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VALADARES, F. B.; SANTOS, M. F.

O léxico obsceno inserido no regionalismo da


Bahia. Revista Uniabeu, Belford Roxo, v. 8, ago.2015.

O artigo trata do léxico obsceno inserido no regionalismo da Bahia, expondo


palavras e expressões obscenas a partir da entrada dessas em um dicionário. Os autores
analisam 8 regionalismos, considerando-os como obscenos, presentes na obra Dicionário
de Baianês, do autor Nivaldo Lariú. Coteja-se tais acepções com suas correspondentes
nos verbetes do Dicionário UNESP do Português Contemporâneo (2011) e do Novíssimo
AULETE – Dicionário contemporâneo da Língua Portuguesa (2011), quando registradas,
e procede-se à interpretação dos termos e expressões obscenas não registradas nestes
dicionários; além disso, são discutidos os efeitos dos seus significados e suas implicações
no contexto psicossocial, linguístico e cultural do sul da Bahia. (p. 3-4).

Defende-se que “a adoção do léxico obsceno configura uma ação de reconstrução


imbricada na cultura, em específico em termos de uso regional, com a escolha de
expressões para além de uma questão singular de variação da língua, avançando na perda
da carga semântica insultante que possuíam inicialmente” (p. 1).

Para isto, os autores argumentam que o léxico, mais que mero “repertório de
palavras existentes numa determinada língua” - definição esta dada pelo site Google, -
seria “o elemento que detém a capacidade maior de manifestar as relações de ordem
política, social e econômica que ocorrem nas diversas esferas sociais, manifestando-se
como uma espécie de reflexo da vida de um povo, com os registros que resultam de sua
história e de seus contatos.” (p.2). Porém, “em nome de uma ética vigente”, o léxico
obsceno torna-se um tabu linguístico, passando a servir a situações restritas, como
“descarga afetiva, injúria, coloquialismos e até mesmo como expressão carinhosa”.
(PRETI Apud VALADARES & SANTOS, p. 2-4).

Citando Ullmann, os autores argumentam que a origem dos tabus linguísticos


podem ser três 1) “o medo advindo da religião e das superstições”; 2) “assuntos delicados
ou desagradáveis, como a doença e a morte”; 3) e “atos que transgridam as leis da
decência e do decoro, como as que incluem referências sexuais”. Considerado isso,
Ullmann (1977, p. 206) classifica os tabus linguísticos como “tabus de medo ou
superstição, diante de seres sobrenaturais, animais...; tabus de delicadeza, (envolvendo
doenças, morte, defeitos físicos...); e tabus de decência ou decoro, abarcando
determinadas partes e funções corporais e o sexo”. (ULLMAN Apud VALADARES &
SANTOS, p. 2-6). Argumentam ainda que a ausência de estudos sobre o tema e a não
dicionarização das formas se dão justamente por pertencerem ao campo do tabu
linguístico.

Concluem afirmando que, “as particularidades identitárias de uma comunidade


perpassam suas particularidades sociolinguísticas”. Tal aspecto pode manifestar-se por
meio do léxico empregado, e este emprego, por sua vez, reflete as relações interpessoais
e formas singulares de colocar-se nas relações socioculturais, ultrapassando o xingamento
per si. (p. 14).

Torna-se fácil inferir, a partir da pesquisa acima, que o trabalho com o léxico é
extenso, flexível. O léxico vulgar, em específico, não escapa disto, ao contrário, o seu uso
no discurso mobiliza uma série de estratégias por parte do enunciador e do enunciatário
dentro do processo de interação verbal: funções linguísticas, figuras de linguagem, de
pensamento e de palavra, entre outra série de recursos são empregados nessa interação.
Em outras palavras: As negociações constantes entre enunciador e enunciatário são
processos ricos, dinâmicos, tornando-se não parte do processo de interação verbal, mas
sendo o próprio processo.

