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Pedro Bandeira

Há muitos anos sou um apaixonado pela peça de teatro Otelo, que o inglês
William Shakespeare escreveu há mais de quatrocentos anos. E adoro também
Dom
Casmurro, que o brasileiro Machado de Assis publicou há cem anos, inspirando-
se na
trama de Otelo. E de que tratam Otelo e Dom Casmurro? Tratam do ciúme. Do
ciúme! Por
isso, usando de novo a mesma trama de Shakespeare e até mesmo incluindo
trechos de
Otelo e de Dom Casmurro, retomei o tema do ciúme, desta vez fazendo-o
corroer a alma
de uma jovem estudante brasileira.
No final do livro, identificados por números, você encontrará os tais trechos de
Otelo e de Dom Casmurro que foram adaptados à linguagem de hoje e
espalhados ao
longo do texto.
Depois, que tal aproveitar a ocasião para ler os próprios Otelo e Dom
Casmurro?
Hein?
Aquele abraço e... divirta-se!

Pedro Bandeira
Sumário
1. Por que você não me quis?
2. As ondas do verde mar
3. Entorpecida pela dor
4. Fazendo sangrar a mistura
5. Do jeito que ele é
6. Eu sempre estarei por perto
7. Animal de duas costas
8. Uma pessoa muito sórdida
9. Aumentando a dose de veneno
10. Como se fosse uma irmã
11. A gente vai fazer o seguinte...
12. Ela está fora do time
13. Olhos ciganos
14. Nunca mais quero te ver
15. Estoque de maldade
16. A dor e o sofrimento
17. Lamentar uma dor passada
A hora da verdade
Referências dos trechos originais de OTELO e DOM CASMURRO recriados por

Pedro Bandeira

1. Por que você não me quis?


A levantadora do time feminino do Colégio Carlos Queiroz Telles saía do vestiário
e voltava gloriosa para o ginásio de esportes do Colégio Anhangüera, depois do
chuveiro
que se seguira à vitória em cima das donas da casa, na semifinal do Campeonato da
Liga
Juvenil de Vôlei. Vitória de garra, vitória de quem tem sangue nas veias. Tinha valido a
pena viajar mais de trezentos quilômetros de São Paulo até Ribeirão Preto: na quadra,
as
meninas do Queiroz haviam conquistado o direito de disputar a final da Liga Juvenil,
no
fim de semana seguinte.
— Aí, Adele! Você foi demais!
Abraçada com Iara, sua melhor amiga e a atacante mais agressiva do sexteto,
Adele acenou agradecida na direção do cumprimento que vinha de um ponto indefinido
no
meio do público.
O braço de Iara envolvia a cintura de Adele e beliscoua de leve, acrescentando
carinho ao cumprimento do torcedor. No rosto, Iara sorria. Mas, por dentro, a menina
torturava-se com um sentimento que nada tinha a ver com sorrisos:
"Ai, Adele... Por que você tinha de vir para o Queiroz? Só pra me roubar o
namorado?"
Iara e Adele subiam as arquibancadas agora como simples torcedoras. Em
instantes, começaria a segunda partida: os garotos do Queiroz Telles jogariam contra
o
time masculino do Colégio Santo Ambrósio, simplesmente o campeão juvenil do ano
anterior.
— Que mulata, hein? — comentou uma voz masculina.
— E a outra gostosinha, então? Eu queria essas duas na minha escola...
— E eu queria qualquer das duas em qualquer lugar, cara!
A torcida batucava, cantava e assobiava, animada, apesar da derrota do time
feminino da casa para as "seis baixinhas". Essa provocação tinha partido da gigante
Vanda, meio de rede do colégio anfitrião, junto com uma risada sarcástica, logo que o
Anhangüera tinha fechado o primeiro set, enfiando quinze a doze em cima das meninas
do Queiroz Telles.
Pela cabeça de Iara passava a recapitulação da virada...
Iara e suas companheiras haviam voltado com outra motivação para o segundo
set.
Aos poucos, ponto a ponto, as gozações da Vanda foram sendo caladas. O
saque das meninas do Queiroz começou a entrar e aquele set terminou com uma
cortada
de Iara e um erro da própria Vanda. Pronto: um a um.
Logo no início do terceiro set, Cássia, a capitã do Queiroz, marcou um ace num
saque "viagem ao fundo do mar". Iara, Sandra e Neusinha conseguiam amortecer a
maioria das cortadas das jogadoras do Anhangüera nos bloqueios, e os passes de
Cássia
ou de Marisa para as mãos de Adele melhoravam a cada virada de rede.
Elegante como uma fada, Adele distribuía o jogo como se tivesse cintura de
borracha, servindo ora Neusinha, ora Sandra, mas principalmente Iara, que sabia se
colocar sempre livre do alto bloqueio adversário. As duas jogavam como se tivessem
cérebros interligados, como se cada uma soubesse onde estava a outra, sem
necessidade de se olharem.
Cada vez que o saque estava com as adversárias, os dedos de Adele
anunciavam atrás das costas a próxima jogada a ser executada, e a variação de jogo
enlouquecia as garotas do Anhangüera.
Final do terceiro set e dois a um para o Queiroz. No quarto set, oito a oito, e jogo
duro.
Dona Maria Helena, a treinadora do Queiroz, pediu tempo, reuniu suas jogadoras
e comandou:
— Depois de uma viagem de ônibus tão longa, não sei se vocês vão ter gás para
agüentar um tie break, meninas. Por isso, vamos fazer de tudo para acabar com a
partida
neste set. Temos de continuar variando o jogo. Não adianta enfrentar o bloqueio
delas.
Vamos fintar, fintar o tempo todo. Elas não podem adivinhar as jogadas. É com você,
Adele!
— Pode deixar, dona Maria Helena — respondeu a levantadora.
— Vamos lá, garotas! — chamou a capitã Cássia, com entusiasmo.
Voltaram à quadra e Marisa conseguiu aparar uma cortada da enorme Vanda.
Sua manchete amaciou a bola, enviando-a reta, de cima para baixo, na direção da fita
superior da rede. Iara saltou de braço direito erguido, fingindo preparar-se para a
cortada,
e as adversárias subiram para o bloqueio. Executando o que tinha comunicado às
companheiras antes do saque com seus sinais de dedos, Adele aproveitou a finta de
Iara
e tocou por cima da rede, de leve, sem tempo para que as grandonas do Anhanguera
pudessem organizar-se. Vanda mergulhou inutilmente, encharcou a quadra de suor e
levantou os olhos, fuzilando Adele através da rede:
— Negrinha suja!
A confusão tomou conta da quadra mas, antes que as coisas piorassem, o juiz
principal meteu um cartão amarelo na cara da Vanda. Daí para a frente, o Anhanguera
descontrolou-se, o Queiroz Telles fechou o terceiro set e Adele, a "negrinha suja",
saiu
coberta de glórias. Três a um. As visitantes haviam vencido a semifinal do Campeonato
da
Liga Juvenil.
Relembrando e saboreando a gostosa vitória, as duas garotas ainda subiam as
arquibancadas, quando um assobio maroto veio do público, logo seguido de uma
gracinha
machista:
— E aí, Adele gostosa? Levanta uma bola pra mim, levanta, vai!
— Hum... as duas acabaram de sair do banho! Ah, eu queria ser o sabão que
escorreu por esses corpinhos...
Um grupo de torcedores pôs-se de pé e começou a bater palmas, ao reconhecer
as duas. Logo, boa parte do público de Ribeirão Preto aplaudia as vencedoras,
esportivamente.
— Olha aí, Adele: você ganhou até a torcida inimiga!
— Nós, menina! Fomos nós que ganhamos! "Por que você roubou meu
namorado, Adele?"
— Isso porque você foi mesmo demais, Adele! — reforçou Iara, beijando o rosto
da colega. — Se não tivesse sido aquela bola de segundo toque, no quarto set...
— Nós todas fomos demais, Iara! No final do set, você matou o bloqueio delas
com aquela cortada!
"Por que você me roubou o Desmond, Adele?"
— E o saque "viagem" da Cássia, então? Ah, nunca vou esquecer daquele ace e
da cara da Vanda, esborrachada na quadra!
— Ah, ah! Quero ver aquela danada chamar a gente de "baixinhas" agora!
"Ou de negrinha suja, não é, sua negrinha suja?" Pediam licença e tentavam
encontrar espaço na arquibancada. Os dois times logo entrariam em quadra para a
semifinal masculina.
— Temos de vencer, Iara! Temos de vencer no masculino também. O time do
Santo Ambrósio é danado de bom, mas os nossos meninos vão arrasar. Vamos voltar
para o Queiroz com duas vitórias, você vai ver!
— São trezentos quilômetros de estrada, Adele. E vai ter prova de Geometria
amanhã de manhã... — comentou Iara, lembrando a longa distância que o ônibus
fretado
pela escola teria de percorrer à noite, de volta a São Paulo.
"Voltar no ônibus sem Desmond ao lado... Ai, vendo Desmond com você durante
toda a viagem! Eu não vou agüentar... não vou agüentar... Outra vez não, outra vez não!"
Passaram por um homem de terno que carinhosamente acenou para Adele:
— Grande atuação, menina. Meus parabéns.
— Obrigada...
Acabaram conseguindo dois lugares para sentar e Iara segredou:
— Sabe quem é esse engravatado que te cumprimentou, Adele?
— Sei lá, Iara. Só achei estranho alguém vir de terno e gravata num domingo
para assistir a uma partida de vôlei...
— É o diretor do Anhangüera, menina. O próprio!
— Mas que bom! — sorriu Adele, brincando com sua primeira conquista
esportiva, a medalha dourada em forma de bola de vôlei que a menina nunca tirava do
pescoço.
— Por sorte, o pessoal de Ribeirão Preto é civilizado, Iara. Como torcida, só
tivemos os doze garotos do nosso time mais o professor João Massa. E eles agora só
vão
ter nós doze e a dona Maria Helena...
— Se o problema for torcida, Adele, pode deixar que eu vou gritar como se fosse
uma multidão!
— Nesse caso vão ser duas multidões, Iara, porque eu vou torcer até ficar rouca!
Naquele momento, os dois times entravam em quadra. Aplausos, assobios e
poucas vaias acompanhavam as duas dúzias de adolescentes, os titulares e os reservas
que fariam a semifinal masculina do Campeonato da Liga Juvenil de Vôlei.
Centenas de coraçõezinhos femininos pulsaram mais forte, mas dois deles quase
explodiram. À frente da fila dos rapazes do Queiroz, Desmond capitaneava o time e
embalava os sentimentos de Adele e de Iara.
— Vai, Desmond!
— Força, Caca!
— Olha, Iara, lá está o Emílio! Emílioooo!
— Aí, Leo!
— Takashi, a bola tá na tua mão! Põe na rede, Taka!
— Na rede, pró Desmond e pró Miltão!
— E pró Emílio, pró Emílio!
— Três a zero! A gente quer três a zero!
As duas gritavam como tietes, esquecendo-se que tinham acabado de viver seu
momento de estrelas.
Os jogadores pulavam, faziam flexões e tocavam várias bolas na quadra, no
processo de aquecimento. Quase todo o time do Santo Ambrósio era mais alto do que
o
do Queiroz Telles, com exceção do Miltão, garoto gigante e desengonçado, com menos
de quatorze anos. Os professores achavam que, com aquele tamanho todo, ele deveria
era jogar basquete. Mas o menino grande acabou se dando muito bem no vôlei. Logo,
era
titular na rede, dividindo a função de atacante com Emílio e com Desmond.
— Olha aquele loiro lá! — apontava uma vozinha feminina atrás das duas
amigas.
— Vai ser lindo assim na China!
— Na China, coisa nenhuma! — explicava outra voz. — Ouvi dizer que ele é
americano. Ou inglês, sei lá...
Iara e Adele sorriram, cúmplices, uma para a outra, ao ouvirem falar do colega.
— Ai, ai! E aquele outro ali? — continuava a vozinha excitada, que parecia ter
vindo ao ginásio mais para aspirar testosteronas do que para vibrar com o vôlei. — Bem
que podia ter um gato desses na nossa escola...
— Aquele? De faixa no cabelo? Me disseram que o nome dele é Emílio...
Os titulares e reservas do Queiroz Telles saudavam o público e procuravam
reconhecer no meio da multidão as colegas do time feminino.
"Lá estão os olhos verdes DELE...", suspirava Iara por dentro. "Na certa
procurando por Adele..."
Mas foram os olhos castanhos de Emílio os primeiros a identificar os blusões
vermelhos do Queiroz. Seu sorriso abriu-se franco, ao reconhecer Iara. Mas a menina
não
desviou a atenção de Desmond, sua idéia fixa. A seu lado, Adele acenava para o mesmo
garoto, eufórica.
— Ah, Iara! O Desmond é demais!
— Que sorte conseguir um namorado como ele, não, Adele?
— Se é! É o paraíso! Nós vamos continuar juntos, Iara, juntos! Vou dar um jeito
de fazer a mesma faculdade que ele. Daí, nós vamos casar e você... Ora, é claro que
você vai ter de ser a madrinha do nosso primeiro filho!
— Ah, Adele, você fala em ter um filho como se falasse em ganhar uma boneca!
Não é muito cedo pra pensar nisso?
— Que nada, Iara. Você tem sido a madrinha do nosso namoro. Vai ser minha
madrinha pra sempre. Vai ser minha amiga pra sempre. Você é a minha melhor amiga,
Iara!
— Você é a minha melhor amiga, Adele...
O jogo masculino acabou mesmo em três sets a zero, mas foi duro demais: 15 a
13, 16 a 14 e 17 a 15. Os rapazes do Santo Ambrósio deram tudo o que sabiam, mas
naquela tarde de domingo o time do Queiroz estava imbatível. Takashi tinha sido uma
flecha certeira na distribuição de jogo, Caca e Leo foram muralhas na defesa, o
menino
Miltão estivera firme no bloqueio e Desmond, magnífico no saque. Mas, se alguém
devesse ser apontado como herói naquele três a zero em cima do Santo Ambrósio, só
poderia ser Emílio e suas cortadas fulminantes de ponta de rede.
Adele e Iara gritavam o nome de Emílio, mas era em Desmond que as duas
pensavam.
Emílio saiu carregado da quadra, nos ombros de todo o time, mas seu rosto não
estava alegre ao ver a sua querida Iara vir correndo das arquibancadas para abraçar
Desmond, apenas o segundo herói daquela tarde...
Desmond ofereceu o rosto para o beijo de Iara e voltou-se para Adele. Os dois
abraçaram-se apertado e suas bocas se colaram, como se naquele ginásio lotado
ninguém estivesse prestando atenção neles.
Iara passou lentamente a língua pelos lábios, degustando o salgado do suor do
rosto de Desmond. Seus olhos queriam chorar. Como um beija-flor, conseguira
recolher
uma gota de orvalho da pétala desejada, mas teria de contentar-se só com aquilo.
Todo o resto era de Adele.
Afastou-se. Dentre o público, deu para ouvir um comentário preconceituoso em
relação àquele beijo que unia um rapaz louro a uma menina negra. Nem olhou de lado.
Em sua alma, aquele beijo doía como uma bofetada:
"Ladrona! Esse beijo era meu, Adele. Você rouba os meus beijos... Mas isso vai
ter um fim, ah, vai acabar! Eu vou dar um jeito... tenho de dar um jeito..."
Um rapaz que havia invadido a quadra para participar da comemoração
reconheceu-a:
— Você é aquela cortadora sensacional do Queiroz, não é? Parabéns, garota!
"Desmond... Ai, Desmond!", lamentava a alma sombria de Iara, escondida pelo
sorriso que agradecia o cumprimento. "Por que você não me quis? Você disse 'fim'
como
final de cinema, mas o mocinho e a mocinha não se beijaram no final... Agora seus
beijos
são só da Adele, não são?"
2. As ondas do verde mar
Como tinha começado bem o namoro de Iara e Desmond! Que noite
inesquecível!
Tinha sido no ano anterior, no primeiro do segundo grau. Na festa da Roberta, a
colega rica, a levantadora titular e capitã do time de vôlei. Tinha sido naquela casa
grande, com jardim e tudo, a noite que os deuses gregos do amor haviam escolhido
para
o encontro entre Iara e Desmond.
Desmond, o belo rapaz do segundo ano, a conquista dos sonhos de qualquer
garota daquele colégio. Seu pai, representante de uma exportadora inglesa, viera com
a
família para o Brasil, trazendo o filho de apenas um ano de idade. Foram conquistados
pelo país e aqui resolveram ficar em definitivo. Os anos passaram e o menino Desmond
cresceu brasileiro. Um brasileiro loiro, de olhos verdes...
"Desmond..."
Somente com os olhos, as recém-chegadas da oitava série, calouras do primeiro
colegial, acompanhavam o garoto no recreio, na quadra, na cantina, rindo entre os
amigos, mas coragem para chegar nele ainda não tinham reunido.
"Ai, ficar com o Desmond..."
Durante os preparativos para a festa, um desafio tinha sido proposto, Iara não se
lembrava mais quem viera com a idéia da aposta. Talvez tivesse sido a Neusinha:
aquela
que conseguisse ficar com Desmond teria uma semana de refrigerante pago no recreio
pelas outras meninas do grupo.
Iara nem tinha pensado a sério em disputar a aposta mas sua vida inteira mudou
ao ver Desmond entrar na casa da Roberta. Andar de atleta, sorriso fácil, iluminado,
olhar
de... olhar assim como o de uma onda, que chega ruidosa à praia e parte, sugando tudo,
carregando tudo o que conquista na areia. Para não ser arrastada, Iara tentou desviar-
se,
fixar-se no resto, nos braços fortes, nos cabelos louros, longos, espalhando-se pelos
ombros... mas logo voltava aos olhos e a onda que saía deles crescia, espumando,
ameaçando envolvê-la, puxa-la, tragá-la para o alto-mar...
Desejou toma-lo, como um bárbaro viking que invadisse a Inglaterra, roubando
favores sexuais sob a ameaça de um machado recurvo. Mas a vontade foi só uma idéia,
uma idéia sem língua, que permaneceu calada na garganta.
Desmond estendeu a mão, cumprimentou... Nessa hora o que ocorreu à menina
foi uma idéia com mãos, ela quis agarrar a mão do garoto, não apertá-la apenas, quis
roubá-lo pela mão, começar pela mão e tomar o resto. Ele continuava a espalhar
charme
por todo o salão, ria-se para Roberta, cumprimentava mais uma garota... Iara quis
persegui-lo, envolvê-lo pela cintura, impedi-lo de dividir-se com outras... Mas agora o
que
vinha era uma idéia sem pernas, idéia só, as pernas de verdade pesavam como chumbo
e ancoravam a menina ao chão.
De repente, o inesperado: aquele garoto bonito jogava seu verde olhar
justamente em cima de Iara, sem que a menina sequer tivesse tido tempo de preparar
charminhos especiais para tentar a conquista. Ele voltava, algo incrível acontecia, ele
se
chegava a ela, tomava-a pela mão...
"Ai..."
Logo estavam no jardim, a música alta vinha da sala, da aglomeração das
colegas que perderiam a aposta, ele falava sobre vôlei, elogiava o jogo da menina, dizia
que sua cortada era demais... Ela derretia, sentia ímpetos de pegá-lo, puxá-lo e beijá-
lo...
Idéia só. Idéia sem braços, os dela continuaram caídos e mortos.
"Doze de maio... Nunca vou me esquecer daquela noite, daquele doze de
maio..."
A idéia do mais cobiçado garoto do segundo ano por sorte era semelhante, e a
dele tinha braços, braços fortes, que como um milagre envolviam Iara, fazendo-a
flutuar
no escurinho do jardim da casa da Roberta, ao som de um conjunto que berrava, na
certa
implorando para não estar ali e flutuar junto com Iara a bordo daquela nuvem de
felicidade
que pairava acima de tudo e de todos.
Ele cheirava bem, oh, como ele cheirava bem...
Ficar com garotos todas as suas amigas ficavam desde os onze ou doze anos,
mas aquele momento aquecia a menina como se fosse o primeiro. Desmond não veio
sedento e apressado como os moleques inexperientes com quem Iara já tinha ficado.
Era delicado, como se estivesse mais preocupado em fazê-la sentir-se feliz do
que em satisfazer-se.
Os lábios de Desmond! Ah, os lábios de Desmond pareciam conhecê-la como se
o garoto tivesse passado a vida a beijá-la. Sua língua tocava-lhe a sensibilidade do
cantinho da boca, esfregando de leve, acariciando com doçura, antes do beijo tórrido,
tropical... Beijou-lhe o pescoço, aspirando-a, como se quisesse respirá-la. E suas mãos!
As mãos de Desmond eram as de um colhedor de pêssegos que não quer machucar a
fruta, enlouquecendo Iara...
Não! Aquele não poderia ser somente um encontro inconseqüente, uma chama
que havia sido levantada, alimentada com furor, mas cujo destino seria apenas as
cinzas
mornas de um dia seguinte. Iara queria mais, queria tudo, queria a eternidade e, na
manhã seguinte, tratou de pedir o infinito a Desmond.
— Nós, Iara? Puxa, eu não pensei que... Desmond não tinha aceitado iniciar um
namoro de má vontade. Isso não. Iara estava certa disso. Ao contrário, ele parecia
fazer
tudo para que as coisas corressem bem. Por seu lado, a garota tentou ser a namorada
mais carinhosa, mais presente, mais apaixonada, mais dedicada, mas o que havia
começado tão gostoso não se desenvolvia em cima da mesma nuvem que acolchoara o
encontro nos jardins da Roberta. Tinham voltado a pisar o chão de verdade e o rapaz
começou a demonstrar-se incomodado com a insistência com que Iara ligava para sua
casa, nos raros momentos em que a menina não impunha sua presença física a
Desmond.
— Oi... O que foi, Iara? A gente acabou de se ver... Por que eu demorei para
atender? Ora, estava no banho e...
Estar juntos, juntinhos, agarrados, também não parecia uma solução:
— Puxa, Iara! Mas que ciúme é esse? Eu não estava olhando pra garota
nenhuma.
Eu só...
Logo em seguida, em mais um telefonema, a voz de Desmond alterava-se:
— Por que meu telefone estava ocupado? Ora, Iara, era minha mãe e uma amiga
que... Como? Ora, é claro que eu não estava falando com garota nenhuma!
Juntos, ela implicava com tudo:
— Foi uma tia da Inglaterra que me mandou esse blusão, Iara. Não foi nenhuma
"namoradinha inglesa", ora essa!
