrica: a síndrome de Zollinger-Elli-
ferro e folato (absorvidos no duodeno e no jejuno proximal) e son é o exemplo clássico. O baixo pH no duodeno pode
dos sais biliares e cobalamina (íleo distal). Os principais sítios bloquear a atividade digestiva;
de absorção dos nutrientes estão descritos na Tabela 3. - Condições cirúrgicas pós-operatórias: ressecções pan-
creáticas extensas, derivações digestivas (segmentos
Tabela 3 - Principais sítios de absorção dos nutrientes
extensos de delgado sem receber alimentos ou secre-
Nutriente Principal sítio de absorção
ções importantes para a digestão) e enterectomias ex-
Gorduras Delgado proximal tensas (diminuição da superfície intestinal absortiva).
Proteínas Delgado médio Essa última condição é conhecida pela denominação
Carboidratos Delgado proximal e médio de síndrome do intestino curto;
Ferro Delgado proximal - Diminuição da superfície de absorção: as ressecções
Cálcio Delgado proximal cirúrgicas (comentadas anteriormente), a doença de
Ácido fólico Delgado proximal e médio Crohn do intestino delgado, a doença celíaca, o espru
tropical e a doença de Whipple;
Cianocobalamina (B12) Íleo distal
Sais biliares Íleo distal
- Obstrução linfática: linfangiectasias, linfomas e tuber-
culose intestinal;
Água e eletrólitos Delgado e cólon (principalmente ceco)
- Deficiências enzimáticas: deficiência de dissacaridases;
Para o transporte dos nutrientes, existe a motilidade do - Crescimento bacteriano excessivo: consequência pós-
tubo digestivo, que auxilia na diluição do bolo alimentar e -operatória de modificações anatômicas no tubo diges-
sua distribuição pela mucosa, para os processos de digestão tivo por anastomoses cirúrgicas (síndrome da alça cega);
enzimática. A absorção dos nutrientes pode ser passiva (não - Doenças vasculares: vasculites e insuficiência vascu-
requer gasto energético celular) e ocorre por meio dos po- lar intestinal crônica (comum nos idosos com doenças
ros da membrana (moléculas pequenas e hidrossolúveis) ou crônicas vasculares, consequentes à ateromatose sis-
por difusão facilitada, através de carregadores específicos da têmica).
membrana celular, para as moléculas maiores. O transpor-
te ativo é determinado por carreadores de membrana que C - Investigação diagnóstica
promovem o movimento do nutriente contra o gradiente de
concentração (requer gasto energético celular). a) Teste quantitativo de gordura fecal
A eficiência da absorção/captação de nutrientes pela Na maior parte das vezes, as características das fezes es-
mucosa é influenciada pelo número de células absortivas, teatorreicas são tão marcantes que torna sua comprovação
pelo tempo de trânsito e pela existência de hidrolases fun- laboratorial desnecessária; entretanto, para os casos de dú-
73
GAST R O ENTEROLO GIA
vida, a única maneira realmente fidedigna de se confirmar testino proximal (local onde a xilose é absorvida) terem uma
a esteatorreia deve ser por meio da dosagem da quantida- diminuição importante da absorção desta substância, que
de de gordura presente nas fezes acumuladas em 72 horas então passa a não ser detectável na urina (ou aparece em
(período no qual o paciente terá ingerido uma dieta rica em quantidades muito pequenas). Como a D-xilose não precisa
gorduras (pelo menos 100g/dia). Em uso desta dieta, indiví- das enzimas pancreáticas para ser absorvida, a insuficiência
duos normais excretam menos de 7g de gordura/dia. pancreática exócrina não interfere com sua captação pelo
Infelizmente, este método quantitativo é, na prática, de intestino, justificando níveis urinários normais nos pacientes
difícil realização e geralmente não disponível na maioria dos com síndrome de má absorção por doença pancreática.
hospitais. Além disso, a comprovação de esteatorreia confir- Obs.: a hiperproliferação bacteriana também reduz a
maria apenas a existência da síndrome de má absorção, sem absorção de xilose porque as bactérias catabolizam esta
estabelecer a fisiopatologia de base ou etiologia específica. substância na luz intestinal.
- Não devemos esquecer que a ausência de gordura fecal Resultados falsos positivos podem ocorrer se a urina for
não necessariamente exclui síndrome de má absorção; colhida antes do prazo ideal, se o paciente for portador de
- Não existe valor em estabelecer a quantidade de gor- insuficiência renal, ascite importante, retardo do esvazia-
dura fecal, se o peso fecal diário não for superior a mento gástrico e outros. Resultados falsos negativos podem
200mg/d; ocorrer se a lesão intestinal for leve ou predominantemen-
- É importante salientar também que os processos diar- te baixa (íleo distal).
reicos, em geral, podem induzir, por si só, uma estea- d) Teste da bentiromida urinária
torreia secundária leve (até 14g/d).
A bentiromida é um peptídio sintético ligado a um áci-
b) Teste qualitativo de gordura fecal do chamado PABA, ligação facilmente desfeita pela enzima
O teste qualitativo para gorduras nos informa, por inter- pancreática quimotripsina – o teste da bentiromida é um
médio de um exame microscópico com fezes coradas, se exis- marcador de insuficiência pancreática, na medida em que
tem ou não gorduras, mas não nos diz a quantidade presente avalia indiretamente a ação da quimotripsina. Após admi-
destas. O corante para gorduras é o Sudan III. Alguns autores nistração oral de bentiromida, a quimotripsina age e libera
comentam apenas que o teste qualitativo (Sudan) para gordu- o PABA, que é então absorvido, conjugado no fígado e ex-
ra fecal, quando realizado adequadamente, tem valor e se cor- cretado na urina na forma de arilaminas. Se num período de
relaciona bem com os testes quantitativos. Outros descrevem 6 horas após a administração oral de 500mg de bentiromida
o teste do Sudan em 2 etapas, utilizando 2 lâminas de fezes: a excreção acumulada de arilaminas for inferior a 50% da
quantidade ingerida, num paciente com síndrome de má
- Na 1ª lâmina de fezes, o uso do corante Sudan seria
absorção, diagnostica-se insuficiência pancreática exócrina.
precedido pela adição de 2 gotas de água e 2 gotas
Num paciente com diarreia ou esteatorreia (ou ambos),
de álcool etílico, técnica que permitiria a detecção de
uma resposta normal ao teste de bentiromida virtualmente
triglicerídeos;
exclui doença pancreática como causa da síndrome.
- Na 2ª, o uso do corante Sudan seria precedido pela
adição de algumas gotas de ácido acético, neste caso e) Teste da secretina
permitindo a detecção de ácidos graxos livres. - No teste da secretina o paciente engole um cateter,
que é posicionado por fluoroscopia no duodeno (pró-
Assim, com estas 2 fases, a realização do Sudan pode-
ximo à saída do canal pancreático), possibilitando a
ria nos dar não apenas informações sobre a presença de
coleta direta das secreções pancreáticas, como amila-
gordura fecal, mas também ajudaria na diferenciação en-
se, lipase, tripsina e bicarbonato. Antes de a coleta ser
tre causas digestivas e mal absortivas de esteatorreia: a 1ª
feita, o pâncreas deve ser estimulado por uma injeção
etapa seria positiva na insuficiência pancreática exógena, já
de secretina e/ou colecistocinina;
que são detectados triglicerídeos não digeridos, enquanto
que a 2ª etapa seria positiva nas doenças do intestino del- - A injeção de secretina estimula a liberação de bicar-
gado, já que são detectados ácidos graxos livres. O teste do bonato;
Sudan é barato, e de fácil e rápida realização. Existem 25% - A injeção de colecistocinina (pancreozimina) estimula
de falsos negativos, relacionados à esteatorreia leve (<10g), a liberação de tripsina, amilase e lipase;
e 15% de falsos positivos. - Esse teste, por ser direto, é o mais sensível para a de-
terminação de uma insuficiência pancreática, e, se o
c) Teste da D-xilose urinária
cateter tiver sido colocado no lugar certo, os resulta-
O teste da excreção urinária da D-xilose distingue a má dos falsos positivos virtualmente não existem. Infeliz-
absorção causada por doenças do intestino delgado, da de- mente, é um teste caro, e de difícil realização.
corrente de insuficiência pancreática. Em indivíduos nor-
mais, se 25g D-xilose for ingerida, espera-se que cerca de 5g f) Dosagem de tripsina sérica
sejam encontrados na urina após 5 horas. O teste da D-xilose A dosagem sérica da enzima pancreática tripsina não é
se baseia no fato de os pacientes com lesão da mucosa do in- tão sensível quanto o da bentiromida ou da secretina para
74
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
indicar insuficiência pancreática. Entretanto, se for positivo intestinal aspirado do delgado. O intestino é cateterizado
(valores baixos) diagnostica esta condição com especificida- após jejum noturno (endoscopia ou sonda radiopaca) e,
de de quase 100%. com medidas que garantem a esterilidade do processo, uma
g) Teste de Schilling (B12) amostra é colhida e rapidamente levada ao laboratório. Em
O teste de Schilling visa basicamente determinar se há indivíduos normais, as culturas quantitativas raramente ul-
ou não má absorção intestinal de B12, e, quando realizado trapassam 104/mL no jejuno, ou 107/mL no íleo. Contagens
GASTROENTEROLOGIA
em algumas etapas, indica também a origem desta má ab- superiores a 10/mL no aspirado jejunal já denotam hiper-
sorção. Obviamente, é realizado em um indivíduo que se proliferação bacteriana, embora esta condição corriqueira-
apresenta com deficiência desta vitamina. mente determine contagens de 106 a 109/mL. Resultados
Administra-se 1μg de cianocobalamina marcada por VO, falsos negativos podem ocorrer quando o crescimento bac-
ao mesmo tempo em que se fazem 1.000μg de cianocoba- teriano se instala de forma localizada no intestino.
lamina não marcada IM. Se, após a administração de B12
marcada oral, esta for identificada na urina, é sinal de que k) Estudos radiológicos
foi absorvida normalmente, e o indivíduo deve ter outra As informações úteis que as radiografias podem forne-
causa para a deficiência desta vitamina que não a má absor- cer em relação à investigação de um paciente com síndro-
ção. Caso não se detecte B12 marcada na urina após sua ad- me de má absorção são:
ministração oral, chega-se à conclusão de que existe algum - Detecção de calcificações pancreáticas (evidenciando
distúrbio intestinal alterando a absorção desta vitamina.
pancreatite crônica e insuficiência pancreática);
- Mas, então, qual a utilidade da B12 não marcada IM? - Achado de condições predisponentes para hiperproli-
Como o teste de Schilling é utilizado em indivíduos com feração bacteriana. Como diverticulose do delgado ou
reservas baixas de BI2, se fosse administrada somente a vi- semioclusão intestinal;
tamina B12 marcada oral, esta poderia ser incorporada para - Detecção de lesões da mucosa (muitas vezes mostrando
suprir as próprias deficiências corpóreas, não sendo excreta- um caráter salteado ou distal, otimizando a biópsia).
da na urina, e dando a impressão falsa de não ter sido absor-
vida. Assim, a B12 não marcada IM serve para reabastecer os Observação: na investigação de um paciente com diar-
reservatórios corpóreos, possibilitando que a forma marcada reia crônica, a presença de floculação do bário em estudo
oral, caso absorvida, seja excretada normalmente na urina. contrastado do delgado, é bastante sugestivo de síndrome
h) Teste de exalação de xilose marcada (C14-xilose) de má absorção.
É um teste bastante sensível e específico para o diag- Outro estudo de imagem que pode ser usado é a colan-
nóstico de hiperproliferação bacteriana intestinal, e baseia- giopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE), a qual
-se no fato de que as bactérias intestinais são capazes de pode fornecer indícios de pancreatite crônica ao demonstrar
catabolizar a xilose, liberando CO2. Após a administração de irregularidades no dueto pancreático principal (Wirsung).
xilose (14) oral, a quantidade de CO2 (14) exalado pela res-
l) Biópsia do delgado
piração é medida aos 30 e 60 minutos.
A biópsia do delgado é, por motivos óbvios, fundamen-
i) Teste de exalação da lactose-H2
tal para o diagnóstico de muitas das condições intestinais
A lactose é um dissacarídeo, e, como tal, não consegue que cursam com má absorção. Embora para algumas des-
ser absorvida pela mucosa intestinal. A absorção final dos tas condições os achados histopatológicos sejam patogno-
carboidratos necessita da ação de uma enzima intestinal,
mônicos (portanto, diagnósticos), para a maioria delas eles
a dissacaridase. Quando há deficiência desta enzima, a lac-
tose fica “perdida” no delgado, sendo eliminada e normal- costumam ser apenas sugestivos (ou mesmo compatíveis),
mente causando diarreia osmótica. O teste de exalação de assumindo um importante papel, mas na montagem de um
lactose-H2 é utilizado para determinar a possível deficiência algoritmo diagnóstico. Como nem todas as doenças entéri-
de lactase, e se baseia no fato de que a lactose, quando cas têm um padrão de acometimento difuso e homogêneo
não absorvida, fica sujeita à ação das bactérias intestinais, como o da doença de Whipple, da doença celíaca ou mes-
liberando H2 no ar exalado. Tem mais sensibilidade e espe- mo da beta-lipoproteinemia, devemos ficar bastante aten-
cificidade do que o teste de intolerância à lactose, e é re- tos para a interpretação de uma única amostra de material
alizado da seguinte forma: administra-se 1g/kg de lactose histopatológico. Como o delgado não é acessível aos méto-
oral e mede-se o H2 do ar exalado. Se houver aumento em dos endoscópicos (a endoscopia digestiva alta só alcança o
relação aos níveis de H2 respiratórios prévios, diagnostica- duodeno distal e a colonoscopia só alcança o íleo terminal),
-se intolerância à lactose.
as biópsias de delgado são realizadas, ainda hoje, através
j) Cultura do delgado da introdução oral de uma cápsula, como, por exemplo, a
O exame padrão-ouro para o diagnóstico de hiperproli- cápsula de Crosby (Figura 1), que, posicionada no delgado,
feração bacteriana é a cultura direta (quantitativa) do fluido realiza a coleta do material.
75
GAST R O ENTEROLO GIA
b) Doença de Whipple
Trata-se de uma rara doença multissistêmica, causada
por uma infecção do bacilo Tropheryma whipplei. Ocorre
em qualquer idade, mas é mais comum em homens bran-
cos na 4ª e na 5ª décadas de vida. A via de contaminação
não é conhecida, e nenhum caso de endemia foi reconhe-
cido. Na maioria dos casos, a 1ª manifestação clínica são as
artralgias migratórias e não deformantes (80% dos casos),
que é a 1ª manifestação clínica. As manifestações gastrin-
testinais acontecem em 75% dos casos (dor abdominal tipo
cólica, diarreia, e certo grau de má absorção com distensão,
flatulência e esteatorreia), e perda de peso está presente
em todos eles (Tabela 5). Pode ocorrer a enteropatia perde-
Figura 2 - Comparação microscópica da mucosa intestinal normal dora de proteínas com o envolvimento linfático, hipoalbu-
com a doença celíaca: observações microscópicas (A) da mucosa minemia e edemas corporais.
normal com vilosidades e (B) da mucosa plana, que as perdeu na O diagnóstico pode ser muito difícil se o paciente não
doença celíaca apresenta sintomas gastrintestinais, e podem ocorrer febre
76
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
baixa e tosse crônica em 50% dos casos. É possível que haja - Acloridria gástrica;
linfonodomegalias que lembram sarcoidose. Envolvimento - Anormalidades anatômicas do intestino delgado com
das válvulas cardíacas e do miocárdio leva à insuficiência estagnação (alça aferente da gastroenteroanastomose
cardíaca e refluxo. Podem ocorrer achados oculares como Billroth II, divertículos do intestino delgado, obstrução
uveíte, vitreíte, ceratite e hemorragias retinianas. Em 10% intestinal, alça cega e enterite por radiação);
dos casos, o envolvimento do sistema nervoso central de- - Mobilidade intestinal prejudicada (esclerodermia, dia-
termina demência, letargia, coma, desmaios, mioclonias e betes, pseudo-obstrução intestinal crônica);
GASTROENTEROLOGIA
sinais hipotalâmicos. Envolvimentos de pares cranianos de- - Fístulas intestinais nas doenças de Crohn (gastrocólica
terminam oftalmoplegia ou nistagmo. ou coloentérica), cânceres e ressecções cirúrgicas;
O diagnóstico é histopatológico dos tecidos suspeitos. - Causas associadas: AIDS e pancreatite crônica.
Na maioria dos casos, a biópsia do duodeno pode revelar a
infiltração da lâmina própria com macrófagos PAS-positivos O tratamento consiste na correção do defeito anatômi-
que contêm o bacilo Gram positivo. Quanto aos pacientes co que está potencializando o processo, quando possível.
sem sintomas gastrintestinais, a biópsia pode ser normal, O uso de antibióticos, de amplo espectro, contra agentes
e deve-se proceder à investigação com outras biópsias de anaeróbicos e aeróbicos, por 1 a 2 semanas, promove a me-
áreas suspeitas. Teste com PCR tem sensibilidade em torno lhora progressiva do paciente. O uso continuado de antibió-
de 97% e especificidade de 100%, e é utilizado nas amostras ticos deve ser evitado, pelo risco de resistência bacteriana.
de fluidos corporais, como liquor cerebrospinal, humor ví-
treo, líquido sinovial ou válvulas cardíacas. E - Síndrome do intestino curto
Tabela 5 - Principais características da doença de Whipple Tal síndrome é uma condição de má absorção que se
- Má absorção — esteatorreia e perda ponderal; instala após a remoção de 2/3 do intestino delgado. As
- Doença multissistêmica; causas mais comuns de grandes ressecções intestinais,
principalmente do intestino delgado são: doença de Crohn,
- Dor abdominal, febre, artrite, linfadenomegalias periféricas e
anormalidades neurológicas (nistagmo, oftalmoplegia e dis-
infarto mesentérico, enterite por radiação e trauma. Na Pe-
túrbios dos nervos cranianos); diatria, como causas, encontram-se malformações congêni-
tas em que o cirurgião é obrigado a retirar grandes porções
- Biópsia duodenal com macrófagos PAS-positivo com caracte-
rísticas de bacilos.
intestinais. O tipo de má absorção depende da extensão e
topografia da ressecção e do grau de adaptação do intes-
O tratamento consiste no uso de antibióticos com me- tino remanescente. O quadro clínico é caracterizado pela
lhora progressiva dos quadros apresentados. Não há um diarreia e perda de peso.
esquema específico, mas o uso é prolongado pelo perío- Há uma série de modificações adaptativas que aumen-
do de 1 ano. As sulfas são utilizadas como 1ª escolha. Nos tam a capacidade absortiva por unidade de superfície do
pacientes alérgicos, utiliza-se ceftriaxona ou cloranfenicol. intestino remanescente, além do retardo no esvaziamento
Também é necessária uma nova biópsia para a certeza da gástrico e na velocidade do intestino residual. Ressecções
remissão da infecção. de 40 a 50% do comprimento total do delgado são tolerá-
veis. Quanto maior a ressecção intestinal, maiores as perdas
c) Supercrescimento bacteriano de água e eletrólitos, além dos desequilíbrios citados. Em
No intestino delgado existe uma quantidade de bacté- média, até 100cm de jejuno proximal, em pacientes com
rias normalmente em simbiose com o meio intestinal. O cólon remanescente, podem ser suficientes para manter o
supercrescimento de bactérias no intestino delgado pode equilíbrio nutricional com dietas orais somente, apesar de
determinar a má absorção por inúmeros mecanismos. as perdas de água e eletrólitos se manterem. A adaptação
A desconjugação dos sais biliares causa a inadequa- gradual ocorre em cerca de 1 ano.
da formação de micelas, resultando na má absorção de Já os pacientes com ressecções maiores, nos casos em
gorduras com esteatorreia. A proliferação bacteriana que estejam presentes menos de 100cm de jejuno proxi-
consome nutrientes, reduzindo a absorção de vitamina mal, necessitam de suplementação enteral específica (die-
B12 e carboidratos. As bactérias também causam danos, tas elementares ou poliméricas). A nutrição parenteral
diretamente, na mucosa intestinal (células epiteliais e da pode ser necessária nos casos graves (taxa de mortalidade
borda em escova), impedindo a absorção de açúcares e em torno de 2 a 5% ao ano). A morte dos pacientes com
proteínas. A passagem dos ácidos biliares não absorvidos nutrição parenteral crônica decorre das doenças hepáticas
e carboidratos para os cólons determina as diarreias os- induzidas por quadro disabsortivo, infecção generalizada,
mótica e secretora. O supercrescimento bacteriano é uma perda de acesso venoso e infecções dos cateteres centrais.
importante causa de má absorção no idoso, talvez porque O transplante intestinal está indicado aos casos extremos,
há um decréscimo da acidez gástrica ou motilidade intes- com uma taxa de sobrevida em 5 anos de 60 a 70%.
tinal diminuída. As causas para o crescimento bacteriano A ressecção do íleo terminal resulta na má absorção de
incluem: sais biliares e vitamina B12, os quais são absorvidos nessa
77
GAST R O ENTEROLO GIA
região. Nos casos de pouca perda intestinal, os pacientes te- as cepas enterotoxigênicas, enteropatogênicas e êntero-
rão de receber suplementação de vitamina B12. Nas maiores hemorrágicas da E. coli e Campylobacter jejuni. A incidên-
ressecções desse segmento ileal, a má absorção de sais bilia- cia de infecção por Salmonella é mais comum em crianças
res estimula a secreção de fluidos dos cólons, resultando em menores de 1 ano, enquanto a infecção por Shigella é maior
diarreia aquosa. Devem ser tratados com quelantes de sais nas crianças na faixa de 6 meses a 4 anos (Figura 3).
biliares (colestiramina, de 2 a 4g, 3x/dia, com as refeições). Nos hospitais, concentram-se casos de diarreia especí-
Esteatorreia pode estar associada, além de perdas de vi- ficos e relacionam-se ao próprio ambiente hospitalar com
taminas lipossolúveis. Empregam-se dietas pobres em gor- a sua população de bactérias locais e aos pacientes debili-
duras, vitaminas e suplementos de gorduras de cadeias mé- tados e internados nas unidades de terapia intensiva e nas
dias, que não necessitam de micelas para a sua absorção. enfermarias de Pediatria. Por sua vez, Clostridium difficile
Gorduras não absorvidas ligam-se ao cálcio, também redu- é o agente predominante nas infecções hospitalares, as in-
zindo a sua absorção. Calculose renal ocorre por cristais de fecções por rotavírus podem espalhar-se com rapidez nas
oxalato. Reposição oral de cálcio favorece a ligação de oxa- enfermarias de Pediatria, e a diarreia por E. coli enteropato-
lato e aumenta os níveis séricos de cálcio. Há calculose biliar gênica pode acometer a equipe de enfermagem dos berçá-
por colesterol, devido ao decréscimo dos sais biliares (ciclo rios de Neonatologia. Cerca de 1/3 da população de idosos
êntero-hepático diminuído). Se tiver ocorrido ressecção da internados, frequentemente, por suas condições clínicas
válvula ileocecal (ressecção do ceco e cólon ascendente, co- crônicas, desenvolve surtos diarreicos todos os anos. O uso
muns na hemicolectomia direita), haverá a contaminação
de antibioticoterapia prolongada pode predispor a colite
bacteriana do intestino delgado em grau maior, complican-
pseudomembranosa, provocada pela alteração da flora in-
do a má absorção.
testinal e facilitando a proliferação de C. difficile. A Tabela
6 descreve os principais agentes infecciosos causadores de
2. Diarreia aguda quadros diarreicos agudos.
A diarreia pode ser definida como o excesso de água nas
fezes com a diminuição da consistência fecal e inúmeros
episódios de eliminações por dia. Na prática, consideram-
-se mais que 2 a 3 evacuações ao dia ou fezes liquefeitas
em todos os episódios. Define-se diarreia aguda aquela
com até 2 semanas de duração dos sintomas, mas quase
sempre menos de 72 horas. Em 90% dos casos, é de causa
infecciosa, geralmente acompanhada por vômitos, febre e
dor abdominal. O restante dos casos é decorrente do uso
de medicações, ingestão de toxinas, isquemia etc. O quadro
clínico pode manifestar-se com sintomas de leve intensida-
de a piora clínica progressiva, em poucas horas, com risco
de morte por desidratação e infecção generalizada.
Figura 3 - (A) Escherichia coli; (B) rotavírus; (C) Campylobacter je-
A - Epidemiologia juni; (D) Giardia lamblia e (E) Salmonella
Em menores de 5 anos, os episódios agudos de diarreia
prevalecem de 2 a 3 surtos por ano nos países desenvolvi- Tabela 6 - Agentes etiológicos das diarreias infecciosas
dos e de 10 a 18 episódios em crianças nos países subde- Diarreia aguda bacteriana
senvolvidos. Na Ásia, África e América Latina, as diarreias - Escherichia coli;
agudas não são só as maiores causas de doenças nas crian- - Enterotoxigênica;
ças (estima-se 1 bilhão de casos por ano), mas também a - Êntero-hemorrágica (sorotipo 157 H7);
maior causa de mortalidade infantil, sendo responsável por
- Enteroinvasiva;
4 a 6 milhões de mortes por ano (12.600 mortes/dia). Nas
regiões críticas do planeta, a desnutrição proteico-calórica - Enteropatogênica;
contribui muito para a morbimortalidade infantil. - Enteroaderente;
O rotavírus é um agente muito comum entre as crian- - Salmonella não typhi;
ças com menos de 2 anos e acomete de 75 a 100% dos - Shigella sp;
indivíduos expostos. Giardia lamblia é mais habitual nas - Campylobacter jejuni;
crianças mais velhas, com baixos índices de prevalência. A - Yersinia enterocolytica;
maior morbidade e mortalidade dos agentes enteropatogê-
- Vibrio cholera;
nicos envolve crianças menores de 5 anos. Os outros micro-
-organismos mais comuns em crianças que em adultos são - Vibrio parahaemolyticus;
78
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
GASTROENTEROLOGIA
do no corpo)
- Rotavírus;
O número de agentes microbianos varia de espécie para
- Outros vírus: (ex. adenovírus);
espécie. Para agentes como Shigella, E. coli êntero-hemor-
- Giardia intestinalis; rágica, Giardia lamblia ou entamoeba, de 10 a 100 bacté-
- Cryptosporidium parvum; rias ou cistos são capazes de produzir a infecção, enquanto
- Ciclospora cayetanesis. de 105 a 108 organismos de Vibrio cholerae devem ser in-
geridos para causar a doença intestinal aguda. A habilida-
B - Fisiopatologia de do organismo de vencer as defesas do hospedeiro tem
A presença de qualquer fenômeno que interfira na fi- implicação para a sua transmissão para outros indivíduos:
siologia da absorção ou na secreção de fluidos fecais pode Shigella, E. coli êntero-hemorrágica, Giardia lamblia e en-
provocar a síndrome diarreica. O intestino delgado pode tamoeba podem espalhar-se por contato de pessoa para
conter até 10L de fluidos ao dia (originados da ingestão VO, pessoa, embora, no caso da contaminação por Salmonella,
das secreções gástricas, biliar e pancreática). O cólon pode deva haver um crescimento prévio no alimento contamina-
absorver de 4 a 5L/dia, mas, normalmente, chega ao cólon do, por várias horas antes, para obter uma quantidade de
1L de água diariamente e, no balanço final, a capacidade inóculo suficiente para desenvolver a infecção intestinal.
absortiva dos intestinos delgado e grosso pode resultar em b) Aderência
até 100mL de líquidos para as fezes, apenas. A água é absor-
Muitos micro-organismos se aderem à mucosa gastrin-
vida de forma passiva no intestino e depende do gradiente
testinal como passo inicial no seu processo patogênico,
osmótico intraluminal.
enquanto outros entram em contato com a flora local e
A absorção intestinal do delgado pode ser alterada por
desenvolvem-se, determinando a colonização progressiva
excesso de volume, fluxo rápido e presença de gorduras e
dos segmentos do tubo digestivo. As aderências dos agen-
ácidos biliares não absorvidos. Já no cólon, pode ter sua fun-
tes infecciosos estão associadas à presença de receptores
ção absortiva alterada por uma variedade de fatores, como
específicos da membrana celular das células da mucosa.
doença na mucosa, aumento do trânsito, alteração da flora
Como exemplo desse mecanismo de ação, há o agente da
bacteriana, agressões por agentes infecciosos, aumento de
sais biliares e aumento dos ácidos graxos de cadeia longa. cólera (V. cholerae), o modelo clássico de ligação direta da
A diarreia determina a perda de fluidos intestinais os- mucosa. A bactéria da cólera adere-se aos enterócitos do
moticamente ativos, e os resultados são a diminuição da intestino delgado, determinando o desequilíbrio da absor-
absorção de nutrientes e eletrólitos, e o excesso de secre- ção e secreção intestinal.