Apesar da reiteração dos autores sobre a relação léxico e vida social, parece
relegado a outrem a tarefa de mostrar como se dá a relação entre os sujeitos da interação
quando o léxico vulgar lhe faz parte, isto é, como, nas relações de comunicação
linguística, o uso do léxico vulgar afeta os sujeitos da interação verbal, fazendo que estes
mobilizem estratégias discursivas tanto para o empregar este léxico como para responder-
lhe.

Nesta perspectiva, Braga e Módulo1, ao discutirem o uso de verbos transitivos sem


complemento na construção de propagandas, reparam que, quando nas diversas
estratégias de marketing é envolvido um elemento tabu, uma estratégia linguística
empregada é a destransitivização do verbo anteriormente transitivo. Ao discutir a frase
“Chupa que é doce: sorvetes grátis”, os autores esclarecem a questão:

O estabelecimento lançou, em outdoor, a foto de um par de seios -


feitos com duas bolas de sorvete e cereja nas pontas, no lugar dos mamilos -
com a frase “CHUPA QUE É DOCE” em caracteres brancos, no alto. Logo

1
BRAGA, Henrique Santos; MÓDULO, Marcelo. A construção de propagandas com verbos transitivos
sem complementos. Revista UNINTER de Comunicação. v. 3, n.5, p. 75 – 78, dez 2015.
abaixo, em caracteres amarelos, “Sorvete grátis”. Novamente, um olhar
machista, sexista, que ainda permeia a sociedade atual e que tem a sua
contraparte linguística no complemento à sua direita, instanciado como Ø
(vazio): “CHUPA Ø QUE É DOCE”. Esse Ø (vazio) é preenchido no
português brasileiro por todo um contexto semântico-pragmático
proporcionado pelo verbo “chupar”. (p. 77).

É para efeitos de marketing que o verbo, anteriormente transitivo, recebe um


complemento, vazio, sem gerar uma agramaticalidade, já que

Essa gramaticalidade é garantida pelo preenchimento semântico do objeto, já


que qualquer falante do português brasileiro mais atento, mesmo sem auxílio
da imagem, sabe perfeitamente que a propaganda possui - em uma primeira
leitura - conotações sexuais. (p. 76).

Podemos inferir ainda que o mesmo fenômeno ocorre na fala vulgar do contexto
brasileiro, quando o tabu linguístico está inserido. Em frases como 1), por exemplo, claro
fica o sentido do verbo e seu complemento Ø, não preenchido lexicalmente. Na verdade,
o sentido do verbo é modificado justamente pelo seu complemento, não preenchido
lexicalmente, porque caracterizado como tabu linguístico, integrante do léxico vulgar,
segundo a perspectiva aqui apresentada.

1) Ela deu Ø pra ele.

Inquestionavelmente, as normas de conduta social interferem nas escolhas linguísticas


dos falantes; são elas “que determinam quais tipos de comportamentos devem ser
valorizados por um dado grupo, quais valores sociais tendem a ser reforçados e por isso,
postos em relevo” (BRAGA & MÓDULO, p. 77). Uma possível explicação para esse
fenômeno são as chamadas relações de forças simbólicas, como as chama Bourdieu,
citado por Soares (1992). Para o sociólogo francês, a estrutura social organiza-se através
da troca de bens, sejam eles materiais – serviço, mercadorias, forças de trabalho – ou
simbólicos – conhecimentos, música, livros, etc., sendo a linguagem integrante deste
segundo grupo. Essa troca, na sociedade capitalista, cria relações de força materiais e
relações de força simbólicas, criando possuidores e possuídos, dominantes e dominados.
Nas relações de força materiais, a posse e a dominação se dão por meios materiais; nas
relações de força simbólicas, a dominação se dá por meios simbólicos. Nessa perspectiva,
as relações de comunicação linguística são relações de força simbólicas, e estas,
“presentes na comunicação linguística, definem quem pode falar, a quem, e como;
atribuem valor e poder à linguagem de uns e desprestígio à linguagem de outros; impõem
o silêncio a uns e o papel de porta-voz a outros.” (BOURDIEU Apud SOARES, p. 56,
grifo do autor).