Em pouco tempo, com jeito, sem qualquer agressividade, Desmond pediu a ela
que parassem com o namoro antes que acabassem brigando feito marido e mulher.
— Não agüento esse seu ciúme, Iara. Vamos manter nossa amizade, tá?
"Amizade?! Amizade só? Ah, não! Isso eu não vou aceitar! E ciúme?! Que
besteira...
Ciumenta, eu? E aquelas galinhosas que ficam arrastando as penas pra ele o
tempo todo? Ele pensa que eu sou besta? Eu tenho de..."
Mas não havia nada que ela pudesse fazer para recuperar o namorado.
Sem Desmond, as férias de final de ano passaram como tortura.
E aí tinha surgido a nova aluna do Queiroz...
No início das aulas, Adele veio para o segundo colegial, a classe de Iara. Era
falante, sorridente, amiga, sem timidez alguma.
Adele tinha sido campeã infantil e jogava vôlei desde criança. Nos primeiros
testes em quadra, a treinadora do time feminino do Carlos Queiroz Telles descobriu
que
nunca tinha tido uma levantadora como ela. Mãezona como era, dona Maria Helena
conversou com a Roberta até cansar e a menina não teve outro jeito senão aceitar a
reserva.
— O posto de capita costuma ser da levantadora. Você será também a nova
capita, Adele.
Adele protestou, com veemência:
— Oh, dona Maria Helena! Isso não. Será que a menina mais antiga do time não
mereceria esse posto mais do que eu, que estou chegando agora?
— Está bem, então — concordou a treinadora. — A capita da equipe passa a ser
a Cássia, mas a coordenação tática em quadra fica com a Adele.
No vestiário, depois do treino que se seguira àquelas modificações no time titular,
Marisa e Iara tinham ficado para o fim da fila do chuveiro e conversavam, ainda
ensaboadas:
— Puxa, Iara! Essa Adele é boa mesmo, não? Você viu onde ela foi buscar
aquele passe que eu dei, toda torta, depois de aparar a pancada da Lorena? Nunca vi
tanta agilidade! A danadinha jogou-se na quadra e ainda colocou a bola no ponto certo
pra
você!
— E eu: pimba! Ponto pra nós! Coitada da Roberta... Essa nova levantadora é
mesmo melhor que ela...
— E o que você acha da Cássia como nova capita? Será que ela vai dar conta do
recado, quando a gente tiver de enfrentar meninas duronas como aquelas do Visconde
de
Sepetiba?
— Ora, não vai ter problema, Marisa...
— Me passa a toalha?
— Anda logo, que a aula de Química já vai começar. Enxugando-se, Marisa
continuava a comentar as mudanças no time:
— A Cássia sempre foi a mais estudiosa da nossa classe, desde o primeiro grau.
A "certinha", sempre fazendo tudo do jeito que os professores queriam.
— Do jeito que qualquer adulto queria, Marisa.
— Cássia é puxa-saco! Mas é boa gente, Iara.
— Claro que é. A Cássia é ótima.
— Bom, ela nunca foi líder de coisa nenhuma e acho que nem sabe enfrentar
jogadoras histéricas em quadra como a Roberta, mas...
— Mas vai dar tudo certo, Marisa. A gente vai dar a maior força pra ela. Vamos lá,
senão a gente chega atrasada.
Logo no dia seguinte, antes do bate-bola costumeiro do intervalo, Iara guardou o
aparelho dentário no bolso do blusão e enganchou o agasalho na tela do alambrado,
como sempre fazia. Quando o sino tocou, cadê o aparelho?
— Ai, alguém derrubou o blusão! meu aparelho!
— Vamos logo, Iara — chamou Adele.. — Agora é a prova de História.
— Não vou! — a menina quase gritava, começando a desesperar-se. —
Enquanto eu não achar o meu aparelho, eu não vou! Meu pai vive reclamando do preço
do dentista e dizendo que não vê a hora de acabar esse tratamento. Se eu aparecer
em
casa sem o aparelho, meu pai vai me matar!
— Você perdeu o aparelho? Fica calma que a gente acha.
E as duas puseram-se de quatro, esquadrinhando cada centímetro da quadra à
procura do aparelho dentário de Iara. O recreio esvaziou-se.
— O que é isso, Iara? Não chore...
— Você não conhece o meu pai, Adele... Não vejo a hora de poder sair de casa,
pra sempre! Você acredita que ele ainda bate em mim? Parece um louco, quando perde
a
cabeça. E perde a cabeça por qualquer coisinha...
Iara soluçava, como criança, e Adele abraçou-a ternamente:
— Calma, a gente vai encontrar esse aparelho. Eu não saio daqui enquanto a
gente não descobrir onde ele está.
Os minutos correram e a prova de História já estava perdida. Ansiosa com a
situação, Iara não pensou que Adele estava aceitando receber o mesmo zero que ela
receberia. Essa consciência só lhe ocorreu quando ouviu o grito triunfante de Adele,
que
rastreava a grama além do alambrado:
— Achei, Iara! Olha aqui!
Nas mãos da colega, o aparelho de acrílico, cheio de arames, estava intacto!
— Encontrei aqui, caído na grama. Quase não dava pra ver. Ainda bem que
ninguém pisou..
Iara chorava, agora de alegria, abraçada à colega.
— Ai, Adele, que maravilha! Mas a gente perdeu a prova de História. Você vai
tirar zero!
— Só eu vou tirar zero? Você também, ora!
— É, mas o seu zero vai ser por minha causa!
Adele enlaçou os ombros da colega:
— Pode deixar, Iara. História é fácil. A gente arrasa na próxima prova!
Vitoriosa nas quadras e generosa nos relacionamentos, Adele foi se tornando
cada vez mais popular na escola e no time. Enturmou-se no Colégio Carlos Queiroz
Telles
como se fosse uma veterana e conquistou Iara desde aquele dia.
— Você é a minha melhor amiga, Iara!
— Eu te adoro, Adele!
A companhia de Adele havia conquistado Iara. A menina era inteligente e sempre
simpática em tudo o que fazia. Na quadra, o jogo de Iara conseguiu melhorar ainda
mais,
com a nova parceira como levantadora.
Nos primeiros treinos, levantando para as reservas, Roberta tentou de tudo para
superar o que Adele fazia na metade titular da quadra. Mas a história do time
feminino
daquele colégio tinha mudado com a entrada de Adele. Logo, a recém-chegada
percebeu
a agressividade dos ataques de Iara e, quando as duas estavam na rede, com Iara
cortando pelas pontas, o sexteto feminino do Queiroz foi se tornando arrasador.
3. Entorpecida pela dor
— Eu queria era que essa negra quebrasse a perna!
Adele havia caído de mau jeito, depois de um bloqueio. Dona Maria Helena a
examinou e concluiu que era uma entorse leve no tornozelo. A dor ia passar num
instante.
Não era preciso nem sair de quadra.
Iara estava atrás de Roberta e ouviu quando a levantadora reserva resmungava
baixinho, mostrando toda a frustração que ainda trazia dentro de si por ter perdido o
lugar
no time para Adele. O sangue subiu-lhe à cabeça e Iara teve de conter-se para não
esbofetear Roberta. Mas fazer o quê? O problema só aumentaria se ela fosse
defender a
amiga. Decidiu que seria melhor fingir que não tinha ouvido nada.
Mas logo chegou um momento em que Iara não pôde ficar calada. Foi no
intervalo, pátio lotado, um cretino de uma outra classe do segundo ano veio com uma
frase grossa, nojenta, racista, exibindo-se para os colegas e tentando humilhar Adele.
Iara
pulou como uma leoa, engalfinhando-se com o rapaz, sem pensar que ele era maior e
mais forte do que ela. Com a força da fúria, derrubou-o no chão e o esbofeteou como
louca. Quando a turma do "deixa-disso" conseguiu arrancá-la de cima do rapaz, ela
ainda
gritava:
— Você tem de pedir desculpas! Tem de pedir desculpas pra Adele, seu
miserável!
Os garotos mais debochados riam e aplaudiam a cena, arrasando com o colega:
— E aí, hein? Apanhando de mulher!
Mas o garoto, atônito, com o rosto unhado, vermelho, quase chorando, tinha sido
dominado pela fúria da garota:
— Está bem, era só uma brincadeira... eu não tive intenção... Desculpa...
Os dois foram suspensos pela orientadora educacional, pois a regra do Queiroz
proibia brigas e a pena era suspensão para todos os envolvidos, não importando quem
tivesse ou não tivesse razão. Mas a garota virou a heroína da classe por um tempão.
— Você viu? A Iara! Deu uma surra no Gustavo pra defender a Adele!
— O Gustavo? Aquele grandão?
— Pois apanhou feito moleque! A Iara é demais!
Na tarde do dia seguinte, Adele foi à casa de Iara levar as anotações das aulas
perdidas pela suspensão. Palavras entre as duas não eram necessárias: abraçaram-se
caladas, por um tempo longo, muito longo...
Iara e Adele tornaram-se inseparáveis como irmãs siamesas, na quadra, na
escola e na vida.
Uma amizade que nada poderia destruir.
Mas, como tudo sempre tem um "mas", Desmond e Adele acabaram descobrindo
um ao outro.
"Malditos!"
Foi numa excursão de "estudo do meio" ao pico do Jaraguá, organizada pelo
professor de Geografia.
Os segundos e terceiros anos partiram da escola, bem cedinho, em dois ônibus
separados.
Juntas, sentadas lado a lado, Adele e Iara vieram papeando e trocando
confidências o tempo todo, inseparáveis como sempre.
— Muito bem, gente — comandava o professor, depois de quase três horas de
passeios e explanações por todo o ambiente do pico mais alto de São Paulo. — Agora
temos uma pausa para o almoço. Vamos descansar por uma hora. Quem quiser pode
passear por aí. Os bosques são belíssimos, porque ainda temos uma boa reserva de
Mata Atlântica aqui no alto. Cuidado com as escarpas, hein? Hein? Cobras? Não se
preocupem. As cobras são mais covardes do que vocês...
Os alunos haviam trazido seus lanches e espalharam-se, cobrindo com sua
alegria o topo do pico do Jaraguá. Iara correu até o ônibus, para buscar o sanduíche
que
trouxera. Quando voltou, quase não havia nenhum colega à vista.
"Cadê a Adele?", pensou ela, procurando companhia.
Desembrulhou o sanduíche e meteu-se por entre as árvores, fugindo do sol forte.
A mata era fresca e acolhedora. Pássaros de todos os tipos ali se refugiavam da
poluição
da cidade, enchendo o bosque de música. Um esquilo aproximou-se da menina, de pé
nas patinhas traseiras, acostumado a receber sobras dos lanches dos excursionistas.
Iara ia sentar-se numa raíz alta, quando ouviu uma conversa sussurrada, pouco
mais adiante. Avançou alguns passos na direção das vozes e estacou, surpresa: num
leito
de folhas amarelas, Desmond estirava-se, com o corpo de Adele quase sobre o dele.
"Desmond! E Adele!"
Dali vinham os sussurros, dali emanava uma onda de carinho, dali começava a
mover-se a avalanche do desespero de Iara. Aturdida, a menina mal ouvia o que era
dito
entre os dois, mas, vendo, foi como se ouvisse tudo. E tudo presenciou:Adele
acariciava
lentamente os longos cabelos de Desmond, tirando-lhe pedacinhos de folhas que
haviam
se enredado durante a caminhada através da mata. Desmond parecia repousar, olhos
semicerrados, recebendo a carícia da brisa que afastava o calor e relaxando com a
ternura das mãos de Adele.
Iara sentiu como se alguém a estivesse estrangulando. E foi contendo a
respiração que ela continuou a testemunhar a cena.
Adele trabalhava os cabelos do garoto devagar, devagarinho, saboreando pelo
tato aqueles fios grossos, que eram parte dele. Parecia não querer encontrar todos os
pedacinhos de folhas, para prolongar o trabalho. Os dedos roçavam por seu rosto,
enfiavam-se atrás da nuca, tocavam os ombros... Adele parecia desejosa de que aquela
tarefa durasse por todos os séculos dos séculos, desejosa de continuar dedilhando
aqueles cabelos ao infinito, por um número inominável de vezes...
Desmond erguia-se, apoiando-se num cotovelo. Os olhos encontravam-se,
contando o que os dois leves sorrisos proclamavam com clareza.
Logo estavam sentados sobre as pernas, com as calças de brim enfeitadas pelas
folhas amareladas. Adele baixava a cabeça, brincando com o leito de folhas, que
escondia a terra. Ele baixou também a cabeça, mas voltando os olhos para cima a fim
de
ver os dela... Desmond fitava-a com uns olhos ternos e a posição os fazia súplices...
"Um beijo! É um beijo que ele está suplicando!" Rindo, provocadora, Adele
punha-se de pé. Desmond erguia-se junto com ela e passava os braços em volta de sua
cintura. Puxava-a para si. Faceira, Adele fazia-se de difícil, recuando o busto.
Com a insistência do rapaz, o busto afinal cedeu, mas a cabeça não queria ceder
também e, caída para trás, inutilizava os esforços da boca de Desmond, que procurava
avidamente a sua. De repente, atirando-se para a frente, enlaçando seu pescoço,
Adele
colou-se gulosamente aos lábios de Desmond, entregando completa e apaixonadamente
o que fingia recusar ainda havia pouco. Foi um beijo frenético, imenso, avassalador...
A paisagem sombreada começou a girar, como se uma ventania destruidora
prenunciasse uma tempestade, e os elementos enfurecidos invadiram o interior de
Iara,
explodindo sua alma em trovões. Cambaleando, a menina afastou-se, aos poucos
conseguiu acelerar o passo, a custo recuperou o equilíbrio e correu, doidamente, como
se
um lobo de histórias infantis houvesse surgido no bosque disposto a devorá-la. Chegou
sem rumo nem idéia à clareira onde ficava a construção que acolhia os excursionistas.
Mal pôde chegar ao banheiro e vomitar o sanduíche que não havia comido.
Adele e Desmond voltaram juntos, agarradinhos, na mesma poltrona de um dos
ônibus.
No outro ônibus, Iara tentou isolar-se. Seus olhos estavam esbugalhados, em
pânico, sem nada fixar.
— O que houve, fofinha? Que cara é essa?
Emílio vinha balançando o corpo junto com o andar do ônibus. Vinha trazer
carinho e oferecer simpatia. Como sempre, esperando o calor e a companhia da menina,
de quem ele não parecia desistir. Naquele momento, porém, quem visse a expressão de
Iara, respondendo muda ao rapaz, pensaria que um dos erros da engenharia dos seres
humanos foi deixar-lhes unicamente os braços e os dentes, como armas de ataque.
Isso porque os olhos bastariam.
O rapaz voltou para o fundo do ônibus, entendendo o recado.
Iara manteve-se como sonâmbula até chegar em casa. Havia conseguido
escapar dos colegas, da insistência de Emílio, mas não escapava de si mesma. Correu
para o quarto e entrou atrás de si. Falava-se, perseguia-se, atirava-se à cama, e rolava
consigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol.
Só conseguiu dormir de madrugada, entorpecida pela dor.
4. Fazendo sangrar a mistura
Para Iara, a viagem a Ribeirão Preto tinha significado nova tortura, mais algumas
horas dentro de um ônibus, tendo de testemunhar a continuação dos agarramentos
entre
Desmond e Adele, tal como no retorno da excursão ao pico do Jaraguá. Agora, depois
da
vitória, não havia satisfação em sua alma. Só a expectativa de mais horas sob o mesmo
tormento.
— Vamos lá, meninas! — chamava a treinadora Maria Helena, batendo palmas.
— A diretoria do Anhanguera ofereceu um lanche pra gente. Só temos quarenta
minutos
até a saída do ônibus. Não se percam por aí, hein? Em meia hora quero todas aqui na
frente do ginásio com suas mochilas, prontas para a partida.
João Massa saía carregando uma rede cheia de bolas. Quase esbarrou em Adele
e fez aquela cara de gozação já conhecida de todos:
— Como é, cafezinho? É bom não esfriar, porque o seu leite já está vindo aí!
Depois da surra que Iara havia dado no colega malcriado, o professor de
Educação Física dos rapazes era o único que ousava fazer piadas com a cor de Adele.
Mas naquele momento a menina nem parecia ouvi-lo, com os olhos postos bem atrás do
gigantesco treinador, que em anos distantes já havia jogado na Seleção.
Da saída do vestiário masculino, Desmond vinha abraçado ao garoto Miltão, que
ria feliz, como criança que tivesse passado uma tarde no parque de diversões.
O rapaz logo avistou Adele e em um instante estavam nos braços um do outro.
— Oi, campeã!
— Eu te amo, campeão!
Iara pegou um sanduíche da bandeja que havia sido deixada numa mesa da
entrada do ginásio e afastou-se.
Roberta segurava um refrigerante, isolada de todos. Iara percebeu que o olhar da
colega perdia-se no vazio, na certa tentando sonhar consigo mesma em quadra, alvo
dos
aplausos da torcida. Mas Roberta era agora apenas a levantadora reserva.
"Está tristinha, boneca?", pensava Iara, olhando de longe. "Então somos duas...
Será que qualquer um pode ler as emoções no meu rosto como eu posso ler no da
Roberta? Não! Não posso deixar que ninguém saiba o que eu sinto. Meu ódio é somente
meu!"
Encostada do lado de fora de uma das colunas de concreto da entrada do
ginásio, Iara aproximou o sanduíche da boca. Deteve-se. No meio do pão de fôrma, lá
estavam juntas uma fatia fina de rosbife, marrom como a pele de Adele, e outra de
queijo,
amarelo como os cabelos de Desmond.
"Adele e Desmond... Juntos..."
Uma rodela de tomate completava o conjunto. Com as pontas dos dedos, Iara
esfregou o tomate sobre o rosbife e o queijo, fazendo sangrar a mistura.
Uma lágrima quente escorria-lhe pela face, quando Iara fechou os dentes
furiosamente no sanduíche.
Na hora de embarcar no ônibus que levaria os jogadores do Queiroz de volta a
São Paulo, Iara escolheu a poltrona logo atrás de onde já estavam Desmond e Adele e
ali
sentou-se sozinha.
Apesar do cansaço, a saída do ônibus começou com balbúrdia, cantoria,
batucada e alegria pelas duas vitórias. Eles saíam como vencedores e tinham o que
comemorar.
— Bola pró alto, bola no chão! O Queiroz é campeão!
— E aí, Taka? — brincava Caca, sabendo que o colega havia recebido um
convite para treinar num clube profissional. — Já desistiu da engenharia? Vai viver de
vôlei, japonês?
— O vôlei também é engenharia, Caca... E eu não sou japonês. Sou mais
brasileiro que você, sabia?
Risadas, risadas, risadas...
— Essa a gente já papou! O Anhangüera já era!
— Vai virar Anhanguera Ah, ah!
— Ainda não acabou, pessoal — informou João Massa. — Acabei de saber que o
Cultura Múndi também se classificou hoje. No masculino e no feminino, como a gente.
A
guerra final vai ser contra eles!
— Quer dizer então que a grande final vai ser em Santos? Boa! Vamos pegar
uma praia, pessoal!
— O Cultura Múndi? Puxa, eles não são de brincadeira...
— Olha o Miltão! Já ferrou no sono, o bebezinho!
— Ei, Leo. Vê se o Miltão dorme chupando o dedo! Ah, ah!
— Deixem o menino em paz, pessoal! — vinha lá da frente a voz de dona Maria
Helena. — Que tal todo mundo tentar dormir? A viagem vai ser longa e ninguém tem
dispensa das aulas amanhã...
Aos poucos, a excitação foi diminuindo e o balanço do ônibus começou a
embalar os jovens exaustos.
No escuro, alguém se aproximava para invadir a idéia fixa de Iara. Era Emílio e
sentava-se a seu lado.
— Oi, fofinha. Que tal os dois atacantes que mais marcaram pontos hoje
passarem juntos as próximas horas?
Iara via a brancura dos dentes de Emílio brilhando intermitentemente na medida
da passagem dos postes de iluminação da cidade que o ônibus começava a deixar para
trás.
— Ah, Emílio... Estou cansada...
— Então que tal a gente descansar juntos?
— Você não está com jeito de querer descanso, Emílio... O rapaz pegou a mão
de
Iara e falou, sério:
— Eu gosto de você, fofinha. Você sabe quanto eu gosto de você...
Iara encarou o rapaz, com um tipo diferente de seriedade. Uma expressão quase
de repulsa:
— O que você está precisando é de alguém que levante alguma coisa aí de você.
Esse não é o meu jogo. Eu só sei cortar. A Adele está ocupada, mas por que
você não vai procurar a Roberta? Ela é a levantadora reserva...
Emílio suspirou profundamente:
— Iara, Iara... Por que esse cinismo? O que eu fiz pra você?
— Você não fez nada, Emílio, nem vai fazer. Olha, desculpe, mas eu estou
cansada mesmo. Não estou a fim de ficar com ninguém.
O rapaz fez uma pausa mínima, desviando os olhos de Iara, e continuou:
— Sabe, fofinha? Você me fez lembrar um conto que uma professora de
Português mandou a gente ler na sétima série. Chama-se "Serespaperconfi". Você já
leu?
Iara nada disse.
— Um conto diferente... É um jogo de palavras com os verbos de ligação: ser,
estar, parecer, permanecer, continuar e... ficar... — completou o rapaz, enfatizando a
última palavra.
— Olha, aqui, Emílio, nessa hora, tudo o que eu não estava precisando era de
uma aula de Gramática...
Emílio fez que não ouviu:
— No conto, tem uma garota que não quer ficar com um cara. Ela está a fim dele
de verdade e quer viver todos os verbos de ligação com o cara e não apenas ficar com
ele...
Iara mudou um pouco de tática, amansando a voz:
— Emílio, por favor. Eu não estou querendo nenhuma ligação agora. Não quero
ser coisa nenhuma, nem estar, nem parecer, nem permanecer, nem continuar e muito
menos ficar. Tenho prova de Geometria amanhã e me matei na quadra. As garotas do
Anhangüera não deram moleza. Este ônibus tem mais de quarenta lugares e nós somos
apenas vinte e seis, contando com o João Massa e com a dona Maria Helena. Deixa eu
me esticar nesta poltrona, deixa? Amanhã a gente conversa melhor, está bem?