ção de eletrólitos ou ambos. O equilíbrio hidroeletrolítico As várias formas patogênicas da família da E. coli apre-
intraluminal depende da osmolaridade das fezes. É pró- sentam mecanismos diferentes de aderência entre si. O
xima da osmolaridade sérica, em torno de 290mOsm/kg. subtipo da E. coli enterotoxigênica produz uma proteína
Normalmente, a maior parte da osmolaridade fecal está chamada fator antigênico colonizador, que possibilita a co-
relacionada às concentrações de sódio e de potássio multi- lonização do trato digestivo superior antes da produção de
plicada por 2 (para contar, também, os ânions associados). sua enterotoxina, enquanto o subtipo enteropatogênico
Os produtos da fermentação bacteriana no cólon, como os (causador de diarreia nas crianças) e a forma êntero-he-
derivados dos ácidos graxos, determinam as concentrações morrágica (causadora da colite hemorrágica e da síndrome
maiores do gap osmótico. A diferença osmótica é calculada hemolítico-urêmica) determinam a destruição da mucosa
da seguinte forma: intestinal e a invasão tecidual do trato digestivo.
c) Produção de toxinas
Gap osmótico = 290 - [2(Na fecal + K fecal)]
A produção de 1 ou muitos tipos de exotoxinas é impor-
Na diarreia osmótica, a presença de solutos não absor- tante na patogênese de inúmeros agentes entéricos. Tais
víveis contribui, significativamente, para a osmolaridade, toxinas incluem as enterotoxinas, que causam a diarreia
tornando o material intraluminal hiperosmolar, promoven- aquosa por ação direta no mecanismo secretor da mucosa
do um movimento de água para dentro da luz intestinal. intestinal (E. coli enterotoxigênica), as citotoxinas, que cau-
As principais causas são as deficiências de dissacaridase, sam a destruição das células e estão associadas às diarreias
a insuficiência pancreática e a ingestão de substâncias inflamatórias (S. dysenteriae tipo 1, Vibrio parahaemolyti-
não absorvíveis (drogas laxativas como manitol, lactulose, cus e Clostridium difficile), e as neurotoxinas, as quais agem
79
GAST R O ENTEROLO GIA
diretamente no sistema nervoso central ou periférico (Sta- razão. A neutralização da acidez gástrica com o uso de an-
phylococcus sp e Bacillus cereus). tiácidos ou bloqueadores H2 – muito utilizada no paciente
d) Invasão hospitalizado – similarmente, aumenta o risco de coloni-
zação intestinal. Alguns micro-organismos, entretanto, po-
A invasão tecidual dos agentes microbianos é um agra-
dem sobreviver na extrema acidez do meio gástrico, como
vante dentro dos quadros da síndrome diarreica, de uma
o rotavírus, que é estável na acidificação.
forma geral. Pacientes imunodeprimidos (portadores de
HIV, uso de quimioterapia para o câncer, imunossupresso- c) Mobilidade intestinal
res para transplantados, síndromes mieloproliferativas e A mobilidade intestinal é um mecanismo de limpeza das
estados pré-leucêmicos) correm maior risco de desenvol- bactérias intestinais localizadas nos segmentos proximais
ver a invasão tecidual da mucosa, quando inoculados por do tubo digestivo. Quando associada à acidez gástrica e à
micro-organismos intestinais. Esses estados de resistência produção de imunoglobulinas, há a limitação da prolifera-
imunológica alterada podem desenvolver a diminuição das
ção da flora bacteriana natural. Quando a mobilidade in-
defesas naturais do intestino (diminuição da produção de
testinal está prejudicada – por exemplo, por meio do trata-
IgA, diminuição dos linfócitos intestinais, leucopenia).
mento da dor com opioides ou drogas antiespasmódicas, de
A invasão bacteriana e a destruição celular da mucosa
anormalidades anatômicas (divertículos, fístulas, bloqueio
intestinal são situações presentes nos quadros de infecção
disentérica (por meio da produção de citotoxinas), e os inflamatório da alça de delgado, estase de alça aferente
agentes microbianos responsáveis são as infecções causa- pós-cirúrgico) e de estados de hipomotilidade (como no
das pela Shigella e as cepas enteroinvasivas da E. coli. Esses diabetes mellitus e na esclerodermia) – a proliferação bac-
agentes caracterizam-se pelo predomínio da invasão teci- teriana local aumenta, e a infecção por patógenos entéricos
dual, proliferação intraepitelial e disseminação pelas célu- está potencializada.
las adjacentes. Os micro-organismos da Salmonella causam d) Imunidade
a diarreia inflamatória por invasão da mucosa do intestino,
A resposta imunológica celular e a produção de anti-
mas não estão associados à destruição celular dos enteró-
citos; não determinam um quadro completo da síndrome corpos são elementos importantes para a proteção dos
disentérica. As cepas da Salmonella typhi e da Yersinia ente- indivíduos suscetíveis à infecção intestinal. A ampla varie-
rocolitica podem penetrar a mucosa intestinal intacta, pro- dade de infecções gastrintestinais provocadas por agentes
mover a multiplicação celular nas placas de Peyer (nódulos virais, bacterianos, fúngicos e parasitários, nos pacientes
linfáticos agregados do intestino delgado) e nos linfonodos portadores de HIV, demonstra a importância da imunida-
intestinais e se disseminar por meio da corrente sanguínea, de celular na proteção do hospedeiro normal contra esses
causando a febre entérica (uma síndrome caracterizada por patógenos. A imunidade humoral consiste na produção de
febre, cefaleia, bradicardia relativa, dores abdominais, es- imunoglobulina sistêmica IgG e IgM, assim como a pro-
plenomegalia e leucopenia). dução local de IgA. Hoje, considera-se o tubo digestivo
como um grande órgão imunológico capaz de produzir
D - Mecanismos de defesa do hospedeiro imunoglobulinas locais e ter, em sua estrutura, o sistema
linfocitário (placas de Peyer). A imunoglobulina secretora
a) Flora normal IgA liga-se aos antígenos bacterianos e os conduz até as
A microflora habitual do trato digestivo exerce um me- porções distais dos intestinos, apresentando ao sistema
canismo de proteção natural, prevenindo a colonização de subepitelial linfoide, os quais estimulam a proliferação de
patógenos entéricos potenciais. Indivíduos portadores de linfócitos sensibilizados. Tais linfócitos ativados circulam e
poucas bactérias intestinais, como recém-nascidos ou pa- povoam por toda a mucosa e, assim, aumentam a produ-
cientes que recebem antibioticoterapia prolongada, são ção da IgA secretora.
mais suscetíveis a desenvolver infecção intestinal. Mais de
99% da flora colônica são compostos por bactérias anaeró- E - Quadro clínico
bias. O pH ácido e a presença dos gases, provenientes da
fermentação das gorduras digeridas por essas bactérias, Tabela 7 - Principais sintomas e tempo de contaminação conforme
surgem como elementos importantes para a resistência o agente etiológico
contra a colonização de agentes externos. Período de
Agente etiológico Sintomas
b) Acidez gástrica incubação
A acidez da mucosa gástrica é um importante elemen- - Staphylococcus
De 1 a 6
to de barreira. O aumento na frequência de infecções in- aureus, Bacillus Náuseas, vômitos e diarreia.
horas
cereus.
testinais, como Salmonella, G. lamblia e uma variedade de
helmintos, tem sido reportado nos pacientes submetidos à De 8 a 16 - Clostridium perfrin- Dores abdominais, diarreia
horas gens, B. cereus. líquida, vômitos raros.
ressecção gástrica ou que possuam acloridria por qualquer
80
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
Período de Infecciosa
Agente etiológico Sintomas
incubação Salmonella
- Vibrio cholerae; Yersinia
- E. coli enterotoxi- Variável Vibrio parahaemolyticus
gênica;
- E. coli êntero- Clostridium difficile
- Diarreia líquida; Aeromonas
-hemorrágica;
- Diarreia sanguinolenta;
GASTROENTEROLOGIA
>16 horas - Salmonella spp; Vírus Norwalk
- Diarreia inflamatória;
- Campylobacter Rotavírus
- Disenteria.
jejuni;
Giardia lamblia
- Shigella spp;
- Vibrio parahae- Ausente Entamoeba hystolitica
molyticus. Cryptosporidium
Envenenamento alimentar por Staphylococcus aureus,
É possível dividir as diarreias em altas e baixas de acordo Bacillus cereus, Clostridium perfringens, Escherichia coli
com a sintomatologia. A diarreia baixa decorre do segmento enterotoxigênica êntero-hemorrágica
do cólon e caracteriza-se pela presença de muco, sangue e até Não infecciosa
secreção purulenta nas fezes (descarga de leucócitos na luz in- Colite ulcerativa
testinal, nas colites de grau intenso). O paciente apresenta inú- Doença de Crohn
meras evacuações (de 10 a 20 por dia) e sensação de esvazia- Presente
Colite ulcerativa
mento incompleto do reto, após cada episódio de defecação Colite isquêmica
(tenesmo retal). A definição de disenteria é a mesma que a da
diarreia baixa descrita. Leucócitos estão presentes nas fezes, e F - Tratamento
assim a diarreia baixa é considerada inflamatória.
Na diarreia alta (tipo delgado), a frequência das evacua- a) Dieta e hidratação
ções é elevada, e não há perdas sanguíneas nas fezes. Além
A maioria dos casos de diarreia não chega a determi-
disso, não é classificada como inflamatória (ausência de leu-
nar a desidratação grave, e a reposição adequada de fluidos
cócitos nas fezes). Em geral, a eliminação é líquida, e, quando
orais, contendo carboidratos e eletrólitos, é capaz de repor
há má absorção, as fezes apresentam maior proporção de
as perdas hidroeletrolíticas. Alteração da dieta, evitando o
gordura (fezes esteatorreicas). Essas fezes têm, como carac-
uso de alimentos com fibras, gorduras e derivados do leite,
terísticas, aspecto espumoso, de coloração brilhante e de proporciona repouso digestivo satisfatório. Deve-se lem-
odor muito forte (fermentação excessiva). O paciente pode brar que a diarreia, de forma geral, é autolimitada.
ter dermatite perianal devido à acidez fecal. A diarreia alta Nos casos graves, a desidratação é rápida, principal-
é causada por agentes infecciosos (S. aureus, rotavírus, por mente nas crianças. A reidratação oral com soro caseiro ou
exemplo), agentes parasitários (Giardia lamblia) e má absor- preparados contendo glicose, sódio, potássio, cloretos e bi-
ção (pancreatite crônica nos alcoólatras, por exemplo). carbonatos é ideal como reposição das perdas de fluidos in-
Quanto aos pacientes portadores da infecção por HIV, testinais. Deve ser usada hidratação intravenosa nos casos
os quadros gastrintestinais são muito variados em razão de graves com repercussão hemodinâmica ou à intolerância
uma gama de agentes infecciosos que podem estar envolvi- oral devido às náuseas e aos vômitos de repetição.
dos. A enterocolite é a forma mais comum de manifestação.
Os agentes responsáveis são as bactérias (Campylobacter sp, b) Agentes antidiarreicos
Salmonella, Shigella), viroses (citomegalovírus e adenovírus) São medicamentos que podem ser utilizados em pa-
e protozoários (Cryptosporidium, Entamoeba hystolitica, cientes com quadros moderados e que lhes proporcionem
Giardia, Isospora, Microsporidia). Tais agentes podem estar mais conforto. A loperamida (Imosec), 2mg, após cada
envolvidos, também, nos pacientes imunocomprometidos, evacuação diarreica por 2 dias (não ultrapassar o total de
os quais tendem a apresentar sintomas mais severos e crôni- 16mg), ou o difenoxilato (Lomotil), 4mg 6/6h, podem ser
cos, incluindo febre alta e dores abdominais intensas que po- utilizados nos casos de diarreia aguda não invasiva (sem
dem mimetizar abdome agudo cirúrgico. Bacteremia e envol- febre, muco ou sangue nas fezes). O subsalicilato de bis-
vimento das vias biliares podem estar presentes na enteroco- muto 30mL 30/30min, 8 doses, tem sido eficaz no controle
lite. Nas recorrências do quadro intestinal, após tratamento dos vômitos e da diarreia em alguns pacientes. Os agentes
adequado, sugere-se infecção por Salmonella e Shigella. probióticos (Floratil) podem ser indicados na diarreia não
invasiva, para repopularizar a flora intestinal normal e, com
Tabela 8 - Leucócitos nas fezes nas doenças intestinais isso, reduzindo o período de diarreia em alguns pacientes.
Infecciosa Os antidiarreicos são contraindicados na diarreia invasiva.
Shigella
Deve-se lembrar que há o risco de estase dos conteúdos
intestinais tóxicos, caso tais agentes sejam usados exces-
Presente Campylobacter
sivamente. Não podem ser utilizados nos pacientes com
E. coli enteroinvasiva diarreia sanguinolenta, febre alta ou toxemia, e devem ser
81
GAST R O ENTEROLO GIA
descontinuados nos casos leves e que evoluem com piora Diarreia osmótica
clínica progressiva.
- Deficiência de dissacaridase: intolerância à lactose;
c) Antibioticoterapia - Diarreia propositalmente provocada (distúrbio de comporta-
A antibioticoterapia depende de cada caso. O uso indis- mento neurótico/psiquiátrico): drogas irritantes e osmóticas
criminado não é indicado, por alterar a microflora, favore- (magnésio, laxantes, fitoterápicos).
cer a proliferação de outros agentes microbianos e diminuir Diarreia secretora
as barreiras intestinais naturais. - Suspeita: grande quantidade de fezes (>1L/d) e pouca mudança
O tratamento empírico é recomendado aos casos de no jejum prolongado; gap osmótico normal;
apresentação moderada a severa com febre, ou fezes com - Diarreia provocada por ação hormonal: VIPoma, tumor carci-
sangue ou na presença de leucócitos nas fezes, enquanto a noide, carcinoma medular da tireoide (calcitonina), síndrome de
cultura está em andamento. Os antibióticos mais recomen- Zollinger-Ellison (gastrina);
dados a esses casos são os derivados das fluoroquinolonas
- Diarreia provocada (uso abusivo de laxantes): fenolftaleína, fito-
(ciprofloxacino, ofloxacino, norfloxacino) por um período terápicos (cascara, sena);
de 5 a 7 dias. Pode ser feito tratamento alternativo com sul-
- Adenoma viloso;
fametoxazol-trimetoprim ou eritromicina. O metronidazol
está indicado nas infecções por Giardia. - Má absorção de sais biliares: ressecção cirúrgica ileal, ileíte de
Antimicrobianos específicos não são indicados para as Crohn, pós-colecistectomia;
infecções por Salmonella não tifoide, Campylobacter, Aero- - Medicações variadas: efeito colateral.
monas, Yersinia ou E. coli O157:H7, exceto nos casos graves. Condições inflamatórias intestinais
Nessas infecções, não há melhora na recuperação ou dimi- - Suspeita: febre, hematoquezia, dor abdominal;
nuição do período de excreção de bactérias fecais patogê-
- Colite ulcerativa;
nicas. As diarreias infecciosas para os quais os antibióticos
são recomendados são Shigelose, cólera, salmonelose ex- - Doença de Crohn;
traintestinal, diarreia dos viajantes, infecções por C. difficile, - Colite microscópica;
giardíase, amebíase e doenças sexualmente transmissíveis - Malignidade: linfoma, adenocarcinoma (com obstrução e pseu-
(gonorreia, sífilis, infecção por clamídia e herpes simples). dodiarreia);
As terapias para os portadores de HIV são bem específicas e - Enterite actínica.
dependem das patologias associadas; em geral, utilizam-se
Síndromes disabsortivas
antibióticos de largo espectro de ação e antivirais.
- Suspeita: perda de peso, valores laboratoriais, gordura fecal ele-
3. Diarreia crônica vada (>10g/24h);
- Desordens da mucosa do intestino delgado: doença celíaca,
A diarreia crônica, definida por um tempo superior a 4
espru tropical, doença de Whipple, gastroenterite eosinofílica,
semanas, apresenta uma infinidade de causas. A classifica- enterectomias alargadas (síndrome do intestino curto), doença
ção em diarreia osmótica, secretória, invasiva, disabsortiva de Crohn;
ou funcional é bastante útil. Um quadro de diarreia prolon-
- Obstrução linfática: linfoma, tumor carcinoide, tuberculose, sar-
gada implica em alterações na fisiologia intestinal e necessi-
coma de Kaposi, sarcoidose, fibrose retroperitoneal;
ta de uma investigação criteriosa. O diagnóstico etiológico é
um grande desafio, e a anamnese é fundamental para dire- - Doenças pancreáticas: pancreatite crônica, carcinoma do pâncreas;
cionar a investigação diagnóstica. A solicitação de inúmeros - Crescimento bacteriano: desordens da motilidade (vagotomia,
exames complementares pode mais atrapalhar que ajudar, diabetes), esclerodermia, fístulas e divertículos do intestino del-
e a suspeita inicial pode não ser definida com precisão, gado.
acarretando prejuízo ao paciente. Podem ser usados anti- Desordens da motilidade intestinal
diarreicos nos quadros graves com repercussão sistêmica, - Suspeita: doença sistêmica ou cirurgia abdominal prévia;
e os demais testes serão empregados, ao longo do tempo, - Pós-operatório: vagotomia, gastrectomia parcial, alça cega com
para definir a causa básica. crescimento bacteriano;
- Desordens sistêmicas: esclerodermia, diabetes mellitus, hiper-
A - Classificação tireoidismo;
Didaticamente, é possível classificar o quadro diarreico - Síndrome do cólon irritável.
em 6 categorias diferentes (Tabela 9). Infecções crônicas intestinais
Tabela 9 - Características dos principais quadros de diarreias crônicas - Parasitas: Giardia lamblia, Entamoeba hystolitica;
Diarreia osmótica - Virais: citomegalovírus, infecção HIV;
- Suspeita: diminuição da quantidade de fezes com o jejum pro- - Bacteriana: Clostridium difficile, Mycobacterium avium;
longado; aumento do gap osmótico; - Protozoários: Microsporidia (Enterocytozoon bieneusi, Cryptos-
- Medicações: antiácidos, lactulose, sorbitol; poridium, Isospora belli).
82
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
GASTROENTEROLOGIA
(Tabela 10). Suspeita-se de doença orgânica quando há per-
minase, com alta especificidade e sensibilidade. Quando
da de peso, anemia, perdas sanguíneas, diarreia com dura-
positivos, devem ser empregados os exames endoscópicos
ção inferior a 3 meses e prevalência dos sintomas de forma
para biópsias da 2ª e da 3ª porções duodenais. Pode haver
contínua ou noturna.
teste negativo, e a biópsia é sempre empregada na tentati-
Tabela 10 - Características diferenciais da diarreia crônica va de confirmação histopatológica.
Para analisar se há perda de leucócitos nas fezes (diar-
Características da
Intestino delgado Intestino grosso reia inflamatória), emprega-se o teste de avaliação da excre-
apresentação
ção de lactoferrina fecal (que está presente nos leucócitos).
Número de evacu-
Pouca Grande Na suspeita de infecção parasitária por amebas e giárdias,
ações
realiza-se o exame de 3 amostras de fezes com a sensibili-
Grande e fezes
Volume das fezes e Pequena e fezes líqui- dade do teste muito satisfatória (de 60 a 90% de detecção).
normais ou pas-
consistência das não consistentes Os exames de imagem podem ajudar no raciocínio
tosas
Normal ou clara e/ diagnóstico. A presença de calcificação nas radiografias do
Coloração das fezes Normal abdome levanta a suspeita de pancreatite crônica. A tomo-
ou brilhante
Puxo e tenesmo Não Sim grafia computadorizada e a ressonância nuclear magnética
auxiliam a determinar, com mais precisão, o diferencial de
Urgência para eva-
Rara Frequente pancreatite crônica ou câncer. E o trânsito intestinal com
cuação
contraste auxilia no diagnóstico da doença de Crohn, linfo-
Periumbilical e/
Dor localizada na fossa ma intestinal e divertículos jejunais (Figura 4C, D e E).
Dor abdominal ou dor na fossa
ilíaca esquerda
ilíaca direita
Alívio da dor após
Não Sim
evacuação
Muco Não Sim
Sangue nas fezes Não é frequente Comum
Resíduos alimenta-
Frequentes Pouco frequentes
res visíveis
Desnutrição asso-
Frequente Pouco frequente
ciada
83
GAST R O ENTEROLO GIA
C - Tratamento
Inúmeros agentes antidiarreicos podem ser emprega-
dos. Já os opioides podem ser empregados para os quadros
mais estáveis. Entre os mais utilizados, estão:
- Loperamida (Imosec): 4mg inicialmente; metade da
dose após cada evacuação (dose máxima diária de
16mg);
84
ALTERAÇÕES FUNCIONAIS DOS INTESTINOS
GASTROENTEROLOGIA
às leis federais, e pode causar dependência química.
Pode-se utilizar o sulfato de morfina (receita especial
controlada), a droga mais utilizada em conjunto com
outras medicações para o controle das dores intratá-
veis (por exemplo, dores oncológicas). Tem o efeito
colateral de diminuir a motilidade intestinal e é utili-
zada em casos estritos com cronicidade e deterioração
clínica do paciente;
- Clonidina: é um agonista adrenérgico que inibe a se-
creção intestinal de eletrólitos. Além disso, é útil nos
casos de diarreias secretoras, de origem diabética, e na
criptosporidiose (de 0,1 a 0,6mg/dia, em 2 tomadas);
- Octreotide: é o análogo da somatostatina que estimu-
la a absorção dos eletrólitos e inibe a secreção intesti-
nal e de peptídios. É usado nas diarreias decorrentes
dos tumores neuroendócrinos (VIPomas, carcinoide) e
em alguns casos de diarreia relacionada a AIDS (3 do-
ses diárias subcutâneas de 50 a 250μg);
- Colestiramina: é um quelante de ácidos biliares, útil
nas diarreias secundárias a ressecções intestinais ou
doenças no íleo (dose de 4g em até 3 tomadas ao dia);
- Carbonato de cálcio: substância comumente achada
em rochas em todo o mundo, tendo diversas aplica-
ções na área da saúde, como na suplementação de cál-
cio, antiácido, aglutinante de fosfato para a hiperfos-
fatemia, componente da pasta de dentes, dentre ou-
tras. Seu efeito colateral de endurecimento das fezes
pode auxiliar no controle da diarreia, principalmente
em pacientes com sequelas anatômicas de ressecções
intestinais.
85
SUPORTE VENTILATÓRIO NÃO CIRÚRGICO
CAPÍTULO
14
Anatomia e fisiologia do cólon
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
Pontos essenciais do). O diâmetro das alças colônicas, que também é muito
variável, decresce gradualmente de aproximadamente 9cm
- Irrigação arterial do cólon e reto; no ceco até 3cm no sigmoide.
- Anatomia e regiões do reto e ânus; A presença de tênias, haustrações e apêndices epiploi-
- Funções do cólon e reto. cos são as 3 características que diferem o cólon das demais
alças intestinais. As tênias (anterior, posteromedial e poste-
rolateral) representam espessamentos da camada muscu-
1. Embriologia lar longitudinal e se apresentam desde a base apendicular
O intestino primitivo se desenvolve a partir da raiz en- até a junção retossigmoidiana. Logo, o reto não tem tênias,
dodérmica do saco germinativo. A porção média do intesti- nem apêndices epiploicos. As 3 tênias recebem nomes de
no germinativo dá origem ao intestino delgado (a partir da acordo com sua relação com o cólon transverso: tênia me-
papila duodenal), ao cólon ascendente e a 2/3 proximais do socólica, a qual é fixa ao mesocólon; tênia omental, fixa ao
cólon transverso. O cólon distal, a partir do 1/3 distal do có- omento maior; e tênia livre, que não possui ligações. As tê-
lon transverso até o canal anal (linha pectínea), é derivado nias cólicas são em média 1/6 menores que o restante do
da porção distal do intestino germinativo. A linha pectínea cólon, o que provavelmente é responsável pela origem das
marca a fusão do intestino derivado da endoderme (epitélio saculações.
colunar) e da porção do canal anal derivada do ectoderma A transição do cólon sigmoide para o reto é gradual,
(epitélio escamoso da linha pectínea até a borda anal). sendo caracterizada pelo espraiamento das tênias cólicas
Até a 5ª semana de desenvolvimento, os tratos digestivo até ocorrer uma distribuição uniforme da camada muscu-
e urogenital terminam em conjunto numa cloaca. A partir lar longitudinal ao longo do reto, a qual é mais espessa nas
da 6ª semana ocorre a separação dos 2 tratos com a mi- faces anterior e posterior em comparação com as laterais.
gração caudal do septo urorretal. Durante a 10ª semana, As haustrações são saculações intestinais entre as tênias
formam-se estruturalmente os corpos perineal e o Esfíncter que são separadas entre si pelas pregas semilunares e dão
Externo do Ânus (EEA). O Esfíncter Interno do Ânus (EIA) aspectos morfológico e radiológico característicos das alças
colônicas. Os apêndices epiploicos são pequenos depósitos
se forma entre a 6ª e 12ª semana a partir do crescimento
de gordura que protraem da serosa colônica.
de fibras musculares da camada circular do reto. Enquanto
o EEA tem migração cefálica, o EIA tem migração caudal,
A - Ceco
assim como o músculo longitudinal que se apresenta no es-
paço interesfincteriano. O ceco, ou cecum, é a 1ª porção do cólon a partir da
junção do íleo terminal à parede posteromedial deste seg-
mento colônico. Tem aproximadamente 8cm de extensão e
2. Anatomia localiza-se na fossa ilíaca direita. É quase totalmente reves-
O cólon tem comprimento variável nos adultos, tendo tido por peritônio, porém tem mobilidade limitada por um
em média 150cm (1/4 do comprimento do intestino delga- meso curto.
86
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO CÓLON
GASTROENTEROLOGIA
mobilidade, devido ao seu longo mesentério. Tem relação
vine o refluxo do continente colônico para o íleo e relaxa
com o ureter esquerdo e vasos gonadais, que se encontram
em resposta à entrada de alimentos no estômago (válvula
na sua porção posterolateral no retroperitônio. A junção re-
ileocecal). Uma válvula ileocecal competente resiste a pres-
tossigmoidiana localiza-se no ponto em que as tênias colô-
sões de até 80mmHg.
nicas formam uma camada muscular única, geralmente no
nível do promontório.
B - Apêndice cecal
Localizado a mais ou menos 3cm abaixo da válvula ileo- E - Reto e canal anal
cecal, na confluência das tênias colônicas. Tem posição va- Existe uma diferença de conceito entre cirurgiões e ana-
riável em relação ao ceco, nas mais diversas localizações: tomistas com relação aos limites do reto:
pélvica, retrocecal, subcecal, pré-ileal e retroileal, sendo as - Limites cirúrgicos: do anel anorretal até o promontório;
2 primeiras as mais comuns (Figura 1).
- Limites anatômicos: da linha pectínea até a 3ª vérte-
bra sacral.
87
GAST R O ENTEROLO GIA
88
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO CÓLON
GASTROENTEROLOGIA
Figura 4 - Irrigação do cólon
89
GAST R O ENTEROLO GIA
H - Drenagem venosa
A drenagem venosa segue a irrigação arterial, sendo que Figura 6 - Drenagem linfática dos cólons
a veia mesentérica inferior drena para veia esplênica, a veia
mesentérica superior forma a veia porta em conjunto com a
veia esplênica, sendo ambas partes do sistema portal. Já as
J - Inervação
veias retais média e inferior drenam para o sistema ilíaco- A inervação do colón é autonômica e segue a dispo-
-cava (Figura 5). A drenagem venosa do reto para diferentes sição vascular. O suprimento simpático se dá por nervos
90
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO CÓLON
simpáticos toracolombares. O reto é inervado pelos nervos O plexo pélvico engloba os nervos erigentes, responsá-
pré-sacrais de inervação simpática pelo plexo hipogástrico vel pelo suprimento parassimpático de S2, S3 e S4 e as fi-
superior, abaixo do promontório, e seus ramos direito e es- bras simpáticas dos nervos hipogástricos. A ereção peniana,
querdo (Figura 7). a ejaculação e a função vesical são mediadas pelo simpático
e parassimpático desta região.
GASTROENTEROLOGIA
Figura 7 - Inervação do reto e esfíncteres
A lesão de nervos hipogástricos com nervos erigentes gulamentação do volume de fluido intraluminal. O cólon
intactos, isto é, dano exclusivo do sistema nervoso simpáti- transverso também faz a absorção de sódio e água. O cólon
co, resulta em ejaculação retrógrada com bexiga neurogêni- esquerdo tem a menor taxa de absorção de fluido e eletró-
ca. A lesão exclusiva de nervos erigentes causa impotência. litos, e se reveste da função de reservatório.
O canal anal tem complexa inervação, sendo o EIA iner-
vado pelo sistema nervoso simpático e parassimpático; os A - Digestão
elevadores do ânus, pelo nervo pudendo (S2, S3, S4); o EEA,
também pelo nervo pudendo (S2, S3 e ramos perineais). Grande parte da digestão alimentar se inicia no estô-
Estas fibras são responsáveis pela inervação motora e sen- mago e é concluída no intestino delgado. Entretanto, uma
sitiva. percentagem de proteínas e carboidratos, além de fibras
dietéticas, sofre o processo de digestão no cólon, o qual
é fundamentalmente consequência de micro-organismos
3. Fisiologia do cólon comensais. Deve-se ressaltar que todo esse processo de
As funções do intestino grosso são absorção de água e digestão colônica é dependente da relação de simbiose
eletrólitos, secreção de eletrólitos e muco, e propulsão das existente com as bactérias intestinais. Importante função
fezes em direção ao reto. da flora bacteriana (109 bactérias por grama de fezes), com
O cólon direito deve receber o efluente ileal, é sede de predomínio de bacteroides Gram negativos e anaeróbios
metabolismo de carboidratos e proteínas residuais pela (anaeróbios 99%). Os polissacarídeos não digeridos no in-
flora bacteriana, realiza absorção de água e sódio e a re- testino delgado sofrem processo de fermentação, sendo os
91
GAST R O ENTEROLO GIA
principais produtos do processo de fermentação os ácidos verso às porções distais por meio de contrações em grandes
graxos de cadeia curta (voláteis), o hidrogênio, o CO2, o me- áreas colônicas. Ocorrem, geralmente, ao acordar ou após
tano e o N2. ingestão alimentar (reflexo gastrocólico).
Os 3 ácidos graxos principais são o acetato, o propionato
e o butirato (85 a 95%). Os ácidos graxos de cadeia curta D - Regulação
são utilizados pelos colonócitos (90%) e sua absorção não A atividade miogênica é regulada por ondas de baixa
depende de emulsificação como os ácidos graxos de cadeia amplitude mediadas por marca-passo presente na camada
longa. A função dos ácidos graxos de cadeia curta é fornecer circular do cólon (células intersticiais de Cajal). Já a ativida-
energia para os colonócitos e ajudar na absorção de água, de neural tem a inervação colinérgica excitatória, de origem
sódio e bicarbonato. vagal de nervos sacrais e de plexos mioentéricos. Os neu-
A lignina e celulose são produtos vegetais não digeridos ropeptídios envolvidos são a substância P, somatostatina,
no intestino delgado e que, além de fermentados, aumen- gastrina, colecistocinina e VIP. A inervação adrenérgica é
tam o bolo fecal e absorvem água. inibitória, derivada de T10–L1, sendo os mesmos neuropep-
tídios envolvidos.
B - Absorção e secreção Anormalidades no mecanismo nervoso entérico são,
O fluxo da água acompanha o gradiente osmótico es- provavelmente, a causa de diversas desordens gastrintesti-
tabelecido pela absorção de eletrólitos. O fluxo ileal é de nais como doença de Hirschsprung, síndrome do intestino
1.500 a 2.000mL/dia, sendo o volume final das fezes de irritável, esclerodermia, diverticulose, constipação crônica
150mL/dia. O sódio sofre um processo ativo de absorção e doença inflamatória intestinal.
pela Na/K-ATPase aldosterona (maior no cólon direito). A
concentração de sódio no plasma é maior que do lúmen 4. Resumo
colônico. Noventa por cento do sódio do conteúdo ileal são
absorvidos no cólon (200mEq de sódio no fluido ileal versus Quadro-resumo
5mEq de sódio nas fezes). - O intestino primitivo desenvolve-se a partir da raiz endodérmica
O cloreto passa por um processo passivo de absorção do saco germinativo;
por meio dos canais Cl-/HCO3, 75% do cloreto são absorvi- - A artéria mesentérica superior é responsável pela irrigação
dos, sendo a maior parte no cólon direito. O bicarbonato é do ceco, do cólon ascendente e dos 2/3 proximais do cólon
secretado com envolvimento da bomba Cl-/HCO3 (ativo). A transverso (ramos ileocólicos, cólica direita e cólica mé-
dia). A artéria mesentérica inferior leva sangue para o ân-
sua fonte é intracelular pela atividade da anidrose carbônica.
gulo esplênico, o cólon descendente, o sigmoide e o reto
O potássio sofre, no cólon proximal, atividade secretora (cólica esquerda, ramos sigmoidianos e retal superior);
ativa envolvendo bombas Na+/K+ ou Na+/K+/Cl- na mem- - Ao contrário de sua denominação, o reto possui curvaturas e
brana basolateral e difusão eletroquímica para o lúmen. Já tortuosidades que facilitam sua função de reservatório;
no cólon distal, a atividade absortiva é ativa, independente - A importância do canal anal repousa principalmente, em sua
de sódio, sendo mediada por trocadores K+/H+-ATPase na função essencial, na manutenção da continência fecal. O in-
membrana apical e canais de potássio basolaterais. vólucro anorretal do canal anal é formado pelo esfíncter anal
A absorção de ácidos biliares não absorvidos no circuito interno, recoberto pelo esfíncter anal externo, músculo longi-
êntero-hepático após desconjugação por bactérias interfe- tudinal e pelo músculo puborretal posteriormente;
re na absorção de sódio e água. - As funções do intestino grosso são absorção de água e eletró-
litos, secreção de eletrólitos e muco e propulsão das fezes em
C - Motilidade direção ao reto.