Se o tabu linguístico está relacionado a uma ética vigente, seu uso ou não-uso está,
consequentemente, condicionado a um prestígio linguístico, subordinado às relações de
forças simbólicas. Bourdieu colocará a interação verbal como um mercado linguístico,
em que o produto a ser vendido são as palavras. O falante coloca sua produção linguística,
agora produto, no mercado, prevendo o preço que lhes será atribuído, e esse preço
“depende mais de quem fala e de como fala do que propriamente do conteúdo da fala”. E
ainda:

As características linguísticas que correspondem às posições econômicas e


sociais privilegiadas ganham legitimidade, e assim se desenvolve o
reconhecimento de uma linguagem legítima, que se converte em capital
linguístico, permitindo a obtenção de lucro por aqueles que o detêm. (p. 57).

Tendo a linguagem dos grupos dominantes o reconhecimento de legítima, cria-se


uma regra de aceitabilidade no mercado linguístico. Quanto mais próximo à língua
dominante, tida como regra, estiver a língua de quem fala (na linguagem de Bourdieu, de
quem vende, metaforicamente), mais aceitabilidade ela terá, pois a língua-regra torna-se
ponto de referência para a valorização dos produtos linguísticos, das outras produções
verbais. É pensando nas sanções, positivas ou negativas atribuídas à produção linguística
que o falante irá antecipar a aceitabilidade no mercado de sua produção linguística e a
reação que esta pode suscitar, “o que não depende só do próprio discurso, mas sobretudo
das relações de força materiais, e simbólicas entre os interlocutores”. (p. 58). Desta
maneira, antecipando a aceitabilidade de sua produção linguística no mercado linguístico
e suas regras que o falante faz seu comedimento, silenciando-se (ou não).

Concluímos que o léxico vulgar gera mais ou menos prestígio enquanto produto
no mercado linguístico, a depender da norma deste. Esta norma, ainda de acordo com
Bourdieu, é geralmente baseada na língua que domina o mercado. Ou seja, o léxico
vulgar pode aparecer explícito, como nos exemplos trazidos no artigo de Valadares e
Santos, ou implícito, como visto no caso do complemento Ø, a depender primeiro, de
quem fala, ou seja, da posição do falante na estrutura social, e do mercado linguístico
normatizado, ou seja, tendo um padrão como referência para valor daquele produto, das
regras existentes no mercado linguístico. Em outras palavras, as relações de força
materiais e simbólicas influenciam diretamente na explicitação ou implicitação do léxico
vulgar, pois este é um produto linguístico, vinculado à imagem de quem o fala. As
“questões éticas”, citadas anteriormente, são nada mais que as regras de aceitabilidade do
mercado linguístico, vindas da língua tida como referência da norma. Podemos refletir,
por último, sobre a relevância do fator quem fala nessa discussão: ao julgar o valor do
produto linguístico (por exemplo, aqui, o léxico vulgar regional baiano), não se julga, ou,
mais radicalmente nas palavras de Bagno, condena-se o produto, mas sim o sujeito que a
fala, pois “os modos de falar dos diferentes grupos sociais constituem elementos
fundamentais da identidade cultural da comunidade e dos indivíduos particulares e
denegrir ou condenar uma variedade linguística é condenar os seres humanos que a falam”
(BAGNO, 2015, p. 18). Logo, o julgamento recai sempre sobre aquele que fala: ao julgar-
se uma produção linguística, julga-se um produto fruto de uma identidade, de longa
trajetória até sua produção, produto este sempre em situação de negociação na interação
verbal, mediado pelos valores do mercado linguístico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

SOARES, Magda. Linguagem e escola. Uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1992.
9° ed.

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