O rapaz não discutiu. Levantou-se, obediente, e baixou o rosto para a menina,
procurando um beijo. Iara ofereceu-lhe a face e forçou um sorriso.
— Boa noite, fofinha...
— E pare de me chamar de fofinha que eu não sou almofada!
Ouvindo a retirada do rapaz, Iara afofou a mochila no apoio de braço do lado da
janela e encolheu-se, tentando deitar-se do melhor jeito possível na poltrona dupla.
No tecido da mochila, esfregou o rosto com raiva, para apagar o beijo de Emílio,
que mais uma vez havia suspirado desolado, ao afastar-se.
"Pelo jeito esse daí vai passar a noite suspirando... Boboca!"
Já haviam alcançado a estrada e as luzes da cidade afastavam-se,
acompanhando o cansaço de todos, que já começava a arrefecer o entusiasmo. Aos
poucos, somente um cochicho daqui e dali rivalizava com o ronronar monótono do
motor.
Desconfortavelmente deitada, Iara mantinha os olhos abertos, fixos no pequeno
intervalo entre os dois encostos das poltronas à sua frente. No escuro, mal dava para
perceber pequenos trechos do namoro que se desenrolava entre Adele e Desmond.
"Sussurros... tlec, tlec... estalidos de beijocas... Mais sussurros... O que será que
esses dois estão dizendo? "Ai, ai, ai, te amo, Adele"... "Ai, ai, ai, te amo, Desmond"...
Cretinos!"
Ela queria estar naquela poltrona, envolta por aqueles braços, sentindo aquele
calor, recebendo aqueles beijos... As lágrimas voltaram a rolar, abundantes.
"Que ódio! Eu não quero chorar, não posso chorar. Não por causa desses dois!"
Pescando uma palavra aqui, outra ali, Iara foi conseguindo retirar algum sentido
do diálogo apaixonado que se entremeava entre os beijos:
— Está com sono, amor?
— Hum... Eu não queria dormir, pra ficar mais tempo com você... Mas, ao mesmo
tempo, estou louca para pegar no sono, só pra ter um sonho lindo... um sonho com
você...
— Pois fique sabendo que meu sonho vai ser ainda mais lindo, Adele. Porque vai
ser com você...
"Mais tlec, tlec... cuspe com cuspe!"
— Desmond... olha aqui... Eu sempre uso essa medalha, você já notou?
— É claro que sim...
— É a minha primeira medalha ganha no vôlei. Eu estava no infantil. É o meu
troféu. Pegue. Ela agora é sua. Quero que você a use para sempre...
— Oh, Adele...
"A medalhinha! Maldita! Ela deu a medalhinha pra ele. Ah, eu preciso dar um jeito
de... O que eu vou fazer? O que eu posso fazer para que essa metida sinta a mesma
dor
que eu estou sentindo? Oh, eu queria que esse safado se metesse com outra para que
essa Adele descobrisse o que é bom pra tosse! Espera aí: e se eu conseguir envolver o
Desmond com outra? Boa! Mas com quem? É claro, tem a Cássia! Tem de ser ela! Todos
os garotos acham aquela cê-dê-efe a mais gostosa da classe. É uma cretina, uma
puxasaco
e a mais fácil de embrulhar que eu conheço. Anda toda feliz com o lugar de capita da
equipe. Humpf!"
Encolheu-se, apertou os braços em torno de si, como se quisesse abraçar a si
mesma.
"Ah, eu nunca vou esquecer daquela tarde... Dona Maria Helena, oferecendo o
lugar de capita pra Adele e ela, toda cheia de nobrezas, dizendo que agradecia, mas
que
não era justo, que o posto de capita devia ir para alguém mais antigo no time. E a mais
antiga era justo a bestalhona da Cássia! Além disso, tenho certeza de que a bobona
também está caída pelo Desmond, ah, isso ela está! Pensando bem, acho que não vai ser
difícil... Eu só precisava encontrar alguém pra me ajudar, não posso fazer tudo
sozinha..."
Para fechar seu plano, resolveu aproveitar a primeira decisão da treinadora, que
desbancara a antiga levantadora do time e dera seu lugar para a nova jogadora que
acabava de matricular-se no Carlos Queiroz Telles. E a coitada da Roberta tinha
ficado
sem nada. Sem o lugar de levantadora titular e sem o posto de capita. A alma da
garota
agora era um campo fértil para Iara semear urtigas:
"A Roberta! "Eu queria que essa negra quebrasse a perna!", não foi isso que
você resmungou, Roberta? Não é você que anda com cara de trouxa invejando as
vitórias
de Adele, enquanto você fica esquentando o banco de reservas? Ah, ah, então você
está
prontinha pra me ajudar a esmagar esse rosbife! É isso! Vou destruir essa paixão
babaca
dos dois. Ah, e o Desmond vai voltar pra mim, vai descobrir que é aqui, do meu lado,
que
ele tem de se amarrar! Ai, Desmond..."
Os ruídos do namoro apaixonado que se desenrolava à sua frente alimentavam
ainda mais sua dor e faziam crescer o ódio:
"Vingança! Ah, como um veneno, essa idéia me corrói as entranhas. É por isso
que nada, nada, acalmará minha alma, até o dia em que eu conseguir dar o troco: é
traição por traição. Vou transformar esse amor em ódio e a ponte que leva o amor ao
ódio
é o ciúme! Tenho de despertar dentro da alma de Adele o câncer do ciúme, até que ela
perca a razão. Se ela engolir a isca, essa Cássia estará na minha mão, para o uso que eu
quiser. É aí, é aí que eu farei a minha cama, muito bem feitinha, até que Desmond volte
a
deitar-se nela!"
Procurava fechar-se dentro de si mesma e não ouvir os ruídos de amor das
poltronas à sua frente.
"Enquanto isso, preciso fazer com que Adele goste ainda mais de mim e me
agradeça... Ah, ah! Ela vai me agradecer exatamente porque eu vou fazer com que ela
represente o papel de uma perfeita, de uma grandissíssima burra. Depois, é só roubar
a
certeza que ela tem do amor de Desmond e levá-la à loucura!
Todo o plano já está na minha cabeça. Ai, é tudo tão confuso... Mas o que é mau
torna-se bom com o uso!"
Alheios à dor que provocavam no coração de Iara, Desmond e Adele tocavam-se,
trocavam risadinhas excitadas, pesquisavam-se, conheciam-se...
"Hum, mas que namorinho mais besta! Vamos, pega a mãozinha dela, pega... E
aí?
Cochichos no ouvido? Muito bem... sorrizinhos para a negra... Ah, eu vou te
pegar, Adele, eu vou te pegar... Olha só: agora são beijinhos nos dedos machucados
pelo
jogo? Mas que beijos, sim senhora! Mas que paixão, hein? O quê? Mais beijinhos nos
dedos? Pena que esses dedinhos não te sirvam de supositório!"
Aos poucos, o cansaço venceu e Iara mergulhou no sono, imergindo em seus
pesadelos de vingança.
5. Do jeito que ele é
— Ai, Iara, estou morrendo de sono! Cheguei em casa só depois das duas da
madrugada... E mal consegui dormir, pensando na partida de ontem...
— Eu também, Adele. Eu também mal consegui dormir...
A manhã de segunda-feira começava febril, primeiro com os colegas querendo
saber detalhes das duas vitórias sobre o temível Colégio Anhangüera e depois com o
imenso risco que representava enfrentar uma prova de Geometria cansados como
estavam os jogadores do segundo ano. E daquela classe faziam parte Iara, Adele,
Cássia,
Leo, Roberta e mais três reservas: Tomás, Malu e Lorena. Todo mundo alegre com as
vitórias e exausto pela noite mal dormida.
De braços dados, Iara e Adele subiam as escadas comentando os perigos
daquela prova. O professor Valongo, de Geometria, era o mais severo do corpo
docente e
verdadeiro terror para todo o Colégio Carlos Queiroz Telles.
— Pra mim, acho que está tudo bem, Adele. Estudei bastante, na sexta e no
sábado, antes da viagem. Essas fórmulas malucas já estão na ponta da língua...
Adele sorriu marota, apertando o corpo contra o da amiga e confessando uma
malandragem:
— Eu também estudei e acho que está tudo decorado, Iara. Mas, por via das
dúvidas, não quis confiar na ponta da minha língua e anotei as fórmulas com letra
miúda
num papelzinho, que está bem aqui, na bainha da camiseta...
"Uma cola? Ela vai colar na prova? Hum... preciso dar um jeito de tirar vantagem
disso..."
— Uma cola, Adele? Boa idéia... Se eu precisar, você me empresta?
— É claro que empresto. Você é a minha melhor amiga, não é? E além disso
nossas carteiras ficam praticamente coladas uma na outra. O Valongo nem vai
perceber.
— Então, tá. Se eu fizer com os dedos o sinal que você faz para a jogada de dois
tempos, é que preciso da cola. E você me passa quando o Valongo não estiver olhando.
— Confie em mim. Do jeito que eu sempre confiei em você.
— É claro, querida. Nenhuma de nós é capaz de deixar a outra na mão, não é?
— Eu te adoro, Iara!
— Eu te adoro, Adele!
Misturaram-se ao empurra-empurra da entrada em classe e já estavam sentadas
quando o professor Valongo chegou.
Como toda a classe esperava, tratava-se de uma prova duríssima, cheia de
armadilhas, como sempre eram as provas daquele professor. Iara conseguia lembrar-
se
bem das fórmulas e na certa conseguiria uma nota bem razoável. Roberta cabeceava
com a lapiseira na mão, morta de sono.
"Pelo jeito, o Valongo vai satisfazer o seu sadismo ao corrigir em vermelho a
prova da Roberta..."
Olhou de lado. Adele fazia os cálculos normalmente, sem demonstrar qualquer
aflição. Parecia estar se lembrando de tudo. Não precisaria recorrer à cola.
"É agora..."
Com os dedos, fez discretamente o sinal de "dois tempos". Adele percebeu e
tirou um papelzinho dobrado da bainha da manga da camiseta. Valongo caminhava
lentamente entre as carteiras, de olho nos alunos. Passou pelo corredor entre as duas
amigas e continuou. Num gesto rápido, Adele estendeu o braço e passou a cola para
Iara.
"É agora..."
Fingindo nervosismo, Iara pegou o papel desajeitadamente e deixou-o cair no
chão.
Na mesma hora, fez um pequeno ruído de surpresa, muito baixo, mas o
suficiente para ser ouvido pelo professor.
— Ahn...
— Que foi?
Valongo voltava-se, com a cara fechada. No chão, no espaço entre as duas
carteiras, lá estava o papelzinho.
— Hum? O que é isso, hein? A faxineira não varreu essa sala, é?
O professor abaixou-se e pegou o papel. Desdobrou-o e exibiu aquele sorriso
sádico com que brindava qualquer aluno em dificuldades.
— Ora, ora, ora! Então temos aqui um belíssimo resumo da matéria! Mas que
trabalho bem-feito! Vamos lá, de quem é esta cola tão caprichada? E então? Quero
cumprimentar o autor da façanha...
Foi como se um vento gelado, austral, tivesse percorrido a sala de aula. Os
alunos ficaram em suspenso e o vôo de um mosquito poderia ser ouvido.
O vento gelado parecia ter atingido principalmente Adele. Seus lábios
começaram a abrir-se, sabendo que teria de entregar-se, pois, se ninguém se
acusasse,
Valongo daria zero para todos os alunos das duas fileiras.
— É minha, professor... A cola é minha. Desculpe...
A boca de Adele abriu-se mais ainda: quem acabara de falar tinha sido Iara,
entregando-se em seu lugar, assumindo o zero na prova por ela, salvando seu pescoço!
O sorriso sádico de Valongo escancarava-se agora. Ele parecia feliz ao
extravasar seu cinismo:
— Muito bem, Iara. Parabéns pela cola. Pode me entregar a prova, por favor.
Como prêmio, você pode sair mais cedo da sala com a vantagem de ficar sabendo antes
dos outros qual será sua nota. Mais uma vez, parabéns...
Iara era um pouco mais alta que o professor. Levantou-se e encarou-o com a
expressão mais inocente do mundo:
— Desculpe, professor.
Sem voltar a cabeça, percebeu que os olhos de Adele estavam cheios d'água. De
surpresa e gratidão. "Deu certo!"
Altiva, saiu da sala de aula.
Faltavam ainda uns dez minutos para o sinal e Iara treinava saques sozinha na
quadra do colégio, quando Adele chegou correndo, depois de ter entregue a prova de
Geometria.
Parou a dois passos de distância e as duas se encararam. Adele olhava com
olhos de lágrimas para o sorriso tranqüilo da amiga.
Num repente, uma jogou-se na direção da outra, num abraço apertado, intenso,
agradecido.
— Iara, você é demais! Eu nunca ia imaginar que...
— Você não precisa imaginar nada. Minha média não está má em Geometria.
Esse zerinho não vai ser uma catástrofe. Você precisava mais de nota do que eu.
— Mesmo assim! Olhe, eu nem sei o que dizer... eu...
— Não precisa dizer nada, minha amiga. Eu não falei que você sempre podia
confiar em mim? E, depois, a culpa foi minha. Nem sei como fui deixar cair a cola bem
nas barbas do Valongo.
Adele bateu duas vezes uma bola no chão e levantou-a, como se estivesse
servindo numa partida de vôlei, como se procurasse oferecer um presente em
retribuição
ao imenso sacrifício que a amiga tinha acabado de fazer por ela. Iara pulou e cortou
forte,
com força, com raiva, agressiva, e a bola bateu no alambrado, com estrondo.
Rindo e brincando, uma tomou o braço da outra e sentaram-se numa mureta ao
lado da quadra.
— Não precisa contar pra ninguém a história da cola, Adele. Isso fica entre nós.
— Ah, isso não, Iara! Daí todo mundo vai ficar achando que você teve culpa, que
a cola era sua. E eu não...
— Tudo bem, Adele — cortou Iara. — Estou pouco ligando para o que os outros
pensem ou deixem de pensar. Ninguém tem nada com a minha vida.
Adele não conseguia aceitar tanta generosidade da amiga:
— Mas, desse jeito, a turma vai pensar que você é uma coisa que você não é...
— A gente é do jeito que a gente faz com que a gente seja, Adele. Minha alma é
um jardim e a minha vontade é o jardineiro! Eu sou o que minha vontade quer que eu
seja!
Adele enlaçou o braço de Iara, encostou a cabeça em seu ombro e suspirou
profundamente, feliz com a força e a amizade daquela colega que não hesitava em
sacrificar-se por ela.
— Suspiros? — sorriu Iara. — Acho que um suspiro fundo como esse estava
reservado para outra pessoa, não estava?
Olhando longe, para os lados do portão de saída para o pátio, sem nada fixar, só
à espera do sinal para o recreio, quando seu namorado por ali apareceria, Adele abriu o
coração para sua amiga tão querida e a quem ela tanto devia:
— O Desmond é especial, Iara. Amadurecido que só vendo! Muito mais homem
do que eu sou mulher... Quando eu estou longe dele, as horas levam sete vezes mais
tempo pra passar...
— Então é bom o Desmond aparecer logo, senão, quando ele chegar, vai
encontrar uma velhinha coroca ao lado de uma garota novinha e gostosa como eu!
— Ah, Iara! Você é demais!
— Demais são esses ingleses. Na verdade não são de todo maus, apesar
daqueles olhos de água que são o diabo! Você já reparou nos olhos do Desmond? São
como os de um cigano, dissimulados, como quem olha de lado, querendo esconder
alguma coisa...
Adele apenas sorriu com a brincadeira e continuou:
— Que gosta de mim, isso ele não esconde, Iara. O Desmond é demais mesmo.
Sabe? Eu não esperava encontrar tão cedo alguém de quem eu pudesse dizer
que "é o homem da minha vida". Essa frase sempre me pareceu uma coisa velha, fala
exagerada de novela barata. É claro que, desde que me senti mulher, eu sonhava com
um príncipe encantado, com alguém especial, que um dia surgiria na minha vida e me
levaria para sempre, na garupa de seu cavalo branco...
— Ou, no mínimo, no banco do carona de uma Ferrari conversível branca... —
brincou Iara.
Como se não tivesse sido interrompida, Adele procurava desenhar com palavras
a imagem idealizada de seu amor pelo rapaz:
— Mas agora... Agora eu descobri que nem sabia sonhar direito: o Desmond é
muito mais do que minha pobre imaginação poderia ter criado. Ele é... Ora, mas o que
eu
estou dizendo? Você sabe como é o Desmond! Vocês namoraram no ano passado, antes
de eu me transferir para o Queiroz, não foi?
Iara deu de ombros, sem encarar a amiga:
— Você sabe que foi. Um namoro breve, quase nada, muito pouco... Não podia
durar muito, do jeito que é o Desmond...
— Do jeito que ele é? De que jeito ele é?
Iara levantou o queixo de Adele, olhando-a carinhosamente nos olhos:
— O que é isso, menina? Você acha que, como amiga, eu seria capaz de fingir
um sentimento que eu não tivesse de verdade? Desmond é do jeito que você falou:
mara-
vi-lho-so...
Adele afastou-se um pouco, sorrindo, como se a colega tivesse proposto uma
brincadeira, mas com um leve e ressabiado franzir de sobrancelhas:
— Pois você não parece achar nada disso dele, dizendo que "o namoro não
podia durar muito, do jeito que o Desmond é". Ah, vai, fala, Iara. Se você é minha
amiga,
me diga: como foi o namoro de vocês dois?
O sinal tocou naquele momento. Iara levantou-se, olhando com tranqüilidade
para Adele:
— Foi o que todo mundo sabe. O Desmond é danado quando vê mulher...
— Como assim?
— Nada, Adele. É que ele vivia falando aquelas palavras bonitas dele, mas eu
soube que ele não estava nem aí pra essa história velha, essa tal de "fidelidade". Por
isso, mandei ele andar...
Naquele momento, quem observasse a expressão de Iara também haveria de
achar errada a engenharia humana que teria criado apenas as pernas como alternativa
de
fuga. Para fugir, bastariam certas expressões do olhar.
Adele também estava de pé, agora claramente preocupada:
— O que você está dizendo?
— Nada mesmo, Adele. As pessoas mudam. Quando a gente namorou, acho que
ele ainda era muito criança, estava começando a descobrir que existe mulher no
mundo.
Pode ter mudado muito, do ano passado para cá. Me diga: você pode confiar no
Desmond?
— É claro que eu posso confiar nele, Iara. Aposto a minha vida nisso!
A zoeira dos estudantes que desciam para o recreio explodiu no portão do pátio.
Iara colocou as duas mãos nos ombros da colega e sorriu:
— É claro que pode! As coisas mudam. Nem precisa ficar de olho, Adele. Só
porque ele traiu uma vez, isso não quer dizer que venha a trair de novo...
6. Eu sempre estarei por perto
A aula seguinte ao intervalo era de Educação Física e dona Maria Helena
dispensou os alunos que haviam jogado na véspera:
— A vitória de ontem foi sensacional, meninos. Descansem por hoje. O cansaço
muscular pode causar uma contusão e eu não quero que nosso time tenha de enfrentar
a
final contra o Cultura Múndi desfalcado por qualquer besteira. O Leo, a Malu, a
Lorena, a
Cássia, a Iara, a Adele, o Tomás e a Roberta estão dispensados da aula de hoje.
Fiquem
por aí se quiserem, quem quiser pode ir para a biblioteca ou para a sala de computação.
Mas nenhum de vocês toca em bola hoje, tá bem?
Não passou nem um minuto e a classe do terceiro B despencou no pátio. Perto
de Iara, duas colegas conversavam:
— O que houve?
— Era aula de Biologia. A professora voltou pra casa. Você sabe que ela está
esperando nenê, não é? Parece que ficou com enjôos...
Desmond aparecia no meio da turma do terceiro B e acenava para Adele.
"Hum... É claro que o primeiro a descer para cá tinha de ser o Desmond, não
tinha?
E lá vem ele, com a medalhinha da Adele no pescoço...", Iara via o garoto
abraçar-se à levantadora titular do time feminino. "Desmond, Desmond, tudo o que eu
vou
fazer vai ser só pra você voltar pra mim, meu amor... É comigo que você tem de estar,
Desmond..."
Mas, alheio aos sonhos de Iara, o rapaz pegava Adele pela mão e a levava para
trás de uma coluna, conhecida pelos alunos do Queiroz como "o canto dos amassos",
embora naquele colégio fosse comum encontrar casaizinhos em qualquer canto. Ali, os
adolescentes pareciam não ter outra ocupação, nem os cantos outra utilidade.
Sorrateiramente, Iara encostou-se do outro lado da coluna.
"O que será que ela vai dizer? Será que o veneno que eu injetei já está fazendo
efeito?"
Depois do ruído habitual de mucosas e salivas, Adele perguntava,
delicadamente:
— Desmond... eu queria saber uma coisa...
— O que é, meu amor?
— Como é que foi o seu namoro com a Iara?
— Ora, por que isso agora? Foi uma coisa curta, passageira...
"Passageira, é? Curta, é? Você vai ver uma coisa, Desmond, você ainda não viu
nada..."
— Por que vocês acabaram, hein? Foi por causa de outra garota?
— Nada disso, Adele. Eu não sou assim. A Iara é muito ciumenta, é isso. Vivia
imaginando coisas, achando que eu estava olhando pra outras garotas. Isso é chato,
depois de algum tempo...
"Chata, eu?! Miserável!"
Uma pequena pausa. Em seguida, a voz de Adele continuava:
— E agora? Você anda olhando pra outras garotas?
— Como é que eu posso prestar atenção em qualquer gatinha quando eu tenho
você do meu lado, meu bem? Você foi minha primeira descoberta, o maior diamante
que
esse garimpeiro aqui podia encontrar na vida, Adele...
A frase do rapaz derretia a pequena pedra do gelo do ciúme que havia sido
implantada por Iara. Adele derretia-se junto e entregava-se:
— Então você nunca mais vai precisar garimpar, meu amor. Nunca mais. Se eu
sou um diamante, você é meu anel de ouro. E eu vou me engastar em você, pra sempre,
querido...
— Adele... Toda minha vida achei que eu era o que de mim eu tinha feito e que
sempre seria aquilo que de mim eu estivesse fazendo. Mas daí surgiu você. Agora eu
sei
que só serei aquilo que você fizer de mim, aquilo que você está fazendo de mim, minha
Adele...
Em Adele não havia mais ciúme, nem um pingo:
— Oh, que lindo, meu garimpeiro poeta!
— Eu te amo, Adele...