92
CAPÍTULO
15
Doenças inflamatórias intestinais
José Américo Bacchi Hora / Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
93
GAST R O ENTEROLO GIA
B - Patologia
Ocorre inflamação transmural acometendo todas as ca-
madas da parede intestinal, envolvendo o mesentério ad-
jacente e linfonodos. O padrão descontínuo ou salteado é
característico, com áreas doentes entremeadas por regiões
preservadas.
Macroscopicamente, na inspeção externa das alças,
encontram-se alça e meso espessados, gordura mesenté-
rica com projeções digitiformes e aderências. As estenoses Figura 1 - Aspecto perineal de paciente com doença de Crohn pe-
rianal
também são comuns. Podem ser vistos abscessos e fístulas
entre as vísceras ou com a pele. Na inspeção da mucosa, A DC pode cursar com manifestações extraintestinais
são identificadas úlceras aftoides, úlceras lineares profun- oftalmológicas, como irite e episclerite. Também podem
das ou fissuras e aspecto em paralelepípedo (cobblestone), estar presentes acometimentos de pele (eritema nodoso
que possuem caráter progressivo. e pioderma gangrenoso), articulações (artrite de grandes
No estudo microscópico, pode ser visto o comprometi- articulações, manifestação extraintestinal mais comum da
mento transmural, porém o achado mais específico é o gra- DC), via biliar (colelitíase e colangite esclerosante primária),
nuloma não caseoso, que pode ser visto em 60% das peças renal (amiloidose secundária) e vascular (tromboses venosa
cirúrgicas e em apenas 20% das biópsias. Sua baixa sensibi- e arterial). Algumas das manifestações extraintestinais es-
lidade faz que raras vezes haja confirmação histológica do tão representadas na Figura 2.
diagnóstico de DC.
C - Diagnóstico
O quadro clínico depende da localização e da fase da
doença, mas se caracteriza por períodos de exacerbação al-
ternados com períodos de remissão. As manifestações clíni-
cas podem ser divididas em inflamatórias, fibroestenóticas
e perfurativas.
As manifestações inflamatórias sistêmicas são perda de
peso, astenia e febre baixa. Há dor abdominal, principal-
mente na fossa ilíaca direita e associada à doença ileoce-
cal. Podem ser encontradas má absorção e diarreia. Esta,
quando presente, geralmente não é sanguinolenta, está as-
sociada à doença ileal e pode decorrer de inflamação ou de
fístulas entéricas.
O quadro de lesões fibroestenóticas pode apresentar-se
no contexto de abdome agudo obstrutivo ou suboclusão in-
testinal. São comuns a distensão abdominal e os vômitos. A Figura 2 - Manifestações extraintestinais: (A) episclerite; (B) erite-
dor abdominal nesses pacientes é em cólicas e sem a defesa ma nodoso e (C) pioderma gangrenoso
94
DOENÇAS INFLAMATÓRIAS INTESTINAIS
GASTROENTEROLOGIA
de abdome, que é útil nos quadros perfurativos e fibroes-
tenóticos, podendo mostrar dilatação de alças de delgado
com níveis hidroaéreos ou pneumoperitônio. O estudo con-
trastado do trânsito intestinal detecta áreas de estenose,
fístulas, aspecto calcetado de mucosa e lesões salteadas,
sendo fundamental na avaliação do intestino delgado.
95
GAST R O ENTEROLO GIA
Figura 5 - Aspecto colonoscópico da DC: (A) úlceras aftoides; (B) distribuição segmentar; (C) acometimento ileal; (D) ulceração >1cm; (E)
aspecto calcetado (cobblestone) e (F) pseudopólipos
96
DOENÇAS INFLAMATÓRIAS INTESTINAIS
Imunossupressores
Azatioprina (deriva- Por, pelo menos, 4 meses – pode gerar
do da 6-mercapto- toxicidade hematológica – hemograma e
purina) provas de função hepática a cada 45 dias;
Ciclosporina Alternativa a azatioprina.
Infliximabe ou inibidor do TNF-alfa
GASTROENTEROLOGIA
- É utilizado na doença perianal grave;
- Custo elevado, e questiona-se a relação com doenças linfopro-
liferativas.
E - Tratamento cirúrgico
A cirurgia na DC é reservada ao tratamento das com-
plicações, pois não é curativa. O princípio é a realização da Figura 6 - Aspectos externo e interno de peça cirúrgica de enterec-
menor intervenção possível para alívio de sintomas e re- tomia segmentar por enterite de Crohn
solução das complicações. As incisões devem ser sempre
medianas, pois deve ser preservada a parede abdominal, Deve-se utilizar proctocolectomia total com ileostomia
já que as reoperações são comuns. Mais recentemente o definitiva na vigência de lesões perianais extensas. A proc-
advento da laparoscopia possibilitou abordagens cirúrgicas tocolectomia total com bolsa ileal e anastomose ileoanal é
repetidas com menor repercussão inflamatória na cavida- discutível, em virtude da probabilidade de perda da bolsa
de abdominal, com melhores resultados estéticos e menor ileal em cerca de 20% dos casos.
formação de aderências. As ressecções intestinais devem Nos abscessos, a drenagem simples muitas vezes é re-
ser mínimas, a fim de evitar sequelas como a síndrome do solutiva. Nas fístulas, devem-se evitar fistulotomias que
intestino curto. envolvam o esfíncter anal. Fissuras e úlceras, inicialmente,
São indicações de cirurgia na DC: são candidatas a tratamento conservador, e os plicomas só
- Intratabilidade clínica da doença não complicada ou devem ser ressecados em caso de muita dor.
das complicações (obstrução intestinal refratária ou Indica-se cirurgia de urgência em hemorragias maciças,
recorrente, fístulas, abscessos e hemorragia); megacólon tóxico (colectomia total com ileostomia termi-
- Complicações incontroláveis do tratamento medica- nal), perfuração com peritonite, abdome agudo obstrutivo
mentoso (fístulas, obstruções intestinais, doença pe- e na suspeita de apendicite.
rianal extensa, retardo de crescimento, manifestação Quanto ao prognóstico, 20% dos pacientes têm apenas
extraintestinal (pioderma gangrenoso); 1 ou 2 surtos da doença. Apesar de a mortalidade ser redu-
zida em decorrência da doença, metade dos doentes apre-
- Difícil controle dos efeitos colaterais medicamentosos; senta complicações decorrentes do tratamento cirúrgico.
- Displasia de alto grau confirmada/displasia associada à
lesão ou massa (DALM) ou câncer;
- Suspeita de estenose maligna. 4. Retocolite ulcerativa imunomediada
A técnica cirúrgica depende da extensão da doença ou ou inespecífica
da complicação. Em enterites exclusivas, preconizam-se as
ressecções econômicas ou enteroplastias (Figura 6). Nas A - Epidemiologia
colites exclusivas, devem ser realizadas ressecções de seg-
mentos ou colectomia total com anastomose ileorretal. A retocolite ulcerativa imunomediada ou inespecífica
(RCUI) consiste na inflamação crônica da mucosa colônica
de etiologia desconhecida, antigamente conhecida como
idiopática. No entanto, dados mais recentes indicam o en-
volvimento imunológico no surgimento da fisiopatologia,
embora não seja bem elucidado. As manifestações clíni-
cas geralmente ocorrem em surtos com intervalos impre-
visíveis. A prevalência tem-se mantido estável nos últimos
anos, com incidência de 2 a 6/100.000/ano nos EUA em 2
picos de idade, dos 15 aos 35 anos e dos 60 aos 70 anos. É
mais comum em judeus e mulheres.
B - Patologia
Ocorre processo inflamatório limitado à mucosa, ra-
ramente acometendo toda a parede colônica. O processo
97
GAST R O ENTEROLO GIA
C - Diagnóstico
O quadro clínico depende da extensão da doença. Loca-
lizações mais distais manifestam-se com sangramento retal,
mucorreia purulenta, puxos, diarreia e dor abdominal sem
grande alteração no exame físico. Na RCUI de cólon esquer-
Figura 7 - Megacólon tóxico: radiografia simples demonstrando
do e na pancolite, geralmente, ocorre diarreia com sangue,
dilatação de transverso
e a presença de muco e pus é mais pronunciada. Pode haver
febre, anorexia, perda de peso, taquicardia e hipotensão. Os exames laboratoriais podem revelar anemia, leuco-
A doença pode evoluir com megacólon tóxico, sendo citose, elevação das provas de atividade inflamatória (VHS,
esta uma forma fulminante da doença, estando também proteína C reativa) e presença de leucócitos nas fezes. Po-
presente na DC. Tal forma se manifesta com febre, disten- dem ocorrer hipoalbuminemia, distúrbios de eletrólitos e
são abdominal, taquicardia e sinais de peritonite. O proces- desequilíbrio ácido-básico.
so inflamatório muito intenso acaba adelgaçando a parede A radiografia simples de abdome é útil para o diagnós-
colônica, que se dilata (principalmente o cólon transverso) e tico de forma fulminante. No enema opaco, é possível ob-
pode perfurar. A detecção de dilatação do transverso maior servar perda de haustrações, aspecto granuloso da mucosa,
que 6cm na radiografia simples de abdome, na presença de aumento do espaço pré-sacral, cólon tubulizado (ou em
quadro clínico característico, estabelece o diagnóstico des- cano de chumbo), além da presença de estenoses (suspeita
sa forma da doença. de neoplasia).
A retossigmoidoscopia e a colonoscopia são fundamen-
tais, pela capacidade de detecção de mucosa friável com
erosões, ulcerações e pseudopólipos (Figura 8). Também
avaliam a extensão da doença e permitem o diagnóstico
histológico. Tais exames estão contraindicados na suspeita
de megacólon tóxico ou outras complicações das DII, devi-
do ao risco de perfuração.
Os principais diagnósticos diferenciais são DC, colite is-
quêmica, colite colagenosa, colite infecciosa e outras doen-
ças como diverticulite, colite eosinofílica e amiloidose.
O risco do aparecimento de adenocarcinoma em porta-
dores de RCUI está diretamente relacionado à extensão da
colite (pancolite) e ao seu tempo de colonoscopia a cada 1
ou 2 anos com biópsias seriadas. O câncer associado à RCUI
tem comportamento geralmente mais agressivo e, com fre-
quência, seu desenvolvimento ocorre a partir do epitélio
colônico com displasia grave. Assim, o achado colonoscó-
pico de displasia grave e/ou displasia associada a massas
tumorais é indicativo de tratamento cirúrgico.
98
DOENÇAS INFLAMATÓRIAS INTESTINAIS
GASTROENTEROLOGIA
macrocítica induzida pela droga. O 5-ASA é indicado aos in-
divíduos com intolerância à sulfassalazina com a vantagem
de evitar efeitos adversos, como cefaleia, tontura, reações
alérgicas e infertilidade masculina.
Entre os imunossupressores, a azatioprina leva de 3 a
4 meses para agir e é recomendada a pacientes corticode-
pendentes nos quais a colectomia é adiada por algum mo-
tivo. A dose é de 2 a 2,5mg/kg/dia VO. A ciclosporina deve
ser utilizada em casos graves, resistentes aos corticoides na
dose de 2 a 4mg/kg/dia IV. Apresentam efeitos colaterais
frequentes (50%), com destaque para nefro e hepatotoxici-
dade, hipertensão arterial e infecções. Logo, o nível sérico
de drogas deve ser monitorizado e utilizado em centros es-
pecializados, como conduta de exceção.
A utilização de drogas biológicas, como o infliximabe,
para o controle da RCUI ainda está em estudos, com o obje-
tivo de remissão de sintomas e postergar a necessidade de
resolução cirúrgica.
E - Tratamento cirúrgico
Cerca de 20 a 30% dos pacientes com RCUI necessitam
de tratamento cirúrgico. São indicações eletivas de cirurgia
instabilidade clínica, mais frequentemente casos de mani-
Figura 8 - Aspecto colonoscópico da RCUI: (A) distribuição univer- festações extracolônicas, retardo de crescimento e suspeita
sal; (B) envolvimento simétrico da mucosa; (C) friabilidade da mu- de câncer. O princípio básico, ao contrário da DC, é a ressec-
cosa; (D) granulação; (E) ulceração <1cm e (F) pseudopólipos ção do intestino grosso a partir do reto, que é o local onde
se inicia o processo, podendo-se optar por preservação da
válvula ileocecal.
D - Tratamento clínico Dentre as opções cirúrgicas, a proctocolectomia total
Devem ser empregadas as mesmas medidas de suporte com anastomose ileoanal e reservatório ileal (PTAIA) é in-
da DC, com reposição hidroeletrolítica, correção de anemia dicada nas pancolites com aparelho esfincteriano íntegro,
e suporte nutricional (dieta hiperproteica e hipercalórica). continência anal preservada e ausência de câncer no reto
Nutrição enteral ou parenteral pode ser necessária em ca- distal. A Proctocolectomia Total com Ileostomia definitiva
sos graves e no preparo pré-operatório. (PTI) é a opção nas pancolites com incontinência anal, difi-
Antibióticos devem ser utilizados nos casos graves e ful- culdade de locomoção (idade avançada) e suspeita ou cân-
minantes (aminoglicosídeo + metronidazol + ampicilina ou cer do reto distal, sem margem com o canal anal, confirma-
ciprofloxacino + metronidazol). Nas manifestações peria- do. Por fim, a Colectomia Total com anastomose ileorretal
nais, a indicação é semelhante à DC. (CT) fica reservada aos casos em que o paciente se recusa
Corticoides são indicados na fase aguda, e a dose de- a aceitar ileostomia e pode fazer seguimento ambulatorial
pende da gravidade. Recomendam-se, 40 a 60mg/dia de rigoroso.
prednisona, por VO, para remissão (retirada gradual), ou hi- A opção cirúrgica ideal não é bem determinada. A PTAIA
drocortisona IV, 100mg, 3x/dia, em casos muito graves (subs- tem a vantagem de retirar o reto e evitar a ileostomia de-
tituição por prednisona após 7 a 10 dias). Após a remissão, a finitiva, embora rotineiramente se realize ileostomia em
manutenção de prednisona VO, de 5 a 10mg/dia, não previ- alça de proteção para o reservatório ileal, a qual é fechada
ne futuras exacerbações. Pacientes que se mostram cortico- após 8 a 12 semanas. Como desvantagem, o paciente evo-
dependentes são candidatos a tratamento cirúrgico. lui com diarreia importante no pós-operatório, e existem
Na doença restrita ao reto e sigmoide, pode-se utilizar complicações relacionadas à anastomose ileoanal (fístulas,
enema de corticoides (50mL de água + 100mg de hidrocor- disfunção do reservatório, inflamação do reservatório ou
99
GAST R O ENTEROLO GIA
Megacólon tóxico e hemorragia maciça são indicações Lesões salteadas Não Sim
de cirurgia de urgência. A colectomia total com sepulta- Úlceras aftosas Não Sim
mento do coto retal e ileostomia terminal é um procedi- Aspecto pavimentoso Não Sim
mento seguro e permite ao paciente sair do surto agudo,
Pseudopólipos Sim Não
podendo ser reoperado eletivamente para a reconstrução
do trânsito intestinal. Atrofia mucosa Sim Não
Doença perianal Raro Comum
F - Prognóstico
Lesões contínuas Sim Não
Cerca de 10 a 15% têm curso crônico da doença com Achados microscópicos RCUI DC
atividade contínua, 80% têm crises intercaladas, e 5%, sur-
Lesões transmurais Não Sim
tos agudos fulminantes. Observa-se que 70% dos pacientes
com doença distal não evoluem para formas mais extensas Sim (20% da biópsia
Granulosa Não
endoscópica)
da doença.
Abscesso de cripta Sim Raro
- Manifestações extraintestinais das DIIs;
Metaplasia pilórica ileal Não Sim
- Podem estar presentes em 10 a 20% dos casos (Ta- Metaplasia de células de
bela 2). Sim Raro
Paneth
Tabela 2 - Manifestações extraintestinais das DIIs
Apresentação clínica RCUI DC
Reumatológicas
Fístulas - +
- Artrite/artralgias: grandes articulações, geralmente monoar-
Abscessos - +
ticulares;
Estenoses - +
- Espondilite anquilosante: relacionada ao HLA-B27.
Retite + -
Dermatológicas
Ileíte - +
- Eritema nodoso: mais frequente;
Padrão Contínuo Salteado
- Aftas orais: mais na doença de Crohn;
Camadas acometidas Mucosa Transmural
- Pioderma gangrenoso: indicação de tratamento cirúrgico para
a doença intestinal.
100
CAPÍTULO
Afecções benignas dos cólons
16 José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
Pontos essenciais
- Doença diverticular dos cólons;
- Diverticulite aguda;
- Megacólon chagásico.
A - Conceitos
A presença de formações diverticulares no cólon, sem
relação com sintomas, caracteriza a diverticulose. Na pre-
sença de sinais e sintomas decorrentes ou associados a es-
ses divertículos, há a Doença Diverticular dos Cólons (DDC).
Diverticulite é o processo inflamatório/infeccioso de um
divertículo.
Figura 1 - Secção transversa de alça colônica ilustrando os sítios de
formação de divertículos
B - Epidemiologia
O aparecimento dos divertículos colônicos parece ser o Alterações na composição de fibras de colágeno e elas-
resultado de um processo degenerativo dos cólons. Um ter- tina que ocorrem com o passar dos anos contribuem para
ço da população apresenta divertículos a partir dos 50 anos, a formação dos divertículos. Histologicamente encontra-
metade aos 60 anos e 2/3, a partir dos 80 anos. A incidência -se espessamento muscular, e não hipertrofia celular, na
camada muscular. Como não são constituídos de todas as
de doença diverticular independe do sexo.
camadas da parede intestinal, os divertículos colônicos são
C - Fisiopatologia divertículos “falsos”, contendo apenas mucosa, submucosa
e serosa (Figura 2).
Os divertículos formam-se nas áreas de penetração dos Até 95% das diverticuloses envolvem o cólon sigmoide,
vasa recta na parede colônica, que são as regiões de maior por ser um local com alto nível de atividade motora colô-
fragilidade (Figura 1). Contrações musculares segmentares nica, sujeito a elevadas pressões intraluminais. Também,
e não propulsivas em áreas diferentes podem formar zonas pela lei de Laplace, o sigmoide é o segmento colônico mais
de alta pressão intraluminal e, consequentemente, pseudo- propenso à formação de divertículos devido ao seu menor
divertículos de pulsão nas áreas de maior fraqueza da pa- calibre. É importante ressaltar que não existem divertículos
rede colônica, associada à hipertrofia da musculatura local. no reto.
101
GAST R O ENTEROLO GIA
A - Etiologia
A diverticulite é causada pela perfuração de um divertí-
culo, resultado da ação erosiva de um fecalito ou do aumen-
to exagerado da pressão intraluminal, levando ao quadro
de peritonite. Pode ocorrer em 15 a 20% das diverticuloses.
B - Classificação de Hinchey
A classificação proposta por Hinchey em 1977 (Figura 4)
Figura 3 - (A) Colonoscopia mostrando óstios ventriculares e (B) considera a localização dos abscessos e a extensão do pro-
enema opaco, caracterizando a presença de divertículos em todo cesso infeccioso. Por essa classificação, também é possível
o cólon determinar a conduta perante cada caso.
102
AFECÇÕES BENIGNAS DOS CÓLONS
GASTROENTEROLOGIA
sendo o esquema ciprofloxacino ou ceftriaxona e metro-
nidazol, mais comumente utilizado. A dieta durante a fase
aguda deve ser pobre em fibras para repouso intestinal
durante o período crítico. Após melhora do quadro agudo,
deve ser instituída uma dieta rica em fibras e laxativos for-
madores de bolo fecal. Cerca de 10 a 20% dos pacientes tra-
tados conservadoramente com sucesso na 1ª manifestação
Figura 4 - Classificação de Hinchey: (A) abscesso pericólico; (B) apresentam outra crise.
peritonite localizada; (C) peritonite purulenta generalizada e (D) Nos casos tipo II, a internação é obrigatória. A falha no
peritonite fecal
tratamento clínico de um abscesso pequeno ou a presença
de uma grande coleção pélvica demandam drenagem, que
C - Diagnóstico pode ser feita preferencialmente por meio de radiologia in-
tervencionista, guiada por USG ou TC. Quando tais métodos
O quadro clínico da diverticulite aguda não complicada já
não estão disponíveis, é necessária abordagem cirúrgica.
foi descrito como apendicite do lado esquerdo. O paciente
Deve-se ressaltar que casos tratados clinicamente ou só
apresenta dor na FIE e febre persistentes. Ao exame físico, há
defesa e sinais de peritonite como descompressão brusca no com drenagem do abscesso devem ser operados de forma
quadrante inferior esquerdo. Nos casos em que há abscesso eletiva. Outros critérios de indicação cirúrgica são:
de maiores dimensões, pode ser palpada uma massa ou plas- - Duas ou mais crises bem documentadas em pacientes
trão local (processo inflamatório bloqueado por sobreposi- com mais de 50 anos;
ção de alças intestinais, mesentério e epíploon). - Um quadro agudo em paciente com menos de 50 anos;
Os sintomas urinários são comuns em razão da proximi- - Presença de complicações (fístulas, estenose segmen-
dade da bexiga com o sigmoide. Podem ocorrer fístulas, e tar, perfuração e hemorragia);
a mais frequente é a colovesical. Nesses casos observam-se - Pacientes imunodeprimidos;
pneumatúria e infecção urinária, que não respondem ao
tratamento clínico. Queda do estado geral, náuseas, vômi-
- Impossibilidade de excluir câncer.
tos e distensão abdominal denotam casos mais graves com Casos Hinchey III e IV, com a presença de peritonite pu-
peritonite generalizada. rulenta ou fecal, demandam tratamento cirúrgico de urgên-
Entre os exames complementares, o hemograma pode cia. A conduta depende do segmento colônico acometido e
mostrar leucocitose e desvio à esquerda. Leucocitúria e do grau de peritonite. Como o sigmoide é a localização mais
bacteriúria podem ocorrer no exame de urina I. comum, deve-se realizar a retossigmoidectomia. Casos com
As radiografias simples de abdome podem ser normais pouca contaminação da cavidade ou pacientes com boa
na diverticulite leve. Em casos com evolução mais arrasta- reserva fisiológica podem ser submetidos à anastomose
da, podem-se observar imagens de níveis hidroaéreos e, até primária. A videolaparoscopia pode ser utilizada em casos
mesmo, o contorno de um abscesso pélvico. Nas peritoni- Hinchey III.
tes generalizadas, pode-se observar pneumoperitônio, em Na presença de grande contaminação, ou em doentes
caso de perfuração. A colonoscopia e o enema opaco são graves, preconiza-se a cirurgia de Hartmann, que consiste
contraindicados na fase aguda, pelo risco de desbloqueio na retossigmoidectomia com sepultamento do coto retal no
de uma possível perfuração e contaminação da cavidade. nível do promontório e colostomia terminal do coto proxi-
O exame considerado padrão-ouro para avaliar a doen-
mal. Aos casos Hinchey IV, contraindica-se a videolaparos-
ça é a tomografia computadorizada de abdome e pelve, que
copia.
confirma a presença do processo infeccioso e afasta outras
hipóteses diagnósticas. O ultrassom é uma alternativa ape- Tabela 1 - Tratamento da diverticulite aguda com base na classifi-
nas quando a tomografia não é disponível. cação de Hinchey
Internação hospitalar para jejum, hidratação, an-
D - Tratamento tiespasmódicos, antibióticos (cobertura de Gram
Hinchey I
O tratamento deve ser orientado conforme a apresen- negativos e anaeróbicos) e observação por 48 a 72
horas.
tação da doença pela classificação de Hinchey. Nos casos
103
1 03
GAST R O ENTEROLO GIA
A falha no tratamento clínico de um abscesso O enema opaco é o exame que melhor caracteriza a doença
pequeno ou a presença de uma grande coleção (Figura 5). A colonoscopia não é necessária rotineiramente,
Hinchey II pélvica demandam drenagem, que pode ser feita somente na necessidade de algum diagnóstico diferencial
preferencialmente pelo meio de radiologia inter-
específico, ou para a distorção de um volvo de sigmoide
vencionista ou com abordagem cirúrgica.
sem sinais de sofrimento.
Ressecção cirúrgica e, dependendo do caso, anas-
Hinchey III tomose primária. Pode ser realizada ressecção
videolaparoscópica.
Hinchey IV Cirurgia de Hartmann por laparotomia.
3. Megacólon chagásico
A - Introdução
A doença de Chagas está presente na América do Sul,
principalmente no Brasil, na Argentina e no Chile. Em nosso
meio, o megacólon chagásico é endêmico em vários esta-
dos, como Goiás, São Paulo, Minas Gerais e Bahia.
O agente etiológico é o Trypanosoma cruzi, e o vetor,
o barbeiro. O protozoário tem tropismo por células mus-
culares lisas das vísceras ocas e pelo músculo cardíaco. As
ações do protozoário associam-se à resposta inflamatória
do hospedeiro que determinam o quadro clínico da doença.
Não há relação entre o megacólon e o desenvolvimento de
câncer colorretal.
Durante décadas, acreditou-se que a doença de Chagas
levava, exclusivamente, à degeneração dos plexos de Auer-
bach e Meissner, ocasionando dismotilidade intestinal, alte-
ração da função do esfíncter inferior do ânus e consequente
retenção de fezes e dilatação colônica (teoria plexular). Atu-
almente, sabe-se que a doença acomete o sistema nervoso Figura 5 - Enema opaco mostrando megacólon com volvo
autônomo e causa alterações estruturais na musculatura,
além das lesões plexulares, de forma difusa, porém mais C - Tratamento
acentuadas nas porções distais do cólon e no reto (teoria
difusa). Nos pacientes oligossintomáticos, pode-se tentar o tra-
tamento clínico com dieta e laxativos. As lavagens retais
B - Quadro clínico programadas podem ser indicadas, principalmente aos pa-
Os pacientes apresentam constipação intestinal grave cientes sem condições clínicas ou nutricionais ao tratamen-
de longa data. Podem apresentar distensão abdominal e, to cirúrgico. Devido ao caráter difuso da doença, sabe-se
eventualmente, fecaloma palpável na topografia do sigmoi- que ela não é passível de cura definitiva. Dessa forma, o tra-
de (sinal de Gersuny). O emagrecimento é comum. No to- tamento cirúrgico só deve ser indicado na obstipação grave
que retal, pode-se notar a presença de um fecaloma. intratável e nas complicações do megacólon, como o volvo,
Deve-se sempre lembrar a associação frequente en- o fecaloma e a perfuração.
tre megaesôfago e cardiopatia chagásica, e dos sintomas As opções de operação para o tratamento eletivo do
decorrentes do comprometimento de outros órgãos pela megacólon chagásico incluem a sigmoidectomia, que apre-
doença de Chagas. A associação entre megaesôfago e me- senta elevados índices de recidiva dos sintomas (cerca de
gacólon deve levar à priorização do tratamento do megae- 30% recidivam), o abaixamento de cólon, com elevada mor-
sôfago, que é a via para nutrição do paciente. bidade associada, e, mais recentemente, a retossigmoidec-
O diagnóstico baseia-se no quadro clínico e na epide- tomia abdominal com anastomose terminolateral do cólon
miologia. A sorologia para doença de Chagas, teste de Ma- com a parede posterior do reto ou operação de Habr-Gama.
chado-Guerreiro, é positiva em 80 a 90% dos casos. Na ra- Este último procedimento vem mostrando bons resultados
diografia simples de abdome, pode ser visto um fecaloma. em longo prazo e baixa morbidade associada.
104
AFECÇÕES BENIGNAS DOS CÓLONS
D - Complicações
a) Volvo
Volvo é a complicação mais grave do megacólon cha-
gásico, principalmente em caso de sofrimento vascular e
perfuração, e representa a torção do sigmoide sobre o seu
GASTROENTEROLOGIA
próprio eixo. O quadro clínico compreende a parada de eli-
minação de fezes e gases, associada à distensão abdominal
e hipertimpanismo à percussão.
A evolução do volvo de sigmoide depende do tempo
de instalação do quadro. Nas primeiras horas, o paciente
evolui sem grande comprometimento do estado geral, ape-
sar da distensão abdominal. À medida que o tempo passa,
pode ocorrer sofrimento vascular da alça torcida com con-
sequente perfuração colônica, caracterizando um quadro
de peritonite difusa.
O diagnóstico baseia-se na história clínica sugestiva e na
radiografia simples de abdome que mostra distensão colô-
nica, com alça em “U” invertido (sinal de Frimann-Dahl ou
do “grão de café” – Figura 6). Nos casos de perfuração, pode
ser visualizado o pneumoperitônio.
105
1 05
CAPÍTULO
17
Doenças orificiais
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
B - Classificação
A - Epidemiologia e fisiopatologia
As hemorroidas são classificadas, de acordo com a sua
As hemorroidas são coxins vasculares presentes nas ex-
localização anatômica, em hemorroidas internas, externas
tremidades interna e externa no canal anal, geralmente em
ou mistas (Figura 1).
número de 3 (2 à direita e 1 à esquerda), compostos por As hemorroidas externas localizam-se distalmente à li-
vênulas e arteríolas. Sempre que há sintomas decorrentes nha pectínea, em posição subcutânea. Os vasos que as ir-
de alterações nas hemorroidas, como dilatação, prolapso e rigam provêm das hemorroidárias inferiores. Como são re-
trombose, tem-se a chamada doença hemorroidária. cobertas por epitélio estratificado originário da ectoderme,
As hemorroidas têm a função de proteger o canal anal têm boa sensibilidade para dor.
no momento da defecação e exercem papel importante As hemorroidas internas são aquelas localizadas acima
na continência fecal (15%). São ancoradas na musculatura da linha pectínea e recebem ramos tributários dos vasos
retal por um tecido conectivo de sustentação denominado hemorroidários superiores, médios e inferiores. Além disso,
músculo de Treitz, e drenam diretamente para veia cava in- são recobertas por mucosa derivada do tecido endodérmi-
ferior, através da veia pudenda. co e, por isso, não têm sensibilidade para dor. Nesses casos,
A doença hemorroidária acomete até 50% dos indiví- as hemorroidas dividem-se em 4 grupos:
duos acima de 50 anos. Não existe diferença entre sexo, - Grau I: sangramento anal sem prolapso;
excluindo-se as variáveis de gestação e parto. Os principais - Grau II: prolapso hemorroidário com retorno espon-
fatores associados a essa doença são aqueles que levam à tâneo;
degeneração dos tecidos de sustentação dos coxins como - Grau III: prolapso hemorroidário que requer redução
predisposição hereditária, hábitos nutricionais e ocupacio- manual;
nais, senilidade, gravidez e constipação. - Grau IV: prolapso hemorroidário constante irredutível.
106
DOENÇAS ORIFICIAIS
D - Tratamento
Para as hemorroidas internas o tratamento pode ser
dividido em medidas comportamentais e dietéticas, asso-
ciadas a procedimentos ambulatoriais nas hemorroidas
graus I e II, e tratamento preferencialmente cirúrgico para
GASTROENTEROLOGIA
as demais. A Tabela 1 demonstra um esquema prático para
o tratamento das hemorroidas internas.
a) Tratamento conservador
O tratamento conservador também é indicado para
gestantes de 3º trimestre, cirróticos Child C, cardiopatas e
Figura 1 - (A) Hemorroida interna, observada à anuscopia; (B)
pneumopatas graves, coagulopatas e portadores de doen-
trombose hemorroidária externa e (C) hemorroida interna de 4º
ças inflamatórias intestinais. Baseia-se na correção da cons-
grau totalmente exteriorizada ao canal anal
tipação intestinal, na prevenção de fatores precipitantes
das crises, em medidas higiênicas e em medicações sinto-
C - Diagnóstico máticas. A dieta deve ser rica em fibras (de 20 a 25g/dia) e
líquidos (de 1,5 a 2L/dia) associada à diminuição do álcool e
O diagnóstico é eminentemente clínico, com base em
de outros irritativos da mucosa. Deve-se substituir a higiene
história e exame proctológico. O principal sintoma nas he- mecânica por duchas ou banhos de assento.
morroidas internas é o sangramento, geralmente indolor. Caso as alterações dietéticas associadas à prática de
Há hematoquezia terminal, com sangue vivo rutilante que exercícios físicos não surtam efeito na correção da consti-
se exterioriza logo após a evacuação e tinge de vermelho o pação, devem ser indicados os laxativos, preferencialmente
papel higiênico ou o vaso sanitário. Classicamente, não cau- os formadores de massa (psyllium, metilcelulose), seguidos
sa anemia aguda, apesar de os pacientes relatarem grandes pelos açúcares (lactulose), até a correção da constipação.
volumes de hemorragia. Esse grande volume decorre da Pomadas e supositórios paliativos podem ser usados, ten-
mistura do sangue até a água do vaso. do como principal ação a anestesia local e pouca ação anti-
-inflamatória.
Outro sintoma comum é o prolapso, percebido como a
Hemorroidas graus I e II que não responderem às me-
saída de mucosa pelo ânus durante as evacuações. Embora
didas comportamentais devem ser tratadas com terapia
a trombose das hemorroidas internas seja comum, o relato ambulatorial, como escleroterapia, ligadura elástica ou fo-
de dor é incomum, sendo o prolapso a queixa mais frequen- tocoagulação. Como complicações, essas terapias podem
te. Nos quadros de trombose, os pacientes referem dor anal apresentar dor, sangramento e retenção urinária.
após um evento precipitante, acompanhada de abaulamen- Nos casos de trombose hemorroidária, devem-se as-
to fixo no ânus (Figura 1B). Há endurecimento local alta- sociar banhos de assento com água morna, analgesia por
mente doloroso, com melhora em 2 dias e desaparecimen- VO, anti-inflamatórios sistêmicos e pomadas anestésicas.
to da dor em torno de 1 semana. Resolvido o quadro agudo, Depois de regredidos todo o edema e a dor, o paciente
costuma permanecer uma prega de pele na borda anal, no deve ser reavaliado, e então é escolhida a melhor terapia
definitiva. A trombectomia no quadro agudo não deve ser
local da trombose prévia da hemorroida externa, denomi-
realizada.
nada “plicoma anal”.
Durante o exame, à inspeção, podem-se identificar he- b) Tratamento cirúrgico
morroidas externas e internas prolapsadas. Para a identifi- O tratamento cirúrgico mais utilizado é a hemorroidec-
cação de hemorroidas internas graus II e III, deve-se fazer tomia com ressecção do tecido hemorroidário doente. As
a inspeção dinâmica. Complicações como as tromboses já técnicas de ressecção mais utilizadas são as de Milligan-
-Morgan (aberta), Ferguson (fechada) e Obando (Figura 2A
podem ser diagnosticadas nessa fase, assim como os plico-
e B).
mas anais.
Atualmente, há outra opção às técnicas de ressecção,
O toque retal não se presta ao diagnóstico de hemorroi-
que é a anopexia mecânica ou PPH, descrita por Longo em
das sem complicações como as tromboses, mas é muito útil 1998, em que não há ressecção dos mamilos hemorroidá-
no diagnóstico diferencial, como nos casos de tumor, e para rios, mas um reposicionamento dos coxins hemorroidários
a avaliação do tônus anal. A anuscopia possibilita a identifi- com o uso de grampeadores especiais (Figura 2C). Esta téc-
cação de hemorroidas internas sem prolapso. nica é mais bem indicada para as hemorroidas grau III.
107
GAST R O ENTEROLO GIA
Figura 2 - Hemorroidectomias: (A) Milligan-Morgan: área cruenta permanece aberta; (B) Ferguson com fechamento da área cruenta e (C)
grampeador para anopexia mecânica
As principais complicações decorrentes do tratamento e pode não estar relacionada às evacuações. Raras vezes,
cirúrgico são dor, sangramento, retenção urinária, infecção, pode haver queixas relacionadas ao plicoma sentinela e à
estenose anal, incontinência fecal, fissura anal, impactação papila hipertrófica. O diagnóstico é confirmado à inspeção,
fecal, formação de plicomas residuais, dentre outras. e não se deve insistir no toque retal, devido à dor.
Tabela 1 - Esquema didático de manejo da doença hemorroidária Sua localização mais comum é a linha média posterior,
Grau Opções
já que essa é a área de maior fraqueza da musculatura es-
fincteriana e menos vascularizada. Além disso, é mais sus-
- Dieta, hábitos e costumes;
I cetível a lesões traumáticas e tem maior dificuldade de cica-
- Escleroterapia.
trização. A 2ª área mais acometida é a linha média anterior.
- Ligadura elástica; Fissuras em posição lateral ou mesmo anterior sugerem
II - Fotocoagulação por radiação infravermelha; etiologias específicas como as citadas anteriormente.
- Crioterapia e bisturi bipolar. As fissuras podem ser divididas em agudas e crônicas.
- Ressecção de tecido hemorroidário (hemorroidec- As primeiras geralmente são superficiais e cicatrizam es-
III, IV e re- tomia); pontaneamente, e as últimas dificilmente curam de manei-
cidivantes - Sem ressecção de tecido hemorroidário (grampe- ra espontânea e podem ser reconhecidas clinicamente pela
ador circular). tríade úlcera anal, papila hipertrófica e plicoma sentinela
(Figura 3). A formação das 2 últimas decorre da tentativa do
2. Fissura anal organismo de reparar o defeito representado pela fissura.
A - Epidemiologia e fisiopatologia
A fissura anal consiste em uma lesão ulcerada mucocu-
tânea na anoderme que pode estender-se até a linha pectí-
nea, geralmente localizada na linha média posterior (90%).
Pode ser aguda ou crônica, ocorre em qualquer idade
(maior causa de sangramento retal em crianças) e acomete
os sexos masculino e feminino em igual proporção.
Fisiopatologicamente, fezes endurecidas levam ao trau-
ma anal, e este leva à fissura. A hipertonia anal leva à cro-
nificação da fissura, pela diminuição da irrigação sanguínea,
principalmente na linha média posterior. A dor anal pode
causar hipertonia, iniciando um círculo vicioso. A fissura
anal também pode ser consequente à diarreia ou estar as-
sociada à doença inflamatória intestinal (principalmente,
doença de Crohn), tuberculose, sífilis, herpes e AIDS.
B - Diagnóstico
O diagnóstico é clínico. Dor às evacuações é o principal
sintoma, acompanhado de sangramento vivo. O quadro Figura 3 - Fissura crônica: (A) esquema representativo; (B) lesão
doloroso pode persistir por horas após a evacuação. Deve ulcerada posterior com plicoma sentinela e (C) papila hipertrófica
ser diferenciado da proctalgia fugaz, que é mais profunda e úlcera na linha média posterior
108
DOENÇAS ORIFICIAIS
C - Tratamento
GASTROENTEROLOGIA
O tratamento depende do tipo da fissura. Nos casos
agudos, utilizam-se analgésicos, cuidados locais, banho de
assento, dieta laxativa, ocorrendo cicatrização em até 80%
dos casos.
Nos casos de fissura crônica, o tratamento inicia-se com
dieta laxativa, banhos de assento com água morna (melhora
do fluxo sanguíneo local e relaxa EIA) e uso de cremes mior-
relaxantes, como o diltiazem a 2%, que diminui contração
muscular, sem efeito colateral, ou o dinitrato de isossorbida
a 0,2%, com o mesmo efeito, mas que causa cefaleia e tem Figura 4 - (A) Esfincterotomia lateral aberta) e (B) esfincterotomia
uso restrito em cardiopatas. A eficácia desse tratamento é lateral fechada
de mais de 60%.
Antes do tratamento cirúrgico, pode-se realizar a aplica- 3. Abscesso anorretal/fístula perianal
ção de toxina botulínica, que inibe a liberação de acetilcoli-
na levando à paresia da musculatura do EIA por vários me- A - Fisiopatologia e classificação
ses. Há cerca de 60 a 90% de cicatrização. Por ser um trata-
Os abscessos perianais são processos infecciosos ge-
mento novo, ainda não é aceito universalmente e aguarda
ralmente associados à doença das glândulas que secretam
maior comprovação clínica de sua eficácia e conhecimento junto à linha pectínea, nas criptas de Morgani e represen-
das possíveis complicações. tam a fase infecciosa aguda. Cerca de 70% dos casos croni-
O tratamento cirúrgico é indicado para fissura anal crô- ficam e evoluem para as fístulas (Figura 5).
nica ou após falha do tratamento clínico. A cirurgia com
melhores resultados é a esfincterotomia interna parcial
lateral (aberta ou fechada – Figura 4), com sucesso em 90
a 95%, entretanto causa incontinência em até 10% e reci-
diva de 5 a 10%. A dilatação anal leva a um alto índice de
incontinência e é proscrita nos dias de hoje. A esfinctero-
tomia posterior no leito da fissura pode levar à deformida-
de anal do tipo buraco de fechadura e também não deve
ser realizada.
109
GAST R O ENTEROLO GIA
C - Tratamento
Os abscessos devem ser drenados precocemente. Anti-
bióticos não são essenciais, mas sim recomendados princi-
palmente em diabéticos, valvulopatas e imunossuprimidos.
A drenagem deve ser a mais próxima possível da borda
anal, pois, em caso de evolução para fístula, o trajeto fis-
Figura 6 - Classificação de Parks: (A) fístula simples; (B) interes- tuloso será menor. Quando se identifica orifício interno no
fincteriana; (C) transesfincteriana; (D) supraelevadora e (E) extra- canal anal durante a drenagem do abscesso principal, pode-
esfincteriana
-se optar por fistulotomia concomitante.
As fistulotomias dependem do tipo de fístula. Nas inte-
B - Diagnóstico resfincterianas, pode-se realizar fistulotomia em um único
Os abscessos apresentam-se clinicamente com dor e tempo (Figura 8A). Nas transesfincterianas, por vezes será
calor local contínuo, com eritema e flutuação dolorosa pe- necessária a fistulotomia em 2 tempos com uso de seton
rianal ao exame proctológico. Nas fístulas, ocorre secreção por 4 a 8 semanas (Figura 8B, C e D). Fístulas extraesfinc-
fétida intermitente e é possível identificar o orifício externo terianas e com trajeto complexo podem ser tratadas com
à borda anal drenando material fecal ou pus. Fístulas múl- seton, avanço de retalho mucoso (Figura 9), ampliações do
tiplas e complexas devem alertar para doença inflamatória orifício de drenagem externo ou ainda com cola biológica.
intestinal.
Uma regra importante para prever o trajeto da fístula é
a regra de Goodsall-Salmon, que é descrita a seguir: ima-
ginando uma linha atravessando o ânus transversalmente,
todos os orifícios externos na região posterior terminam na
cripta mediana posterior, tendo, em geral, um trajeto curvo,
enquanto os orifícios externos localizados na região ante-
rior à linha terminarão na cripta correspondente, através
de um trajeto retilíneo. Em certas circunstâncias, como nas
fístulas “em ferradura”, essa regra pode estar alterada, prin- Figura 8 - (A) Fistulotomia após identificação de trajeto de fístula
cipalmente quando o orifício externo está a mais de 3cm do perianal; (B) e (C) forma correta de colocação do seton e (D) forma
orifício anal (Figura 7). incorreta – a pele deve ser incisada
110
DOENÇAS ORIFICIAIS
D - Fístula retovaginal
Entre os fatores predisponentes para fístulas retovagi-
nais, o trauma obstétrico é o principal fator de risco, se-
guido de doença inflamatória intestinal, lesões actínicas,
tumores e diverticulite. O diagnóstico é clínico (Figura 10)
e pode ser confirmado pelo enema opaco. O tratamento
GASTROENTEROLOGIA
é essencialmente cirúrgico, mas dependente da causa. A
etiologia e a localização da fístula determinam o tratamen-
to adequado. Nos casos de fístulas altas, o acesso deve ser
abdominal; nas baixas, pode ser transvaginal, transretal ou
transperineal. Na doença de Crohn, pode haver resolução
após o tratamento da doença de base; na lesão actínica, há
necessidade de reparo local com tecidos não afetados pela
Figura 9 - Avanço de retalho mucoso para tratamento de fístula radiação; e, no trauma obstétrico, pode haver resolução es-
perianal pontânea em 3 meses.
Figura 10 - (A) Fístula retovaginal e (B) cateterização intraoperatória de fístula (paciente em decúbito ventral)
4. Resumo
Quadro-resumo
- Hemorroidas podem ser externas ou internas. O tratamento requer medidas higienodietéticas e, por vezes, cirurgia. O principal sin-
toma é o sangramento;
- Fissuras múltiplas ou em locais pouco comuns podem estar relacionadas a doenças inflamatórias intestinais;
- O principal sintoma é a dor anal relacionada às evacuações;
- Algumas fístulas podem apresentar trajetos complexos, necessitando mais de 1 cirurgia para a sua correção;
- O principal sintoma é a saída de secreção purulenta ou fecal;
- O abscesso é a fase aguda e a fístula a crônica.
111
CAPÍTULO
18
Doença polipoide
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
112
DOENÇA POLIPOIDE
GASTROENTEROLOGIA
digestivo, tumores do SNC, macrocefalia e discreto retardo
confirmação de tratar-se de pólipos hiperplásicos, a con-
mental, apresenta também um risco aumentado para cân-
duta é expectante, sendo indicada a retirada somente dos
cer de mama e tireoide. O diagnóstico geralmente é feito
pólipos sintomáticos.
na 3ª década e as alterações mucocutâneas características,
como triquilemomas faciais múltiplos, papilomatose da
3. Hamartoma mucosa oral e ceratose palmo-plantar, definem a patologia.
Hamartoma é um tipo de pólipo considerado benigno, O tratamento dessa síndrome visa à melhoria das lesões
de crescimento não neoplásico. Constituído por uma mis- cutâneas e à investigação criteriosa por neoplasias asso-
tura anômala de tecido normal, pode aparecer isoladamen- ciadas. Os triquilemomas faciais e papilomas orais podem
te ou no contexto de alguma síndrome genética. Citamos ser excisados com bisturi, eletrocirurgia, dermoabrasão ou
algumas doenças polipoides hamartomatosas: polipose ju- nitrogênio líquido, que traz mais benefícios ao paciente, po-
venil, síndrome de Cowden, síndrome de Peutz-Jeghers e rém todas as lesões removidas ocorrem rapidamente.
síndrome de Cronkhite-Canada. Apesar do hamartoma em
si não sofrer processo de malignização reconhecidamente, C - Síndrome de Peutz-Jeghers
pacientes com essas síndromes podem desenvolver neopla- Esta é uma síndrome constituída por hamartomas no
sias devido à associação a outros tipos de pólipos ou devido TGI, notadamente nos intestinos delgado e grosso, e man-
a outros mecanismos ainda desconhecidos. chas melanocíticas em lábios, boca e dedos (Figura 1A).
Tem herança autossômica dominante, e o risco de desen-
A - Polipose juvenil volvimento de câncer é de 10 a 18 vezes maior do que na
A polipose juvenil é uma situação clínica rara em que população geral.
se desenvolvem múltiplos pólipos hamartomatosos (10 ou O local mais frequentemente acometido pelos pólipos
mais pólipos) geralmente pediculados com cerca de 1 a é o intestino delgado, principalmente o jejuno. O principal
3cm, em todo o trato gastrintestinal (TGI), principalmente sintoma é dor abdominal, originada de obstrução intestinal
no intestino grosso. Existe história familiar em 20 a 50% dos por intussuscepção causada pelos pólipos (Figura 1B, C e
casos, com herança autossômica dominante. O diagnóstico D). Outros sintomas possíveis são sangramento, prolapso
é geralmente feito em crianças, costuma manifestar-se en- de pólipos pelo reto, anemia e hematêmese.
tre 4 e 14 anos, e somente 15% dos casos são diagnostica-
dos na fase adulta.
Ao contrário do pólipo juvenil isolado, tal síndrome se
caracteriza por curso clínico bem diferente. Clinicamente,
apresenta-se com hematoquezia, anemia, hipoproteinemia
e hipocalemia, entre os 10 e 20 anos. Em 11 a 20% dos ca-
sos, pode cursar com outras manifestações morfológicas
extracolônicas, como telangiectasias, cardiopatias congê-
nitas, macrocefalia, alopecia, fenda palatina, fenda labial,
útero e vagina bífidos. As complicações mais frequentes são
intussuscepção e obstrução.
Nos casos de polipose juvenil, é fundamental o segui-
mento com colonoscopias periódicas, entre 3 e 5 anos, a
partir dos 25 anos, tendo em vista o risco de transformação
maligna dos pólipos colorretais. A cirurgia profilática pode
ser indicada quando há mais de 20 pólipos no intestino
grosso, displasia severa em algum deles, sangramento in-
tratável ou perda importante de proteínas por enteropatia.
Geralmente, a operação é indicada a partir da 2ª década de
vida, e recomenda-se a colectomia total. Caso o reto esteja
muito envolvido, recomenda-se a proctocolectomia total
com bolsa ileal e anastomose ileoanal.
113
113
GAST ROENTEROLO GIA
4. Adenoma
Os adenomas são as neoplasias mais comumente obser-
vadas no cólon e no reto. Por serem lesões pré-malignas,
têm imensa importância clínica. Em geral, são esporádicos,
mas podem aparecer na forma de síndromes hereditárias,
como descrito a seguir.
114
DOENÇA POLIPOIDE
A presença de adenoma indica a sua ressecção, na gran- Ocorrem também manifestações extracolônicas como
de maioria dos casos, por polipectomia endoscópica, cujo tumores desmoides abdominais (massas tumorais fibro-
resultado pode ser a cura total, parcial ou a ausência de sas), neoplasias de intestino delgado e de TGI alto, osteo-
cura. Nos casos de cura parcial ou ausente, pode-se insistir mas e hipertrofia de epitélio pigmentado retiniano que é
na ressecção endoscópica, ou indicar o tratamento cirúrgi- um achado clássico. Os tumores desmoides constituem a
co, a depender das condições do serviço de saúde e do risco principal causa de morte nesses pacientes após o câncer
cirúrgico do paciente. colorretal.
GASTROENTEROLOGIA
Em 2 a 4% das polipectomias colonoscópicas, há iden-
tificação de adenocarcinoma na peça cirúrgica. Se o anato-
mopatológico mostrar adenocarcinoma in situ, a ressecção
será considerada curativa, e o acompanhamento endoscó-
pico deverá ser feito como nos demais casos de adenoma.
Apesar de haver critérios para o tratamento endoscópico,
apenas em algumas lesões que invadam a muscular da
mucosa, como: margens livres bem definidas, tipo histoló-
gico bem diferenciado, ausência de invasão angioneural e
ausência de invasão da base do pólipo, nos pacientes com
boa condição clínica, todos os pólipos colônicos com ade-
nocarcinomas devem ser tratados como câncer, por meio
da ressecção cirúrgica com princípios oncológicos.
Os grandes pólipos vilosos, maiores que 5cm, também
são tratados como câncer, devido ao conhecimento de
comprometimento por adenocarcinoma em virtualmente
todos os casos, e à dificuldade de ressecção endoscópica.
Para seguimento, a colonoscopia a cada 1 a 2 anos ini-
cialmente, e a cada 3 anos posteriormente, é mandatória
para os portadores de adenomas após a sua ressecção, que
se encontram no risco intermediário para o desenvolvimen-
to de câncer colorretal.
115
115
GAST ROENTEROLO GIA
- Proctocolectomia total com ileostomia terminal; rem em 3 a 6% dos portadores de síndrome de Gardner.
- Proctocolectomia total com anastomose ileoanal com Não causam metástase, porém tendem a recidivar local-
bolsa ileal; mente após ressecção. Localizam-se de preferência no me-
- Colectomia total com ileorretoanastomose; esta opção sentério e retroperitônio e usualmente se manifestam em
é reservada a pacientes com o reto relativamente pre- 1 a 3 anos após a cirurgia colônica. O rastreamento é feito
servado em relação aos pólipos. com exames de imagem (USG ou TC) e o tratamento, prefe-
rencialmente, é cirúrgico.
Recomenda-se que a ressecção colônica seja feita entre Os tumores periampulares, de papila e de pâncreas,
os 15 e 25 anos, diminuindo a chance de neoplasia associa- também estão associados à síndrome de Gardner. Para
da. Nos casos em que o reto é preservado, o paciente deve rastreamento, recomendam-se EDA e avaliação abdominal
realizar retoscopia anual, pois o risco de malignização do com tomografia ou ultrassom.
coto retal varia de 12 a 20% em 20 anos.
Alguns cânceres extraintestinais também têm a sua in-
cidência aumentada na PAF, especialmente o carcinoma
papilar duodenal. Outros: carcinoma papilar ou folicular de
tireoide, CA gástrico, hepatoblastoma, meduloblastoma.
B - Variantes da PAF
A PAF e a síndrome de Gardner parecem ser uma só do-
ença genética (originária da APC), com aspectos de apre-
sentação que variam da presença de pólipos colônicos até A B
a PAF com 1 ou mais manifestações extracolônicas. A sín-
drome de Gardner caracteriza-se pelo aspecto semelhante
à PAF, com osteomas de grandes ossos e mandíbulas, tumo-
res desmoides, tumores de partes moles (lipomas e cistos
sebáceos, por exemplo) e dentes extranumerários associa-
dos. Podem ocorrer pólipos adenomatosos em todo o TGI
com evolução para câncer, destacando-se os carcinomas
periampulares e do trato gastrintestinal superior. Tumores
de tireoide também estão associados à síndrome.
Cistos epidermoides (Figura 4A) são comumente asso-
ciados à PAF e representam condição comum na população C
geral. No entanto, cistos sebáceos antes da puberdade não Figura 4 - Síndrome de Gardner: (A) cisto epidermoide em paciente
são comuns e devem alertar o médico para avaliação co- pós-operatório de colectomia total e (B) adenoma de mandíbula
lorretal. Osteomas também são marcadores da síndrome em paciente com PAF e (C) radiografia panorâmica demonstrando
de Gardner, portanto, no diagnóstico de PAF, recomenda- cistos epidermoides
-se rastreamento dessas lesões com raio x de mandíbula e
ossos longos (Figura 4B). Outra variante da PAF, a síndrome de Turcot, caracteri-
Os tumores desmoides são lesões benignas que tendem za-se pela polipose adenomatosa associada a tumores ma-
a crescer e infiltrar localmente tecidos adjacentes, e ocor- lignos do SNC (como o meduloblastoma e o glioblastoma).
5. Resumo
Quadro-resumo
Poliposes familiares
Hamartomatosas
Risco de
Tipo e localização Manifestações clínicas
malignização
- Lesões pigmentares na cavidade oral, lábios, mãos
e pés;
- Hamartomas em delgado e menos
- Tumores ovarianos e testiculares;
S. Peutz-Jeghers comumente em cólon e estômago; Possível
- Eventualmente: obstrução intestinal, hemorragias e
- Focos de adenoma.
anemia;
- Ca de mama, pâncreas e vias biliares.
116
DOENÇA POLIPOIDE
Poliposes familiares
Hamartomatosas
Risco de
Tipo e localização Manifestações clínicas
malignização
- Pólipos juvenis, adenomatosos e - Idade adulta;
Polipose juvenil Possível
hiperplásicos em cólon. - Hemorragias digestivas, intussucepção e obstrução.
GASTROENTEROLOGIA
- Triquilemomas faciais;
- Ganglioneuromatose colônica;
S. Cowden (S.
- Hamartomas orocutâneos e estôma- - Acantose glicogênica do esôfago;
hamartomas Rara
go, delgado e cólon. - Doença fibrocística e câncer de mama (maior com-
múltiplos)
plicação);
- Bócio atóxico e Ca de tireoide.
Adenomatosas
- Adenomas em estômago, delgado e
PAF clássica - Osteomas mandibulares, alterações dentárias. Sim
cólon.
- Osteomas mandibulares, em crânio e ossos longos;
- Hipertrofia congênita do epitélio retiniano;
- Adenomas em estômago, delgado e - Tumores desmoides;
S. Gardner Sim
cólon. - Cistos epidermoides;
- Fibromas e lipomas;
- Tumores de tireoide, adrenais e hepatobiliares.
- Meduloblastoma, glioblastoma, ependimoma;
S. Turcot - Adenomas em cólon. Sim
- Hipertrofia congênita do epitélio retiniano.
Poliposes não familiares
- Idosos;
- Alopécia, onicólise;
S. Cronkhite-
- Hamartomas em delgado e cólon. - Hiperpigmentação cutânea; Rara
-Canada
- Glossite, hipogeusia;
- Disabsorção, hematoquesia.
- Pólipos inflamatórios em delgado e - Doenças inflamatórias, amebíase e esquistossomo-
Pseudopolipose Não
cólon. se.
Polipose linfoide - Pólipos inflamatórios de células B em - Dor abdominal, náuseas, hiporexia, emagrecimento,
Sim
múltipla delgado e cólon. disabsorção, sangue oculto fecal, anemia.
Pneumatose cis- - Cistos aéreos submucosos em delga- - Variáveis (de assintomático a colite fulminante);
Não
toide intestinal do e cólon, de aspecto polipoide. - Associação à DPOC e esclerodermia.
117
117
CAPÍTULO
19
Câncer de cólon e reto
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
118
CÂNCER DE CÓLON E RETO
recentes sobre o papel protetor das fibras vegetais contra Os proto-oncogenes, por exemplo, o K-ras, têm papel na
o CCR tem sido altamente discrepante. No entanto, consu- regulação do crescimento celular normal. Alterações deles
mo de fibras possui vários outros benefícios comprovados contribuem para a proliferação celular exagerada e eventu-
à saúde que justificam seu uso: reduz o LDL-colesterol, con- al carcinogênese.
trola a resistência insulínica, regulariza o hábito intestinal, Outro mecanismo é a perda de genes supressores tu-
previne diverticulose etc. Acredita-se que a diminuição na morais. O gene APC é o exemplo clássico de gene supressor
ingestão de fibras esteja envolvida no aumento da inci- tumoral. Sua deleção causa alterações na transmissão de
GASTROENTEROLOGIA
dência do CCR e que o aumento individual na sua ingestão sinais extracelulares para o núcleo celular (por meio da pro-
possa diminuir os riscos pessoais de desenvolvimento das teína beta-catenina do citoesqueleto), alterando o ciclo e o
lesões, embora ainda não haja confirmação científica bem crescimento celular. Além disso, esse gene modula a adesão
controlada dessa suposição. célula-célula, e a sua deleção desorganiza tal sinalização.
O cálcio aumenta a excreção fecal de ácidos biliares e Outros exemplos de gene supressores tumorais são o DCC
diminui a proliferação celular da mucosa colônica, sendo e p53.
reconhecido fator protetor. O consumo de vegetais ama- A 3ª classe de genes é daqueles que reparam erros no
relos e verdes, vitaminas A, C, E e sais de selênio também pareamento de bases que acontecem durante a replicação
tem sido implicado na redução do desenvolvimento de CCR. de DNA. Alterações nesses genes (hMSH2, hMLH1, hMSH3
Atividade física e manutenção de IMC baixo parecem ser e hMSH6) levam a erros de replicação e propensão à muta-
fatores protetores contra CCR, assim como a reposição hor- ção. Tal alteração genética é a base para o desenvolvimento
monal em mulheres. da HNPCC, mas também pode ser encontrada no câncer es-
O tabagismo e o consumo de bebidas alcoólicas (espe- porádico. A instabilidade de microssatélite é um marcador
cialmente cerveja) aumentam levemente o risco de CCR. O cromossômico dessa apresentação. A Figura 1 esquematiza
risco de desenvolvimento de adenoma e carcinoma parece as principais etapas do desenvolvimento do CCR.
estar reduzido com o consumo contínuo de Aspirina (AAS) e
AINH (inibidores da COX-2). Essas substâncias inibem a pro-
dução de substâncias moduladoras do crescimento celular,
adesão celular, diferenciação celular e apoptose.
B - Fatores genéticos
O CCR é o câncer de que mais se tem conhecimento com
relação à genética e biologia molecular. Tanto as formas es-
porádicas quanto as hereditárias têm um componente ge-
nético associado. Existem, basicamente, 3 tipos de genes
cujas alterações genéticas podem levar ao CCR (Tabela 1). Figura 1 - Sequência de eventos genéticos propostos para explicar
a evolução do câncer colorretal
Tabela 1 - Genes relacionados ao CCR
% de alte-
Cromosso-
Gene rações nos Classe de gene
mo
tumores
3. Fatores de risco para o desenvolvi-
K-ras 12 50 Proto-oncogene mento do CCR
Gene supressor tu-
APC 5 70
moral A - Pólipos adenomatosos
Gene supressor tu-
DCC 18 70
moral
A maioria dos CCR surge a partir de pólipos macroscó-
picos que evoluem para displasia. O risco da evolução ade-
SMAD4
Gene supressor tu- noma-carcinoma depende do tamanho e da histologia do
(DPC4, 18 50
moral pólipo, a evolução do carcinoma pode levar 1 década, e o
MADH4)
progresso de adenoma para neoplasia invasiva pode levar
Gene supressor tu-
p53 17 75 5 anos. Há várias evidências epidemiológicas que apontam
moral
para a evolução de adenomas para carcinomas:
hMSH2 2 X Gene reparador DNA
- Adenomas são raros em regiões geográficas com baixa
hMLH1 3 Y Gene reparador DNA
incidência de CCR;
hMSH6 2 W Gene reparador DNA
- A distribuição de adenomas nos diferentes segmentos
TGF-beta1 Gene supressor tu- do cólon segue a distribuição das neoplasias;
3 Z
RII moral
- Geralmente, ocorrem adenomas em localização anatô-
Observação: X + Y + W + Z = 15% dos tumores esporádicos.
mica próxima de neoplasias (pólipos sentinelas);
119
G ASTR O ENTEROLO GIA
- O risco para o desenvolvimento de CCR é proporcional Tabela 2 - Diferenças entre HNPCC e CCR esporádico
ao número de pólipos presentes;
Câncer
- É comum o achado de câncer em pólipos removidos HNPCC
esporádico
por colonoscopia ou cirurgicamente, e o risco é pro-
Idade do diagnóstico ±40 anos ±60 anos
porcional ao grau de displasia encontrado no pólipo;
Tumores múltiplos
- A remoção de pólipos adenomatosos por colonoscopia Sincrônicos 20% 3 a 6%
em pacientes sob seguimento diminui o risco de morte
Metacrônicos 25% 1 a 5%
por câncer.