— Eu te amo, Desmond...
Lutando contra a lágrima que queria rolar, Iara afastou-se da coluna para não
ouvir outra vez o ruído de salivas e mucosas se esfregando, como sola de borracha em
piso encerado.
Andou a esmo, sem querer na direção da biblioteca, só pensando em sair do
pátio e afastar-se da felicidade de Adele e Desmond.
A biblioteca do Colégio Carlos Queiroz Telles era ampla. Uns poucos alunos do
terceiro ano espalhavam-se pelas mesas, às voltas com alguma pesquisa. Dos jogadores
dispensados da classe de Iara, só Lorena estava ali, com um livro aberto na frente.
Aproximou-se da colega:
— O que você está lendo?
— Uma peça de teatro. É o Otelo, do Shakespeare. Eu adoro teatro! Vou ser
atriz, sabia?
"Humpf...", pensava Iara ao afastar-se. "Essa metida a intelectual fica lendo
essas drogas... Aposto que esse Shakespeare deve ser uma velharia coberta de teias
de
aranha!"
Passou pela prateleira especial, onde ficavam sempre expostas todas as obras
do escritor Carlos Queiroz Telles, que dera seu nome à escola, e parou diante das
estantes repletas com os romances clássicos da literatura brasileira. Lado a lado, ela
contou dez exemplares iguais de Dom Casmurro, de Machado de Assis, leitura
obrigatória
do bimestre para o segundo ano.
"Mais velharias... Bom, acho que os alunos ingleses também têm de sofrer como
a gente. Aposto que lá eles são obrigados a ler esse chato do Shakespeare, como a
gente
tem de ler essas chatices do Machado. O Desmond nasceu na Inglaterra... Ah, ah, em
vez
de ficar livre do Shakespeare, caiu nas mãos do Machado!"
Ainda nem tinha começado a encarar a tal "leitura obrigatória do bimestre" e
pegou um dos exemplares do Dom Casmurro. Deu uma olhada no texto da orelha do
livro.
"... a perfeição de um grande amor destruído pelo ciúme... Hum! Talvez esse livro
não seja assim tão velho, afinal de contas. Se o ciúme é o remédio que eu vou usar para
destruir um grande amor, acho que esse romance está voltando à moda..."
Atrás de si, o calor de um corpo, o carinho de uma voz masculina:
— Oi, fofinha!
— Ai, Emílio! O que você quer, hein?
— Eu pensei que todo mundo já soubesse: você!
— Eu o quê?
— É você que eu quero.
Iara revirou os olhos para o alto:
— Que você quer encher, isso sim. Sai daí, que você é muito grande e está
fazendo sombra aqui no meu livro.
O rapaz tocou levemente o braço de Iara. Olhou-a sério, compenetrado como um
médico olharia para um paciente:
— O que há com você, fofinha? Você anda tão mudada de uns tempos pra cá...
O que é que anda preocupando você?
— Minha única preocupação é com os colegas chatos que me impedem de ler o
livro do bimestre em paz.
— Deixa disso, Iara. Você não está bem, eu sei que não está bem. Se você não
quer nada comigo, não faz mal, mas pelo menos me deixe ajudá-la. Você anda com uma
expressão esquisita, assim como...
— Como o quê? Vamos, Emílio, me diga, como o quê?
O rapaz sorriu, procurando aliviar a tensão entre os dois.
— Sei lá... Você vai achar que eu estou maluco, mas outro dia, no recreio, você
me lembrou um filme do Disney, Branca de Neve e os sete anões...
— Se fosse agora, eu diria que estou igualzinha ao Zangado! Você ficou maluco
mesmo!
— Pode ser, mas você estava com a expressão exata da rainha, quando o
espelho mágico diz que Branca de Neve é mais bonita do que ela...
— Maluco e malcriado! Isso é coisa que se diga, Emílio?
— É, sim, porque eu acho a rainha muito mais gostosa do que a Branca de Neve.
— Lá vem você...
— Desculpe a brincadeira, Iara. Mas a gente se conhece há mais de um ano,
desde que você entrou no Queiroz e virou titular do time de vôlei. E eu nunca vi uma
expressão como aquela em você. Parecia, parecia... maldade!
— É que eu sou mesmo a rainha da Branca de Neve, seu bobo! Eu sou má, sou
má! Eu viro bruxa nas noites de lua cheia!
— Nas noites de lua cheia gente vira lobisomem, Iara...
— Então eu viro "lobismulher". Sou devoradora de homens! Ora, vê se pára de
me encher!
Dos fundos da biblioteca, a encarregada levantou-se com o "psiu" regulamentar e
a bronca esperada:
— Aqui não é lugar de conversa, meninos. Silêncio!
Iara espalmou a mão no peito do rapaz, enfadada:
— Chega, Emílio. Me deixa em paz, preciso estudar.
O rapaz abaixou-se, enfiando o rosto nos cabelos cheirosos da menina e
sussurrando-lhe ao ouvido:
— Você não é má, fofinha. Você é ótima. Só está confusa. Eu quero ajudar...
Por um instante, o calor da proximidade de Emílio fez Iara estremecer e a menina
sentiu um ímpeto de abraçá-lo. Refreou-se, mas não o afastou.
— Lembre-se, Iara. Se você precisar de ajuda, pode contar comigo.
— Está bem... — respondeu a menina, num suspiro. — Vou lembrar...
Os lábios quentes de Emílio roçaram-lhe o rosto. Ela queimou.
— Estou por perto, Iara. Lembre-se disso, sempre estarei por perto.
Emílio virou-se e saiu da biblioteca.
Nas mãos de Iara ficou o exemplar do Dom Casmurro. Sentou-se numa das
cadeiras de uma mesinha onde não havia ninguém e abriu o livro.
7. Animal de duas costas
No amplo quarto de Roberta, Iara recostou-se na cama, ao lado da colega. Sabia
que, àquela hora, Adele e Desmond estavam juntos, na lanchonete de costume, para
depois, como de costume, meterem-se no canto de costume, na praça de costume,
onde
Iara já estivera com o rapaz, durante as poucas e tão fantásticas semanas que tivera
o
garoto a seu lado, sentindo-o seu, sentindo-se dele, enquanto o tempo "de costume" de
Desmond era gasto com ela.
"Um tempo que passou, mas que eu hei de fazer voltar..."
De acordo com seu plano, Iara ligara para Roberta dizendo que ia dar um pulo
em sua casa naquele fim de tarde.
— Só pra fofocar um pouco... — tinha dito ela.
Foi duro passar de novo pelo jardim onde ela havia conquistado Desmond, mas
Roberta era a cúmplice e o álibi mais fácil que Iara encontrara para realizar e
acobertar o
que tinha de ser feito. Uma "maria-vai-com-as-outras", o retrato da ingenuidade. Iara
jamais entendera como uma garota frágil como Roberta tinha sido um dia escolhida
como
capita do time de vôlei. E isso acontecera no mesmo dia em que dona Maria Helena
havia
descartado Iara como candidata àquela função:
— Você é emocionalmente instável, Iara...
As duas recostavam-se na cama ainda desarrumada, sobre lençóis e cobertores
embolados, pois Roberta tinha dormido quase a tarde inteira, tentando recuperar o
cansaço da longa viagem de ônibus de Ribeirão a São Paulo.
— Ai, menina! Essa viagem foi um horror! Cheguei morrendo de sono para a
prova de Geometria... Nem conseguia entender o que o maldito Valongo queria que a
gente resolvesse, quanto mais lembrar de fórmulas e fazer contas! Acho que vou tirar
um
zero igual ao seu. E nem ao menos por causa de cola...
Iara sorriu, compreensiva:
— Duro mesmo, Roberta. Fazer uma viagem horrível dessas por nada...
— Ué? Como, "por nada"? A gente ganhou, não ganhou?
— É claro... O que eu queria dizer é que você teve de tirar zero em Geometria
sem nem ao menos ter entrado em quadra contra o Anhanguera...
Roberta pensou um pouco, tentando compreender a observação de Iara. Depois,
deu de ombros:
— É... é isso mesmo. Mas o que a gente pode fazer, né? Jogo é jogo. Quem está
na reserva tem de ficar sempre de prontidão, jogando ou não jogando.
— Pois é. Dona Maria Helena alternou várias jogadoras em quadra, para mudar
as posições, conforme o andamento da partida. Mas na levantadora ela não mexeu...
O rosto de Roberta repetiu a expressão de expectativa e ansiedade que havia
revelado na tarde anterior, esquecendo-se de que a treinadora também não havia
tirado
Iara de quadra nem uma vê?:
— Ai, menina, que vontade de entrar no jogo eu sentia o tempo todo!
Principalmente no quarto set, quando a partida estava aquela dureza!
— É... A reserva é chata mesmo... Puxa, como foi bom jogar ao seu lado partidas
ainda mais duras do que aquela, Roberta! Você servindo e eu cortando, você servindo e
eu cortando...
— Eu servindo e você cortando... Era bem legal...
— Lembra daquela bola que você levantou pra mim, caída na quadra, e eu fechei
o jogo contra o Visconde de Sepetiba?
— Se lembro! Foi demais...
— É... mas agora tem a Adele, não é?
Roberta pensou um pouco e encarou a colega a seu lado:
— Me diga uma coisa, Iara, sinceramente: você acha o jogo da Adele melhor do
que o meu?
— A Adele? Melhor do que você? É claro que não, Roberta. Em quadra você é
sensacional. Você é a melhor levantadora e a melhor capita que o Queiroz já teve. Só
aquela burra da dona Maria Helena não sabe disso!
Roberta começou a parecer deprimida, como se somente naquele momento
estivesse percebendo a injustiça de sua exclusão do time.
— Você acha, é?
— Tenho certeza! Nem sei como você pôde ficar calada, caindo fora do time e
ainda perdendo o lugar de capita...
— Pois é...
— Pois é... E dona Maria Helena, além de sacar você do time e promover a
Adele, ainda foi dar o lugar de capita para a besta da Cássia. O que é que a Cássia
sabe?
Matemática? Lidar com computador? Quero ver se o computador vai ajudar a gente na
hora que a Cássia tiver de segurar o time contra uma equipe de provocadoras, como
você
fez contra as danadas do Visconde de Sepetiba...
— É isso aí, Iara — concordou Roberta, com veemência. — Pra ser capita tem
de ter autoridade, senão o juiz acaba deixando o jogo correr solto e as provocadoras
montam em cima! Pelo menos, se ela tivesse promovido você a capita em vez da
Cássia...
— Eu? Ora, uma vez ela veio com a história de que eu sou "emocionalmente
instável". Imagine!
— Imagine...
— Imagine, perder o lugar de capita para uma fazedora de contas e o lugar de
levantadora titular para uma negra...
— É isso mesmo: uma negra! "Ela já está no ponto... Vamos lá!"
— Que raiva, hein, Roberta? Tirar zero em Geometria depois de ter ficado no
banco sabendo que o nosso time não teria passado por aquele sufoco todo se você
estivesse em quadra, não é mesmo?
— É... Pensando bem, é isso mesmo, Iara. Que raiva! "Agora!"
— Então acho que a gente bem que podia aprontar uma brincadeira pra cima da
Adele, você não acha? Uma vingançazinha inocente, só pra aliviar a raiva. O que
você acha?
— Uma vingança? Sei lá... O que é que você está pretendendo?
— Ora, pouca coisa... Só acho que está na hora de a gente dar o troco e mostrar
àquela desgraçada qual o lugar dela.
— Puxa, Iara! Mas você e a Adele são tão amigas!
— Amigas? Pois sim! Nem todos neste mundo podem ser amigos e nem todos os
amigos merecem confiança!
— Bom, mas a amizade é uma coisa boa que... Iara cortou, furiosa:
— Coisa boa! Como é que você acha que eu posso ser amiga sincera de uma
garota que tomou meu namorado?
— Como seu namorado? Faz tempo que você e o Desmond desmancharam...
— Nunca! O Desmond é meu namorado! Sempre será! E eu não posso perdoar
uma garota que anda por aí atracada com ele, como mosca na mussarela!
— Puxa, Iara, às vezes você diz cada coisa!
— Amizade! Ora, tem gente boba, que faz qualquer coisa pra não perder uma
amizade. Idiotas como esses acabam servindo de capacho. A troco de quê? Da
satisfação
do outro que só se aproveita dele? Na hora em que precisarem cobrar essa amizade, o
que os cretinos conseguem é um belo pé no traseiro!
Seu olhar fixava-se num ponto neutro, além das paredes do quarto, e Iara falava
para si mesma:
— Eu não. Sou daquelas amigas que demonstram amizade cega e eterna, mas,
para mim, quem tem de servir é a outra metade! Por fora, qualquer um diria que eu sou
uma escrava dos meus amigos. Mas, por dentro, eu bem sei que só sou amiga de mim
mesma!
— Quer dizer então que você não é minha amiga? — surpreendeu-se Roberta.
— Que eu não posso confiar em você?
Iara sacudiu a cabeça, despertando-se do devaneio e segurou firme o ombro da
colega, transmitindo-lhe confiança:
— É claro que pode, Roberta. Nós duas somos as traídas, as chifradas.
Sofremos da mesma dor e por isso podemos confiar uma na outra. Ouça bem o que
digo
e acredite: nossas dores vão acabar, Roberta, vão acabar. Mas só se a gente puder
passar o mico da dor para a outra. Para Adele!
O telefone sem fio estava jogado sobre as cobertas, entre as duas meninas.
Sentadas nos joelhos, elas riam e comentavam excitadamente a brincadeira que
estavam
prestes a fazer.
— Um trote! Boa, Iara, um trote! Vai ser demais. Espere que eu vou pegar a
extensão. Quero ouvir tudinho!
Roberta foi buscar outro aparelho no quarto dos pais e voltou para junto da
amiga.
Lentamente, Iara teclou o número do telefone que ela jamais poderia esquecer,
mas para o qual já não ligava havia meses, e do qual havia meses nunca mais recebera
uma ligação.
Passava das seis da tarde e mister Bradley, o pai de Desmond, já estava em
casa.
— Para o senhor... — disse a empregada, estendendo o telefone para o recémchegado.
— Alô, é Bradley falando... — o inglês falava com leve sotaque o Português que
já dominava depois de tantos anos vivendo na terra tropical que havia escolhido como
nova pátria.
Iara respondeu fazendo uma voz rouca, como de filme de terror, para garantir
que o pai de seu ex-namorado não a reconhecesse:
— Mister Bradley? Aqui é uma amiga que gostaria de saber se alguém já lhe
contou quem o seu filho anda namorando...
— Como? O que tem o meu filho? O que houve com o Desmond?
— Muita coisa, mister Bradley, muita coisa... Ou pouca, se o senhor acha certo
seu lindo filho loiro estar namorando uma negra...
— Uma negra? Que história é essa?
— Uma linda história de fadas: agora mesmo, neste instante, uma carneirinha
negra está pastando com o seu carneirinho loiro!
— Mas isso é uma loucura! O que isso quer dizer?
— Pouca coisa agora, mas talvez muita com o tempo: o que pode resultar da
união do seu filho com uma eguinha negra? Será que o senhor vai gostar de ver seus
netos relinchando ao chamá-lo de "vovô"?
— Meu Deus! Quem está falando? Quem é você?
— Sou quem ligou para contar ao senhor que, nesse momento, seu filho está
brincando de animal de duas costas com uma negra!
O clic do telefone mostrou a mister Bradley que aquele era o fim da surpresa que
o esperava depois de um dia estafante de trabalho. O inglês largou o aparelho e
procurou
o lenço, para enxugar o suor que lhe brotava da testa:
— E ainda há quem queira ser pai!
8. Uma pessoa muito sórdida
Na manhã de terça-feira, Adele tinha chegado ao colégio ainda perturbada pelo
que acontecera na noite anterior.
— Iara, preciso falar com você.
— O que foi?
— Um assunto complicado. Um horror! Você nem vai acreditar. A gente se vê no
intervalo, está bem?
No fim da primeira aula havia cinco minutos de intervalo para a troca de
professores. Adele chamou Iara para o corredor, com um aceno. A menina levantou-se
da
carteira e levou Roberta junto.
— Aconteceu alguma coisa, Adele? Você parece tão nervosa!
— Se aconteceu, meninas! Vocês nem imaginam a cena!
— Que cena? Conta logo! O que houve?
— Bom, primeiro, ontem alguém telefonou para o pai do Desmond falando um
monte de besteira sobre mim e ele!
Iara fez a maior cara de surpresa:
— Ontem? A que horas foi isso?
— Logo que o pai do Desmond tinha chegado do trabalho. Lá pelas seis e
pouco...
— Que horror, menina! Nessa hora a gente estava assistindo novela lá na casa
da Roberta, não é verdade, Roberta?
Roberta não estava prevenida para a mentira e titubeou:
— Hã? Assistindo novela? É claro, a gente estava assistindo novela...
— Vai, Adele! — apressou Iara. — Continue. O que é que disseram?
— Vocês nem vão acreditar. Ouçam só...
Mister Bradley não quis assustar a esposa e inventou a necessidade urgente de
voltar ao escritório para buscar uma pasta que havia esquecido. Sabia muito bem onde
encontrar o filho. Nos finais de tarde, era comum que Desmond e seus amigos
estivessem
reunidos na lanchonete de costume, a poucas quadras da escola.
Desmond e Adele já tinham saído da lanchonete e preparavam-se para subir na
moto do rapaz, quando um carrão importado parou ao lado deles, bloqueando a moto
contra a calçada.
Adele não conhecia aquele carro e nunca tinha visto o homem alto, magro e
bem-vestido que, aos trancos, abria a porta e desembarcava. Mas era óbvio que o
rosto
daquele homem não podia ser tão vermelho e que o tremor em seus lábios não devia
ser
seu estado normal. As dúvidas foram resolvidas quando Desmond disse, claramente
demonstrando a surpresa do encontro:
— Oi, pai...
O pai de Desmond!
Com raiva contida na voz, o inglês alto e furioso ordenou, secamente:
— Desmond. Entre no carro.
O rapaz percebeu que alguma coisa grave tinha acontecido, mas não podia
imaginar que a fúria do pai se dirigisse a ele e à sua namorada:
— O que foi, pai? A tia Amy piorou, lá na Inglaterra?
— Isso não tem nada a ver com sua tia Amy, Desmond. Tem a ver é com você e
esse seu namoro, que você vem escondendo de seu próprio pai.
Adele sentiu-se gelada, prevendo tempestade. Desmond soltou o ar contido nos
pulmões pela expectativa e apresentou, procurando manter a calma:
— Papai, esta é Adele, minha namorada. Adele, este é Raimond Bradley, meu
pai.
"Mister Bradley! Este é o famoso mister Bradley!", repetia a menina por dentro,
sem coragem de dizer uma palavra.
O pai do namorado olhou-a de alto a baixo, sustentando do melhor modo que
podia a pose de inglês educado. Mas o olhar denotava sua claríssima desaprovação.
— Boa tarde... — disse entre dentes, ainda se contendo, mas revelando profundo
mal-estar com a presença daquela linda menina negra ao lado de seu filho.
Com o corpo, Desmond quase tapou Adele inteirinha e encarou o pai:
— Agora que vocês já estão apresentados, por favor, papai, eu queria saber por
que você apareceu aqui assim, de surpresa, fechando minha moto e dizendo que eu
estou "escondendo" meu namoro de você.
Os dois tinham a mesma altura e eram muito parecidos, embora a cabeleira
longa de Desmond e suas roupas informais contrastassem com os cabelos rentes e o
terno escuro do pai.
— É melhor conversarmos a sós, Desmond. Estou certo de que a mocinha aqui
não vai se importar.
— Desculpe, papai, mas, como eu já disse, "a mocinha aqui" é minha namorada
e seu nome é Adele. E eu vou me importar sim, se você não tiver a gentileza de nos dar
uma explicação.
O inglês mal conseguia manter a pose, falando baixo, quase sussurrando,
dividido entre a vontade de gritar com o filho e a necessidade de não chamar a
atenção
dos ocupantes das mesinhas de calçada da lanchonete de onde o casalzinho acabara de
sair.
— For God sake, Desmond, I should...
Adele tinha ouvido falar que qualquer pessoa que vive em um país estrangeiro,
mesmo por muito tempo e mesmo dominando perfeitamente a língua do país anfitrião,
nos momentos de nervosismo sempre acaba usando a língua de nascença, a língua
materna. Sem querer, imaginou o que aconteceria se ela mesma estivesse na
Inglaterra e
gritasse "socorro" ao ver-se em dificuldades. Se a dificuldade fosse no mar, na certa
se
afogaria... E, se a informação era mesmo correta, a frase do inglês revelava que ele
estava encarando o namoro do filho como um afogamento.
Mas Desmond era o salva-vidas e provava a Adele que teria sido impossível
encontrar um namorado melhor: enfrentava a fúria do pai, protegendo a namorada, e
ao
mesmo tempo fazia com que o homem conseguisse controlar-se, pouco a pouco, até que
fosse possível uma conversa mais esclarecedora do que aquela absurda cena pública.
Os
três afastaram-se da frente da lanchonete e a voz de Desmond ia conseguindo fazer
baixar o excesso de adrenalina negativa que corria pelas artérias do pai.
— Hum... É que alguém... uma pessoa acabou de ligar para a nossa casa e disse
coisas que... Me ofendeu... O que a voz disse foi...
— Um trote? Você veio aqui por causa de um trote, papai?
O inglês parou um pouco, tomando fôlego, tentando lembrar-se do que havia
ouvido.
— Era mais que um trote. Uma voz rouca... Talvez de mulher, parecia... Bom, na
verdade o que ela disse foi que vocês estavam namorando e que o namoro estava sendo
escondido de mim, por alguma razão...
Desmond interrompeu:
— Eu?! Não tenho nada para esconder de você, pai. E também não estou
entendendo direito por que você está tão ofendido.
— A maneira como aquilo tudo foi dito é que foi horrível... Nessa hora eu... eu
fiquei furioso e...
Nervoso, Desmond parecia começar a entender as razões de tanta preocupação.
Como se fosse brincadeira, mas pretendendo dizer somente a verdade,
interrompeu o pai:
— Nessa hora você atravessou o Oceano Atlântico, não é, papai? E de repente
ficou preconceituoso como um americano!
— Ora, Desmond, não brinque! Isso não tem nada a ver com preconceito racial.
Apenas...
— É melhor a gente enfrentar a verdade, papai: você teria ficado tão alterado se
a Adele não fosse negra?