Localização proximal 70% 35%
B - História familiar Tumores indiferenciados Comum Incomum
Instabilidade de microssatélites 80% 15%
a) Câncer esporádico Prognóstico Favorável Variável
Parece que, além das síndromes hereditárias bem de-
finidas, como a PAF e HNPCC, existe uma suscetibilidade O achado de instabilidade de microssatélites não é dis-
maior ao desenvolvimento de CCR em familiares de por- ponível em larga escala. Os principais genes envolvidos na
tadores de CCR, especialmente em parentes de 1º grau. O gênese do câncer são hMSH2 e hMLH1.
câncer esporádico é responsável por 70 a 75% de todos os Existem critérios clínicos para a definição de HNPCC,
casos de CCR. definidos por consensos internacionais como critérios de
Amsterdam I e II.
b) PAF
Tal síndrome tem servido como modelo para o estudo Tabela 3 - Critérios de Amsterdam I e II
da sequência de eventos da evolução adenoma-carcinoma Amsterdam I
e é responsável por cerca de 1% de todos os casos de CCR. - Ao menos 3 membros da mesma família com CCR;
Nessa síndrome, os pólipos (centenas a milhares) começam
- Um dos membros deve ser parente em 1º grau dos outros 2;
a desenvolver-se no cólon e reto a partir dos 15 a 20 anos e,
caso não haja remoção, evoluem para câncer em aproxima- - Ao menos 2 gerações sucessivas acometidas;
damente 1 década. Hoje, é possível a detecção de indivídu- - Um dos membros deve ter menos de 50 anos na data do diag-
os em risco para o desenvolvimento dessa síndrome através nóstico;
da detecção da proteína truncada do gene APC (diagnóstico - Deve ser excluído o diagnóstico de PAF;
molecular ainda não disponível em larga escala, em nosso - Confirmação anatomopatológica de CCR.
meio). Amsterdam II
Na prática, o diagnóstico é feito por meio de colonosco- - Critérios de Amsterdam I, podendo os 3 membros da mesma
pia em indivíduos sintomáticos ou em parentes assintomá- família serem portadores de tumores de endométrio, intestino
ticos de portadores da síndrome. É recomendado o trata- delgado, ureter ou pelve renal, além do CCR.
mento cirúrgico.
c) HNPCC d) Outras síndromes
O câncer colorretal hereditário não polipoide (síndrome Síndromes de Peutz-Jeghers e da polipose juvenil fami-
de Lynch) é uma doença autossômica dominante em que a liar estão associadas ao risco aumentado para o desenvol-
ocorrência de adenomas e câncer associados é bem menor vimento de CCR.
que na PAF. É responsável por 5 a 10% dos casos de CCR, e) Doença Inflamatória Intestinal (DII)
atingindo pacientes jovens de até 40 ou 45 anos. As lesões Nos casos de retocolite ulcerativa inespecífica (RCUI),
tumorais ocorrem no cólon direito em 60 a 80% das vezes, há risco aumentado para CCR, especialmente após 8 anos
cursando com lesões metacrônicas em 45% das vezes. O de instalação da doença. Esse risco é maior nas pancoli-
risco de mulheres desenvolverem CA de endométrio está tes, mas também está presente nas formas de retite e co-
entre 39 e 43%. Outras neoplasias associadas ao HNPCC são lite à esquerda. O câncer aparece em epitélio displásico
de ureter e pelve renal, intestino delgado, estômago, pân- sem adenoma visível (“de novo”) ou associado a massas
creas, vias biliares e ovário. A Tabela 2 mostra as principais (displasia associada à massa), a colonoscopia para rastrea-
diferenças epidemiológicas entre pacientes com HNPCC e mento de CCR com biópsias seriadas é recomendada com
câncer esporádico. frequência anual, e a detecção de displasia de alto grau ou
Existem 2 subgrupos bem definidos: displasia associada à massa são determinantes para a res-
- Síndrome de Lynch I: a predisposição é apenas de CCR; secção colônica. Na doença de Crohn, há risco aumenta-
- Síndrome de Lynch II: a predisposição é para o CCR e do para desenvolvimento de CCR somente nas formas de
também para tumores ginecológicos, especialmente o pancolite, mas isso não está tão bem demonstrado como
carcinoma de endométrio e de ovário. na RCUI.
120
CÂNCER DE CÓLON E RETO
4. Rastreamento
O CCR é curável se detectado precocemente, portanto
é recomendado o rastreamento de lesões pré-neoplásicas
na população. O teste de sangue oculto nas fezes é o mais
utilizado em larga escala devido à viabilidade econômica,
porém há grande quantidade de falsos positivos. A retossig-
GASTROENTEROLOGIA
moidoscopia rígida atinge o sigmoide distal e a flexível atinge
os 60cm distais do cólon, oferecendo maior possibilidade de
detecção de lesões precoces. Levando-se em conta que 70%
dos CCRs estão presentes no sigmoide e reto, esses exames
são bastante efetivos quando utilizados para rastreamento.
O exame mais efetivo para o rastreamento de CCR é a
colonoscopia, sendo o seu custo elevado; dessa forma, o
custo-benefício de tal exame para o rastreamento é discutí-
vel. O enema opaco também pode ser utilizado para rastre-
amento, porém é menos sensível que a colonoscopia, espe-
cialmente para lesões menores do que 1cm. Outros méto-
dos, como a colonoscopia virtual e as pesquisas genéticas e Figura 2 - Frequência da incidência dos tumores colorretais
de antígenos carcinogênicos nas fezes, têm sido estudados,
Tumores de ceco e cólon proximal (ascendente) tendem
com resultados ainda inconclusivos.
a formar grandes massas e apresentar-se com anemia (Fi-
O rastreamento do câncer colorretal deve ser realiza-
gura 3) e presença de sangue oculto nas fezes, são altamen-
do de acordo com a inserção dos indivíduos em grupos de
te sangrantes, raramente causam obstrução pelo calibre do
risco (Tabela 4). No Brasil, divide-se a população que deve
colón nesta porção e pela presença de fezes mais líquidas.
ser submetida ao rastreamento de acordo com o risco, que
Portanto, pacientes idosos com sintomas de fadiga e alte-
pode ser normal, baixo, médio ou alto.
rações cardiorrespiratórias associadas a descoramento e/
Tabela 4 - Estratificação de risco e estratégias de rastreamento ou melena devem alertar para esse tipo de tumor, especial-
Estratifi- mente se apresentam massa abdominal palpável no exame
cação de Características Rastreamento físico.
risco
Pesquisa de sangue
oculto nas fezes e
exame proctológico
Indivíduos com idade igual
Baixo ou anuais, encaminhan-
ou superior a 50 anos sem
normal do à colonoscopia
outros fatores de riscos.
os casos positivos ou
colonoscopia a cada 5
ou 10 anos.
História pessoal ou em pa-
rente de 1º grau de câncer Exame colonoscópico
Médio
colorretal ou história pes- a cada 3 anos.
soal de adenoma.
Síndromes genéticas re-
lacionadas ao CCR, DII na
Alto Colonoscopia anual.
forma de colite e enterite
actínica colorretal. Figura 3 - Tumor de cólon ascendente: (A) e (B) tomografia compu-
tadorizada; (C) colonoscopia e (D) peça cirúrgica
5. Diagnóstico Os tumores de descendente e sigmoide tendem a evo-
Os sintomas relacionados ao câncer colorretal depen- luir com alterações do hábito intestinal (obstrução intesti-
dem de uma série de fatores, sendo os mais importantes nal), podendo alternar períodos de constipação e diarreia.
a localização (Figura 2), a invasividade e o tamanho do tu- Isso acontece porque o diâmetro da alça intestinal é menor
mor, nas fases precoces é totalmente assintomático, já que e as fezes que chegam ali são mais sólidas. Podem ocorrer
o adenocarcinoma de cólon e reto cresce lentamente. Pode enterorragia e mucorreia associadas.
causar anemia, massa palpável, obstrução intestinal, diar- Os tumores de reto também podem evoluir com sin-
reia e dor local. tomas obstrutivos e sangramento do tipo hematoquezia
121
G ASTR O ENTEROLO GIA
122
CÂNCER DE CÓLON E RETO
GASTROENTEROLOGIA
tecido pericolônico (todas metidos
as camadas do intestino) B2 - Tumor acometendo a serosa cabeça do pólipo (pólipo pediculado). No entanto, caso as cé-
sem linfonodos comprometidos lulas malignas invadam o pedículo do pólipo, a polipectomia
C1 - Tumor acometendo muscular simples só será aceita se o tumor for bem diferenciado, se
C - Metástase em linfono- própria com linfonodos compro- não houver invasão vascular ou linfática e houver margem de
do independente da inva- metidos ao menos 2mm. Nos pólipos sésseis, essas características são
são tumoral C2 - Tumor acometendo serosa
com linfonodos comprometidos difíceis de serem demonstradas. Assim, a impossibilidade de
D - Implante peritoneal e determinar margens de ressecção adequada ou a presença
omental, metástase a D - Metástase a distância de achados histológicos de mau prognóstico determinam a
distância conduta cirúrgica diante de tais pólipos.
Observação: a classificação e o estadiamento TNM - UICC 2010 Figura 7 - (A) Pólipo malignizado; mau prognóstico e (B) indiferen-
encontram-se no anexo, ao final do livro. ciado; margem inadequada e com invasão linfática/venosa
123
G ASTR O ENTEROLO GIA
124
CÂNCER DE CÓLON E RETO
tem sido indicado com bons resultados em pacientes sele- Tabela 8 - Seguimento de pacientes com CCR estadios II, III e IV;
cionados. E aqueles no estadio II ainda não têm comprovado em pacientes estadio I, não é necessário o seguimento com raio
benefício no tratamento quimioterápico adjuvante, mas há x de tórax e exame de imagem abdominal, exceto em casos
sintomáticos
indícios de benefício na sobrevida livre de doença.
3º ao 5º >5 10
1º e 2º ano
E - Doença metastática ano anos anos
Meses 3 6 9 12 6 12 12 12
GASTROENTEROLOGIA
O achado de metástase hepática não contraindica a res-
Anamnese + EF X X X X X X X X
secção radical do CCR – está presente em 10 a 25% dos casos.
A ressecção das metástases hepáticas determina incremento CEA X X X X X
na sobrevida dos pacientes, no entanto só devem ser realiza- Raio x de tórax X X X X X
das na presença de lesão hepática totalmente ressecável sem
evidências de tumor extra-hepático irressecável. USG/TC abdome X X X X X
Fatores de melhor prognóstico para ressecções de me- X
tástases hepáticas de CCR incluem a presença de até 3 nó- Colonoscopia X X X
dulos não maiores que 3cm, localização unilobular e níveis
de CEA baixos. Em centros de excelência, a sobrevida após
ressecção hepática de CCR metastático ultrapassa 25% em
5 anos. O momento para essa ressecção é controverso, po-
dendo ser feita no mesmo ato da ressecção colônica, ou
meses após, depois de ciclo de tratamento quimioterápico.
Estudos recentes até questionam a ressecção hepática pre-
viamente à colorretal, nos casos de neoplasias sem com-
plicações associadas (sangramento importante ou sinais de
Figura 10 - Paciente com recidiva de tumor de reto operado, diag-
suboclusão ou obstrução).
nosticada pelo PET-CT: (A) em fígado; e (B) pélvica
Metástases pulmonares localizadas podem ser resseca-
das, desde que o paciente tenha reserva respiratória adequa-
da em prova de função pulmonar e que o tumor inicial possa 9. Prognóstico
ser controlado, determinando incremento na sobrevida. Apesar de curável nas fases iniciais, no Brasil, 80% dos
Achados pré-operatórios ou intraoperatórios de carcino- casos são diagnosticados em fases avançadas, com menor
matose ou metástases hepáticas e pulmonares dissemina- chance de cura. O prognóstico está diretamente relaciona-
das contraindicam ressecção em pacientes assintomáticos. do ao estadio do tumor, com destaque para a disseminação
Alguns serviços realizam citorredução com peritoniectomia linfonodal. A sobrevida em 5 anos, segundo dados do INCA,
associada à quimioterapia intraperitoneal hipertérmica em é de 60 a 70% nos estadios I e II, 40% no estadio III e prati-
casos selecionados de carcinomatose peritoneal, sendo camente 0 no estadio IV.
uma conduta ainda não consensual. Alguns fatores clínicos e histológicos têm impacto nega-
Metástases no SNC são incomuns e só devem ser inves- tivo no prognóstico, como tumores indiferenciados, muci-
tigadas mediante presença de sintomas. Todos os pacientes nosos ou com células “em anel de sinete”. Outros fatores de
com doença metastática, em algum momento do tratamen- mau prognóstico são CEA alto ao diagnóstico, comprometi-
to, devem receber quimioterapia, desde que tenham condi- mento linfonodal (pior se 4 ou mais), metástases, perfura-
ções clínicas para tal, com intuito curativo ou paliativo. ção e obstrução, pacientes jovens, invasão linfática, venosa
e perineural, e penetração na parede do órgão.
8. Seguimento
É fundamental para a detecção precoce de recidiva local
10. Resumo
ou metástase a distância. O exame proctológico associado à Quadro-resumo
dosagem de CEA, exames de imagem (raio x de tórax e USG - O câncer colorretal é o exemplo mais conhecido da sequência
de abdome) e colonoscopia deve ser feito rotineiramente adenoma-adenocarcinoma, o que justifica o rastreamento em
em pacientes operados (Tabela 8), sendo que as recidivas pacientes de risco;
locais ocorrem preferencialmente nos primeiros 2 anos de - O tratamento curativo envolve a cirurgia com princípios onco-
evolução, e lesões metacrônicas (em outras localidades do lógicos. Dependendo do estadiamento, é possível realizar qui-
cólon) ocorrem em até 5% dos casos. mioterapia e radioterapia neoadjuvante e/ou adjuvante;
A evolução progressiva do CEA deve alertar o médico a - O prognóstico é diretamente relacionado com o estadiamento
procurar doença recidivada ou metastática, e a tomografia ao diagnóstico.
com emissão de pósitrons (PET-scan) pode ser útil para de-
tectar lesões não visíveis nos exames rotineiros (Figura 10).
125
CAPÍTULO
20
Câncer de ânus
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
126
CÂNCER DE ÂNUS
gura 1). Num estágio avançado da doença, podem ocorrer Tabela 2 - Estadiamento TMN - UICC 2004
incontinência, fístula retovaginal e sintomas obstrutivos. Os Estadio T N M
sintomas começam a aparecer como lesões pequenas, em 0 In situ 0 0
média de 3 a 4cm. Massas dolorosas na região inguinal de- I 1 0 0
notam doença metastática. II 2, 3 0, 0 0, 0
IIIA 1, 2, 3, 4 1, 1, 1, 0 0, 0, 0, 0
GASTROENTEROLOGIA
IIIB 4, qualquer 1, 2, 3 0, 0
IV Qualquer Qualquer 1
127
GASTR O ENTEROLO GIA
D - Melanoma maligno
O melanoma maligno representa de 1 a 5% dos tumores
Figura 2 - CEC de canal anal: (A) RNM em corte sagital eviden- anorretais e de 0,4 a 1,6% dos melanomas. Histologicamen-
ciando espessamento concêntrico do canal anal; (B) aspecto te, surge a partir da degeneração de melanócitos do tecido
estenosante da lesão no corte axial; (C) abaulamento e massa
escamoso do canal anal, localizados na anoderme da jun-
tocável ao exame proctológico; (D) produto de amputação ab-
dominoperineal de reto com destaque para o tumor próximo à
ção cutâneo-mucosa. Esse tipo de tumor apresenta, como
margem anal principais sintomas, sangramento seguido de dor e altera-
ção do hábito intestinal. Cerca de 8% dos casos são achados
incidentais de hemorroidectomias, por se assemelharem
B - Tumor cloacogênico ou basaloide a trombos hemorroidários (Figura 3). O médico deve estar
Para esse tipo de tumor, também se indica o tratamen- alerta nos casos de pacientes que referem hemorroida e
to com o esquema de Nigro, com que se obtêm resultados hérnia inguinal, e deve ser afastado o diagnóstico de mela-
semelhantes aos apresentados no CEC. Esse tipo de tumor noma do canal anal com metástase linfonodal.
128
CÂNCER DE ÂNUS
4. Resumo
Quadro-resumo
- Os tumores de margem anal apresentam comportamento
semelhante às demais neoplasias cutâneas;
- Entre os tumores de canal anal, o mais comum é o carcinoma
espinocelular. O tratamento preconizado nos tumores que
GASTROENTEROLOGIA
ultrapassam a mucosa é a associação de QT e RT conforme o
esquema proposto por Nigro;
- A cirurgia fica reservada aos casos avançados, que não respon-
dem ao tratamento, ou como forma de tratamento de resgate.
129
CAPÍTULO
Avaliação da função hepática
21 José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
130
AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO HEPÁTICA
estar presente em vários outros tecidos orgânicos (ossos, B - Produtos de excreção hepática
adrenais, placenta, rins e pulmões), deve ser avaliada em
conjunto com alterações de outras enzimas hepáticas, ou a) Bilirrubina
com a separação das isoenzimas hepáticas e extra-hepáti- A bilirrubina é um produto de degradação do núcleo
cas da FA. A 5’-nucleotidase é uma enzima canalicular es- heme da hemoglobina. No seu metabolismo, diversas eta-
pecífica do fígado, com localização canalicular e padrão de pas dependem do fígado, como sua captação, conjugação
elevação paralelo aos da FA. A GGT também se apresenta e excreção biliar (Figura 1). Assim, devido a sua associação
GASTROENTEROLOGIA
elevada nos casos de colestase e lesão canalicular, mas tem com a hemólise, o transporte plasmático e a própria fun-
seus níveis elevados com a ingestão de algumas substân- ção hepática, a alteração de seus níveis séricos deve ser
cias estimuladoras do citocromo P450, como o álcool e os analisada individualmente. Em geral, seus níveis totais re-
barbitúricos, mesmo na ausência de alterações na excreção presentam um balanço entre sua produção e sua excreção
hepática. hepática.
131
GAST R O ENTEROLO GIA
função hepatocelular de síntese de proteínas. A biossíntese nefropatias e as enteropatias perdedoras de proteína. Níveis
hepática deficiente, com a perda da função sintética dos he- sustentados de hipoalbuminemia abaixo de 3mg/dL indicam
patócitos, pode manifestar-se, clinicamente, por perda da grave comprometimento da função hepática de síntese.
massa muscular e fadiga. As principais substâncias avalia-
b) Fatores de coagulação
das são as proteínas plasmáticas e os testes de coagulação.
Os fatores vitamina K-dependentes (II, VII, IX e X) são
a) Albumina plasmática sintetizados no fígado (Figura 2). Assim, alterações da fun-
A síntese de albumina encontra-se baixa nos casos de ção hepática costumam causar alargamento no tempo de
insuficiência hepática, com depleção de seus níveis séricos. protrombina. Por ser lipossolúvel e sua absorção depender
Como sua meia-vida plasmática é longa, de, aproximadamen- da presença de bile, a vitamina K deve ser reposta por via
te, 3 a 4 semanas, pode não se alterar nas hepatopatias agu- parenteral antes do diagnóstico de disfunção hepatocelular
das. Outras causas de hipoalbuminemia são a desnutrição, as em pacientes ictéricos.
132
AVALIAÇÃO DA FUNÇÃO HEPÁTICA
GASTROENTEROLOGIA
É, também, o exame de escolha para o diagnóstico de
colelitíase (Figura 3B) e pode diagnosticar coledocolitíase,
além de outras afecções da vesícula biliar. Deve ser o 1º exa-
C - Ressonância nuclear magnética
me de imagem a ser solicitado nos casos de icterícia, pois Trata-se de exame de escolha na maioria dos casos de
a identificação de dilatação das vias biliares indica causa tumor hepático, pela diferenciação de sinal nos casos de
obstrutiva. Também possui papel importante nos casos de cistos, hemangioma, dentre outros (Figura 4B). É caro e, na
esquistossomose mansônica, com o típico achado de hipe-
maioria das vezes, não deve ser o 1º exame solicitado.
recogenicidade periportal.
Nos casos de hipertensão portal, o ultrassom Doppler
pode indicar dilatação de vasos, direção de seus fluxos e
possíveis casos de tromboses.
Figura 3 - Ultrassonografia abdominal evidenciando: (A) ascite e Figura 4 - Exemplos de hepatocarcinomas nos diferentes exames:
(B) colelitíase (A) tomografia; (B) ressonância magnética e (C) tomografia
133
GAST R O ENTEROLO GIA
134
CAPÍTULO
Anatomia cirúrgica do fígado
22 Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
Pontos essenciais
- Relações anatômicas;
- Irrigação arterial e drenagem venosa;
- Segmentação hepática de Couinaud;
- Hepatectomias.
1. Introdução
O fígado, localizado no quadrante superior direito do abdome, é considerado a maior glândula do corpo. Sua superfície
inferior toca o duodeno, o rim direito, a glândula adrenal direita, o esôfago e o estômago. É coberto por peritônio em quase
toda a sua extensão, exceto por uma “área nua” localizada sob o diafragma, na superfície posterossuperior adjacente à Veia
Cava Inferior (VCI) e à veia hepática (Figura 1).
135
GAST R O ENTEROLO GIA
136
ANATOMIA CIRÚRGICA DO FÍGADO
gamento hepatoduodenal, localizando-se medialmente ao ducto biliar e anteriormente à veia porta, ela se ramifica em
artérias hepáticas direita e esquerda. Pela abundância de colaterais, uma ligadura da artéria hepática proximal à artéria
gastroduodenal não provoca complicações, enquanto a ligadura distal àquele vaso pode causar necrose celular. A variação
anatômica mais comum é uma artéria hepática direita surgindo da artéria mesentérica superior.
GASTROENTEROLOGIA
137
GAST R O ENTEROLO GIA
138
ANATOMIA CIRÚRGICA DO FÍGADO
Concluindo, a segmentação hepática de Couinaud signi- direita corresponde à retirada dos segmentos V a VIII, e a
ficou um grande avanço da cirurgia e nomenclatura hepáti- hepatectomia esquerda significa a retirada dos segmentos
cas (Tabela 1). É útil, também, para a localização e o estudo II a IV (com ou sem a retirada do segmento I – Figura 7B, C e
pré-operatórios de lesões primárias, metastáticas e trau- D). A retirada de setores ou segmentos específicos recebe o
máticas do fígado, por meio de exames de imagem como nome de setorectomia ou segmentectomia, de acordo com
a tomografia computadorizada e a ressonância magnética. a região operada.
A trissegmentectomia direita, ou hepatectomia direita
GASTROENTEROLOGIA
Tabela 1 - Segmentação de Couinaud e sua localização anatômica
Segmentação de Couinaud Localização anatômica estendida, implica a hepatectomia direita mais a retirada
I Lobo caudado/Spiegel do segmento IV. A trissegmentectomia esquerda, ou hepa-
II Posterolateral esquerdo tectomia esquerda estendida, corresponde à retirada dos
III Anterolateral esquerdo segmentos II a IV, V e VIII.
IVa Superomedial esquerdo Antes de propor uma ressecção hepática, é necessário
IVb Inferomedial esquerdo estabelecer se o fígado remanescente é capaz de manter a
V Anteroinferior direito função compatível com a vida. Em pacientes previamente
VI Posteroinferior direito hígidos, um fígado residual de até 25% do original é capaz
VII Posterossuperior direito de suportar a homeostasia adequada. Entretanto, em doen-
VIII Anterossuperior direito tes cirróticos, consideram-se 40% o mínimo necessário para
uma ressecção. Atualmente, opções como a exclusão vas-
6. Ressecções hepáticas cular seletiva e o cálculo de fígado residual por volumetria
As ressecções cirúrgicas regradas recebem o nome de são importantes no planejamento cirúrgico dos candidatos
acordo com a área hepática retirada. Assim, a hepatectomia a ressecções hepáticas (Figura 7A).
Figura 7 - Tumor de Klatskin acometendo lobo hepático esquerdo: (A) volumetria hepática pré-operatória; (B) identificação dos elementos
do hilo hepático no intraoperatório; (C) produto de hepatectomia esquerda com identificação dos segmentos hepáticos e vesícula biliar e
(D) e lobo direito remanescente
139
GAST R O ENTEROLO GIA
7. Resumo
Quadro-resumo
- A anatomia hepática é o ponto chave para entender o funcio-
namento do órgão;
- Após a correta avaliação anatômica proposta por Couinaud po-
de-se realizar ressecções hepáticas econômicas e precisas;
- A programação cirúrgica deve sempre levar em conta a fisiologia
do órgão evitando-se ressecções extensas que possam levar à
insuficiência hepática.
140
CAPÍTULO
José Américo Bacchi Hora / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
141
GASTR O ENTEROLO GIA
F - Biliar H - Criptogênicas
Como na cirrose biliar primária, colangite de repetição e Origem indeterminada.
colangite esclerosante.
142
CIRROSE HEPÁTICA E SUAS COMPLICAÇÕES
e memória, alterações do ciclo menstrual e da libido. Gine- A classificação de MELT (Model for End-Stage Liver
comastia, icterícia, ascite, esplenomegalia, telangiectasias e Disease) é outro sistema de avaliação da doença hepática
eritema palmar são sinais que devem ser pesquisados, as- crônica em que são utilizados valores de bilirrubina sérica,
sim como Asterix e hálito cetônico. creatinina, INR.
As manifestações clínicas das complicações, como hi-
pertensão portal com hemorragia digestiva, retenção de 5. Complicações da cirrose
líquidos com edema, ascite ou insuficiência renal, ou a en-
GASTROENTEROLOGIA
cefalopatia hepática em suas formas mais graves, também A cirrose hepática leva a inúmeras complicações sistê-
podem abrir o quadro clínico. micas, como ascite e peritonite espontânea, hipertensão
O diagnóstico e a classificação da cirrose hepática de- portal, encefalopatia hepática, síndrome hepatorrenal e
vem basear-se em aspectos clínicos, etiológicos e funcio- hepatocarcinoma.
nais, além do padrão histológico, determinado por exame
anatomopatológico de fragmento de biópsia hepática. As- A - Ascite
sim, nos casos avançados em que as complicações da cirro- Ascite é o acúmulo anormal de líquido seroso na cavi-
se já se impõem paralelamente ao seu tratamento, deve-se dade peritoneal, de composição semelhante à do plasma
pesquisar a etiologia da cirrose e classificá-la morfologica- ou diluído (Figura 2). O termo tem origem no grego askites,
mente. que significa saco ou bolsa. Apesar de ser geralmente as-
sociada à doença hepática crônica, pode ter várias causas.
4. Classificação, Child-Pugh e Melt Representa a principal complicação de pacientes cirróticos,
ocorrendo em 30% dos pacientes, e, uma vez presente, es-
Podemos classificar a cirrose de acordo com a morfolo- tatísticas sugerem sobrevida de 50% em 1 ano.
gia, etiologia, e funcionalmente.
Classificação morfológica:
- Micronodular (cirrose de Laennec): nódulos de rege-
neração de aproximadamente 1mm, caracteriza a fase
inicial da cirrose alcoólica;
- Macronodular: nódulos maiores de aproximadamente
0,5cm, geralmente o processo se inicia com alterações
micronodulares evoluindo para nódulos maiores;
- Septal incompleta: os nódulos chegam a atingir 1cm e
a fibrose portal é proeminente.
143
GASTR O ENTEROLO GIA
A principal manifestação clínica da ascite é o aumento podem ser causadas ou agravadas por esse acúmulo, e seu
do volume abdominal. No seu diagnóstico diferencial, de- tratamento não deve ser feito, exceto nos casos de perfura-
vem-se incluir os clássicos 5 “F” e 1 “T”: feto, flatos, fezes, ção da pele, pelo risco de infecção.
fat, fluidos e tumor. O empachamento pós-prandial por A paracentese abdominal, de suma importância no
compressão gástrica pode estar presente, assim como disp- diagnóstico da ascite, deve ser realizada rotineiramente
neia, que pode ser agravada por derrame pleural associado, de forma diagnóstica em todos os casos novos e naqueles
mais comum à direita. com descompensação. São retirados 30mL de líquido ascí-
Clinicamente, podem-se perceber, à percussão, os sinais tico para análise dos níveis de proteínas totais e albumina,
de macicez móvel e o círculo de Skoda, além do sinal do e são realizadas citologia para contagem diferencial e total
piparote. A macicez nos flancos só pode ser evidenciada de células, e pesquisa de células neoplásicas, bacteriologia
quando há mais de 1.500mL de líquido ascítico, enquanto com Gram, cultura geral com antibiograma, pesquisa de
a ultrassonografia é capaz de detectar o acúmulo de líquido micobactérias e análise bioquímica na suspeita de outras
peritoneal a partir de 100mL. etiologias, com dosagem de glicose, amilase, bilirrubinas,
As medidas diárias do peso e da circunferência abdo- lipídios, ADA e DHL.
minal podem ser úteis no diagnóstico e na avaliação da Os exames de sangue com proteínas totais e frações,
resposta ao tratamento da ascite. Já as hérnias umbilicais funções hepática, renal e bioquímica, devem ser colhidos
144
CIRROSE HEPÁTICA E SUAS COMPLICAÇÕES
no mesmo dia, tanto para avaliação do paciente quanto retirada de líquido ascítico é menor do que 5L, não haverá
para sua comparação com os valores obtidos no líquido as- evidências de prejuízo com a não reposição de albumina,
cítico e cálculos de seus gradientes. mas em pacientes com retirada maior que 5L, deve-se repor
A ultrassonografia (USG) e a Tomografia Computadori- 8g de albumina para cada litro de ascite retirado (importan-
zada (TC) são reservadas aos casos de dúvida diagnóstica ou te: 8g para cada litro retirado e não para cada litro acima de
para investigação da doença de base (Figura 4). A laparosco- 5L retirados).
pia é indicada na suspeita de neoplasia maligna e tubercu-
GASTROENTEROLOGIA
lose, com exames de punção negativos, pois é o exame de A descompressão portal com TIPS é uma alternativa
maior acurácia para o diagnóstico de doenças peritoneais. aos casos que não respondem ao tratamento clínico, tendo
uma resposta satisfatória acima de 80% das vezes. Funciona
- Tratamento da ascite como uma ponte para o transplante hepático e trata ou-
O tratamento da ascite depende de sua etiologia, e não tras graves complicações da cirrose hepática, como a hiper-
há boa resposta no tratamento preconizado para cirróticos tensão portal. É contraindicado nos casos de encefalopatia
e para carcinomatose peritoneal. Os pacientes com derra- hepática, pois esse procedimento aumenta o risco para tal
mes cavitários devem ter o tratamento cirúrgico dirigido à
complicação.
víscera acometida, e os indivíduos com doenças sistêmicas,
como a tuberculose e o ICC, devem receber tratamento clí-
nico para a doença de base.
O tratamento adequado da ascite não aumenta a so-
brevida do paciente cirrótico, mas melhora a sua qualida-
de de vida (Figura 5). Devido à retenção de sódio e água
que acontece em casos como este, um aspecto fundamen-
tal do tratamento é o balanço negativo de sódio. A dieta
deve ser hipossódica, e a quantidade de líquidos ingeridos,
normal. Deve-se notar que, apesar de hiponatrêmicos, os
pacientes com ascite têm quantidade total de sódio ele-
vada, e só deverá ser feita a restrição de água livre se o
nível sérico de sódio estiver <120mEq/L. O repouso deve
ser reservado àqueles com ascite refratária.
O uso de diuréticos deve ser moderado e está proscri- Figura 4 - Ultrassonografia abdominal revelando a presença de ascite
to aos pacientes com comprometimento da função renal.
O objetivo é uma perda de 0,5 a 1L por dia. Os diuréticos
poupadores do potássio, antagonistas da aldosterona, são a
escolha inicial, já que a reabsorção de sódio e água no tú-
bulo distal, causada pela maior atividade da aldosterona, é
um dos principais eventos na retenção de água e sódio no
paciente cirrótico. A dose inicial costuma ser de 100mg de
espironolactona pela manhã e pode ser aumentada para até
400mg/dia. De acordo com a recomendação, quando combi-
nados diuréticos de alça e a espironolactona, devem-se usá-
-los na proporção de 40mg de furosemida combinados com
100mg de espironolactona, com dose máxima de 160mg da
1ª e 400mg da 2ª. Cerca de 10 a 20% dos pacientes desenvol-
vem ascite refratária com ausência de resposta aos diuréticos
ou complicações do uso destes, como insuficiência renal e hi-
percalemia. Nesses casos, devem-se considerar tratamentos
alternativos como a paracentese de alívio.
A paracentese de alívio só é indicada, portanto, aos ca-
sos refratários ao uso de diuréticos e às restrições respira-
tórias agudas. Menos de 5% dos pacientes não respondem
à restrição dietética de sódio combinada ao uso de diuré-
ticos. Durante as paracenteses, deve-se realizar a infusão
concomitante de albumina para prevenir a depleção vo-
lêmica e melhorar o fluxo renal. Paracenteses volumosas
repetidas podem levar à depleção proteica dos pacientes,
que já estão previamente desnutridos. Em indivíduos cuja Figura 5 - Tratamento da ascite no cirrótico
145
GASTR O ENTEROLO GIA
O tratamento cirúrgico para a ascite com as derivações O tratamento da PBE é efetuado por meio de cefalos-
peritoneovenosas, como a de LeVeen, popularizadas na dé- porina de 3ª geração, sendo a cefotaxima, na dose de 2 a
cada de 1970, está caindo em desuso pelos altos índices de 4g/dia, a 1ª escolha. O controle é feito pela paracentese
complicações, como infecção e obstrução dos cateteres em em 48h, para averiguação da resposta à terapia, que pode
longo prazo. Devem ser utilizados apenas nos pacientes que ser suspensa após 5 dias, em caso de queda dos neutrófilos
não são candidatos ao transplante hepático. abaixo de 250 células/mL. Trata-se de uma situação grave,
com alta mortalidade e recidiva em torno de 70% em 1 ano.
B - Peritonite bacteriana espontânea Todos os pacientes devem ser encaminhados a um serviço
Esta é uma condição clínica em que o líquido ascítico de transplante hepático.
previamente existente é infectado por bactérias do próprio Sua profilaxia (Tabela 4) está indicada após o 1º episó-
organismo, sem haver perfuração de víscera ou contamina- dio e nos casos de risco, como hepatopatas descompen-
ção direta. A condição imprescindível para a sua instalação sados, com Hemorragia Digestiva Alta (HDA), e mesmo
é a presença de ascite. antes do 1º episódio em pacientes com dosagem de pro-
Acredita-se que a Peritonite Bacteriana Espontânea (PBE) teínas totais no LA <1mg/dL. A droga de escolha para a
ocorra secundariamente à translocação de bactérias intesti- profilaxia é o norfloxacino, 400mg/dia. Nos pacientes sem
nais, em um líquido ascítico com pouco conteúdo proteico e possibilidade para a administração de antibióticos por via
baixo poder bactericida e de opsonização. A diminuição da oral, como os com HDA, deve ser prescrito ciprofloxacino,
função reticuloendotelial encontrada nos cirróticos e a possi- 500mg, 1x/dia.
bilidade de ocorrência de episódios de bacteremia também
Tabela 4 - Indicações de profilaxia de PBE
parecem estar envolvidas no processo patogênico. Os pa-
- Passado de PBE;
cientes de alto risco são aqueles com gradiente de proteína
do líquido ascítico/proteína plasmática <1g/dL ou com níveis - Proteínas totais do líquido ascítico <1mg/dL;
baixos de proteína total no líquido ascítico. - Descompensação hepática (uso transitório) com HDA, encefa-
Clinicamente, deve-se suspeitar da PBE em todo doente lopatia ou síndrome hepatorrenal.
ascítico com dor abdominal e febre. Sua pesquisa deve ser
feita em todos os casos de piora clínica de pacientes cirróti- C - Encefalopatia hepática
cos e caracteriza-se por: A encefalopatia hepática ou encefalopatia portossis-
- Cultura monomicrobiana e contagem de polimorfonu- têmica é uma síndrome neuropsíquica secundaria à insu-
cleares (PMN) >250 células/mL; ficiência renal, apresenta-se clinicamente com déficits de
- Ou ausência de patógeno isolado com contagem de memória, alteração da personalidade, alteração do nível de
PMN >500 células/mL. consciência podendo chegar ao coma. As manifestações clí-
nicas mais características são o flapping ou asterix e o hálito
Os patógenos mais comuns são E. coli, pneumococo e
hepático.
Klebsiella. Existem algumas situações clínicas em que os cri-
O mecanismo fisiopatológico não foi totalmente deter-
térios não se encaixam no diagnóstico de PBE, porém, se
minado, provavelmente é multifatorial, é secundária ao
existem alterações na cultura ou na contagem de células
comprometimento do clearance hepático e produtos tóxi-
brancas, alguns diagnósticos diferenciais devem ser consi-
cos do intestino, ou seja, o fígado perde sua função prote-
derados (Tabela 3). É importante ressaltar que esses acha-
tora por deficiência de sua capacidade de filtração e pela
dos podem representar o início de um quadro infeccioso ou
anastomose portossistêmica, permitindo que as toxinas
um exame falso negativo e, por isso, deve ser instituída a
caiam direto na circulação.
terapia antimicrobiana.
Há várias teorias para a patogênese dos sintomas, como
Tabela 3 - Diagnósticos diferenciais da ascite o acúmulo de amônia, a presença de falsos neurotransmis-
Bacte- Presença de bactérias com contagem de leucócitos sores, o sinergismo de neurotoxinas e alterações no próprio
riascite de PMN <250 células/mL. metabolismo cerebral.
Ascite Clinicamente, é classificada em 4 estágios:
Não há isolamento de patógeno, mas elevada conta- 1 - Discretas alterações do sono e da atenção;
neutrofí-
gem de leucócitos PMN (>250 células/mL).
lica 2 - Sonolência, alterações de memória e asterix;
3 - Confusão mental, delírio, incontinência, asterix e re-
Outro diagnóstico diferencial ocorre com a peritonite flexos anormais;
secundária, na qual há outra causa para a infecção do líqui- 4 - Coma hepático.
do ascítico, como processos intraperitoneais (apendicite,
diverticulite) ou contaminação externa (exemplo: hérnias Os fatores desencadeadores mais comuns são depleção
umbilicais perfuradas), sendo a cultura polimicrobiana o volêmica (uso de diuréticos e desidratação), HDA, infecções,
gradiente proteico LA/soro >1, DHL LA >soro e glicose LA uso de benzodiazepínicos, constipação e todas as formas de
<50mg/dL. descompensação de um paciente cirrótico.
146
CIRROSE HEPÁTICA E SUAS COMPLICAÇÕES
O tratamento, inicialmente, baseia-se na retirada do fa- tensa, ou seja, a vasodilatação esplâncnica leva o aumen-
tor desencadeador. A dieta deve ser hipoproteica nos episó- to da produção de óxido nítrico a um estímulo a sistemas
dios agudos. A reintrodução de proteínas deve ser gradual, vasoconstritores, como o sistema renina-angiotensina-
dando-se preferência às proteínas vegetais e aminoácidos -aldosterona, catecolaminas, vasopressina e endotelinas,
de cadeia ramificada. A limpeza intestinal deve ser realizada resultando na intensa redução da taxa de filtração glo-
prontamente por meio de enemas, e a lactulose deve ser merular. Denota grave disfunção orgânica, indicando mal
iniciada para diminuir a flora intestinal e prevenir a consti- prognóstico, com mortalidade em poucas semanas para
GASTROENTEROLOGIA
pação. O uso de antibióticos está indicado para a prevenção a maioria dos pacientes. Poucos respondem à terapia
de PBE, de acordo com os protocolos da CCIH do serviço. implementada, e a prevenção com monitorização cons-
O uso de benzodiazepínicos é proscrito a esses pacientes. tante da função renal em cirróticos é a principal medida
Apesar de ser geralmente reversível, a sobrevida em 1 efetiva. Caracteriza-se por oligúria, azotemia progressi-
ano é de apenas 40% após o 1º episódio de encefalopa- va, aumento da creatinina, hiponatremia e baixos níveis
tia. Assim, todos os pacientes com encefalopatia hepática de sódio urinário.
devem ser encaminhados a um serviço de transplante de Pode ocorrer depois de episódios de depleção volêmi-
fígado. ca ou com o uso de medicações que causam vasoconstri-
ção arterial renal, mas, na maioria das vezes, não há fator
D - Síndrome hepatorrenal etiológico definido. Como nos casos de cirrose avançada,
há grande vasodilatação esplâncnica e vasoconstrição dos
A síndrome hepatorrenal é o desenvolvimento de in- principais leitos arteriais, incluindo as artérias renais. Com o
suficiência renal funcional em pacientes com insuficiên- avanço da doença, há piora progressiva do fluxo renal. Num
cia hepática aguda ou crônica que apresenta hipertensão círculo vicioso, mecanismos intrínsecos do próprio rim aca-
portal e ascite. Ocorre devido distúrbio da função circu- bam por acentuar a vasoconstrição renal, o que explica a
latória e mecanismos intrarrenais de vasoconstrição in- rápida deterioração clínica dos pacientes.
147
GASTR O ENTEROLO GIA
6. Outras complicações
Inúmeras outras complicações ocorrem nos pacientes
cirróticos, como:
- Alterações hematológicas (pancitopenia e diátese he-
morrágica);
- Suscetibilidade à infecção;
- Aumento da biodisponibilidade de drogas;
- Síndrome hepatopulmonar;
- Hipertensão pulmonar;
- Hidrotórax;
- Prurido intratável.
7. Tratamento
O tratamento dos pacientes cirróticos baseia-se, inicial-
mente, na correção do fator etiológico, quando possível,
como abstenção de álcool, tratamento adequado das hepa-
tites virais e suspensão de drogas hepatotóxicas.
Os pacientes bem compensados clinicamente devem ser
monitorizados frequentemente quanto a possíveis compli-
cações como o hepatocarcinoma (USG e alfa-fetoproteína),
a hipertensão portal (EDA e USG Doppler) e a disfunção re-
nal. Também devem evitar todo tipo de agressão hepática,
abstendo-se de bebidas alcoólicas e de drogas e substâncias
sabidamente hepatotóxicas. A dieta deve ser hipercalórica,
hipoproteica e rica em vitaminas, como o ácido fólico.
Os pacientes com complicações da cirrose devem seguir
tratamento específico discutido em cada tópico, lembran-
do-se que os indivíduos com cirrose avançada ou complica-
ções prévias como HDA, PBE e síndrome hepatorrenal têm,
como único tratamento definitivo, o transplante hepático.
8. Resumo
Quadro-resumo
- A cirrose é uma alteração crônica, progressiva e irreversível;
- Entre as complicações mais graves, estão a PBE, a encefalopatia
hepática e a síndrome hepatorrenal. A presença de qualquer
uma dessas condições indica a necessidade de encaminhar o
paciente para a lista de transplante hepático.
148
CAPÍTULO
24
Hipertensão portal
149
GAST R O ENTEROLO GIA
Os principais componentes levados pelo fluxo portal são Tabela 1 - Principais causas de hipertensão portal
nutrientes e outras substâncias hepatotróficas, vitais para Causa de HP Exemplo
a boa manutenção da função hepática, além de toxinas e - Trombose de veia porta, trombose da veia
- Pré-hepática.
produtos bacterianos intestinais que serão metabolizados esplênica, cavernomatose da veia porta.
pelo fígado antes de atingirem a circulação sistêmica. - Intra-hepática: - Esquistossomose;
A pressão normal no sistema porta varia de 10 a 15cm · Pré-sinusoidal; - Cirrose hepática;
de água. Considera-se Hipertensão Portal (HP) quando há · Sinusoidal; - Fibrose hepática congênita;
· Pós-sinusoidal. - Hepatite crônica.
elevação desse nível ou quando a pressão ocluída da veia
hepática é maior que 4mmHg. Também pode ser definida - Insuficiência cardíaca congestiva;
- Síndrome de Budd-Chiari;
como a presença de um gradiente pressórico entre a pres- - Pós-hepática. - Malformações congênitas na veia cava
são portal e a pressão venosa central maior que 5mmHg. As inferior;
varizes de esôfago começam a formar-se quando esse gra- - Pericardite constritiva.
diente é maior que 8 a 10mmHg, e o risco de sangramento
será iminente se o gradiente for maior do que 12mmHg. 3. Fisiopatologia
Nos casos de hepatopatia crônica, como na esquistosso-
2. Etiologia mose e na cirrose, além do obstáculo mecânico ocasionado
Enquanto nos países desenvolvidos a cirrose hepática é pela fibrose, também há hiperfluxo portal e vasoconstrição
reflexa, que acentuam a HP. Há circulação hiperdinâmica
a principal causa de HP, no Brasil essa doença é causada,
com vasodilatação periférica e esplâncnica, além de queda
principalmente, pela esquistossomose mansônica em sua
da pressão arterial média basal. Esses fenômenos parecem
forma hepatoesplênica. Devido à preservação das demais
ser mediados pela liberação de substâncias vasodilatadoras,
funções hepáticas na esquistossomose, seu enfoque de tra- como o óxido nítrico. Acredita-se que essa parte reversível
tamento é diferente do utilizado nos casos de cirrose he- possa ser responsável por até 30% da HP. A esplenomegalia,
pática. predominante na esquistossomose, pode ser responsável
As causas de HP podem ser divididas em pré-hepáticas, por até 1/3 do fluxo portal, contribuindo relevantemente
intra-hepáticas e pós-hepáticas; ou mais, modernamente, para a gênese de HP.
em pré-sinusoidais, sinusoidais e pós-sinusoidais (Tabela 1). Inicialmente, há um desvio do fluxo excedente para o
Quanto mais proximal o ponto de obstrução, mais preser- sistema ázigo através da veia gástrica esquerda e dos va-
vada está a função hepática; quanto mais distal, maior é a sos breves. Com a continuação do processo e a elevação do
ascite. A HP também pode decorrer do aumento do fluxo gradiente pressórico portossistêmico acima de 10mmHg,
sanguíneo, como nos casos de fístulas arteriovenosas e nas começam a se formar nessas veias, respectivamente, as va-
grandes esplenectomias. rizes esofágicas e do fundo gástrico (Figuras 2 e 3).
150
HIPERTENSÃO PORTAL
GASTROENTEROLOGIA
Figura 3 - (A) Varizes esofágicas e (B) varizes do fundo gástrico
151
GAST R O ENTEROLO GIA
B - No paciente cirrótico
Entre pacientes cirróticos com HP, o objetivo do trata-
mento é evitar a hemorragia digestiva de alta morbimor-
talidade, responsável por 1/3 dos óbitos nesse grupo. Aos
indivíduos com varizes de esôfago, indica-se a profilaxia
primária com beta-bloqueadores que diminuem o estado
hiperdinâmico, o fluxo portal e o diâmetro das varizes eso-
fágicas, reduzindo objetivamente o sangramento por vari-
zes de esôfago. Nos pacientes esquistossomóticos, os beta-
-bloqueadores são rapidamente metabolizados no fígado
(que é saudável); e tem sua ação minimizada.
A ligadura endoscópica só será indicada aos pacientes
que nunca sangraram se houver indícios endoscópicos de
alto risco de ruptura como red spots e varizes de grosso
calibre, ou aos pacientes que não toleram o uso de beta-
-bloqueadores.
Aqueles que já apresentaram HDA devem ser encami-
nhados a um serviço de transplante hepático, pois esse é
Figura 4 - DAPE
o único tratamento efetivo, e a mortalidade é elevada nos
ressangramentos. Até com o transplante, deve-se realizar o
tratamento endoscópico, utilizar bloqueadores beta-adre-
nérgicos e protetores gástricos. As sessões de tratamento
endoscópico devem iniciar-se 1 semana depois do contro-
le da hemorragia, e podem ser utilizadas várias técnicas,
como a escleroterapia, a ligadura elástica e as injeções de
cianoacrilato.
O tratamento cirúrgico deve ser evitado antes do trans-
plante hepático, e, nos casos de hemorragia incontrolável
ou ressangramentos, deve-se preferir a derivação portos-
sistêmica por radiologia intervencionista através do TIPS
(Trans-hepatic Intra-jugular Porto-Sistemic Shunt) às de-
rivações cirúrgicas porto-cavas ou mesentérico-cavas, por
ter menor morbidade e por não interferir no procedimento
cirúrgico posterior de transplante (Figura 6).
152
HIPERTENSÃO PORTAL
GASTROENTEROLOGIA
Figura 6 - TIPS (Trans-hepatic Intrajugular Porto-Sistemic Shunt)
7. Resumo
Quadro-resumo
- Uma das complicações mais graves da HP é a HDA por varizes
de esôfago. Essa condição indica a necessidade de encami-
nhar o paciente para a lista de transplante hepático;
- O tratamento é diferente para doentes esquistossomóticos
(derivações ou desconexões) e para doentes cirróticos (trans-
plante hepático).
153
CAPÍTULO
25
Tumores e abscessos hepáticos
154
TUMORES E ABSCESSOS HEPÁTICOS
GASTROENTEROLOGIA
2. Tumores benignos do fígado
A - Cistos hepáticos
Os cistos hepáticos simples vêm sendo diagnosticados
cada vez mais em exames ultrassonográficos, em que apa-
recem como lesões anecogênicas mais comuns no lobo di-
reito. Em geral, são assintomáticos. Os cistos simples, nos
quais não há espessamento de parede ou suspeita de ma-
lignidade, não requerem tratamento específico, exceto nos
casos volumosos em que há compressão de órgãos adjacen-
tes. O melhor tratamento, em tais casos, é o destelhamento
com marsupialização do cisto para a cavidade peritoneal. Se
elementos biliares tiverem presentes no cisto, deve-se su-
Figura 1 - Aspecto tomográfico de abscessos hepáticos: (A) coleção por comunicação com o sistema biliar, e o tratamento deve,
de grande volume septada e (B) coleção com presença de ar em então, consistir em excisão ou até uma cistojejunostomia
seu interior
em Y de Roux. Há cistos hepáticos neoplásicos como os
Fisiopatologicamente, os abscessos piogênicos envol- cistoadenomas biliares, com potencial de malignização em
vem 2 elementos básicos: a presença do micro-organismo e torno de 5 a 8%, e os próprios cistoadenocarcinomas. Nes-
a vulnerabilidade do fígado. Bactérias ou micro-organismos ses casos, os exames de imagem mostram cistos complexos
podem disseminar-se ao fígado pelo sistema porta ou pela com áreas sólidas entremeados por áreas císticas, e pode
artéria hepática (na sepse), por ascensão pela árvore biliar haver a elevação de marcadores tumorais, como o CA-125.
(nos casos de colangite), por extensão direta de infecção Todos devem ser tratados pela ressecção hepática regrada.
sub-hepática ou subdiafragmática, ou diretamente, em Cistos parasitários, como os hidatiformes, também são
consequência de traumatismo. encontrados nas regiões onde a ingestão de carne de ovi-
Os abscessos hepáticos são mais comumente localiza- nos é popular. O tratamento baseia-se na cura do parasita
dos à direita do que à esquerda. Pacientes submetidos pre-
e, nos casos refratários, na alcoolização da lesão.
viamente à anastomose biliodigestiva têm risco aumenta-
do, mesmo quando não há estenose da anastomose.
Enquanto o tratamento dos abscessos hepáticos ame-
bianos é preferencialmente medicamentoso, com antipara-
sitários como o metronidazol, nos abscessos bacterianos o
tratamento é feito com a drenagem associada à antibiotico-
terapia com espectro de ação contra Gram negativos enté-
ricos, anaeróbios e enterococos. A melhor maneira de dre-
nagem é realizar a punção para coleta de material e a colo-
cação de dreno guiada por ultrassom ou tomografia, sendo
reservado o procedimento cirúrgico aos casos de insucesso
ou na impossibilidade dos procedimentos menos invasivos
(Tabela 2). Opta-se pelo tratamento cirúrgico quando ocor-
rerem abscessos com septação; e que não responderam ao
tratamento clínico proposto (drenagem + antibiótico).
A maioria das complicações ocorre quando há compro-
metimento de estruturas adjacentes ao abscesso. Compli-
cações pleuropulmonares sucedem em cerca de 15%; en-
quanto as coleções subfrênicas, em 3% dos casos.
155
GAST R O ENTEROLO GIA
B - Hemangioma hepático
O hemangioma hepático é uma neoplasia benigna do
fígado de origem vascular, trata-se do mais comum dentre
os nódulos hepáticos. Acomete mais mulheres que homens
em uma proporção de 3:1. Sua etiologia é desconhecida,
porém alguns autores sugerem que há relação com hormô-
nio feminino. Geralmente são múltiplos, periféricos e de
pequeno tamanho; mas podendo chegar até 40cm em al- Figura 3 - (A) RNM em T2 evidenciando hemangioma hepático e
(B) tomografia evidenciando adenoma hepático
guns relatos. Sua incidência na população varia (0,4 a 7,3%).
Seu achado é geralmente incidental.
A conduta normalmente é expectante, visto que sua
Normalmente, é assintomático, porém pode causar dor
ruptura é extremamente rara (28 casos relatados até a dé-
(há possibilidade de indicar crescimento da lesão ou ne-
cada de 1990); com exceção dos pacientes portadores de
crose com distensão da cápsula de Glisson) ou até ruptu-
hemangiomas sintomáticos; com dor de difícil controle sem
ra (raro, mas potencialmente grave). Outras complicações
outro sítio doloroso, crescimento rápido; dúvida diagnósti-
incomuns são insuficiência cardíaca congestiva por shunts
ca; compressão de órgãos vizinhos ou em virtude de coa-
arteriovenosos e coagulopatia de consumo.
gulopatia (síndrome de Kasabach-Merritt) quando deve ser
Os exames laboratoriais indicam função hepática nor-
indicada cirurgia. Quanto aos pacientes com hemangiomas
mal, e os marcadores tumorais são negativos. Na maioria
grandes e de alto risco (boxeadores, jogadores de futebol,
das vezes, é um achado incidental em exames de rotina. A
mulheres que pretendem engravidar), o tratamento tam-
ultrassonografia abdominal mostra nódulo hiperecogênico,
bém é cirúrgico. A cirurgia consiste em ressecções hepáti-
com Doppler evidenciando vasos periféricos proeminentes
cas econômicas e localizadas.
e pouco fluxo intralesional. A angiografia seletiva do tron-
co celíaco (exame invasivo) mostra imagem típica de cotton
wool (algodão “em ramo”).
C - Adenomas hepáticos
À Tomografia Computadorizada (TC), a massa é hipoden- É um tumor sólido relativamente raro, causado pela
sa, podendo haver calcificação em 20% dos casos. Quando proliferação benigna dos hepatócitos, predominantemente
o contraste é injetado, o exame dinâmico mostra enchimen- encontrado em mulheres jovens (idade entre 20 e 40 anos)
to periférico do nódulo. A Ressonância Nuclear Magnética em uma proporção de 11:1 homem, e o uso de contracep-
(RNM) é o melhor método diagnóstico, observando-se sinal tivo oral aumenta drasticamente a incidência deste tumor.
hiperintenso em T2 com imagem muito característica de Geralmente é uma lesão única e, quando múltipla, denomi-
“lua cheia” (Figura 3A). na-se adenomatose.
156
TUMORES E ABSCESSOS HEPÁTICOS
GASTROENTEROLOGIA
noma hepático, alguns aspectos como um nódulo sólido,
heterogêneo, hipervascular com cápsula ou pseudocápsula
e presença de gordura no seu interior levam a pensar no
diagnóstico de adenoma. Ao ultrassom, apresenta-se como Figura 4 - RNM mostrando aspecto tomográfico característico da
hiperplasia nodular focal, com cicatriz central e estrias radiadas
uma lesão sólida e bem heterogênea, à TC visualiza-se um
nódulo hipodenso com hipervascularização irregular após A HNF é uma lesão que raramente causa sintomas ou
administração de contraste iodado intravenoso. O mapea- se torna maligna, por estes motivos deve ser acompanhada
mento com radioisótopo empregando derivados do ácido clinicamente com realização de exames de rotina, a inter-
iminodiacético marcado com 99mTc revela lesão que capta rupção de terapêutica estrogênica quando presente é re-
o radiotraçador com retardo na excreção. Outro exame com comendável. O tratamento cirúrgico é indicado quando há
estanho ou enxofre coloidal marcado com 99mTc é útil para dúvida diagnóstica ou suspeita de adenoma.
diferenciar a hiperplasia nodular focal do adenoma.
O tratamento é cirúrgico pelo risco de rotura e hemorra-
gia assim como risco de malignização.
157
GAST R O ENTEROLO GIA
158
TUMORES E ABSCESSOS HEPÁTICOS
GASTROENTEROLOGIA
- Tumores benignos hepáticos constituem os hemangiomas, os
adenomas e a hiperplasia nodular focal;
- Hemangiomas têm comportamento benigno; são diagnosti-
cados na maioria das vezes incidentalmente e o tratamento é
clínico;
- Adenomas e HNF são de difícil diagnóstico diferencial. Os ade-
nomas devem ser operados pelo risco de sangramento (30%)
e malignização; enquanto a HNF deve ser apenas observada;
- Os tumores malignos hepáticos são, principalmente, originá-
rios de metástases colorretais;
- Os tumores hepáticos primários constituem os colangiocar-
cinomas e principalmente o carcinoma hepatocelular (CHC);
este, preferencialmente, em fígados com hepatopatia (B, C) e
80% associado à cirrose.
Tratamentos do HCC
159
CAPÍTULO
26
Transplante hepático
GASTROENTEROLOGIA
manifestações metabólicas extra-hepáticas. a cirurgia.
- Baseada na severidade da doença hepática 5 - Sepse incontrolável.
6 - Inabilidade e obedecer ao esquema protocolar de
1 - Doença hepática crônica: síndrome hepatorrenal,
imunossupressão.
peritonite bacteriana espontânea recorrente, albumina sé-
rica >2,5g%, bilirrubina sérica >5mg%, tempo de protrombi- b) Relativas
na prolongado (>5”). 1 - Insuficiência renal (creatinina >1,6mg/dL).
2 - Doença colestática: bilirrubina sérica >10mg%. 2 - Desnutrição avançada.
3 - Tumores hepatobiliares.
No Brasil, desde 2006 a priorização na fila do transplan- 4 - Síndrome hepatopulmonar.
te hepático é avaliada pela gravidade do paciente por meio 5 - Positividade do DNA do vírus da hepatite B.
do cálculo do MELD (Model for End-stage Liver Disease) que 6 - Positividade do anti-HIV.
permite avaliar a expectativa de vida do doente, podendo
assim diminuir a taxa de mortalidade durante a espera do Deve-se salientar que, em pacientes alcoólatras, é man-
transplante (Tabela 1). datória a abstinência alcoólica por, no mínimo, 6 meses
para listagem.
Tabela 1 - Cálculo do MELD
3,8 x loge [bilirrubina (mg/dL)] + 11,2 x loge (INR) + 9,6 x loge
[creatinina (mg/dL)] + 6,4 x etiologia (0, se colestase ou doen- 3. Cuidados e controles
ça alcoólica; 1 para as outras) Nas primeiras horas após o transplante, o paciente deve
ficar em UTI, alguns cuidados são particulares como o con-
Pacientes com cirrose hepática, mesmo Child A, que
trole da volemia e o controle da pressão arterial, impor-
desenvolvem hepatocarcinoma, podem beneficiar-se com
tante lembrar-se da presença dos distúrbios da coagulação
o transplante hepático, com sobrevida semelhante à dos
mais frequentes ainda nesta fase. Inicia-se a imunossupres-
outros pacientes transplantados, se preencherem critérios
são de acordo com o protocolo de cada centro que pode
propostos por Mazzaferro, que incluem nódulo único de até
ser duplo, tríplice ou quádruplo, composto por ciclosporina
5cm ou até 3 nódulos de até 3cm. Como ainda não há um
A ou FK 506 e prednisona, com ou sem azatioprina e drogas
consenso quanto à utilização de fígado de cadáver em um
antilinfocitárias para indução (OKT3 monoclonal ou ALG/
paciente com doença maligna, causando prejuízo a outros
ATG-policlonais).
pacientes, geralmente ocorre o transplante hepático inter-
Deverão ser realizados exames para controles hema-
vivos nesses casos.
tológicos, perfil de enzimas hepáticas, além da glicemia,
Os pacientes com hepatite fulminante são priorizados
creatinina, gasometria arterial e dosagem de ciclosporina.
nas listas de transplante hepático. A principal etiologia é o
Níveis de pressão arterial deverão ser rigorosamente con-
abuso de acetaminofeno, o paracetamol, geralmente com
trolados devido ao risco de hipertensão induzido pela ci-
dosagens acima de 3g/dia. Os critérios de indicação de
closporina e prednisona.
transplante hepático na hepatite fulminante são divididos
Medidas profiláticas devido à imunossupressão devem
segundo o King’s College, de Londres (Tabela 2).
ser tomadas, sobretudo com relação a agentes infecciosos
Tabela 2 - Critérios de indicação de transplante hepático na hepa- oportunistas. O aciclovir é rotineiramente utilizado durante
tite aguda fulminante os 3 primeiros meses de transplante com intuito de reduzir
Pacientes com hepatite fulminante por paracetamol algumas infecções virais, principalmente pelo citomegalo-
- pH <7,3; vírus, durante o 1º ano os paciente podem receber ainda
profilaxia com sulfametoxazol-trimetoprim para reduzir a
- INR >6,5 e Cr >3,4 acompanhadas de encefalopatia graus 3 e 4.
incidência de pneumonia por Pneumocystis jiroveci.
Outras etiologias
- INR >6,5 apenas; ou quaisquer 3, das seguintes variáveis:
· Idade <10 ou >40 anos;
4. Complicações
· Etiologia de hepatite não A, não B ou medicamentosa; O sangramento é a complicação mais comum, necessi-
· Duração da icterícia >7 dias antes da encefalopatia; tando de nova laparotomia em 10 a 15% das vezes. Porém,
· BT >17,6mg/dL; em 50% das cirurgias, não se identifica fonte de sangramen-
· INR >3,5. to, sendo ele atribuído à coagulopatia.