Mister Bradley mostrou-se ofendido:
— O que é isso, Desmond? Você me deve respeito e...
Num repente, o filho tomou o braço do pai e encarou-o:
— Um minuto, papai. Agora me deixe falar. É claro que eu lhe devo todo o
respeito do mundo. Sei que você me deu tudo e fez de mim o que eu sou. Mas aqui ao
meu lado está a menina que eu amo. Esteja certo de que eu gosto tanto dela quanto
você
ama a mamãe. Eu sou um só, e em meu afeto cabem você e Adele. Por favor, papai, não
me divida em duas metades!
O inglês tentava controlar-se e esconder o incômodo que lhe provocava a cor da
pele da garota que seu filho havia escolhido para namorar. Suspirou fundo e resolveu
encerrar a discussão:
— Está bem... Se vocês dois já conquistaram um ao outro, o que eu posso dizer?
— olhou para Adele e tentou forçar um sorriso, sem conseguir nada convincente. — Se
o
coração do meu filho já é seu, menina, o que tem um pai a ver com isso?
O inglês voltou para o carro. Adele montou na moto abraçando a cintura de
Desmond. Esperava ter sido apresentada ao "sogro" de um modo mais feliz. Deixou
uma
lágrima cair nas costas do blusão do namorado, sem que ele notasse.
— E foi isso — Adele encerrava a narrativa. — O pai de Desmond cedeu, mas
aprovar o namoro da gente, isso ele não aprovou não. Engoliu, só isso...
Roberta não disse uma palavra, mantendo uma palidez inalterada durante todo o
relato de Adele. Mas Iara mostrou-se surpreendida, como se tivesse acabado de ouvir
a
mais excitante das novidades:
— Menina! Que horror! Quem poderia ter feito uma fofoca dessas sobre você e o
Desmond?
— Como é que eu posso saber, Iara? O pai do Desmond, no fundo, parece um
bom sujeito, mas, ainda mais no fundo, guarda todos os preconceitos do mundo. Eu sei
como são essas coisas. Não ligo, faço que não é comigo, mas vocês não imaginam o que
uma pessoa negra tem de enfrentar, ainda mais sendo mulher... Vocês não podem
compreender o que acontece com uma menina negra, crescendo no meio da classe
média brasileira...
Iara mostrou-se ofendida:
— O que é isso, Adele? Como é que você pode dizer uma coisa dessas? Que eu
não compreendo você?! Você acha que quando escolhi você como amiga eu estava
pensando na cor da sua pele? Você pode ser até verde ou azul. Para mim, você sempre
foi minha melhor amiga e se for preciso eu meto a mão na cara de qualquer um, como
eu
fiz com o Gust...
Adele interrompeu, tomando a mão da amiga e apertando-a contra o peito:
— É claro que eu sei de tudo isso! Desde o primeiro dia, eu vi que você me
compreenderia e me apoiaria. Foi você quem foi suspensa por me defender, não foi?
Foi
você que tirou zero duas vezes pra me ajudar, não foi? Você é um anjo, Iara. E sabe
como eu sou agradecida a você!
Iara tocou-lhe o rosto, aliviada:
— Você que é um anjo, Adele. Você nem me conhecia direito e também tirou um
zero pra me ajudar. Pensa que eu me esqueci do caso do aparelho que você me ajudou a
procurar? Mas deixa pra lá: eu só estava preocupada com quem poderia ter feito essa
fofoca horrorosa...
O professor aparecia no corredor. Era hora de voltar para a classe. Adele estava
séria, enquanto encerrava a conversa:
— Quem pode ter feito isso eu nunca vou saber, Iara. O pai de Desmond disse
que só pode ter sido uma pessoa muito sórdida...
"Sórdida! Aposto que foi esse pai do Desmond que fez com que ele acabasse
com o nosso namoro. O peixe Cássia vai ter de esperar. Primeiro eu tenho de fisgar um
arenque. Esse maldito inglês vai ver uma coisa!"
A voz de Iara era quase um rosnado quando chamou Roberta de lado, durante o
recreio grande, num canto do pátio:
— Roberta, convoque o Miltão para estar na sua casa hoje à tarde, lá pelas
cinco...
— O Miltão? Aquela criança grande? Mas o que é que a gente vai fazer? Por que
o Miltão?
— Faça o que eu digo, Roberta. Você vai ver. Nós vamos nos divertir como
nunca!
Rindo, excitadas pela expectativa, as duas passaram por Emílio, distraídas. O
rapaz estava encostado na parede do corredor, observando, sério. Fez um movimento
para seguir Iara, para chamá-la, mas pareceu desistir. Balançou lentamente a cabeça e
foi
para o outro lado.
9. Aumentando a dose de veneno
— Demais o lanche, hein, Roberta?
Como a fase de crescimento do Miltão parecia longe de estar concluída, o apetite
do rapaz era de assustar duas magrinhas como Roberta e Iara: o menino grande tinha
devorado quase tudo o que a empregada de Roberta havia servido na mesa da copa.
Iara incentivava outro tipo de apetite no garoto, propondo alguma coisa parecida
com uma desforra das brincadeiras que os mais velhos faziam com ele. Ele era jovem
demais e ainda mais fácil de enrolar do que Roberta:
— Esse pessoal gosta de gozar com a tua cara, não é, Miltão? Mas agora
chegou a tua vez. Nossa brincadeira vai ser maravilhosa! Nenhum daqueles bobocas
teria
uma idéia dessas. Eles vão ver que com o Miltão não se brinca!
— É isso mesmo, Iara. Eles vão ver! — ria-se o garoto. Durante o lanche,
enquanto conversavam, Iara avaliou que a voz do Miltão ia mesmo se tornando muito
grossa, só de vez em quando retornando ao falsete de menino. Pelo telefone, pareceria
um vozeirão de adulto para quem quer que o ouvisse. A diversão planejada, a vingança
pretendida, ou qualquer que fosse a razão do que Iara estava prestes a fazer, estava
pronta para ser feita.
— Tudo certo, pessoal. Vamos para o seu quarto, Roberta.
Logo estavam os três sentados no tapete do quarto. Iara abriu a lista de
classificados e fez uma relação de telefones. Os pais de Roberta ficavam o dia inteiro
fora
de casa e a rica residência tinha três linhas telefônicas.
— Chamar os táxis fica comigo e com a Roberta. Miltão, você fica encarregado
da parte de comida: são supermercados que fazem entregas e pizzarias.
Em poucos minutos, Iara e Roberta já tinham telefonado para doze empresas de
radio táxis e de táxis especiais, fazendo-se passar por secretárias e chamando todos
para
a casa de Desmond. Deveriam chegar pontualmente às seis da manhã seguinte, pois
"Raimond Bradley" tinha um vôo para a Europa que partia do Aeroporto de Cumbica às
oito horas. Enquanto isso, Miltão ligava para oito diferentes pizzarias e encomendava
pizzas gigantes que deveriam ser entregues, em horários alternados, desde as sete
até
as onze da noite.
— Duas grandes, sim senhor. De alho. Isso. E pode caprichar no alho, viu?
— Alô? Meu nome é Raimond Bradley e estou dando uma feijoada para cem
pessoas em minha casa amanhã. Por favor, mande entregar bem cedinho vinte quilos de
orelhas de porco, vinte de carne-seca, cinco de paio, dez de lingüiça... Ah! E mande
também dez melancias para a sobremesa...
— Alô? É da companhia de dedetização? Por favor, minha casa está infestada de
ratos. Preciso urgente de...
— Isso, eu quero a maior cesta de café da manhã que a senhora tiver. Por favor,
entregue às sete em ponto, hein?
Iara ia ticando a lista que havia preparado e coordenando os telefonemas:
— Companhias de dedetização já chega. Telefonamos para seis delas. E as
cestas de café da manhã?
— Já liguei para cinco.
— Só cinco? Ah, cinco já está bom. Agora as tapeçarias...
— Alô? Aqui é Marjory Bradley, esposa de Raimond Bradley. Por favor, estou
querendo trocar todas as cortinas e estofados aqui de casa. Vocês poderiam mandar
alguém?
— Por favor, envie para este endereço dez caixas de uísque Black Label, cinco
de Gin Gordon, duas caixas de vinho Casillero dei Diablo... ahn... tinto, por favor. E
pode
mandar também uma caixa de Chateau Mouton Lafitte. Como? É muito caro? Pode
deixar
que eu pago a entrega. Meu nome é Raimond Bradley! Ah, e mais uma caixa de
champanhe Don Perignon, por favor...
— Alô? Estamos com uma privada entupida aqui em casa e...
— Alô? Agência funerária? Por favor, mande uma coroa de defunto da maior que
tiver. Qual a inscrição da faixa? Escreva por favor: "Saudades. Oferta dos amigos de
Raimond Bradley". Isso. Com ípsilon no final...
— Alô? O enterro tem de sair amanhã de manhã, às dez. Quero o caixão mais
caro. É. Em ébano e dourado. E king size, por favor, que o defunto é muito grande...
Na medida em que o trote se desenrolava, a excitação dos três ia crescendo e
eles já agiam como se estivessem embriagados. Quando a loucura chegou ao final,
Roberta, entre o prazer e o pânico, olhou para a idealizadora da brincadeira:
— Ai, ai, ai! O que foi que nós fizemos, Iara?
— Ora, uma brincadeira... Uma boa brincadeira só, não foi, Roberta? Foi
divertido, não foi, Miltão?
"O que foi que eu fiz? Agora não importa mais. O que está feito, está feito. Tenho
agora de me aproveitar da situação..."
Na manhã seguinte, as aulas já estavam quase no final, quando correu um rumor
pela escola de que Desmond tinha sido chamado ao telefone com urgência e que agora
estava na sala do diretor.
— O que será que houve? — especulava alguém. — Será que o pai do Desmond
está passando mal?
— Não deve ser isso — informava outro aluno. — Ouvi dizer que o pai dele está
vindo para cá para falar com o diretor. Alguma coisa aconteceu...
Iara levantou a mão e pediu à professora de Geografia para sair da sala. Correu
para a entrada da escola. Não precisou esperar muito para ver a chegada do carro de
mister Bradley. Deu um jeito de, "casualmente", esbarrar com ele.
— Oh, mister Bradley! Como vai o senhor? Lembra-se de mim? Sou a Iara,
aquela amiga do Desmond que ia tanto à sua casa no ano passado...
— Ah, Iara! Lembro sim. Como vai? Mas, por favor, me dê licença que eu...
— Nossa, mister Bradley! O senhor parece tão preocupado! O que houve?
— Uma barbaridade, menina. Uma invasão da minha casa! Ontem à noite
começaram a aparecer entregadores de pizzas um atrás do outro. Hoje, desde as seis
horas da manhã, chegam táxis, entregadores de encomendas, uma pilha de coisas que
algum sádico resolveu pedir em meu nome!
— Que horror!
O inglês estava afogueado, fora de si:
— E que eu saiba não tenho nenhum inimigo que pudesse fazer uma maldade
igual a essa. Veio até um homem para tirar cupim do meu piano de cauda. E eu nem
tenho piano!
Já não havia nem um traço de pose britânica naquele homem. Iara teve de lutar
para não rir. Ao contrário, a menina oferecia a mais confiável expressão de
solidariedade:
— Mas quem poderia ter feito uma coisa dessas, mister Bradley?
— A maioria das pessoas que recebeu essas encomendas diz que a voz ao
telefone era jovem. Por isso vim falar com o diretor do colégio. Isso só pode ter sido
uma
brincadeira de algum moleque desocupado dessa escola. Eu acho que...
— Bom, mister Bradley, se o senhor não tem nenhum inimigo, isso deve ter
partido de alguém das relações da Adele. O senhor sabe: esses negros andam com
todo
tipo de gente, não é? Com as piores companhias...
As aulas já tinham terminado, e Adele e Iara esperavam no corredor, em frente à
sala da diretoria, onde continuavam fechados Desmond e o pai.
— Obrigada, Iara, por ficar aqui comigo, esperando pra saber no que vai dar essa
confusão toda. Eu estou tão nervosa...
— Amiga é pra essas coisas, não é, Adele? Imagine se eu ia deixar você na mão!
— Iara, querida, não sei o que eu faria sem você!
— Encontrei o pai do Desmond sem querer, logo que ele chegou aqui. Estava
furioso. Disse que algum sádico havia feito um monte de encomendas para ele, em
nome
dele, uma espécie de vingança, sei lá... Você acredita que ele ficou dizendo que isso
devia ser coisa de algum amigo seu?
— Meu amigo?! Como assim?
— Esse homem é um poço de preconceitos! Do tipo que vive jogando a culpa de
tudo de mau que acontece nos negros, nos nordestinos, essas coisas. Você sabe, não é?
É claro que eu falei com ele que isso era um absurdo, mas eta inglês duro de roer!
Olha,
tive até vontade de sacudir o homem, pra ver se punha um pouco de juízo naquela
cabeça dura!
A reunião chegava ao fim naquele momento e Desmond saía da sala do diretor.
Sua expressão desanuviou-se ao ver a namorada à sua espera.
Iara afastou-se para uma sombra do corredor e deixou que o diretor conduzisse o
furioso pai para a saída. Ia defendendo os alunos do Queiroz, sugerindo que o inglês
investigasse em sua empresa. Talvez algum jovem empregado demitido, ou coisa assim,
querendo uma desforra:
— Nenhum aluno desta escola poderia ter feito uma coisa dessas, mister
Bradley. Nossos métodos educacionais são os melhores que...
A voz do diretor afastava-se. Pensando que os dois estavam sós no corredor,
Desmond abraçava-se a Adele, como se tivesse acabado de salvar-se de um naufrágio:
— Ai, que alívio te encontrar aqui me esperando! Que sufoco! Que coisa mais
maluca aconteceu com a gente!
— Calma, Desmond, calma...
O rapaz pegava entre as mãos o rosto da namorada e, das sombras onde se
escondia, o que Iara podia perceber nele era só ternura por Adele:
— Você é a minha alegria, Adele. Se eu te encontrar depois de cada problema
cabeludo que eu tiver de enfrentar, eu queria que todos os problemas do mundo
desabassem em cima de mim!
— Ah, Desmond... — suspirava Adele, recebendo o abraço e apoiando o rosto no
peito do rapaz, sobre a medalhinha que desde domingo não saía do pescoço do
namorado.
— Você é a coisa mais linda que já aconteceu na minha vida, Adele. Eu podia até
morrer nesse momento, porque acho impossível que alguma coisa melhor possa
acontecer comigo...
— Não fale em morte, meu amor, não fale em morte. Nossa felicidade está
apenas começando...
— Você tem razão, você tem razão... Nem sei o que dizer, gosto tanto de você
que até sinto uma coisa aqui, na garganta... É bom demais!
Desmond beijava o rosto da menina, sem parar, sem parar, falando entre beijos:
— Adele... que isto... isto... e mais isto... seja sempre a música que acompanhará
a nossa vida, para sempre!
— Para sempre, amor, para sempre...
O som de cada beijo tinha o efeito de uma chicotada em Iara. Oculta, odiando
aquele resultado de seu plano, a menina pensava, apertando os punhos cerrados a
ponto
de quase ferir as palmas das mãos com as unhas:
"Hum! Mas que música afinada, hein? Ah, essa música de beijinhos... Mas deixa
pra lá: ou eu não me chamo Iara, ou vou já, já afrouxar as cravelhas desse violão e era
uma vez a doce melodia! Parece que o meu veneno ainda não fez grande efeito. Preciso
aumentar a dose..."
Naquela mesma quarta-feira, logo após o almoço, Roberta ligou para a casa de
Iara.
Estava nervosa e excitada como se fosse um terrorista perseguido pela Interpol
depois de ter colocado uma bomba no Vaticano:
— O Miltão? Ele é um bom moleque mesmo, Iara. Estava na maior tranqüilidade,
sem nem esquentar a cabeça. Pode deixar, que ele não vai dar com a língua nos dentes.
Ele é crianção, mas não é bobo!
— Está bem, Roberta. Mas você precisava é ter visto a cara do inglês,
reclamando com o diretor e tentando descobrir que inimigo tão terrível poderia ter
feito
uma sacanagem daquelas com ele... Bem feito!
— O que foi que o gringo disse?
— Te conto logo mais, no treino...
— Ah, vá, conta agora, Iara! Como é que foi a queixa de mister Bradley? O que
ele contou ao diretor?
— Fiquei sabendo de tudo, Roberta. Nosso trote foi bom, mas podia ter sido
melhor. Uma porção de empresas não cumpriu os tratos. Outras ligaram perguntando o
número do cartão de crédito de mister Bradley e estragaram a brincadeira. Imagine:
nem
o caixão eles entregaram!
10. Como se fosse uma irmã
Na quarta-feira, o treino começou pontualmente às quatro da tarde. Foi bola na
mão o tempo todo, com os dois professores já roucos de tanto dar instruções,
forçando os
jogadores e exigindo o máximo de cada um. Ninguém podia descansar. No máximo, um
ou outro tinha uma curta licença para tomar água ou ir ao banheiro.
Iara levantou o braço, pedindo uma dessas licenças, e dona Maria Helena
concedeu, advertindo:
— Dois minutos, Iara. Esteja aqui no máximo em dois minutos, hein?
"Essa parte vai ser mais complicada...", pensava a menina, correndo para o lado
dos vestiários. "E isso eu tenho de fazer sozinha..."
Nos dois dias anteriores, a famosa medalhinha estivera sempre no pescoço de
Desmond. Mas Iara tinha notado que o garoto nunca estava com ela nos treinos.
"Onde ele deixa a medalhinha? Só pode ser no vestiário..."
Era um risco, mas ela havia decidido correr esse risco. Tinha procurado ficar
atenta e pedira para sair num momento em que todos os rapazes estavam na outra
quadra, treinando forte sob as ordens de João Massa.
De longe, parecia que Emílio estava olhando para o seu lado, mas o saque
estava com a equipe reserva e o rapaz teve de voltar a atenção para o jogo.
Iara correu na direção da porta do vestiário feminino. No último momento,
desviou o passo e sumiu pela outra porta.
Pronto, lá estava ela dentro do vestiário masculino. Sorriu, lembrando-se de suas
fantasias de menina, quando se imaginava escondida lá dentro, espiando os corpos nus
dos rapazes, expostos aos seus olhos. Uma vez, tinha surpreendido um trecho de uma
conversa entre garotos, quando um deles dizia, vendo Cássia entrar no vestiário:
— Hum... eu bem que queria ser uma mosquinha, para entrar no vestiário junto
com essa gata!
— E aí, bobão? — tinha gozado um companheiro. — Se essa gata estivesse a
fim, você acha que ia querer transar com uma mosca?
Iara correu os olhos pelos armários do vestiário. Lá estava a malha colorida do
Emílio. Pegou-a e levou-a ao rosto, sentindo o cheiro do rapaz.
"Onde é que está a roupa do Desmond? Ai, com que roupa ele estava hoje?"
Sua perna esbarrou num banco e uma mochila aberta caiu. No mesmo instante,
um ruído metálico atraiu sua atenção.
Tlin...
Presa na corrente, lá estava a medalhinha!
Abaixou-se, pegou-a e enfiou-a entre os seios, dentro do sutiã. Verificou. O
esconderijo era seguro. Não cairia quando ela saltasse durante o resto do treino.
Saiu sem tomar cuidado, confiante em que ninguém estivesse olhando para a
porta do vestiário. Antes de completados os dois minutos concedidos por dona Maria
Helena, Iara já estava em quadra, saltando e cortando um passe de Marisa.
O treino seguiu e, perto das seis, todo mundo já estava cansado. Apesar disso,
os dois treinadores ainda não se davam por satisfeitos. Tudo o que concederam foi um
intervalo.
— Quinze minutos, pessoal — comandava João Massa. — Depois vamos fazer
um rodízio de saques. A defesa do Cultura Múndi é forte demais. Vamos ter de forçar
o
saque desde o início, para dificultar o passe deles...
O jogo contra o temível Colégio Cultura Múndi seria na próxima noite de sábado,
na quadra do adversário, em Santos, e tanto dona Maria Helena quanto João
Massaqueriam suas equipes afinadas para tentar a vitória. Sandra estava alongando
muito os saques e continuou em quadra, por conta própria. Se o time feminino do
Queiroz
saísse derrotado no sábado, a garota não queria ser a responsável.
Emílio saía do vestiário e olhava de longe para Iara, com uma expressão
estranha, um jeito que a menina não se lembrava de jamais ter visto em seu rosto. Fez
um movimento para vir para o seu lado, mas Leo chamou sua atenção e os dois ficaram
conversando.
Enxugando o rosto com uma toalha, Iara sentou-se na mureta ao lado da quadra,
observando Sandra saltar e bater, saltar e bater...
Roberta aproximou-se, com um sorriso meio amarelo, muito sem jeito.
— O que foi, Roberta? — Iara levantava os olhos, os olhos agora firmes, duros,
com a força da determinação. Um olhar que Roberta não conseguia encarar, não
conseguia desafiar, só conseguia receber, cedendo. — Que cara é essa? Vamos, você
não é capaz de me enganar. Diga: o que você está pensando?
— Eu precisava dizer que... Bom, será que a gente não está exagerando, Iara?
Iara riu-se, abertamente:
— Exagerando? Exagerando o quê? Não foi você que disse, ainda um dia
desses, que queria que a negra quebrasse a perna?
— Ah, Iara, isso é modo de dizer... Eu estava de cabeça quente. Aos quinze
anos, a gente ameaça muito mas depois não faz nada de verdade...
— Mas você não quer ser a capitã de novo? Você não quer de volta seu lugar no
time? Sábado a gente vai jogar a final. Pense só em quem vai levantar a taça, depois
que
a gente tiver esmagado as meninas do Cultura Múndi... Você? Ou a Cássia?
Roberta sentou-se ao lado da amiga, carregada de dúvidas e evitando encará-la:
— Sei lá, Iara... Está certo, eu bem que queria meu lugar de volta, eu bem que
queria levantar a taça lá em Santos. Mas, sabe? Esses telefonemas, esses trotes...
Não
sei, isso parece jogo sujo...
— Jogo sujo, você diz, Roberta? Ai, ai! O que importa, minha querida, são os
resultados. Uma vez um jardineiro me disse que, para se conseguir violetas mais
perfumadas, deve-se usar estrume de porco!
— Quieta! — alertou Roberta. — A Cássia vem aí...
Alegremente, a capitã do time veio vindo e sentou-se de cócoras diante das
duas:
— Treino puxado, hein? Dona Maria Helena está malhando a gente como se
fosse o João Massa!