161
GAST R O ENTEROLO GIA
5. Resumo
Quadro-resumo
- O transplante hepático é uma opção no tratamento das do-
enças hepáticas com disfunção orgânica; importante ou com-
plicações, apresentando índices de complicações e sobrevida
totalmente aceitáveis;
- Atualmente, os pacientes são listados segundo os critérios do
MELD. A causa mais comum de transplante em adultos é a
cirrose hepática viral e, em crianças, a atresia das vias biliares;
- Os enxertos podem ser de doadores cadáveres ou intervivos
(split liver).
162
CAPÍTULO
27
Icterícia obstrutiva
3. Causas
Conhecendo as bases do metabolismo da bilirrubina,
podem-se identificar as principais causas de icterícia, com-
Figura 1 - Metabolismo da bilirrubina preendendo a sua etiopatogenia. O acúmulo de bilirrubina
163
GAST R O ENTEROLO GIA
pode ocorrer secundariamente ao aumento de sua produ- de 1 mecanismo no mesmo paciente. As principais causas
ção; à deficiência na captação, na conjugação ou na excre- são as deficiências metabólicas (transitórias ou permanen-
ção hepática; ou à obstrução do fluxo de bile, nos canalícu- tes), as doenças hepatocelulares e hepatocanaliculares e a
los ou nas vias biliares principais, podendo acontecer mais obstrução extra-hepática ao fluxo de bile (Tabela 1).
164
ICTERÍCIA OBSTRUTIVA
colúria, acolia fecal e prurido. A icterícia acontece pelo acú- meteorismo, além de não poder avaliar com qualidade as
mulo de bilirrubina direta na pele e nas mucosas (Figura 2); estruturas retroperitoneais.
a colúria, pela excreção urinária de bilirrubina direta; a hipo
ou acolia fecal, pela ausência ou diminuição da secreção de
bile no duodeno; e o prurido, de etiologia controversa, pos-
sivelmente pelo acúmulo de sais biliares na pele.
GASTROENTEROLOGIA
Figura 2 - Aspecto da pele e da mucosa de paciente com icterícia
165
GAST R O ENTEROLO GIA
166
CAPÍTULO
28
Litíase biliar e suas complicações
Pontos essenciais Após ser secretada pelos hepatócitos, a bile passa para
as vias biliares, antes de chegar ao duodeno. Os vários
- Manifestações clínicas da colelitíase;
ductos microscópicos se juntam até formarem, em última
- Discussão acerca de colelitíase assintomática;
instância, o ducto hepático comum. Este se junta ao ducto
- Manifestações clínicas da litíase biliar;
- Colecistite aguda; cístico, formando o ducto colédoco. A vesícula biliar é uma
- Coledocolitíase; estrutura sacular e tem a função de armazenar e concentrar
- Colangite. a bile, liberando-a no duodeno após as refeições, em res-
posta a vários estímulos, dos quais se destaca a ação hor-
1. Anatomia das vias biliares monal estimulatória da colecistocinina.
Colelitíase significa a presença de cálculos na vesícula O trajeto da bile da vesícula ao duodeno é feito atra-
biliar (Figura 1); é uma afecção muito comum e de incidên- vés do fino ducto cístico, com suas válvulas de Heister, pelo
cia crescente, atingindo cerca de 20% da população. As ducto colédoco, e pela papila duodenal ou papila de Wa-
manifestações clínicas dependem, dentre outros fatores, ter. Muitas vezes, o ducto pancreático principal, ou ducto
da localização e do tamanho do cálculo e da anatomia do
de Wirsung, desemboca no colédoco, formando o chama-
paciente. O conhecimento da anatomia e da fisiologia bá-
sica das vias biliares é a chave para a compreensão dessas do canal comum. É importante saber que essa anatomia,
manifestações. dita normal, é passível de múltiplas variações. Desse modo,
pode ocorrer implantação da vesícula biliar de forma séssil,
com ducto cístico implantado no ducto hepático direito e à
esquerda do colédoco, e em qualquer outra porção das vias
biliares extra-hepáticas (Figura 1B).
Em 1891, Calot descreveu a existência de uma área
triangular no hilo hepático, que apresenta como limite su-
perior a face inferior do fígado, medialmente, o ducto hepá-
tico comum ou colédoco e, inferiormente, o ducto cístico.
Esse é o triângulo de Calot, que deve ser dissecado minu-
Figura 1 - (A) Ultrassonografia com múltiplas imagens hiperecoi-
ciosamente, durante a colecistectomia, por via aberta ou
cas com sombra acústica posterior, no interior da vesícula biliar
e (B) colangiografia intraoperatória demonstrando ducto cístico laparoscópica, para a localização e a ligadura da artéria cís-
originário de ducto hepático direito acessório tica (Figura 2).
167
GAST R O ENTEROLO GIA
168
LITÍASE BILIAR E SUAS COMPL ICAÇÕES
identifica, aproximadamente, apenas 50% dos cálculos bi- tomas relacionados à complicação da colelitíase como dor,
liares (Figura 4). por exemplo, esta deverá ser tratada com antiespasmódi-
cos e o paciente deve ser encaminhado para programação
cirúrgica.
GASTROENTEROLOGIA
A - Cólica biliar
A cólica biliar classicamente corresponde a um quadro
de dor abdominal que ocorre entre 30 minutos e 2 horas
após uma refeição lauta (geralmente rica em gorduras), que
desaparece espontaneamente antes de 6 horas subsequen-
tes à refeição. A dor é profunda, contínua no hipocôndrio
direito (HCD), normalmente associada a vômitos biliosos.
Pode haver irradiação para o epigástrio ou para a região
Figura 4 - Tomografia de abdome mostrando cálculos biliares dorsal. Se o quadro clínico permanecer 6 horas depois de
seu início e não melhorar com antiespasmódicos, pode-se
4. Colelitíase assintomática pensar em colecistite aguda.
Deve-se salientar que sintomas dispépticos inespecífi-
A prevalência de cálculos biliares na população ociden- cos como meteorismo, pirose e epigastralgia não têm re-
tal é bastante elevada, no entanto, não se observa índice lação com colelitíase, por essa razão, não são levados em
tão elevado de pacientes com sintomas relacionados a esse conta para a classificação dos pacientes como sintomáticos.
quadro. Estima-se que 65% dos pacientes com colelitíase Nesses casos, é melhor solicitar estudo endoscópico, para
assintomática permanecerão dessa maneira por um perío- a exclusão ou o tratamento pré-operatório de outras doen-
do de 20 anos, enquanto, anualmente, 2% deles passarão ças, como a gastrite e a úlcera péptica.
a apresentar sintomas associados à presença dos cálculos. O exame de USG na vigência da cólica demonstra a pre-
A conduta nesses casos é amplamente variável e de- sença de um cálculo impactado no infundíbulo, o qual não
pende da idade, das condições clínicas do paciente, de suas se move às mudanças de decúbito, sem alterações na pare-
expectativas pessoais e da filosofia do cirurgião. Algumas de do órgão. O tratamento é feito com antiespasmódicos e
variáveis, relacionadas aos achados ultrassonográficos, po- analgésicos, para o alívio da dor, e deve ser indicada a cole-
dem guiar a conduta do médico entre a colecistectomia ou cistectomia eletivamente. Cerca de 70% dos pacientes que
a conduta expectante. apresentaram um episódio de cólica biliar, apresentarão um
Alguns serviços indicam a colecistectomia mesmo em novo quadro ou semelhante em 1 ano.
pacientes assintomáticos, desde que as condições clínicas
sejam apropriadas. Outros serviços indicam o tratamento B - Síndrome de Mirizzi
cirúrgico somente em pacientes sintomáticos ou pacientes
A síndrome de Mirizzi consiste na obstrução da via bi-
assintomáticos que sejam diabéticos ou imunossuprimidos,
liar por um cálculo impactado no ducto cístico. Pela des-
devido à alta mortalidade provocada por colecistite aguda
crição original, ocorre quando há compressão mecânica
nesses casos. Indicam o procedimento cirúrgico, também,
do ducto hepático comum pelos cálculos impactados no
para aqueles com cálculos maiores que 2,5cm ou menores
ducto cístico, paralelo àquele, levando a um quadro de ic-
que 0,5cm, pelo risco de colecistite aguda no 1º e de pan-
terícia contínua ou intermitente e episódios de colangite.
creatite aguda no último.
Existem algumas classificações na literatura; a mais utiliza-
O tratamento farmacológico para os cálculos biliares,
da é a proposta por Csendes que divide em 4 estágios que
reservado para pacientes com alto risco cirúrgico, baseia-se
vão da simples compressão extrínseca à fístula colecisto-
na supersaturação da bile em sais biliares, e, geralmente, é
biliar (Tabela 1).
utilizado o ácido desoxicólico por via oral. Esse tratamen-
to só tem efeito nos pacientes com cálculos de colesterol Tabela 1 - Classificação e representação da síndrome de Mirizzi
puro radiotransparentes, que não sejam mistos e que não Tipo Característica Representação
tenham bilirrubinato de cálcio. Nos cálculos pequenos, esse
tratamento alcança um melhor resultado. A vesícula biliar Compressão extrínseca do ducto
também tem de ser funcionante, o que é verificado com o hepático comum por cálculos geral-
I
colecistograma oral. mente impactados no ducto cístico
A presença de colelitíase assintomática não demanda ou no infundíbulo da vesícula
qualquer tipo de tratamento clínico. Quando ocorrem sin-
169
GAST R O ENTEROLO GIA
D - Pancreatite aguda
Presença de fístula colecistobiliar A principal causa de pancreatite aguda em nosso meio é
III com erosão de mais de 2/3 da cir- a colelitíase. Há passagem de cálculo pela papila duodenal,
cunferência do ducto biliar causando edema e inflamação do pâncreas.
C - Íleo biliar
O chamado íleo biliar consiste na obstrução intestinal
por cálculo biliar impactado na válvula ileocecal. A passa-
gem desse cálculo é consequência de uma fístula entre a
vesícula biliar e o intestino, sendo a colecistoduodenal a
mais comum. Apesar de raro, o íleo biliar é a principal causa
de abdome agudo obstrutivo em pacientes idosos sem hér-
nia e sem cirurgia prévia. O diagnóstico radiológico clássico
é descrito como tríade de Rigler, que compreende disten-
são à custa de delgado, aerobilia e presença de imagem cal- Figura 6 - Radiografia simples de abdome mostrando vesícula “em
cificada em quadrante inferior direito do abdome (Figura 5). porcelana”
6. Colecistite aguda
A colecistite aguda é a inflamação da parede da vesí-
cula biliar. Geralmente associada à colelitíase (de 90 a 95%
dos casos), tem, como evento inicial, a obstrução da saída
da vesícula biliar, com quadro clínico de cólica biliar persis-
tente que não é resolvida com antiespasmódicos. Com a
permanência da obstrução e da secreção de muco, há dis-
tensão progressiva do órgão e edema de sua parede, que
Figura 5 - Radiografia simples de abdome com distensão de del- comprime a microcirculação, causando desde isquemia até
gado e aerobilia necrose. Nas fases mais avançadas, sem tratamento, pode
170
LITÍASE BILIAR E SUAS COMPL ICAÇÕES
haver perfuração da vesícula e peritonite generalizada. Os por o paciente a algumas complicações como necrose da
agentes etiológicos mais comuns são Gram negativos como vesícula, perfuração (de 10 a 20%), peritonite generalizada
E. coli e Klebsiella. e abscessos hepáticos. Geralmente, o uso de antibióticos
A colecistite aguda alitiásica pode acontecer em 3 a 5% deve cobrir bactérias Gram negativas e anaeróbias.
das vezes, principalmente em doentes críticos em terapia Um tipo específico e grave de colecistite aguda é a
intensiva, diabéticos e aqueles que fizeram uso de nutrição colecistite enfisematosa, uma forma rara, que correspon-
parenteral recentemente. de a apenas 1% dos casos em que ocorrem necrose com
GASTROENTEROLOGIA
O quadro clínico típico é de dor no hipocôndrio direito gangrena e gás no interior da vesícula. Manifesta-se como
por mais de 6 horas, ou cólica biliar que não se resolveu. Po- colecistite aguda grave, levando o paciente, rapidamente,
dem ocorrer vômitos e febre. Nos casos avançados ou com- ao quadro de sepse. A mortalidade é alta e pode chegar a
plicados com perfuração, encontram-se sinais de sepse. A 20%. Cerca de 40% dos pacientes são diabéticos, e há maior
icterícia não é comum e acontece nos casos de síndrome ocorrência em pessoas do sexo masculino, a uma proporção
de Mirizzi, coledocolitíase ou perfuração, além de hepatite de 70% dos casos. O método diagnóstico preferencial é a
transinfecciosa. No exame físico, o achado característico é radiografia simples, com a identificação de gás na vesícula,
o sinal de Murphy, em que há dor e parada da inspiração além do USG ou TC de abdome (Figura 8). O patógeno mais
durante a compressão do hipocôndrio direito, podendo ou comumente observado é o Clostridium perfringens, encon-
não estar acompanhado de sensibilidade e peritonismo trado em 50% dos casos.
nesta região.
O diagnóstico é confirmado pela USG (85% de sensibi-
lidade e 95% de especificidade) que, além da presença de
cálculo impactado no infundíbulo, demonstra distensão do
órgão, edema de parede, coleções perivesiculares e dela-
minação da parede da vesícula (sinal mais específico). En-
contra-se, também, o chamado sinal de Murphy ultrassono-
gráfico, quando ocorrem dor e parada da inspiração com a
colocação do transdutor ultrassonográfico sobre a vesícula
biliar, visualizada diretamente (Figura 7). Embora seja roti-
neiramente inviável, vale citar que o melhor exame para a
detecção de colecistite aguda é a cintilografia com radionu-
cleídeo, com sensibilidade e especificidade de 95%.
171
GAST R O ENTEROLO GIA
172
LITÍASE BILIAR E SUAS COMPL ICAÇÕES
de morbidade (10%) e mortalidade (até 1%), atualmente treinamento específico e instrumentação adequada podem
é mais reservada à terapêutica que ao diagnóstico. A eco- realizar a exploração cirúrgica por via laparoscópica. A con-
endoscopia, ou USG endoscópica, é um ótimo exame para versão da cirurgia laparoscópica para a exploração cirúrgica
o diagnóstico diferencial da icterícia obstrutiva e, quando convencional das vias biliares é realizada quando a explora-
disponível, uma boa opção para o diagnóstico da litíase da ção laparoscópica ou endoscópica não é possível.
via biliar principal.
A conduta nos casos de coledocolitíase pode variar bas-
GASTROENTEROLOGIA
tante entre os serviços. A dúvida ou a confirmação diagnós-
tica e a indicação ou não de colecistectomia são os fatores
que devem ser considerados paralelamente à estrutura lo-
cal, treinamento, experiência e filosofia do cirurgião (Figura
10). Basicamente, a retirada dos cálculos do colédoco pode
ser realizada de forma endoscópica ou cirúrgica.
173
GAST R O ENTEROLO GIA
rias pelas células de Kupffer está prejudicado. Na indisponibilidade desses métodos, a descompressão
O quadro clínico da colangite baseia-se na tríade de deverá ser feita por meio de intervenção cirúrgica, e a con-
Charcot, que compreende febre, icterícia e dor no hipocôn- duta varia com a etiologia do quadro e o estado geral do
drio direito, presentes em 50 a 70% dos portadores desta paciente. Pacientes em estados mais graves necessitarão de
afecção. Quando o doente passa a apresentar sinais de procedimentos mais rápidos, como colocação de dreno de
confusão mental e hipotensão, dá-se o nome de pêntade Kehr na via biliar principal ou, caso o ducto cístico esteja
de Reynolds. Esse quadro denota colangite grave (tóxica ou permeável, colecistostomias. Obstruções malignas em está-
supurativa) e se associa a piores prognósticos. gios avançados podem necessitar de derivações biliodiges-
A febre e os calafrios associados à colangite são o resul- tivas. Após as medidas iniciais e o controle das comorbida-
tado de bacteremia sistêmica, causada pelo refluxo colan- des, o paciente necessitará de tratamento definitivo para
giovenoso e colangiolinfático, daí a necessidade de aumen- obter a remoção da causa da obstrução das vias biliares e a
to da pressão intraductal para estabelecer a colangite. Além drenagem definitiva (Figura 13).
do diagnóstico clínico, devem-se considerar alterações la-
boratoriais características de colestase e sepse. A USG de
abdome serve para identificar fatores obstrutivos nas vias
biliares e de colelitíase.
A gravidade do caso dependerá do comprometimento
sistêmico e da resposta inicial ao tratamento clínico. Casos
leves são aqueles que apresentam mínima repercussão e
boa resposta às medidas clínicas. Doentes que não apre-
sentam resposta satisfatória à conduta clínica, mas também
não apresentam disfunções orgânicas, são considerados ca-
sos moderados. A presença de sepse e de disfunções orgâ-
nicas caracteriza o quadro grave.
A descompressão da via biliar é imprescindível para a re-
solução da colangite aguda. Os procedimentos percutâneos
ou endoscópicos, como a CPRE, ainda que temporários, são Figura 13 - Conduta na colangite aguda
os métodos de eleição na fase aguda (Figura 12).
9. Resumo
Quadro-resumo
- A litíase biliar pode desencadear uma série de complicações,
cujo grau de gravidade depende do tempo de evolução da do-
ença e das condições de base do paciente;
- Colecistite aguda, síndrome de Mirizzi, íleo biliar e colangite
aguda são situações que necessitam de tratamento cirúrgico.
Na pancreatite aguda biliar, o tratamento é inicialmente clíni-
co, mas a colecistectomia deve ser realizada, preferencialmen-
te, na mesma internação.
174
CAPÍTULO
29
Anatomia e fisiologia do pâncreas
B - Irrigação pancreática
O suprimento sanguíneo do pâncreas provém do tronco
celíaco e da artéria mesentérica superior. O maior aporte
sanguíneo se faz para a cabeça do pâncreas, que é nutri-
da pelas arcadas arteriais pancreatoduodenais (anterior e
Figura 1 - Anatomia do pâncreas posterior).
175
GAST R O ENTEROLO GIA
A artéria gastroduodenal (ramo da artéria hepática co- A inervação divide-se em simpática (responsável pela
mum) divide-se para formar as artérias pancreatoduodenal dor), que vem do axônio pré-ganglionar com terminação
anterossuperior e posterossuperior. A artéria pancreato- no gânglio celíaco, e parassimpática, com fibra originária do
duodenal anteroinferior é ramo da artéria mesentérica su- tronco posterior.
perior e pode formar um tronco comum com a artéria pos-
teroinferior. A artéria pancreática dorsal é ramo da artéria
esplênica, situa-se na face posterior do colo do pâncreas e
tem como ramo a artéria pancreática transversa.
A irrigação do pâncreas é feita ainda por cerca de 2 a
10 ramos da artéria esplênica que se anastomosam com a
artéria pancreática transversa, sendo o maior desses ramos
a artéria pancreática magna ou de von Haller, principal res-
ponsável pela irrigação da cauda. Por fim, há a artéria pan-
creática caudal, ramo da artéria gastroepiploica esquerda.
As veias do pâncreas são paralelas às artérias e estão su-
perficiais a elas. A drenagem se faz para a veia porta, a veia
esplênica e as veias mesentéricas superior e inferior. A veia
portal hepática forma-se por trás do colo do pâncreas pela
união das veias mesentérica superior e esplênica.
Os linfonodos pancreatoduodenais drenam para as ca-
deias subpilórica, portal, mesocólica, mesentérica e aorto-
cava, enquanto os linfonodos do corpo e da cauda pancreá-
ticos drenam para as cadeias linfáticas retroperitoneais, do
hilo esplênico, celíacos, aortocava e mesentérica. Figura 2 - Visão geral do pâncreas e órgãos adjacentes
176
ANATOMIA E FISIOLOGIA DO PÂNCREAS
C - Ductos pancreáticos
O ducto pancreático principal (de Wirsung) e o ducto
acessório (de Santorini) situam-se anteriormente aos gran-
des vasos pancreáticos. O ducto de Wirsung drena a maior
porção do tecido pancreático (cabeça superior, colo, corpo
e cauda) na papila maior, na 2ª porção do duodeno. O ducto
GASTROENTEROLOGIA
de Santorini drena a cabeça inferior e o processo uncinado
na papila menor duodenal (Figura 4).
2. Anomalias pancreáticas
A - Pâncreas heterotópico
Figura 6 - Pâncreas divisum
Trata-se de tecido pancreático fora da glândula prin-
cipal, o qual mais frequentemente se localiza no estôma- C - Pâncreas anular
go, duodeno, delgado ou divertículo de Meckel. Em geral, Essa é uma anomalia rara, em que o tecido pancreático
encontra-se na submucosa na forma de um nódulo firme, circunda completamente a 2ª porção do duodeno. O teci-
irregular e amarelado. É possível visualizar um ducto dre- do pancreático ventral fica anterior ao duodeno. Pode cau-
nando secreções pancreáticas exócrinas a partir do tecido sar sintomas de obstrução duodenal, pancreatite crônica e
aberrante para a luz intestinal. A importância clínica está úlcera péptica, inclusive em adultos. Indica-se tratamento
nas possíveis complicações, que são obstrução intestinal cirúrgico nesses casos, não sendo recomendada ressecção
(não pelo tamanho, mas por intussuscepção), ulcerações e ou secção do tecido pancreático (alta incidência de fístula
hemorragias. O tratamento consiste em excisão local para duodenal e pancreática). A cirurgia indicada é um bypass
exclusão de malignidade. na forma de duodenojejunostomia, com bons resultados.
B - Pâncreas divisum
Ocorre devido a uma falha na fusão dos 2 sistemas duc-
tais primitivos. Está presente em cerca de 5% dos pacientes
que realizam colangiografia e em cerca de 25% das pessoas
com pancreatite idiopática. No pâncreas divisum, a maior
porção do órgão dorsal é drenada pelo ducto de Santorini
na papila menor, e só o pâncreas ventral, com o processo
uncinado, é drenado pelo Wirsung. O tratamento pode ser
feito com colocação endoscópica de prótese na papila me-
A B
nor ou esfincteroplastia transduodenal da papila menor.
177
GAST R O ENTEROLO GIA
C
4. Fisiologia endócrina pancreática
D
Figura 7 - (A) Pâncreas anular tipo I; (B) pâncreas anular envol-
As ilhotas de Langerhans (aglomerado de células espe-
vendo a 2ª porção do duodeno; (C) pâncreas anular atravessa a ciais) são responsáveis pela função endócrina do pâncreas,
parede lateral do duodeno e (D) visão anteroposterior de exame formada por células beta, alfa e delta. A célula beta é res-
(contraste: bário) ponsável pela produção de insulina, a alfa produz o gluca-
gon, enquanto que a célula delta é responsável pela soma-
tostatina e polipeptídio pancreático.
3. Fisiologia exócrina pancreática A insulina é um dos produtos pancreáticos, sua secre-
O pâncreas secreta, em média, 2,5L de suco pancreático ção é estimulada pelo aumento da concentração de glico-
por dia. Essa solução é isotônica e tem pH de 8. A secreção se, aminoácidos, ácidos graxos, hormônio do crescimento,
média é de 0,2 a 0,3mL/min, e a secreção máxima, de 5mL/ peptídio inibidor gástrico, potássio, acetilcolina e obesida-
min. Em 1 dia, são secretados cerca de 6 a 20g de enzimas de, já a diminuição dos níveis de glicose, jejum, exercício e
digestivas. O controle da secreção pancreática é feito, prin- a somatostatina são fatores que inibem sua produção. Sua
cipalmente, pela secretina (CCK) e pela acetilcolina. ação é diminuir a concentração sanguínea de glicose, ácidos
A secreção eletrolítica provém das células dos ductos graxos e aminoácidos.
centroacinares, e o controle é vagal e humoral. O estímu- O glucagon é um “inibidor da secreção pancreática” tem
lo endógeno mais presente é a secretina, que é estimulada como fatores estimuladores o jejum, concentração diminu-
pela presença de ácido e bile na luz intestinal. O conteúdo ída de glicose, concentração aumentada de aminoácido. A
do suco pancreático é basicamente composto por: insulina e somatostatina são fatores que inibem sua produ-
- Na – (160mEq/L); ção. Sua ação visa manter “energia” para a célula por meio
- HCO3 – (50 a 110mEq/L): aumento da secreção com do aumento da glicogenólise, gliconeogênese e lipólise.
estímulo; Nitidamente o pâncreas está envolvido com o controle e
regulação da glicose, única fonte de energia para células de
- Cl – (100 a 130mEq/L): diminuição da secreção com órgãos vitais como cérebro.
estímulo;
- K – (5mEq/L).
5. Resumo
As principais enzimas secretadas pelo pâncreas são trip-
Quadro-resumo
sina, quimotripsina, elastase, calicreína, exopeptidase, fos-
folipase, lipase e amilase. As enzimas produzidas ficam con- - O pâncreas é um órgão retroperitoneal; divide-se anatomica-
mente em cabeça, colo, corpo e cauda;
tidas nos grânulos de zimogênio que migram para o ápice
da célula acinar e, por exocitose, têm seu conteúdo extruso - Anatomicamente se relaciona com duodeno, hilo renal direito,
veia cava inferior, hilo esplênico e tronco celíaco, portanto se
no espaço luminal centroacinar. A peptidase é excretada na
encontra em topografia de alta complexidade;
forma inativa e ativada após a sua entrada no duodeno. As
enzimas, de um modo geral, ativam-se na luz duodenal, o - A irrigação ocorre pelas artérias decorrentes do tronco celíaco
e mesentérica superior;
principal objetivo é a etapa final da digestão de açúcares,
proteínas e lípides. - Composto pelos ductos de Wirsung (principal) e Santorini;
Didaticamente, as fases da digestão e da secreção pan- - As principais anomalias anatômicas são pâncreas heterotópico,
creática podem ser divididas em: pâncreas divisum e pâncreas anular;
- Fase cefálica: sinais eferentes via parassimpático esti- - A produção exócrina pancreática didaticamente se divide em
mulam a secreção pancreática; fase cefálica, fase gástrica e intestinal, e o objetivo final é a di-
gestão de açúcares; proteínas e lípides.
- Fase gástrica: a distensão antral leva à liberação de
gastrina que estimula a secreção ácida. A gastrina cau-
sa liberação de CCK que, somado à acidificação duode-
nal, aumenta a secreção pancreática;
- Fase intestinal: é a mais importante. Ocorre pela libe-
178
CAPÍTULO
30
Pancreatite aguda
179
GAST R O ENTEROLO GIA
O álcool pode ocasionar a pancreatite aguda por ba- Pode haver dor abdominal à palpação com sinais de pe-
sicamente 3 motivos: disfunção do esfíncter de Oddi; for- ritonismo. Os casos mais graves vêm acompanhados de si-
mação de rolhões proteicos; efeito tóxico direto do álcool. nais de choque e de insuficiência orgânica, como desidrata-
Portanto o uso de álcool induziria a alterações neurológicas ção, taquicardia, hipotensão e taquidispneia; resultantes de
de abertura do esfíncter de Oddi, aumentando a pressão processo inflamatório sistêmico – pancreatite aguda grave.
intrapancreática; poderia também colaborar para a forma- Podem ser encontrados sinais de hemorragia retroperito-
ção de “rolhas proteicas” responsáveis pela obstrução de neal (Figura 1), como os sinais de Grey-Turner (equimoses
microductos pancreáticos; e finalmente o álcool levaria ao nos flancos), de Cullen (equimose periumbilical) e de Frey
aumento da lesão por stress oxidativo – lesão direta dos (equimose no ligamento inguinal).
ácinos que acarretam ativação das enzimas pancreáticas e Os melhores exames subsidiários para o diagnóstico de
lesão. pancreatite são amilase e lipase, a amilase eleva-se de 2 a
12 horas após o início da dor, sendo que, geralmente, a lí-
O uso de drogas talvez seria a 3ª causa, porém o me-
pase volta a normalizar com 3 a 6 dias no plasma e 7 a 10
canismo que estas causam à inflamação pancreática não é
dias na urina, nos casos de elevação persistente devemos
bem conhecido, segue a lista de medicamentos associados
pensar em formação de pseudocisto. A lípase se mostrou
à pancreatite:
mais sensível e específica do que a amilase especialmente
Causa definitiva: 5-aminosalicilato, 6-mercaptopurina, após o 1º dia de internação.
azatioprina, arabinosida citosina, dideoxinosina, diuréticos, O diagnóstico pode ser feito com a história clínica asso-
estrógenos, furosemida, metronidazol, pentamidina, tetra- ciada à elevação das enzimas (lípase e/ou amilase) 3 vezes o
ciclina, tiazida, sulfametoxazol-trimetoprim, ácido valproico. valor normal, é importante lembrar que estas enzimas não
Causas prováveis: acetaminofen, alfa-metildopa, isonia- são fatores prognóstico e nem avaliam a gravidade da doen-
zida, L-asparaginase, fenformina, procainamida e sulindaco. ça. A história clínica é essencial, pois existem algumas con-
dições que cursam com a elevação da amilase, tais como:
3. Quadro clínico e diagnóstico - Parotidite;
O quadro clássico é de dor de forte intensidade, em
- Câncer de pulmão, pâncreas e ovário;
faixa no abdome superior e dorso, associada a vômitos in-
- Cistos ovarianos;
coercíveis e hiperamilasemia. É importante ressaltar que a - Acidose metabólica;
dor com essas características aparece em apenas metade - Feocromocitoma;
dos casos, porém a presença de dor é sintoma presente em - Timoma;
quase 100% dos casos. - Circulação extracorpórea;
- Úlcera perfurada;
- Isquemia mesentérica;
- Insuficiência renal;
- Ruptura de esôfago;
- Obstrução intestinal;
- Prenhez tubária;
- Drogas: morfina;
- TCE com hemorragia;
- Endoscopia digestiva alta;
- HIV.
Outros exames também devem ser solicitados como:
- Hemograma: a avaliação do hematócrito é importan-
te, pois sua elevação é um sinal de mau prognóstico
já que reflete sequestro de líquido para o 3º espaço;
- Eletrólitos;
- Ureia, creatinina;
- Triglicerídeos: lembra que sua concentração alta pode
reduzir falsamente os níveis de amilase;
- TGO e TGP;
- Gasometria arterial para avaliar comprometimento
Figura 1 - (A) Sinal de Grey-Turner, equimose nos flancos e (B) sinal pulmonar;
de Cullen, equimose periumbilical - Cálcio sérico.
180
PANCREATITE AGUDA
- Avaliação por imagem ou microcálculos em via biliar. Outro exame que pode ser
Raio x: importante para descartar quadros perfurativos solicitado é a CPRE, que permite o diagnóstico etiológico,
pela presença de pneumoperitônio, na pancreatite pode assim como em casos específicos a terapêutica por meio da
apresentar sinais inespecíficos como distensão de alça de papilotomia, tendo como indicações os casos de colangite
delgado, sinal de Gobiet, em que há distensão do colón associada e hiperbilirrubinemia maior que 4mg%.
transverso devido infiltração do meso e o colón Cuttof (dis-
4. Complicações
GASTROENTEROLOGIA
tensão gasosa dos ângulos hepático e esplênico, e ausência
de gás no transverso).