Iara sorria, charmosa, e fez um agrado na cabeça de Cássia:
— Sabe o que eu estava agora mesmo falando para a Roberta? Eu estava
lembrando do tal do Branco, aquele carinha lá do seu prédio, que você me contou... O
moleque é um horror, não é verdade, Cássia?
Cássia abriu-se numa gargalhada gostosa:
— Se é, menina! Nunca vi garoto mais boboca!
— Puxa, pelo jeito que você me contou, o cretino está mesmo a fim de você,
Cassinha...
— Ele me persegue sem parar, Roberta, você precisa ver! — Cássia voltava-se
para a colega, com o típico arzinho de fofoca. — É um repetente, deve ter já uns
dezenove e ainda está na oitava. E o pior é que o cara tem até mau hálito! E as
espinhas,
menina! Como tem espinhas aquele chato!
Por trás das costas de Iara, Emílio e Leo juntavam-se ao grupo:
— O que é isso, Cássia? Falando mal dos homens, é?
Cássia levantou os olhos para o rapaz e desculpou-se:
— De homem, Emílio, eu só sei falar bem. É só um cara que você não conhece.
Uma porcaria de homem!
A voz de Iara impôs-se:
— Porcaria? Essa palavra é sinônimo de homem, Cássia!
Emílio apoiou as duas mãos nos ombros de Iara, massageando-lhe as costas de
leve, carinhosamente:
— Iara, Iara... Se a minha fofinha já teve algumas experiências ruins com
homens, devia experimentar alguns outros, só para notar a diferença. Eu estava até
pensando em um em especial...
Iara fez que não ouviu a provocação do garoto e encarou Cássia, agachada à
sua frente. Seus olhos fuzilavam:
— Ora, os homens! Não tenho nem dezessete anos, Cássia, mas já conheço os
homens bem demais. Quando passam pela gente, são pavões, exibindo-se como se
estivessem numa vitrine e nós fôssemos compradoras. Quando estão entre eles
mesmos,
falam da gente como açougueiro fala de carne. Exigem nossa fidelidade, mas esperam
que a gente fique quietinha quando eles nos corneiam. Querem que a gente os admire,
que a gente elogie sua inteligência e sua força. Mas só demonstram mesmo atividade
quando encostam a gente na parede, num canto escuro!
Do outro lado da quadra, Desmond conversava com Takashi. Cássia apontou-o e
brincou, tentando relaxar a conversa:
— Todos eles? Até que aquele loirão ali? Com esse você já ficou, não foi?
— Os loiros, os morenos, os burros, os inteligentes, todos os homens são iguais!
Se são belos e inteligentes, acham que a gente tem de vê-los como deuses. Se são
feios
e burros, logo dão um jeito de tentar nos convencer de que servem para alguma coisa!
Emílio tentava acalmá-la, continuando a massagear delicadamente seus ombros,
por trás.
— Ora, fofinha, o que é isso? Você está falando como se tivesse ficado maluca
de repente! Ou isto é só uma brincadeira? Palavra de homem que...
A menina interrompeu, furiosa, falando para Cássia como se encarasse Emílio:
— Se a Terra fosse coberta pelas palavras dos homens, de cada sílaba sairia um
escorpião!
As mãos de Emílio soltaram-se repentinamente das costas da menina, como se
tivessem levado um choque elétrico.
Depois da série de saques, os treinadores misturaram jogadores e jogadoras nas
duas quadras, para alguns sets recreativos.
— Vamos lá, pessoal! — ria-se João Massa, procurando descontrair o grupo. —
Homem com mulher, mulher com homem. Vamos ver como fica!
— Vôlei misto? Oba, vamos lá!
A intenção dos professores era enturmar melhor os dois grupos, uma vez que os
vinte e quatro jogadores passariam por uma pressão muito grande, no próximo sábado,
jogando as partidas finais contra o Colégio Cultura Múndi, em Santos.
— Espalhem-se e escolham os times vocês mesmos — dizia dona Maria Helena,
batendo palmas. — Alegria, gente!
Iara viu Desmond e Cássia juntos em uma das metades da primeira quadra.
Adele fez um movimento para correr para lá, mas a amiga a segurou pelo braço
mantendo-a na segunda quadra.
— Ah, fica comigo, Adele! O Takashi já está lá, eles não precisam de levantador...
Naqueles jovens, o cansaço virou farra e a intenção dos treinadores estava
dando certo.
Na quadra onde jogavam Adele e Iara, houve uma curta interrupção na partida
para o Leo amarrar os tênis. Ao lado de Adele, Iara apontou para a outra quadra:
— Você já reparou, Adele, como a Cássia é linda?
— A Cássia? Hum... é sim...
— Já notou como os olhos claros dela são doces? Tão doces...
Observada pelas duas, Cássia conseguia aparar uma incrível pancada do Emílio
— logo do Emílio! — e a bola passou por Takashi, sobrando perfeita para Desmond, que
arrematou cruzado, botando a bola no chão.
— Grande, Cássia! — gritou o rapaz, cabelos louros desalinhados, alegre como
uma criança.
Cássia estava a seu lado, e os dois abraçaram-se forte, rindo da cara do Emílio,
que brincava de reclamar, fazendo palhaçadas na quadra:
— Não vale! Não vale! O que vocês querem? Acabar com o jogo do pobre do
Taka? Se a bola ficar só no alto, ele nunca vai alcançar! Ah, ah!
— Te cuida, Emílio! — respondia Magda, uma das mais fortes reservas do time
feminino. — O Takasfti é faixa preta de judô!
Iara, na outra quadra, com a bola na mão para um saque, parou de repente,
olhando para o lado da ação dos colegas. Seu olhar dizia alguma coisa, tinha um ar de
surpresa e preocupação.
Adele acompanhou aquele olhar e fixou-se no grupo de rapazes e garotas, que
fazia uma farra para comemorar o ponto. Quando voltou-se novamente para Iara, viu
que
a amiga sacudia a cabeça, como se não tivesse gostado do que havia presenciado.
Batia a bola duas vezes no chão e sacava sem saltar, enviando uma bola fácil
para o outro lado.
— Ei, Iara! — chamou Marisa, do outro lado. — Que bola boba! É assim que
você vai sacar contra o Cultura Múndi, é? Então estamos perdidas! Ah, ah!
Ambas as partidas viraram brincadeira, cheias de provocações, do jeito que a
experiência dos professores havia previsto.
Mais uns minutos e o saque estava com Cássia, na primeira quadra. A menina
subiu e enfiou um belíssimo "viagem ao fundo do mar". Do outro lado, a bola explodiu
no
peito do Miltão e os times caíram na gargalhada com a expressão atônita do menino
grande. Desmond, muito alegre, correu para a amiga e os dois abraçaram-se, dançando
e
pulando.
Na quadra ao lado, Iara estava de mãos na cintura, rindo:
— Olha lá, Adele! Olha só que beijo!
— Ahn? Beijo?
— Ah, não... Acho que não foi um beijo...
No próximo passe, enviado de Malu para Adele, foi a vez de o time de Iara
despencar em gozação: Adele estava desconcentrada e "furou", como uma iniciante.
Conseguido o intento de descontrair o grupo, pouco depois os professores
interrompiam as partidas:
— Chega, turma! Todo mundo pro chuveiro!
As brincadeiras continuavam e os jovens correram desorganizadamente para os
vestiários. Iara passou o braço pelos ombros de Adele, rindo muito, entrando no clima
de
todos e comentando:
— Puxa, foi demais, Adele! E você viu como o Desmond e a Cássia se dão bem?
Que amizade, hein? Legal, né?
Distraída, Adele não se apressava para o chuveiro. Iara ficou com ela, pois
ambas sabiam que teriam de esperar um pouco, pois só havia cinco chuveiros em cada
vestiário. Ficaram olhando os que entravam na frente. Todos riam e se
cumprimentavam,
batendo-se as palmas das mãos, como fazem os profissionais de vôlei.
Quando Desmond e Cássia bateram-se as mãos e Desmond correu em seguida
para o vestiário, Iara comentou, baixinho:
— Puxa, que estranho...
— O que você disse? — perguntou Adele.
— Eu? Nada, ora... nem sei o que eu disse...
— Era por causa do Desmond com a Cássia?
— Isso? Ora, claro que não... Só porque o Desmond entrou rápido no vestiário
quando notou que você estava olhando para ele com a Cássia? Ora, isso não tem nada
demais...
— Por quê? Você achou que eles...
— Eu não achei nada, Adele. Que bobagem!
— Você acha que ele fugiu de propósito, quando viu que eu estava olhando?
— Deixa disso, Adele! O Desmond não é nenhum criminoso, não está fazendo
nada de errado. Por que haveria de fugir de você?
— Não sei... Acho que sim...
Iara voltou-se para a amiga, com uma expressão divertida, olhando-a bem nos
olhos, de frente, com as duas mãos em seus ombros:
— Que cara é essa, menina? O que você está pensando? Ah, vá! Não vá me
dizer que está com ciúmes do Desmond com a Cássia! Ora, o que é que tem? Um rapaz
pode ter uma amiga, não pode? Como se fosse uma irmã...
Para a tarde de quinta-feira, às cinco, estava marcado novo treino das equipes
de vôlei do Queiroz Telles. A temida final estava próxima e nenhum dia podia ser
desperdiçado.
Mas os treinos tiveram de ser cancelados. Surgira algum detalhe burocrático que
teria de ser resolvido pelos dois treinadores com a diretoria da Liga Juvenil, e dona
Maria
Helena e João Massa mandaram avisar do cancelamento.
— Cadê a Cássia?
— Conseguiu dispensa da última aula, Iara. Algum parente dela está chegando
ou partindo de viagem e ela teve de ir com a família ao aeroporto...
"Hum! A Cássia, a nossa capitã, saiu mais cedo? Ah, ah! É agora que eu vou
pegar uma gorda ratazana! Cássia: chegou a tua hora!"
— A gente precisa avisar a Cássia — lembrou Magda. Iara adiantou-se:
— Pode deixar que eu telefono pra Cassinha. Deixa que eu aviso...
"Isso não poderia vir em melhor hora. Preciso falar com a Roberta!", pensava a
menina, sem nenhuma intenção de telefonar para Cássia.
— Roberta, vem cá — chamou Iara autoritariamente, logo depois, quando
descobriu a colega na cantina, esperando ser atendida.
— Espera aí, ainda não me deram o refrigerante.
— O refrigerante pode esperar. Vem cá!
Obediente, Roberta acompanhou Iara para o "canto dos amassos", que naquele
momento estava desocupado.
— Roberta, tenho a maior notícia do mundo: você vai recuperar o seu lugar ainda
hoje!
— Mesmo? Que maravilha! — alegrou-se Roberta. — Dona Maria Helena falou
pra você?
— Ainda não falou. Vai falar hoje à tarde. Escute bem: eu, você e Cássia vamos
estar aqui, às quatro, como se o treino não tivesse sido cancelado. Eu consegui o
número
do celular da dona Maria Helena. Traga o celular da sua mãe. Já fiz o cálculo e, quando
a
gente ligar pra ela, não vai levar nem vinte minutos pra ela chegar da Liga Juvenil até
aqui.
— Mas ela não disse que não vem? O que é que...?
— Já planejei tudinho — cortou Iara.
— Hoje à tarde você vai ter de provocar a Cássia.
— O quê?
— Ouça!
11. A gente vai fazer o seguinte...
O céu da tarde estava escuro, ameaçando tempestade, quando Cássia chegou
ao Queiroz com sua mochila nas costas.
— Ué? Cadê todo mundo?
Somente Iara e Roberta batiam bola com Neusinha, que havia faltado naquela
manhã para ir ao dentista e também não tinha sido avisada do cancelamento do treino.
— Olha aí, gente! É a Cássia — apontou Neusinha. — Também esqueceram
dela.
Uma trovoada estrondeou, furiosa, quando Iara segurou a bola e veio sorrindo
para o lado da colega:
— Oi, Cassinha! O professor João Massa e dona Maria Helena tiveram de ir à
Liga Juvenil de Vôlei para resolver não sei o quê. Parece que para levar a lista dos
jogadores inscritos para a final...
Neusinha veio para perto, encolhendo-se por causa do vento gelado, que varria
as quadras.
— O guarda da tarde é que avisou a gente do cancelamento do treino, Cássia.
Acho que só nós não fomos avisadas...
Cássia arreou os ombros, parecendo sem ânimo:
— Puxa... É que eu tive de ir a Cumbica para o botafora de um primo. É o Jaime,
lembram dele? Arrumou um intercâmbio, nos Estados Unidos...
— Olha a chuva, gente!
Pingos fortes começaram a cair sobre as quadras descobertas e as quatro
abrigaram-se sob a cobertura do galpão do recreio. O colégio estava deserto. Iara
pegou
sua mochila e dirigiu as três colegas para uma das mesas compridas, de alvenaria, que
havia por todo o galpão.
— Que chuvarada, hein? Acho que vai esfriar...
— Vai esfriar? — riu-se Neusinha. — Já está frio, Iara!
Cássia sentou-se no banco que acompanhava toda a extensão da mesa e apoiou
os cotovelos no tampo de concreto:
— Que chato esse cancelamento! Vamos perder a tarde toda, sem treino nem
nada. E eu precisava estudar Física, meninas, ando mal de Física...
— Você?! — riu-se Iara. — Desde que eu te conheço, Cassinha, quando você
está mal em alguma matéria, é porque vai tirar só nove e meio na prova! Nem sei como
você pode se concentrar em Física com a final que a gente vai ter de jogar daqui a dois
dias!
Roberta arregalou os olhos e franziu a boca, lembrando-se do desafio que as
esperava:
— Nem fale, Iara! Vai ser o jogo do século!
A chuva fazia um barulho infernal, martelando o telhado do galpão. Iara,
lentamente, abria o zíper da mochila:
— Se vai, Roberta, se vai! Imagine se, com essa chuva toda, uma de nós pegar
um resfriado!
— Nem fale nisso, menina! — comentou Cássia. — Nosso time tem de estar
completo no sábado. E em ponto de bala!
Neusinha levantou-se:
— Tá frio demais. Vou buscar a jaqueta na mochila. Afastou-se para o vestiário e
Iara retomou a conversa do ponto anterior:
— Como capitã do time, você é que tem de estar na melhor forma, Cassinha.
Acho melhor a gente nem tentar voltar pra casa, antes que essa chuva passe de todo...
— Que chato... — lamentou Roberta. — O que a gente vai ficar fazendo?
— Que tal dar uma esquentada nos ossos? — Iara tirava da mochila uma garrafa
sem rótulo, cheia de um líquido pardo. — Olhem só o que eu trouxe: batida de
amendoim!
Cássia espantou-se:
— O quê? Vocês vão beber isso?
— Nós vamos beber isso, querida. Roberta, vá pegar uns copos plásticos ali no
bebedouro.
Roberta riu-se e correu para o bebedouro, que ficava a poucos metros. Cássia
estendia o braço, rindo, meio temerosa, com a mão espalmada na direção da garrafa:
— Eu, hein? O que é isso, meninas? Eu não posso com álcool. Só uma vez na
vida eu me meti a experimentar um uísque do meu pai e vocês nem imaginam como eu
fiquei!
Iara sacudia a garrafa, para misturar o conteúdo, e pegava um dos copos
trazidos por Roberta.
— Ora, Cassinha! Que frescura é essa? Quando você tomou lá seu foguinho com
o uísque do papai? Faz tempo, não é? Agora você não é mais criança. Além disso, essa é
uma batidinha deliciosa, fraquinha, quase um refresco... Você não gosta de paçoca?
Pois
é, esta é uma batida de paçoca! Ah, ah!
— Sei não, Iara...
— Vai, boba. Só um golinho pra esperar a chuva passar...
Cássia pegou o copo cheio até a metade que a amiga lhe estendia.
— Tá bom... Só um gole, tá?
Iara e Roberta levaram seus copos à boca, mantendo os lábios trancados e
fingindo que bebiam. Como haviam combinado, só Cássia deveria beber.
— Hum... até que não está nada má essa bebidinha, não é, Cássia?
— Tem um gostinho de paçoca, como você disse. Puxa, meninas, eu não devia...
— Vai firme, Cássia! — incentivou Roberta. — Isso é vacina contra resfriado!
Aos poucos, aquela pobre garota, que sempre procurava agradar a todo mundo e
jamais tinha forças para dizer "não", mal tinha consumido o primeiro copo e já
levantava a
nova dose servida por Iara, propondo um brinde:
— À nossa amizade, garotas! Viva o Queiroz!
— Bola pró alto, bola no chão! — secundaram Roberta e Iara, rindo soltas, como
se tivessem bebido como Cássia. — O Queiroz é campeããão!
Neusinha voltava naquela hora:
— Ei, gente! Isso é uma festa, é?
— Uma festança, Neusinha! — gritou Cássia. — Junte-se à gente. Nós somos as
três mosqueteiras! Venha ser o Porthos!
— Eu? Eu, não. Quero ser o D'Artagnan!
— Você é muito grande, Neusinha! — brincava Cássia. — Só pode mesmo ser o
Porthos! Ah, ah!
Iara fez o sinal combinado para Roberta. Estava na hora. A menina levantou-se
discretamente e sumiu para os fundos do galpão. O celular de sua mãe estava na
mochila
e aquela era a hora de ligar para dona Maria Helena.
— Viva o Queiroz! — gritava Cássia, entornando nova dose de um só gole.
— Vivaaaa! — acompanhavam Iara e Neusinha. Quando Roberta voltou, Cássia
estava de pé, segurando a garrafa de batida pelo gargalo e aceitando o desafio de
Neusinha, que também havia entornado uns bons dois copos de batida:
— Quero ver você fazer um quatro! Vamos lá, Cássia, um quatro!
Cambaleando, Cássia tentava dobrar uma das pernas e ria-se, bêbada:
— Eu estou ótima, meninas, ótima! Faço quatro, faço oito, faço qualquer número,
querem ver?
Obedecendo ao aceno de Iara, Roberta entrou com a última parte do plano:
— Por que não faz um sessenta e nove, Cássia?
A menina parou os volteios que tentava fazer com as pernas e olhou
embaçadamente para Roberta. Neusinha comentou:
— Hoje você está uma grossa mesmo, hein, Roberta?
— O que é, turma? — continuava a garota com sua provocação planejada. —
Nem se pode brincar, é?
Cássia cambaleou em sua direção, sem saber se ria ou se ficava brava:
— É isso daí, meninas! Brincadeira tem hora. E a hora é agora! Ah, ah!
Apoiou-se pesadamente no ombro de Roberta, que se afastou, num repelão:
— Sai pra lá, cu-de-ferro!
O olhar vago de Cássia tentou fixar-se na colega, sem grande resultado:
— O que você disse?
— Eu disse o que você é: cu-de-ferro!
A pobre menina bêbada e enganada era incapaz de erguer a voz contra alguém.
Mas esse xingamento tinha sido um problema para ela durante toda sua vida escolar:
— Retire o que você disse, Roberta! Retire o que você disse! Já!
— Ei, meninas — Neusinha tentava intervir. — Vamos, deixem disso! Cássia,
vem cá, você não está boa...
Cássia cambaleou para trás...
— Quem é que não está boa aqui?
... e trombou contra a mesa de concreto, espatifando a garrafa.
— Hein?
Neusinha tentou ampará-la e o gargalo da garrafa, ainda agarrado por Cássia,
rasgou a manga de sua jaqueta.
— Ai! — gritou Neusinha.
— Meu Deus, o que você fez, Cássia? — Iara interveio, agora pressurosa,
amparando Neusinha. A manga da jaqueta da garota tinha sido cortada e uma mancha
de
sangue misturava-se ao vermelho do tecido. — Você cortou a Neusinha!
— Hein? — balbuciava Cássia, sem entender direito o que acontecia.
Nesse momento, o portão que ligava o prédio da escola ao pátio abriu-se
violentamente. Os dois treinadores chegavam juntos, preocupados pelo telefonema de
Roberta, que interrompera a reunião na Liga Juvenil de Vôlei.
— Dona Maria Helena! Professor João Massa! — chamava Iara,
preocupadíssima, amparando Neusinha. — Acudam!
12. Ela está fora do time
— Se atos como esse seu, Cássia, começam a ser cometidos livremente, sem
punição, é o bom nome do nosso time e do próprio Colégio Carlos Queiroz Telles que
vai
acabar sendo manchado.
Na manhã de sexta-feira, dona Maria Helena não aceitou a intermediação nem
da diretoria do colégio, nem dos pais de Cássia. O próprio João Massa teve de ficar à
parte, sem voz ativa na decisão da professora.
E a decisão foi drástica: Cássia perdia seu lugar no time.
— Parece incrível que jovens como você, Cássia, metam pela boca um inimigo
que lhes rouba a razão, o raciocínio, a vergonha! Eu não posso entender por que os
jovens aceitam meter-se com álcool e drogas, transformando a si mesmos em
verdadeiros animais. E isso tudo com prazer, rindo e brincando!
Na quadra principal do colégio, de pé, na frente da professora, com todo o time
feminino sentado em volta, Cássia tinha a expressão de um trapo. Pálida como papel,
seus lábios tremiam e lágrimas mudas brotavam sem parar dos olhos vermelhos, que
haviam chorado durante toda a noite e ainda conseguiam encontrar reservas salgadas
para demonstrar sofrimento e humilhação.
Depois de ter vomitado, de ter passado mal a noite toda, sua cabeça ainda girava
pelo efeito da aguardente vagabunda que Iara trouxera. Mas a menina não tinha
aberto a
boca para denunciar quem havia trazido a bebida. Considerou-se a única culpada e não
quis piorar tudo, envolvendo Iara, Roberta e Neusinha em sua desgraça.
— Você fica fora da final, Cássia — encerrava dona Maria Helena. — Não ficará
nem no banco. Não irá com o grupo para Santos. O posto de capitã fica com Adele.
E a posição de titular no meio da defesa fica com Malu. Para a reserva da Malu,
vou promover a Norminha, da oitava...
O tempo todo Iara sabia que a decisão só poderia ter sido mesmo aquela. Desde
o começo, Roberta não tivera a menor chance de recuperar seu lugar no time, pois era
levantadora, e não defensora como Cássia ou Malu. Mas fez a mais convincente
expressão de surpresa quando recebeu o olhar pânico de Roberta, ao ouvir a nova
escalação do sexteto titular.
Na primeira oportunidade que teve para procurar Iara sozinha, Roberta não teve
tempo de abrir a boca e reclamar do desastroso resultado do plano da amiga. Iara
levantou a mão, fazendo-a calar-se e procurando acalmá-la:
— Fique fria, Roberta. As coisas estão indo do jeito que eu planejei. Agora só
falta o próximo peixe em nossa rede: vamos fisgar uma traíra negra...
Logo as duas estavam rodeadas pelas outras jogadoras do grupo, todas
excitadas, nervosas, umas falando em injustiça, outras sem conseguir entender como é
que uma garota certinha como a Cássia podia ter se embriagado daquele jeito.
— Conheço a Cassinha há anos, meninas — Iara balançava a cabeça,
demonstrando-se arrasada com tudo o que havia acontecido. — Coitada da Cassinha,
coitadinha dela! Isso é problema de família, sabem? Uma desgraça... Ela tem até um
tio
internado, com problemas de bebida... Isso é coisa de família...
— Alcoólatra? Será que a Cássia é uma alcoólatra?
— Claro que não! Isso leva tempo. Mas, por favor, não espalhem nada mais,
nenhum comentário, nenhuma fofoca que possa piorar o drama da Cássia. Vocês sabem
como eu adoro a Cassinha. Não há o que eu não fizesse na vida para livrá-la desse
maldito vício...
— Coitada da Cássia... — lamentava Lorena, chorando pela amiga.
Magda tentava ver a coisa por um lado menos grave:
— Foi uma sorte danada a Neusinha estar com frio e ter vestido a jaqueta, não
foi?
Iara tocou delicadamente o rosto da colega e sorriu, com tristeza.
— Quando a Cássia bebe, menina, ela perde a cabeça mesmo, perde a cabeça...
— Por sorte essa violência dela acabou só com um corte de nada na Neusinha...
— continuou Magda. — Não precisou nem levar ponto...
Sandra ainda não entendia como Cássia podia esconder tantos problemas numa
aparência tão adequada, tão de acordo com o que os adultos esperavam dela:
— Quem podia imaginar uma coisa dessas, hein? Só você mesma, Iara, que
conhece a Cássia há tanto tempo... Mas que idéia a dela, trazer uma garrafa de pinga
para a escola!
— Não foi? — completou Iara. — Por sorte eu estava lá... Se eu não apartasse
as duas... Não sei não...
Naquele momento, Roberta estava mais pálida que a própria Cássia.
— Iara, tenho de falar com você!
A menina levantou os olhos, fixando o olhar preocupado de Emílio, parado na sua
frente, bloqueando-lhe a passagem.
— Tem de falar comigo? Por quê? Eu não tenho de falar com você...
Emílio não aceitou a agressão:
— Alguma coisa muito errada está acontecendo, fofinha. Muito torta mesmo. O
que há? Tenho observado você nos últimos dias e...
— Observado?! — cortou Iara, com desdém. — Pois trate de ficar de olho em
quem quiser ser olhada por você. Eu não!
— Iara, eu vi quando você...
— Quando eu o quê? Ora, vê se me esquece!
Contornou o corpo de Emílio e deixou-o para trás. Ao longe, sentada na terra,
debaixo da velha jabuticabeira que ficava atrás dos alambrados das quadras, Iara viu
uma
solitária e desolada Cássia. Pelo jeito, a menina não encontraria forças para entrar em
aula.
"Ela agora está no ponto. Vamos ao próximo capítulo, querida Cássia..."
Iara deu a volta nos alambrados e ajoelhou-se ao lado da colega. Sem uma
palavra, abraçou-a apertado, intensamente. Cássia desabou num choro sofrido,
entregue,
sem censuras.
— Ai, Iara! Por que é que eu fui fazer uma coisa dessas?
— Shhh... querida... shhh... Pode desabafar, comigo você pode desabafar tudo o
que quiser...
— Perdi tudo, Iara, perdi tudo!
— Não, Cassinha, todo mundo conhece você, e logo todos vão descobrir que o
que aconteceu foi um acidente idiota. Você sempre foi a aluna mais querida do
Queiroz.
Sua reputação é...
Cássia enterrou o rosto nas mãos:
— Reputação! Reputação! A minha está perdida! Isso fazia parte de mim, agora
estou vazia, como um cadáver. Minha reputação, Iara, minha reputação!
— Calma, isso não é nada. Você está inteirinha, como sempre foi. Um ferimento
no corpo dói mais do que na reputação. Essa história de nome, de honra, de reputação,
não vale nada. O que significa isso de reputação? O mundo anda cheio de gente que
ganha uma ótima reputação sem merecer e de gente que a perde sem motivo, como
você. Isso é a vida, Cássia...
— Ai, Iara! Todo mundo agora vai me olhar diferente... Que vergonha! Eu preferia
que um ladrão tivesse roubado toda a minha mesada. Pelo menos, se eu ficasse sem
dinheiro, o ladrão poderia ficar com ele e gastar como entendesse. Mas, quando
alguém
rouba o meu nome, eu fico totalmente pobre, mas o ladrão não enriquece com isso...
— Ricos e pobres, Cássia? A gente tem de valorizar é o que a gente tem. Um
pobre que está contente com o pouco que possui é muito mais rico que o rico que vive
na
paranóia de perder o que tem... E você tem muito, querida, muito... Todas nós gostamos
de você, todas nós estamos do seu lado. Isso é o que vale, isso é o que você tem. Faça
como o pobre, que vive feliz valorizando o que tem!
— Ah, Iara! Se eu não tivesse uma amiga como você...
Iara acariciava delicadamente os cabelos de Cássia, como se ninasse um bebê
na hora de dormir:
— Esqueça. É que você perdeu o controle. Eu só queria que a gente tomasse um
gole, um golinho só... mas você abusou, perdeu a cabeça...
— Por que você foi trazer aquela bebida horrível, Iara?
— Para um golinho só, Cássia. Não foi o que eu disse: "Um golinho só"? Lembrase?
Mas você abusou, querida, perdeu o controle...
— A culpa é minha, é minha! Ai, a bebida! Se a bebida não tivesse nome, era só
chamá-la de demônio!
— Calma, calma... É preciso saber lidar com a bebida...
— Eu não sei lidar com mais nada, Iara, com mais nada...
Iara tocou a ponta do queixo da amiga com o indicador e levantou seu rosto:
— Olhe, Cassinha, isso tudo vai passar. Só que a gente não tem tempo para
esperar que as coisas esfriem. Nós precisamos de você em quadra amanhã à noite.
— Isso é impossível, Iara, impossível...
— Nada disso! Eu sei o jeito de você recuperar tudo. Dona Maria Helena é uma
ótima pessoa. No coração dela não tem lugar pra raiva, nem pra ódio. Ela sabe perdoar.
Deixe que eu vou falar com ela.
— Ela não vai querer conversa, Iara...
— Talvez não, mas tem uma pessoa que a dona Maria Helena ouviria melhor. É a
Adele. Duvido que ela não faça uma coisa que a Adele pedir. E você não sabe como a
Adele tem jeito com as palavras, menina, você nem calcula!
— É mesmo? Mas será que a Adele vai aceitar fazer isso por mim?
— Aí depende. Depende de quem pedir esse favor a ela. O caminho é o
Desmond, Cássia, é o Desmond! Você está cansada de saber como a Adele é
apaixonada pelo Desmond, não é? Você acha que ela negaria qualquer coisa que ele
pedisse?
O pátio esvaziava-se e os alunos voltavam às classes, tangidos pela campainha
estridente.
Uma aula de Geografia arrastou-se inteirinha, até que batesse o sinal para o
intervalo. Com o canto do olho, Iara viu Cássia sair apressada da sala. Seguindo seu
conselho, a pobre menina iria à procura de Desmond. Era preciso reter um pouco Adele
na classe, para não estragar o plano:
— Ai, menina! Estou arrasada com tudo o que está acontecendo. Estive agora
mesmo falando com o Leo e...
Iara conseguiu prolongar o curto diálogo por mais dois minutos e desceu junto
com Adele. Chegaram ao pátio e, ao fundo, encostados em uma parede, lá estavam
Cássia e Desmond. O rapaz ouvia, preocupado, e Cássia falava com insistência,
agarrada
em seu braço.
— Olha só, Adele... — comentou Iara, com o ar mais cândido do mundo. — Acho
superlegal essa amizade do Desmond com a Cássia...
— Hum?
— Está vendo? Logo que alguma coisa de ruim acontece com ela, é com o
Desmond que ela vai desabafar. Superbonita essa amizade...
Os olhos de Adele estavam abertos, mudos, e seu lábio tremeu levemente.
Do outro lado do pátio, Desmond tocava a cabeça de Cássia, com carinho, e
seus lábios se abriam, respondendo com imensa ternura ao que acabava de ouvir. Logo,
Cássia separava-se de Desmond e sumia para o fundo do galpão do recreio.
— Hum? — fez Iara, muito baixo. — A boneca vai fugir de novo?
Adele teve um sobressalto:
— Fugir?
Desmond esticava o olhar e encontrava a namorada ao lado de Iara, perto da
cantina.
Veio vindo, com um ar preocupado.
— Oi, amor!
Adele aceitou o beijinho na face e nada disse.
— Oi, Desmond — brincou Iara. — Quer que eu vá tomar um sorvete, quer?
O rapaz tocou-lhe o braço:
— Não, nada disso, Iara. Eu preciso pedir uma coisa a Adele e é até bom que
você ouça...
— Pedir uma coisa? — estranhou Adele. — O que é que você quer me pedir?
Desmond pegava Adele pelos ombros e falava, com uma voz de veludo:
— É a Cássia, querida. O que aconteceu com ela foi uma tragédia
incompreensível. A Cássia nunca fez nada de errado na vida e isso vai acabar com ela...
— Nunca fez nada de errado, é, Desmond? — balbuciou Adele, trêmula, ao ver
confirmadas suas suspeitas.
— Isso mesmo, meu amor. Dona Maria Helena precisa perdoá-la e devolver o
lugar dela no time. A Cássia tem de estar em Santos, jogando a final contra o Cultura
Múndi...
— Tem, é? E o que eu tenho com isso?
— Você é a verdadeira líder do time, Adele. Dona Maria Helena ouve tudo o que
você diz. Tenho certeza de que, se você pedir, ela vai dar outra chance à Cássia. Por
favor, Adele...
Adele parecia diferente, com uma expressão que nenhum dos colegas do
Queiroz tinha visto antes.
Encarou o namorado séria, como se tentasse ler algo que o rosto do rapaz
poderia estar escondendo:
— Está bem, Desmond. Vou pensar nisso.
— Pensar, Adele? — insistiu Desmond. — Não há tempo a perder. Hoje é sexta.
A gente viaja para Santos amanhã, depois do almoço. Só temos o treino de hoje à
tarde.
Se você não conseguir mudar o pensamento de dona Maria Helena ainda hoje, a Cássia
não vai cons...
Adele ergueu a mão, interrompendo com dureza:
— Já disse que vou pensar, Desmond. Agora, por favor, me dê licença, que eu
tenho de falar com Iara sobre um problema.
— Um problema? Que problema?
— Matemática, Desmond. Sobre um problema de Matemática...
13. Olhos ciganos
As duas saíram apressadas de perto de Desmond, Iara segurando o braço de
Adele, as duas em busca de algum canto isolado, tentando fugir da aglomeração do
intervalo.
Entraram pelo corredor lateral externo da escola, enfiando-se pelo jardim
bemcuidado.
De repente, Adele parou bem debaixo das janelas da sala da administração e
encostou-se, com os braços para baixo, apoiando as mãos espalmadas na parede, como
se estivesse sendo ameaçada por algum perigo iminente. O pânico estampava-se no
rosto da menina, que arregalava os olhos para a amiga:
— Miserável! É fácil dizer que esses garotos são nossos namorados! Mas dizer
que o tesão deles é nosso, isso nunca!
Iara balançava freneticamente as mãos, tentando espantar as suspeitas de Adele
como se elas fossem um enxame de mosquitos:
— Que loucura é essa, querida? Ficou maluca? O que você está dizendo? O que
é que tem o Desmond fazer um pedido pela Cássia? É como se o Leo, ou o Caca, ou eu
mesma tivéssemos pedido isso a você! Todas nós, todos nós queremos ajudar a
Cassinha. Você não quer?
— Eu?! O que eu quero é... — Adele susteve o que ia dizer, cerrou os olhos e
balançou a cabeça, afastando um mau pensamento. — Ai, amiga, minha amiga, nem sei o
que eu quero... Essa noite... nem dormi, pensando de novo tudo o que eu pensava
quando eu e o Desmond começamos a namorar. Ele dizia todas aquelas coisas bonitas...
Eu pensava... Eu pensei... eu ainda penso que só pode ser uma loucura passageira um
garoto como o Desmond olhar para alguém como eu...
— Alguém como você? O que você quer dizer com isso?
— Eu sou negra, Iara, eu sou negra! Você não vê isso?
Iara abriu os braços e jogou a cabeça para trás:
— Oh, eu sabia que qualquer dia desses você acabaria vindo com essa
bobagem! Se a cor dos anjos é a cor do céu, Adele, pra mim você não é negra, é
azulanjinho-
de-procissão!"
— Você é um amor, Iara, você é o único ar que eu consigo respirar nesse
momento. Mas não adianta eu tentar me enganar. Pense bem: quem um garoto como o
Desmond escolheria, tendo de um lado a Cássia, linda, inteligente, alvo dos assobios de
toda a escola, e, do outro, eu, a negra que sonhou ser possível conquistar o coração de
um homem como ele?
— Não me venha com isso, Adele! Onde está a menina segura que eu conheço?
Eu escolhi você! Todo mundo escolheu você! Por que o Desmond não haveria de
escolher
uma garota linda como você? Confie nele, confie nos seus amigos, confie em mim!
— Você é a única pessoa em quem eu confio cegamente no mundo, Iara. Mas,
nesse momento, você só pode me oferecer palavras de consolo. Palavras! As palavras
não servem para quem está sofrendo. Nunca ouvi dizer que um coração machucado
possa ser tratado pelo ouvido!
— Adele, calma! Você está confundindo tudo! A amizade do Desmond com a
Cássia é a coisa mais comum do mundo! Você tem de agir como se...
Adele não conseguia ouvir:
— Desculpe, Iara, mas eu estou farta de conselhos! Conselho que procura
consolar a quem sofre é fácil de seguir para quem não está sofrendo. Para quem está
em
desespero, é duro ter de aturar ao mesmo tempo a dor e o conselho!
— Adele, Adele! O ciúme é um monstro, Adele. Um monstro que cria a si mesmo,
que se alimenta de si mesmo! Fuja do ciúme!
Adele chorava desconsoladamente e abraçou-se à amiga, absorvendo o calor da
solidariedade que Iara lhe oferecia.
— Ciúme! Melhor é ser traída cem mil vezes, Iara, do que suspeitar uma só vez
de traição! Nos lábios dele, eu jamais encontrei os beijos dela. No corpo dele, eu nunca
aspirei o cheiro dela. Tudo ia tão bem... Por que eu fui descobrir tudo? Por quê?
Iara demonstrava-se aflitíssima:
— Ele é seu namorado, Adele. Ele adora você. Jamais faria alguma coisa para
feri-la. É ele quem carrega a sua medalhinha, não é? O símbolo do amor entre vocês,
não
é? A medalhinha é como uma aliança de noivado, Adele!
Adele separou-se bruscamente do abraço da amiga e encarou-a, com os olhos
arregalados:
— A medalhinha! Espere um pouco, Iara. Eu volto num minuto. Não saia daqui!
Iara recostou-se na parede, soltando lentamente o ar contido nos pulmões e
vendo Adele correr de volta ao pátio. Aliviada, sentia-se aliviada. Tudo estava dando
tão
certo, tão certo...
"Logo, ai, logo eu vou estar novamente nos seus braços, Desmond... Você vai
me encontrar como eu sempre fui, apaixonada. Amanhã, eu vou continuar como sou
hoje,
apaixonada. Para sempre, meu querido, apaixonada por você..."
Adele voltava. Em seus olhos havia quase que um ar de satisfação por ter
confirmado uma suspeita. Uma espécie de euforia, que acobertava o desespero que
queimava em brasa seu coração:
— Iara, Iara... Ele não está com a medalhinha que eu dei, Iara...
— O que é que você está dizendo, Adele?
— Ele e Emílio conversavam quando eu cheguei. Ele veio com um sorriso triste,
tentando me abraçar, mas eu me afastei e pedi para fazer uma pergunta, uma
pergunta
só. Só o que eu queria ver era a medalhinha que eu havia dado a ele num instante de
felicidade única, de paixão completa... A medalhinha que eu...
— E aí ele mostrou a medalhinha, não mostrou?
— Ai, eu estava certa, Iara, eu estava certa! Ai, como eu queria que você tivesse
razão, quando disse que o que eu suspeitava não passava de bobagem... Mas ele ficou
sem jeito, sem jeito, Iara! Disse que havia esquecido a medalha em cima da pia, quando
escovava os dentes pra vir pra escola... Mas os olhos dele, Iara, os olhos dele! Os olhos
dele mentiam! Havia mentira naquele olhar!
Iara segurou-lhe os ombros, insistente:
— Adele, Adele! Por que você acha que ele está mentindo? Não se deixe tomar
pelo ciúme! O ciúme é um monstro de olhos verdes que destrói o próprio ser que ama!
— Olhos verdes! Eu vi a mentira naqueles olhos verdes dele, Iara! Você mesma
não me falou dos olhos ciganos do Desmond? Dos olhos que olham de lado,
dissimulados? Olhos de água! Olhos do demônio!
— Loucura, Adele! Isso é loucura. Você está transformando esse ciúme em ódio!
Adele não a ouvia, dominada pelo que estava sentindo:
— Ai, saber da traição! Isso é o pior de tudo. Como seria bom se eu não
soubesse de nada! Ai, que tortura descobrir tudo! Se alguém me furta por exemplo
uma
régua da mochila e eu não percebo, é como se eu nem tivesse sido roubada. Roubado
que não dá por falta do que lhe foi roubado, é porque não foi roubado em nada! Mas
descobrir... descobrir... ficar sabendo... você não sabe como isso dói, Iara...
— Mas de que traição você sabe, Adele? O que é que você descobriu realmente?
Nada! Será que é tão anormal assim esquecer a medalhinha em cima da pia?
— Minha mãe diz que marido que esquece a aliança em cima da pia é porque
está saindo pra aprontar alguma!
Iara abriu a boca, mas seus argumentos pareciam esgotados. Esperou um
pouco, olhando para o chão. Depois segurou a mão de Adele e levou-a ao peito,
apertada:
— Bom, talvez você tenha um pouco de razão, Adele... Veja lá: eu não estou
dizendo que você está certa. É só uma hipótese. Eu estava lembrando do tempo em que
eu estava com o Desmond. Na época eu fiquei furiosa, é claro que eu fiquei furiosa
com
aquela fome dele por qualquer fêmea que lhe passasse pela frente, mas essas coisas
passam, sabe?
— Está vendo? E você ainda me diz que o Desmond mudou! Ele ainda é o
mesmo, Iara!
Iara olhou para longe, recordando momentos de aflição:
— Talvez, sei lá... quando eu lembro do que o Desmond me fez, no ano passado,
fico pensando se aquele Desmond não estaria ainda dentro deste, como uma fruta
dentro
da casca...
Adele voltava a chorar, agora como uma criança que se perdeu da mãe na feira:
— Ah, Iara! O que eu vou fazer, Iara?
A amiga apertou-lhe a mão ainda mais:
— Você acha que eu deixaria você sozinha num momento como esse? Fico do
teu lado até o fim!
— Eu estou nas tuas mãos, Iara.. Abençoadas as tuas mãos...
— Vou dizer o que é que nós temos de fazer, Adele. Nada é pior do que a
incerteza. Sabe o "canto dos amassos"? Hoje à tarde, na hora do intervalo do treino
de
vôlei, vá para lá e fique escondida. Eu vou dar um jeito de trazer a Cássia para perto.

pra ouvir tudinho, do outro lado da coluna. Vou perguntar diretamente pra ela se o
Desmond anda dando em cima dela ou não. Como eu não sou você, a Cássia não terá
nenhum problema em falar a verdade pra mim, eu tenho certeza.
— Ora, ela vai ficar de bico calado. Por que você acha que ela vai se abrir com
você?
— Vai sim, você vai ver. E vai ver também que tudo isso não passa de
maluquices que você mesma enfiou na cabeça...
No final das aulas daquela manhã, sem que Iara tivesse comunicado a Adele,
uma comissão de jogadoras, com Desmond junto, foi falar com dona Maria Helena. A
professora, já no estacionamento, pronta para ligar o carro e ir para casa, ouviu
pacientemente a solidariedade dos colegas de Cássia. Era uma grande educadora e
resolveu:
— Está bem. Como vocês, eu sei que Cássia é uma menina excelente. Mas o
deslize foi grande demais e alguma conseqüência ela deve sofrer por seu mau
comportamento. Está bem. Ela vai com a gente para Santos. Mas a titular continua
sendo
a Malu. Cássia fica no banco de reservas. Podem avisá-la.
Mal Cássia chegava em casa, a mãe estendia-lhe o telefone:
— Pra você, minha filha...
— Alô...
Do outro lado da linha, a voz de Iara, na maior alegria e na maior excitação:
— Últimas notícias, querida: nossa reportagem acaba de apurar que a sua
grande amiga Iara acaba de falar com dona Maria Helena implorando para que você
volte
à equipe e... E ela cedeu!
— Como?!
— Bom, não cedeu completamente. Você ainda está na reserva, mas vai poder
viajar amanhã com a gente. Trate de aparecer hoje à tarde no treino. Você está de
novo
no time, Cassinha querida!
À tarde, como ocorre sempre em vésperas de grandes decisões, como acontece
nos ensaios gerais de teatro antes das estréias, a qualidade do treino transcorria
muito
abaixo do que os treinadores normalmente exigiam dos dois times do Carlos Queiroz
Telles. O nervosismo imperava, mas tanto João Massa quanto dona Maria Helena
sabiam
que aquilo era energia represada para uma grande luta no dia seguinte.
Na hora do intervalo, todos estavam suados e muito falantes, na expectativa do
jogo.
Adele, como havia sido combinado, sumiu atrás da coluna do "canto dos
amassos".
Iara pegou Cássia pelo braço e começou o encontro com o mais alegre sorriso
deste mundo:
— E então? As coisas estão começando a melhorar, não é, Cassinha?