Na fase aguda, podem ocorrer coleções e abscessos
A Tomografia Computadorizada (TC) de abdome não
peripancreáticos e, mais cronicamente, pseudocistos pan-
tem valor para diagnóstico na fase aguda, mas é o princi- creáticos, hemorragias retroperitoneais e a mais temida de
pal exame para avaliação do pâncreas, principalmente com todas as complicações, a infecção do tecido pancreático ne-
contraste. O exame deve ser solicitado preferencialmente crosado, que apresenta mortalidade de 90%. Níveis de ami-
após 48 a 72 horas, em todos os pacientes com pancreatite lase persistentemente aumentados indicam a presença de
aguda grave, para identificação de áreas mal perfundidas pseudocisto ou de outras complicações (abscesso, ascite).
sugestivas de necrose e confirmação da suspeita de pancre- - Coleções fluidas agudas: ocorrem em 30 a 50% dos ca-
atite necrosante (Figura 2A). Também é capaz de diagnosti- sos, a maior parte é peripancreática, mas alguns casos
car complicações como coleções e pseudocistos (Figura 2B). podem ser intrapancreáticas;
- Necrose pancreática e peripancreática;
- Pseudocistos;
- Abscesso e necrose infectada.
5. Fatores de prognóstico
Podemos utilizar critérios para avaliação prognóstica
dos casos de pancreatite. Dentre eles, os mais utilizados na
prática clínica são os critérios de Ranson, os quais devem
ser avaliados na admissão e após 48 horas do início dos sin-
tomas. A presença de 3 ou mais parâmetros é fortemente
indicativa de pancreatite aguda grave (Tabelas 2 e 3).
Tabela 2 - Critérios de Ranson
Na admissão
Idade >55 anos
Leucócitos >16.000
Glicose >200mg/100mL
DHL >350IU/L
AST >250U/100mL
Nas 48 horas iniciais
Queda Ht >10%
Aumento ureia >5mg/100mL
Cálcio <8mg/100mL
PaO2 <60mmHg
Déficit base >4mEq/L
Sequestro líquido >6L
A ultrassonografia e a ecoendoscopia auxiliam no diag- Atualmente, o APACHE II (Acute Physiology And Chronic
nóstico etiológico, ou seja, avaliam a presença de cálculos Health Evaluation) é o mais utilizado em trabalhos científi-
181
GAST R O ENTEROLO GIA
cos e unidades de terapia intensiva. Considera-se pancreati- Nos pacientes com quadro leve, a dieta deve ser rein-
te grave quando o índice é ≥8. O índice avalia: temperatura; troduzida quando o paciente não tiver dor, ausência de íleo
PA média; frequência cardíaca; frequência respiratória, pH paralítico e fome, deve ser realizada de forma gradual, isen-
ou Bic arterial; Na; K; hematócrito; leucócitos; idade e esca- ta de lipídios. Nos casos de impossibilidade de reintrodução
la de Glasgow e problemas crônicos de saúde (cirrose; ICC; de dieta oral a opção preferencial é por meio de SNE locada
DPOC; IRC dialítica; imunossupressão). em 3ª porção duodenal por EDA, e se não for possível a die-
Outro método de avaliação de gravidade da pancreatite ta com uso do TGI, institui-se a nutrição parenteral total.
aguda é realizado pela TC de abdome, que avalia o aspecto Todos os pacientes considerados graves devem ser tra-
do parênquima pancreático, presença de coleções e por- tados em Unidade de Terapia Intensiva (UTI). A hidratação
centagem de necrose, conferindo uma pontuação a cada deve ser agressiva, entre 250 e 500mL de solução cristaloide
um destes itens (Tabelas 4 e 5). A partir dessa pontuação, é por hora, com balanço hídrico diário e controle eletrolítico
possível prever a possibilidade de morbidade e mortalidade e ácido-básico. Casos leves não necessitam de antibiótico
desses pacientes. Por exemplo, pacientes entre 0 e 1 ponto profilático, entretanto quadros graves e com manifestações
têm 0% de morbidade e mortalidade, e pacientes entre 7 e sistêmicas exigem antibioticoterapia com metronidazol e
10 pontos apresentam 17% de mortalidade e 92% de mor- ciprofloxacino (boa penetração no tecido pancreático) ou
bidade. imipeném.
Quando a etiologia for litíase biliar, a colecistectomia
Tabela 4 - Critérios de Balthazar deverá ser realizada na mesma internação, após melhora
Elemento avaliado Achado Pontos da dor e normalização da amilase. Casos em que já existe
A - Pâncreas normal 0 o diagnóstico de litíase na via biliar principal têm indicação
de CPRE prévia. Todavia, a indicação de CPRE sistemática
B - Edema pancreático 1
em todos os pacientes, antes da colecistectomia, não tem
Grau da pancreatite C - Borramento da gordura respaldo na literatura.
2
aguda peripancreática
O tratamento cirúrgico para desbridamento da necro-
D - Flegmão/coleção única 3 se deve ser postergado ao máximo e atinge maior sucesso
E - Duas ou mais coleções 4 quando realizado após o 14º dia da doença. Antes desse pe-
Ausente 0 ríodo, as indicações devem ser restritas aos casos de necro-
Necrose de 1/3 do pâncreas 2 se pancreática infectada, confirmada com punção e cultura
Necrose pancreática do tecido pancreático, ou pela visualização de gás na to-
Necrose de 50% do pâncreas 4
mografia. A cirurgia precoce pode trazer problemas, como
Necrose >50% do pâncreas 6
maior sangramento, maior retirada de tecido sadio e maior
possibilidade de fístula pancreática no pós-operatório.
Tabela 5 - Índice segundo os critérios de Balthazar
Outras indicações cirúrgicas são a incerteza diagnóstica
Pontos (índice de gravidade) Complicações Mortalidade e a piora clínica; apesar do tratamento de suporte, esta últi-
0a1 0 0 ma, é a indicação mais controversa. Frequentemente, esses
2a3 8% 3% doentes necessitam de uma reabordagem cirúrgica para
4a6 35% 6% limpeza da cavidade. Mesmo em serviços especializados, o
7 a 10 92% 17%
prognóstico dessas pessoas é bastante limitado, e a morta-
lidade em pacientes operados chega a 65%.
Outros exames laboratoriais que também são predito-
res de gravidade são: 7. Resumo
- IL-6; Quadro-resumo
- PCR;
- As principais causas de pancreatite aguda são colelitíase, etilis-
- Fosfolipase A2; mo e hipertrigliceridemia;
- Elastase polimorfonuclear; - O quadro clássico é de dor abdominal, em faixa, em andar su-
- Tripsina imunorreativa. perior, vômitos e hiperamilasemia;
- O tratamento dos quadros leves requer jejum, hidratação e
6. Tratamento analgesia intravenosa. Quadros graves devem ser conduzidos
em unidade de terapia intensiva. A indicação cirúrgica é de ex-
Os itens obrigatórios no tratamento da pancreatite agu-
ceção e fica reservada aos casos de necrose pancreática infec-
da leve são jejum, hidratação e analgesia intravenosa. Os tada.
analgésicos de escolha são a dipirona associada à hioscina
e/ou meperidina, evitando-se a morfina por aumentar a
pressão do esfíncter de Oddi (músculo circular na junção do
colédoco com o duodeno). O uso de inibidores de bomba
protônica é rotineiro na maioria dos serviços.
182
CAPÍTULO
31 Pancreatite crônica
183
GAST R O ENTEROLO GIA
184
PANCREATITE CRÔNICA
se o tamanho é maior que 6cm. Pode-se realizar drenagem em casos de vômitos. Para o tratamento da dor, deve-se evi-
interna endoscópica ou cirúrgica, sendo realizada anasto- tar o uso de morfina e opiáceos, que causam espasmo do
mose do pseudocisto no estômago, duodeno ou jejuno em esfíncter de Oddi (da mesma forma que a aguda) e depen-
Y de Roux – esta última, a técnica preferida. As drenagens dência química em pacientes já com propensão ao vício. O
externas são pouco usadas e são reservadas aos casos de analgésico de escolha é a meperidina.
pacientes graves que não toleram uma cirurgia mais longa. Pacientes com má absorção necessitarão de reposição
Aparecem em 20 a 30% dos casos, como frequentemen- das enzimas pancreáticas. Naqueles que desenvolvem dia-
GASTROENTEROLOGIA
te há obstrução do ducto, não costumam regredir espon- betes mellitus, deve-se avaliar o uso de hipoglicemiante oral
taneamente; podem complicar com perfuração, causando e/ou insulina. Vitaminas lipossolúveis e complexo B tam-
derrames cavitários, e erodir vãos, causando hemorragia bém devem ser repostos.
dentro do cisto ou no ducto de Wirsung, sintomas compres- Outras opções para o controle dos sintomas são a alco-
sivos e infecção são relatados. O tratamento, quando indi- olização do plexo celíaco e o tratamento endoscópico, por
cado, é a drenagem cirúrgica. meio da incisão do esfíncter pancreático, extração de cál-
culos e colocação de stents. Entretanto, os resultados são
B - Derrames cavitários (ascite ou derrame pleu- ruins em longo prazo.
ral – 12,5%)
- Tratamento cirúrgico
A confirmação diagnóstica é feita por meio da paracen- O tratamento cirúrgico só deve ser indicado em caso de
tese com dosagem de amilase, e o tratamento é frequente- falha no tratamento clínico, geralmente há indicação de ci-
mente conservador. Na presença de sintomas, indica-se a rurgia em pacientes com quadro de dor intratável.
paracentese ou toracocentese de alívio. Existem 3 tipos de cirurgia, desde a denervação (gan-
gliectomia celíaca – ressecção do gânglio celíaco – com
C - Complicações vasculares pouca utilização prática, esplenectomia e infiltração do
A pancreatite crônica é a causa mais comum de trombo- gânglio celíaco com etanol), drenagem ductal (pancreatoje-
se de veia esplênica. Podem ocorrer pseudoaneurismas por junostomias) e ablativos (gastroduodenopancreatectomia
erosão de paredes de artérias peripancreáticas, causando e pancreatectomia cefálica). Tais procedimentos têm o in-
ruptura de vaso, geralmente da artéria esplênica. tuito de tratar a dor decorrente da pancreatite crônica; e
A hemorragia digestiva alta (12,8%) pode acontecer não a insuficiência endócrina e exócrina. A destruição do
em virtude da erosão da mucosa intestinal ou por erosão gânglio celíaco (quer por ressecção ou como realizado habi-
de vasos como a artéria esplênica, que pode causar san- tualmente por alcoolização – cirúrgica ou radiológica) tem
gramento volumoso pelo ducto de Wirsung (hemosuccus por objetivo tratar o quadro de dor por eliminação dos sen-
pancreático). sores nervosos. Já os procedimentos de drenagem ductal,
como as pancreatojejunostomias devido a menor pressão
D - Complicações infecciosas intraductal pancreática, também amenizam os sintomas
dolorosos. Os procedimentos de ressecção pancreática têm
As principais são a necrose pancreática (11,2%) e os por objetivo extirpar o órgão que causa a dor.
abscessos (7,3%). O diagnóstico é clínico e se caracteriza Os tratamentos ablativos, tal como infiltração do gân-
por febre, leucocitose e dor abdominal. A TC confirma o glio celíaco, tendem a ser menos invasivos, entretanto, com
diagnóstico e, na dúvida, a comparação pode ser feita por eficácia menor, visto que o fator determinante da dor (pân-
punção, sendo indicada cirurgia para drenagem nos casos creas patológico) persiste. Os procedimentos cirúrgicos que
de abscesso. diminuem a pressão intrapancreática tendem a ser de com-
plexidade menor e, portanto, com menor morbimortalida-
E - Outras complicações de que os procedimentos ablativos; em que há ressecção
Pode haver estenose biliar caracterizada por afilamento total ou parcial do pâncreas.
progressivo no segmento intrapancreático do colédoco (Fi- Algumas complicações da doença também exigem tra-
gura 1B). Possui caráter crônico. tamento cirúrgico, como cistos complicados, sintomáticos
ou maiores que 6cm; ascite pancreática, obstrução biliar,
obstrução duodenal, derrame pleural, necrose infectada,
6. Tratamento fístulas pancreáticas e hemorragia digestiva alta de repe-
O tratamento é clinico, porém metade dos casos neces- tição, na impossibilidade de exclusão de câncer. Lembrar
sitarão de intervenção a longo prazo. A principal indicação sempre que na indicação de tratamento cirúrgico a cura
cirúrgica é a dor refratária aos analgésicos. não será propiciada ao paciente, é capaz somente de ate-
Nas crises dolorosas, o paciente deve ser mantido em nuar ou suprimir certos sintomas, sinais e algumas com-
jejum, com analgesia parenteral e sonda nasogástrica (SNG) plicações.
185
GAST R O ENTEROLO GIA
7. Resumo
Quadro-resumo
- A pancreatite crônica é uma alteração irreversível, que pode
cursar com alterações anatômicas e funcionais;
- Clinicamente, caracteriza-se por períodos assintomáticos com
crises de agudização;
- A principal etiologia é o consumo de álcool;
- O tratamento deve ser inicialmente clínico. A cirurgia acaba re-
servada aos casos de dor refratária e nas complicações, como
pseudocistos e obstruções.
186
CAPÍTULO
32
Tumores pancreáticos e neuroendócrinos
Fábio Carvalheiro / Eduardo Bertolli / Allan Garms Marson / Yeda Mayumi Kuboki
188
TUMORES PANCREÁTICOS E NEUROENDÓCRINOS
endoscópica é muito eficaz para o diagnóstico diferencial Tabela 1 - Classificação TNM – UICC 2004
das lesões periampulares e pode proporcionar a punção Tx Não avaliado
diagnóstica, mas é pouco acessível e tem visão limitada do
T0 Sem tumor primário
restante do abdome.
A colangiopancreatografia endoscópica retrógrada Tis CA in situ
(CPER) foi, até a década de 1980, um dos exames de esco- T1 Limitado ao pâncreas, com até 2cm
lha; hoje é reservada à terapêutica, quando se deseja reali-
GASTROENTEROLOGIA
T2 Limitado ao pâncreas, com mais de 2cm
zar drenagem biliar pré-operatória ou paliativa, ou à visuali-
Além do pâncreas, sem envolvimento do plexo celíaco ou
zação da papila duodenal por duodenoscopia. T3
artéria mesentérica superior
Envolvimento do plexo celíaco ou artéria mesentérica
T4
superior
Nx Não avaliado
N0 Ausência de linfonodos comprometidos
N1 Metástase linfonodal
Mx Não avaliado
M0 Ausência de metástase
M1 Metástase a distância
189
GASTR O ENTEROLO GIA
junal. A linfadenectomia ampliada não é realizada rotinei- liar endoscópica com prótese ou por drenagem percutâ-
ramente, pois não altera a sobrevida. No pós-operatório, a nea (Figura 5).
quimioterapia com gencitabina ou 5-fluorouracil pode ser
indicada, associada ou não à radioterapia. E - Prognóstico
Praticamente todos os pacientes com câncer de pân-
creas morrem em decorrência da doença; 80% no 1º ano,
exceto poucos casos incipientes tratados precocemente.
Os pacientes submetidos à ressecção paliativa (linfonodos
comprometidos) devem sobreviver de 1 a 2 anos, enquan-
to, dos tratados com fim curativo, apenas 15% estão vivos
após 5 anos. Aqueles que não realizaram a ressecção da
lesão sobrevivem de 6 a 8 meses, e os indivíduos com car-
cinomatose peritoneal têm sobrevida de 1 a 3 meses. Todo
o tratamento médico deve basear-se nesse conceito, e as
decisões, ponderadas caso a caso.
190
TUMORES PANCREÁTICOS E NEUROENDÓCRINOS
GASTROENTEROLOGIA
que persistem por mais de 6 semanas. Podem ser derivados que o adenocarcinoma ductal).
externa ou internamente, por cirurgia ou por endoscopia.
Cistos simples podem ser verdadeiros ou de retenção. B - Neoplasias intraductais papilomucinosas
Normalmente, são achados de exames e podem evoluir
com esvaziamento espontâneo. Indica-se cirurgia na dúvida Essas neoplasias ocorrem com igual frequência em am-
diagnóstica. As neoplasias císticas normalmente associam- bos os sexos, entre 60 e 70 anos, e localizam-se, mais co-
-se a aumento do CEA. mumente, na cabeça e no processo uncinado. São lesões
que se originam no ducto pancreático principal ou nos seus
A - Cistoadenomas ramos principais, e formam vilosidades que crescem em di-
reção à luz do ducto, levando à dilatação intraductal cística.
Os cistoadenomas são neoplasias do pâncreas exócrino, Algumas vezes, durante uma endoscopia, observa-se go-
normalmente benignas, e constituem menos de 10% das tejamento de mucina da ampola de Vater. As células mos-
lesões císticas pancreáticas acometendo, na maioria das tram graus variáveis de atipia celular e podem conter áreas
vezes, mulheres de meia-idade ou mais idosas. As neopla- de carcinoma invasivo. As semelhanças entre essas células e
sias císticas são lesões que não se comunicam com o ducto
as do cistoadenoma sugerem uma possível sequência adeno-
pancreático principal e apresentam revestimento epitelial
ma-carcinoma. A maioria dos pacientes apresenta prognós-
característico. Além disso, são mais comuns no corpo e na
tico favorável após a ressecção, exceto se há carcinoma no
cauda do pâncreas (Figura 6).
anatomopatológico.
Um tipo específico de tumor, a neoplasia cística papilar
(tumor de Frantz), é comum em mulheres jovens e, apesar
de localmente invasivo, apresenta bom prognóstico quando
tratado de maneira agressiva com cirurgia.
5. Tumores neuroendócrinos
Os tumores neuroendócrinos são tumores raros, nor-
malmente malignos, que se caracterizam pela secreção de
substâncias funcionalmente ativas como os hormônios pan-
creáticos (Tabela 3). Os sítios mais comuns de metástases
são fígado, pulmão, linfonodos e ossos. A cirurgia represen-
ta a possibilidade curativa na maioria dos casos.
Figura 6 - Aspecto intraoperatório de lesão cística pancreática
Tabela 3 - Espectro de malignidade dos tumores das células das
Nem sempre é fácil diferenciar as neoplasias císticas be- ilhotas
nignas das malignas apenas com dados clínicos e radiológi- Tipo Malignidade (%)
cos. O quadro clínico é discreto, com sintomas que podem Insulinoma 5 a 10
incluir dor abdominal, obstrução gastrintestinal ou, menos Gastrinoma 70
comumente, icterícia obstrutiva. Os 2 tumores mais co- Vipoma 50 a 60
muns desta classe são os serosos e os mucinosos.
Glucagonoma 70
Os tumores serosos são quase sempre benignos, cons-
tituídos, histologicamente, por cistos de pequeno diâmetro
A - Insulinoma
“em favo de mel”, revestidos de epitélio cuboide baixo, rico
em glicogênio. Normalmente, não expressam antígenos car- O insulinoma, tumor funcional mais comum do pâncre-
cinoembriogênicos. À macroscopia, apresentam-se como as, produz insulina em excesso e é originado, principalmen-
cistos contendo líquido aquoso límpido ou amarronzado. te, das células beta-pancreáticas das ilhotas de Langerhans.
Os tumores mucinosos formam um grupo mais hete- É raro em adolescentes, acometendo, principalmente, adul-
rogêneo, com potencial variável de degeneração maligna. tos entre 40 e 50 anos.
Histologicamente, contêm epitélio colunar alto e podem O quadro clínico clássico consiste na chamada tríade de
exibir coloração positiva para antígeno carcinoembriogêni- Whipple: sintomas de hipoglicemia, nível baixo de glicemia
191
GASTR O ENTEROLO GIA
(menor que 50mg/dL) e alívio dos sintomas após consumo deve ser realizado o teste de provocação pela secretina, em
de glicose. Nem sempre o diagnóstico é fácil, pois o quadro que há rápida elevação de gastrina como resposta.
clínico consequente à liberação de catecolaminas pode di- É importante ressaltar algumas condições em que há hi-
recionar o diagnóstico para transtornos neurológicos e psi- pergastrinemia na ausência de gastrinoma como a anemia
quiátricos, não sendo raro o atraso no diagnóstico. perniciosa, gastrite atrófica, câncer gástrico, hiperplasia de
O diagnóstico é realizado com a dosagem de insulina células G antrais.
sérica >5uU/mL durante a hipoglicemia sintomática. Outro A localização pré-operatória é difícil, sendo importante
meio diagnóstico laboratorial é a relação entre insulina sé- o conhecimento de que 90% desses tumores estão localiza-
rica (em uU/mL) e glicemia (em mg/dL); valores superiores dos dentro do chamado triângulo do gastrinoma, que tem
a 0,4 são considerados diagnóstico. como limite a junção dos ductos cístico e hepático comum
Geralmente, são tumores pequenos (<1,5cm), únicos (10% superiormente, a junção da 2ª com a 3ª porção duodenal
são múltiplos) e benignos (90 a 95%), de difícil localização. Os inferiormente e a junção do colo e corpo do pâncreas me-
poucos tumores múltiplos normalmente estão associados às dialmente (Figura 7).
neoplasias endócrinas múltiplas tipo 1 (NEM-1 ou síndrome Métodos de imagem convencionais como USG, TC e
de Werner), caracterizadas por hiperparatireoidismo, tumor RNM nem sempre são bem-sucedidos para a localização
pancreático e tumor hipofisário. A localização pré-operatória do tumor. A USG endoscópica pode ser útil, mas o método
desses tumores não é fácil, pois só 50 a 60% deles aparecem atual mais promissor é a cintilografia de receptor de soma-
em exames de imagem como tomografia e ressonância nucle- tostatina, que envolve o escaneamento com radionuclídeos
ar magnética. A USG endoscópica ou intraoperatória é consi- após a injeção de octreotide radiomarcado (90% dos gastri-
derada o melhor exame para localizar o tumor. nomas têm receptores para somatostatina). Não há crité-
O tratamento é cirúrgico, e, raramente, é necessária uma rios confiáveis para a malignidade, portanto o que a deter-
ressecção pancreática extensa “às cegas” (sem a localização mina é a presença ou não de metástases.
do tumor), em virtude da USG intraoperatória. Pacientes O tratamento é cirúrgico. O controle farmacológico efi-
caz da secreção ácida, realizado atualmente, tornou desne-
que levam mais de 6 meses sem sintomas de hipoglicemia
cessária a gastrectomia total (antigo tratamento “padrão”).
após o procedimento são considerados curados.
A cirurgia consiste na retirada do tumor e das metástases
B - Gastrinoma (síndrome de Zollinger-Ellison) após cuidadosa inspeção e palpação de toda a cavidade pe-
ritoneal. Embora a taxa de malignidade seja alta, as chances
O gastrinoma é o 2º tumor mais comum de células das de cura são grandes, portanto os esforços para a cura cirúr-
ilhotas e o mais comumente sintomático tumor endócrino gica são plenamente justificados. No duodeno, 70% dos tu-
maligno do pâncreas. É importante lembrar que ele, apesar mores estão na 1ª porção, 20% na 2ª e 10% na 3ª. A retirada
de ser frequentemente localizado no pâncreas, pode estar de tais tumores, independente de sua localização, é feita
presente em outros locais. É esporádico em 75% dos pacien- por enucleação das lesões.
tes e associado a uma síndrome NEM-1 em 25% dos casos.
Os sintomas são consequência da hipersecreção de gas- C - Glucagonoma
trina, e a dor abdominal devido à úlcera péptica é o sinto- O glucagonoma é um tumor de células alfa das ilhotas,
ma mais comum. A diarreia é o 2º sintoma mais comum e mais comum em homens e na cauda do pâncreas. Provoca
tem como causas a hipersecreção gástrica, que inativa as erupção cutânea característica, queilite angular, diabetes
enzimas pancreáticas pela diminuição do pH, e a hipermoti- mellitus, anemia, perda de peso e níveis aumentados de
lidade intestinal estimulada pela gastrina. Outros sintomas glucagon. A lesão dermatológica característica é o eritema
comuns são má digestão, esofagite e duodenojejunite. migrante necrolítico, principalmente em face e períneo.
A suspeita clínica deve surgir na presença de sintomas Feito o diagnóstico, o tratamento é cirúrgico, consistin-
como úlceras pépticas recorrentes, úlcera recorrente após do na remoção do tumor primário e metastático. Deve ser
tratamento cirúrgico para doença ulcerosa péptica, úlcera realizada heparina profilática, visto que mais de 30% dos
refratária ao tratamento clínico padrão e diarreia persis- pacientes têm complicações trombóticas após a cirurgia.
tente. Mesmo com a abordagem cirúrgica agressiva, o prognósti-
O diagnóstico é feito pela dosagem sérica de gastrina, co não é bom, com índice de cura em torno de apenas 30%.
que tem como valor normal de 20 a 150pg/mL. Para o diag-
nóstico, é obrigatória a hipergastrinemia na presença de D - Vipomas (síndrome de Verner-Morrison)
hipersecreção ácida. Portanto, deve ser excluída a presen- Os vipomas são tumores endócrinos que secretam VIP
ça de acloridria por meio do pH do suco gástrico, que deve (peptídio intestinal vasoativo) e causam uma síndrome de
ser <2 para continuar a investigação (pH >2,5 praticamente diarreia aquosa, hipocalemia, hipovolemia e acidose. A trí-
exclui a doença). Níveis de gastrina superiores a 1.000pg/ ade diagnóstica inclui diarreia secretória, níveis altos de VIP
mL praticamente fazem o diagnóstico, enquanto níveis in- circulante e um tumor pancreático. A maioria desses tumo-
termediários (150 a 1.000pg/mL) associados a quadro clíni- res é grande e facilmente identificada por tomografia ou
co compatível também induzem a ele. Em caso de dúvida, ressonância magnética.
192
TUMORES PANCREÁTICOS E NEUROENDÓCRINOS
GASTROENTEROLOGIA
Figura 7 - Noventa por cento dos gastrinomas estão dentro do gastrinoma triangular (contorno); muitos deles são extrapancreáticos,
dentro dos nódulos linfáticos ou na mucosa duodenal
Logo após o diagnóstico, deve ser introduzido o tratamento com octreotide para controlar a perda de líquido. Ao diag-
nóstico, 50% dos pacientes apresentam metástases. O tratamento é cirúrgico e consiste, normalmente, em pancreatecto-
mia distal, além de ressecção das metástases.
E - Somatostatinoma
Os somatostatinomas são tumores carcinoides raros (menos de 1%) produtores de somatostatina, localizados principal-
mente na cabeça do pâncreas e duodeno. Acomete a faixa etária dos 50 anos e é pouco frequente antes dos 20 anos. Mani-
festa-se com diarreia, esteatorreia, diabetes mellitus, colelitíase, dor abdominal e icterícia. A localização duodenal tem melhor
prognóstico que a pancreática. A tomografia computadorizada, a RNM e a ultrassonografia podem revelar massa tumoral
pancreática que, associada a um aumento do nível sérico de somatostatina maior que 2,5 pg/mL, sugere o diagnóstico de
somatostatinoma. O tratamento de escolha é a ressecção cirúrgica, sendo a cirurgia de Whipple a mais utilizada. A sobrevida
média em 5 anos é de 60%.
6. Resumo
Quadro-resumo
- O adenocarcinoma de pâncreas é um dos tumores mais agressivos do sistema digestivo, e a cirurgia com intuito curativo raramente é
possível;
- As lesões císticas na maioria das vezes são achados de exame, mas podem evoluir com malignização;
- Tumores neuroendócrinos exigem alto índice de suspeição. O tratamento, na maioria das vezes, é cirúrgico, exceto em casos com
metástases a distância.
193
ANEXO
Periodicamente, a American Joint Comittee on Cancer (AJCC) e a Union for International Cancer Control (UICC) publicam
o estadiamento das neoplasias seguindo o critério TNM. A cada nova edição, são revisadas as estatísticas publicadas em
todo o mundo, e as mudanças são realizadas com o intuito de promover uma linguagem universal para estudar e comparar
resultados em câncer em qualquer país do mundo.
A 7ª e mais recente edição foi lançada em 2010. Este anexo traz o novo estadiamento TNM das neoplasias mais comuns
e que mais comumente são cobradas em concursos. Entretanto, algumas instituições ainda seguem a 6ª edição do estadia-
mento, que pode ser consultada nos diversos capítulos do material didático. Sugerimos aos alunos checarem, na bibliografia
oficial de cada concurso, qual foi a edição adotada na elaboração das questões.
Câncer de esôfago
Classificação TNM - UICC 2010
T Tumor primário
Tx Tumor não pode ser avaliado
T0 Sem evidência de tumor
Tis Alto grau de displasia
T1 Tumor invade lâmina própria, muscular da mucosa e submucosa
T1a Invade lamina própria ou muscular da mucosa
T1b Invade submucosa
T2 Tumor invade até muscular própria
T3 Tumor invade até adventícia
T4 Tumor acomete estruturas adjacentes
T4a Ressecável, invade pleura, pericárdio ou diafragma
T4b Irressecável ou invade outras estruturas, como aorta, corpo vertebral, traqueia etc.
N Linfonodos regionais
Nx Linfonodos não podem ser avaliados
N0 Linfonodos regionais não comprometidos
N1 De 1 a 2 linfonodos regionais comprometidos
N2 De 3 a 6 linfonodos regionais comprometidos
N3 Mais de 7 linfonodos comprometidos
194
ANEXO
GASTROENTEROLOGIA
G1 Bem diferenciado
G2 Moderadamente diferenciado
G3 Pouco diferenciado
G4 Indiferenciado
Câncer gástrico
Classificação TNM - UICC 2010
Tx Não avaliado
T0 Ausência de tumor primário
Tis CA in situ (restrito à mucosa, sem invasão da lâmina própria)
T1 Lâmina própria, muscular da mucosa ou submucosa
T1a Lâmina própria ou muscular da mucosa
T1b Submucosa
T2 Muscular própria
T3 Tecido conectivo subseroso, sem invasão de vísceras peritoneais ou estruturas subjacentes
T4 Invade a serosa (tecido peritoneal) ou estruturas adjacentes
T4a Tumor invade serosa
T4b Tumor invade estruturas subjacentes
Nx Não avaliado
N0 Ausência de metástases
N1 De 1 a 2 linfonodos comprometidos
N2 De 3 a 6 linfonodos comprometidos
195
GAST R O ENTEROLO GIA
GASTROENTEROLOGIA
IIIA T1, 2 N1 M0 B C1
IIIB T 3, 4 N1 M0 C C2
IIIC Qualquer T N2 M0 C C1, C2
IV Qualquer T Qualquer N M1 C D
Câncer de ânus
Classificação TNM - UICC 2010
Tx Não avaliado
T0 Ausência de tumor
Tis Tumor in situ
T1 ≤2cm de diâmetro
T2 >2 a 5cm de diâmetro
T3 >5cm de diâmetro
T4 Invasão de uretra, vagina, bexiga etc. (observação: invasão do esfíncter anal isolado não caracteriza o T4)
Nx Não avaliado
N0 Ausência de linfonodo
N1 Linfonodos perirretais acometidos
N2 Linfonodos inguinais e/ou ilíacos internos unilaterais acometidos
N3 Linfonodos perirretais e inguinais e/ou ilíacos internos bilaterais e/ou inguinais bilaterais acometidos
Mx Não avaliado
M0 Ausência de metástase
M1 Com metástases
197
GAST R O ENTEROLO GIA
198