— Ah, obrigada, Iara! Você foi maravilhosa! Hoje, quando eu cheguei para o
treino, a primeira coisa que fiz foi correr para dona Maria Helena e agradecer. Ela
disse
que eu devia era agradecer às amigas que eu tenho e ao Desmond. Mas eu sei que tudo
foi mesmo por sua causa, Iara! Obrigada mesmo! Que advogada você vai dar!
— O que eu não faria por você, Cassinha? Vem cá, vem...
Já estavam encostadas na coluna ao lado da cantina, atrás da qual ficava o
famoso "canto dos amassos". Iara conhecia muito bem a acústica do local, depois de
tantos namoros de Adele e Desmond que havia espionado. Sabia qual o volume de voz
que podia ser ouvido daquele lado e, conseqüentemente, sabia que volume deveria usar
quando quisesse ou quando não quisesse que Adele ficasse sabendo o que estava sendo
dito. Começou num tom fofoqueiro, quase cochichando para Cássia:
— E o tal do Branco, hein? E elevou o volume da voz:
— O carinha continua insistindo? Nunca vi garoto mais doido por mulher!
Cássia riu:
— É um pobre-coitado. Parece mesmo que está caído por mim...
— Bom... — continuou Iara, num tom de deboche. — Ouvi dizer que ele anda
espalhando por todo canto que você já está no papo...
— No papo, eu? Ora, faça-me o favor, Iara! Você acha que eu sou maluca? Se
ele anda dizendo besteira por aí, isso é lá por conta dele... O idiota me persegue por
toda
parte! Outro dia, quase tentou me agarrar. Você imagina uma coisa dessas? E fica
implorando como um coitado! Ah, eu preciso me ver livre desse bobão. E agora deu de
vir
para o meu lado todo perfumado. Imagina só!
Depois que Cássia foi para o vestiário aproveitar o restante do intervalo, o que
Iara encontrou atrás da coluna foi algo parecido com um fantasma. Era decepção, era
asco, era ódio que se lia nos olhos de Adele. Antes que ela dissesse qualquer coisa,
Iara
decidia, com segurança:
— Espere, Adele. Tenha um pouco de paciência. Essa história de os garotos
viverem dizendo gracinhas pra qualquer menina é um vício machista. Um vício que não
quer dizer nada, não quer dizer que o carinha seja um traidor.
— Machista? Ai, nem isso eu percebi nele!
— Todos são. Eles vivem dizendo besteira só pra se exibirem na frente dos
amigos. Espere até amanhã, no embarque no ônibus pra Santos. Se Desmond não
estiver com a medalha, então talvez você tenha razão em suspeitar dele.
— Esperar até amanhã! Como é que eu vou conseguir dormir?
— Calma. Você vai ver: na hora, lá vai estar ele, com aquele sorriso de anúncio
de pasta de dente e com a medalhinha a reluzir na frente do peito...
14. Nunca mais quero te ver
— Calminha, Adele. Eu disse: controle-se! Ele vai chegar já, já. Não adianta ficar
de ouvido em pé cada vez que ouve o ronco de uma moto. Em dias de viagem, você sabe
que o Desmond vem de carona com o pai. Calma. Logo, logo ele vai chegar, todo
cheirosinho e...
— Cheirosinho! — aparteou Adele, lembrando-se da tarde anterior. — Todo
perfumado, como ele vem pra dar em cima da Cássia, não é?
— Esse seu ciúme já está dando nos nervos, Adele! Está bem: então ele virá
todo fedido, mas tenho certeza de que, desta vez, ele não vai esquecer a medalhinha
em
cima da pia! Fique tranqüila, que tudo vai acabar bem.
O ônibus que levaria os dois times para a disputa das partidas finais em Santos
estava encostado na frente do Colégio Carlos Queiroz Telles. Quase todos os rapazes
e
moças já tinham chegado e começavam a embarcar, brincando sem parar e carregando
suas mochilas. Iara e Adele permaneciam na calçada, à espera. Iara não largava a mão
da amiga, apertando-a para dar-lhe confiança.
Um carrão escuro, importado, encostava logo atrás do ônibus. As duas meninas
o reconheceram na mesma hora: o carro do pai de Desmond.
Da porta do passageiro, descia o garoto, com os longos cabelos loiros recémlavados
e presos por uma faixa elástica branca. A tarde de maio estava um pouco fria, e o
rapaz vestia um agasalho de náilon. Sorriu para as duas meninas que acompanhavam
cada movimento de sua chegada como se fossem duas devotas assistindo a uma
aparição do papa. Mas era um sorriso fraco, meio inseguro, muito distante da risada
franca a que elas estavam acostumadas.
Adele desvencilhou-se da mão de Iara e caminhou firme para Desmond. Ele
abria os braços para recebê-la e ela chegava, com as palmas das mãos estendidas para
a frente, em busca do peito do namorado. Tocou-o, apalpou-o por dentro do agasalho,
procurando e só encontrando a pele morna e os primeiros pêlos loiros que já
começavam
a enfeitar o peito de Desmond.
Seus lindos olhos ergueram-se para o rapaz. Nada disse e tudo dizia com aquele
olhar. Eram olhos já úmidos, repletos de decepção. Eram olhos que perdiam a última
esperança.
Desmond sentiu na própria pele a ansiedade da pesquisa. O toque da menina
que ele adorava desta vez parecia mais agressão que carinho. Triste, falou a verdade:
— Você está procurando a medalha, não é? Bom, não adianta mentir: eu não
consigo encontrar a medalha que você me deu. Desculpe, meu amor, eu queria esse
presente amarrado ao meu pescoço por todos os anos que me restam para viver, eu
daria
qualquer coisa para...
Adele ergueu a mão direita, quase tocando os lábios do garoto:
— Não precisa dar mais nada, Desmond. Está bem, eu compreendo. Só peço um
favor: arranje outra companhia para a viagem, está bem?
— Adele, não! — a voz de Desmond implorava. — Se você me ama, tenho
certeza que pode me perdoar. Você sabe que a medalha era o que mais me importava
neste mundo. Eu dormia com ela, eu...
— Não precisa explicar nada, Desmond — dizia a menina, controlando-se,
falando baixo, pausadamente, no tom da resignação. Ela era negra, não era? Como
podia
ter sonhado com a posse de um garoto como aquele? — Pode deixar que eu
compreendo
tudo o que você quiser que eu compreenda. Eu só quero que você me deixe sozinha,
está
bem?
Ao lado do ônibus, Cássia chegava com uma grande mochila às costas. Iara
chamou-a:
— Oi, Cassinha! Me empresta o batom?
— Claro, Iara — respondeu a menina, torcendo um ombro para oferecer a
mochila à amiga. — Olha, pega aí. Está no zíper de fora...
Adele voltava lentamente na direção de Iara, deixando Desmond para trás, com
os braços caídos, em desânimo. Iara abria o zíper da bolsinha externa da mochila de
Cássia. Desastradamente, sua mão saía derrubando parte do conteúdo na calçada.
Junto com um pequeno estojo de maquiagem, uma escova de cabelo e alguns
tabletes de chiclete, caía uma correntinha dourada, com uma medalha em forma de
bola
de vôlei.
— O que é isso?
Iara abaixava-se e erguia-se em seguida, com a correntinha entre os dedos,
balançando como um pêndulo.
— O quê...? — a boca de Adele abria-se em espanto e assim ela voltou-se para
Desmond.
Quase embarcando no ônibus, Emílio assistia à cena. Suas sobrancelhas
franziam-se e seus dentes apertavam-se, num esforço de compreensão.
— A medalha! — exclamava Desmond. — Onde estava? Onde você encontrou
essa medalha, Iara?
Dessa vez a voz de Adele transformou-se. Trazia dureza, raiva, decepção,
desespero:
— Você sabe muito bem onde ela estava, Desmond. Nesse momento, eu preciso
de tudo, menos de cinismo!
— Mas o que está acontecendo? Adele! Iara! O que está acontecendo? Eu não
entendo!
Adele quase arrancou a corrente com a medalha da mão de Iara.
— Eu entendo, Desmond. Pode ficar sossegado que eu não vou fazer nenhum
escândalo. Só te digo uma coisa: nunca mais quero te ver!
O ônibus arrastava-se lentamente, tentando superar o trânsito congestionado de
São Paulo, difícil até para um começo de tarde de sábado. Alheios ao drama que
envolvia
alguns deles, os rapazes e as moças riam, brincavam e cantavam, preparando-se com
alegria para a guerra esportiva que pretendiam vencer logo mais à noite.
Adele e Iara ocuparam as poltronas da frente, as que ficavam atrás do motorista.
O rosto de Adele não trazia nenhuma expressão, revelando o vazio. Estava estática,
mirando a placa de acrílico que isolava o motorista como se ali houvesse uma tela de
televisão. De seus olhos, lágrimas escorriam mudas, ininterruptas...
Iara não largava a mão da amiga e também nada dizia. Dizer o quê? Nada mais
havia a dizer, nada mais havia a fazer. Tudo tinha dado certo. Agora Desmond estava
livre
como uma lebre num campo sem raposas e Iara era o caçador que já havia preparado a
armadilha.
Um pouco voltada para Adele, ninguém, nem mesmo os dois professores que
ocupavam as poltronas ao lado, podia ver o breve, leve, misterioso sorriso que
suavizava
seu rosto.
"Bem, uma coisa eu ainda tenho de fazer... A mais importante. A mais gostosa!
Ganhar de novo o Desmond para mim. Ah, hoje é exatamente 12 de maio! Eu
ganhei você, Desmond, há um ano justinho. Por isso hoje é o melhor dia para retomar
você de volta para mim!"
Tinha vontade de levantar-se e correr para o fundo do ônibus, atirando-se sobre
o corpo adorado do rapaz. Mas para que a pressa? Se tinha agido com cuidado até ali,
um pouco mais de tranqüilidade não faria mal nenhum.
"Este é o momento. Agora você está frágil, pronto para que eu preencha o vazio
que você acha que está sentindo, meu Desmond. Sei que Adele vai me odiar para
sempre... Mas o que eu posso fazer? Para se conseguir violetas mais perfumadas, o
único jeito é usar estrume de porco..."
Já estavam na interligação da Rodovia dos Imigrantes com a Anchieta, prontos
para descer a Serra do Mar, quando Iara levantou-se. Beijou o rosto de Adele e
caminhou
pelo corredor, para a parte de trás do ônibus.
"Tenho de ir devagar, humilde como uma violeta... Lá está ele... Desmond..."
Passou pelas poltronas onde estavam juntos Cássia e Emílio. À sua passagem, o
rapaz a olhou com uma expressão dura, inquisidora. Pegou seu braço e levantou-se:
— Iara, você não quis me ouvir aquela hora, mas eu preciso falar com você. O
que você estava fazendo quando...
Iara sacudiu o braço, como se andasse por uma floresta e um cipó incômodo
impedisse sua caminhada. Nem olhou de lado. Para ela, era como se não houvesse mais
ninguém naquele ônibus, como se ela mesma fosse um pequeno alfinete sendo atraído
pelo imã que se sentava na última poltrona.
— Ei, Iara! — chamou Caca, brincando, como sempre. — Por que você está tão
embonecada? Você pensa que as garotas do Cultura Múndi são todas sapatonas e vão
desmaiar de paixão vendo você na quadra? É assim que vocês pretendem ganhar hoje,
é?
Miltão ria, gargalhava, com a piada do colega.
Iara tinha levantado cedo naquela manhã. Nem almoçou. Levou horas no banho,
horas se maquiando, horas escolhendo a camiseta mais sedutora, de decote mais
cavado, e acabou se decidindo por um bustiê que deixava livre o umbigo, revelando
também boa parte dos seios, onde a menina tivera o cuidado de perfumar, primeiro
exageradamente e, depois de novo banho, com a delicadeza que ela julgou suficiente
para inebriar o garoto que ela precisava reconquistar.
Atrás dela, Emílio terminava a conversa com Cássia e ia sentar-se ao lado de
Roberta.
Desmond estava sozinho na última poltrona. Olhava pela janela, com a atenção
perdida pela sucessão de verde tropical que ladeava a estrada.
Sem uma palavra, Iara sentou-se ao lado dele, suave como uma serpente que se
aproxima da vítima, mas fofa como um gatinho que vem se aninhar no colo do dono.
Sentindo sua presença, Desmond voltou o rosto para ela. Estava coberto de
lágrimas.
— Querido! Oh, querido!
— Iara, Iara, o que aconteceu?
Aceitou o abraço da colega, enterrando o rosto em seu colo, envolvendo-se no
perfume planejado pela menina e desabando num choro triste, num choro de menino.
— Shhhh... shhhh... Desmond, meu querido... Tudo vai ficar bem. Sua Iara está
aqui. Eu sempre estive aqui, meu amor... Você vai ser feliz, Desmond, muito feliz. Eu
vou
fazer de você o homem mais feliz do mundo, meu Desmond. Agora você é meu... agora
você é meu de novo...
Frágil demais, Desmond só chorava e não reagia às palavras de Iara.
À frente, Emílio trocava novamente de lugar, procurando desta vez os
professores, na parte dianteira do ônibus.
Apertando o rosto do rapaz contra os seios, acariciando ternamente os cabelos
de Desmond, consolando-o, Iara beijava o pedaço de testa que estava ao alcance de
seus lábios.
Tudo tinha dado certo, tudo estava acabado.
Iara sentia, no delicado cheiro dos cabelos de Desmond, o perfume da vitória.
15. Estoque de maldade
Antes das duas partidas entre o Carlos Queiroz Telles e o Cultura Múndi, seriam
disputadas as decisões masculina e feminina dos terceiros e quartos lugares do
Campeonato da Liga Juvenil de Vôlei. O programa estava marcado para começar às
cinco e calculava-se que o time feminino do Queiroz só entraria em quadra lá pelas
nove
da noite. Pelo jeito, a última partida, a masculina, só terminaria depois da uma e a volta
para São Paulo só aconteceria de madrugada. Mas os alunos do Queiroz não estavam
pensando no horário da volta. O que lhes interessava era como eles iriam voltar: se
eufóricos, comemorando, ou de cabeça baixa, lamentando.
Faltava pouco para as quatro da tarde quando o ônibus chegou ao imenso
Colégio Cultura Múndi, que ficava a poucos quarteirões da praia do Gonzaga. Os dois
professores sabiam que não adiantaria aceitar a oferta da diretoria do Cultura Múndi,
que
reservara uma quadra ao lado do ginásio de esportes para um eventual treinamento
dos
adversários. Por isso resolveram que o melhor era deixar aqueles jovens se divertirem
um
pouco.
— Atenção, turma! — chamava João Massa na hora da chegada. — Antes do
jogo, vamos ter a folga que vocês esperavam: o ônibus vai levar vocês mais dois
quarteirões até a praia. Acho que um banho de mar vai ajudar a relaxar para o jogo,
vocês
não acham?
— Oba! — foi a gritaria geral.
— Agora são quatro horas — continuava o professor. — Eu e Maria Helena
vamos ficar aqui, no Cultura Múndi, para combinar os últimos detalhes das finais.
Podem
cair n'água, podem nadar, podem fazer o que quiserem até as seis, quando o ônibus vai
recolher todo mundo e trazer para cá. Só não abusem, tomem cuidado e nada de bola,
hein?
Isolada na última poltrona, abraçada a Desmond, flutuando num sonho de
fantasia e felicidade, Iara não percebeu que Adele, Cássia, Roberta, Neusinha e
Miltão
haviam desembarcado junto com os professores.
Desmond mal falava, parecia aceitar a companhia de Iara, mas sem prestar
atenção alguma. Ela agia com paciência, procurando dar ao rapaz o tempo que ele
precisasse para se recuperar. Dali para a frente, estava decidida a agir de outro
modo, a
não brigar com ele, a não demonstrar ciúmes.
"Vou grudar tanto nesse gato, que ele nem vai ter tempo de olhar pra outra!"
O ônibus estacionou na calçada da avenida em frente à praia, com um chiado de
freios.
— Vamos descer, Desmond? — convidou a menina. — Acho que um banho de
mar vai ajudar a esquecer tudo isso. Se não ajudar, aqui estou eu, pra sempre do seu
lado. Não tenho nenhuma medalhinha pra te dar como lembrança. Pra você sempre se
lembrar de mim, eu dou eu mesma...
"Para sempre! Grudada no pescoço de Desmond feito medalhinha!"
Uma bagunça generalizada, eufórica, jovem, tomava conta do grupo. Entre risos
e gozações, foi organizado um sistema para a troca de roupa dentro do ônibus.
— Deixa que eu ajudo as meninas! Deixa que eu ajudo! — provocava Caca. —
Alguém precisa de ajuda pra abrir um zíper? Pra desabotoar qualquer coisa? Deixa
comigo!
As garotas fecharam as cortininhas das janelas. Sandra segurou uma toalha e
ficou bloqueando a metade traseira do ônibus, criando um espaço reservado para a
troca
de roupa das colegas.
— Fiu-fiu! Fiu-fiu! — assobiavam os rapazes, fazendo um corredor polonês na
porta do ônibus, para cada menina que descia, gloriosamente despida para nadar.
— Ué... Cadê a Adele? E a Cássia? E a Roberta? — perguntou Iara, só de
calcinha, procurando o biquini na mochila.
— Sei lá! — respondeu Marisa, começando a despir-se. — Vai ver não gostam
de praia. A Neusinha também ficou por lá. E o Miltão. Na certa o garotinho não tem
licença da mamãe pra ir à praia sem babá! Ah, ah!
Magda acrescentou:
— E ele ainda deve usar aquelas bóias de braço, ah, ah!
Todas as garotas uniam-se às brincadeiras e Iara as acompanhava, agora feliz,
aliviada, eufórica com o resultado final de suas ações. Aquele banho de mar com
Desmond vinha como um prêmio, como a coroação de alguém que agora se sentia como
uma rainha.
"Iara Regina! Um dia, a senhora Desmond Bradley! Que tal o nome Iara Bradley,
hein?"
Passou pela cortina de toalha, desta vez nas mãos de Malu que, já vestindo um
biquini mínimo, substituía Sandra para que a colega também pudesse se trocar.
Atravessou o corredor e desembarcou do ônibus. Livrou-se das gozações dos
rapazes como pôde e viu-se na calçada, recebendo no rosto a brisa salgada do mar.
— Desmond... — chamou ela, baixinho.
Seus olhos percorreram tudo em volta. Não se fixavam nem nas árvores dos
jardins, nem no mar escuro, ruidoso, nem no céu muito azul, que já começava a colorir-
se
sobre as montanhas, à sua esquerda, preparando-se para o esplendoroso espetáculo do
crepúsculo santista.
— Desmond...
Em sua ansiedade, nem percebeu que Emílio também não estava mais no grupo.
De repente, o pânico:
— Desmond? Cadê o Desmond? Ei, Leo! Você viu o Desmond?
— Sei lá, vai ver já entrou n'água.
"Já? Que danadinho! Correu para a praia sem me esperar. Você vai ver uma
coisa, seu menininho! Mamãe vai ter de ensinar você a se comportar..."
Correu para a areia, sentindo o calor de várias horas de sol sob os pés
descalços.
Mas a figura alta e bronzeada de Desmond não estava à vista. Ansiosa, correu
pela areia, com o coração aos pulos.
"Danadinho..."
Foi direto para a água, desta vez gritando:
— Desmond! Desmond!
"Desmond... ai, querido...", pensava seu coração confuso. "Que brincadeira é
essa, meu amor? Você está se escondendo de mim?"
Seus pés entraram no mar e o choque térmico da água fria contra os tornozelos
fez Iara parar um pouco, tentando reconhecer alguma cabeça loira entre as dezenas
de
pontinhos que salpicavam o mar.
— Desmond! Onde está você? Pára com essa brincadeira, vai!
O grupo vinha em desordem pela areia e logo alcançava a menina. Três rapazes
vieram por trás e pegaram-na no colo:
— Um caldo! Vamos dar um caldo na Iara! Vamos esfriar a Iara, pessoal!
— Me larga, Caca! Leo, pára com isso! Jonas, você vai ver uma coisa!
Os rapazes só "pararam com isso" quando chegaram um pouco mais no fundo.
Às gargalhadas, jogaram a garota para o alto e Iara esparramou-se na água.
Tossindo, levantou-se do mergulho. O nível do mar estava à altura de seus seios
e a brincadeira havia equilibrado a temperatura de sua pele com a da água. Seria uma
delícia, um bálsamo natural para o corpo e para o ânimo de qualquer pessoa, mas a
menina nem se apercebia de nada. Sua atenção estava numa ausência, num sumiço
estranho, inexplicável...
Vagou pela praia todo o tempo da folga. Andou a esmo, com o coração saltando
à boca cada vez que via uma cabeça loira. Nem lhe ocorreu que o rapaz pudesse ter
voltado ao Cultura Múndi. Aos poucos, mais nenhuma idéia, mais nenhuma hipótese lhe
ocorria. Não sabia o que fazer.
"Desmond..."
Foi desanimando. Já havia percorrido nem sabia quantas vezes a distância entre
o Canal Três e o Canal Dois, duas veias que transportavam as águas das chuvas desde o
centro da cidade até o mar. Estava de novo na altura da praia de onde dava para ver o
ônibus estacionado. Nenhum dos colegas estava à vista. Sentou-se na areia, abraçando
as pernas.
Dois garotões queimados de sol aproximavam-se com aquele passo
manemolente da eterna postura de caça à fêmea, de caça a qualquer fêmea. Para eles,
a
meia distância, aquela jovem fêmea, com aquele corpo sensacional, quase nada coberto
pelo biquíni, parecia-lhes mais digna do que nenhuma para justificar os esforços de um
caçador. Mas, logo que ficaram mais próximos, a expressão da menina fez com que o
passo cedesse, então se transformando em passos incertos, passos de retirada.
Como numa fita de vídeo, quando se aperta a tecla que a faz voltar
aceleradamente, passavam enlouquecidos pela memória de Iara a tristeza, a desolação,
a
solidão dos últimos meses, até o roldão enlouquecido em que tudo havia se
transformado
na última semana, desde o jogo contra o Colégio Anhangüera.
"O que eu fiz? O que eu fiz, hein? Eu fiz tudo, tudo... Nada, de tudo o que
aconteceu, foi obra do acaso ou vontade de qualquer outra pessoa. Tudo, tudo é obra
minha... Mas que obra é essa? O que eu construí?"
O tempo do recreio na praia do Gonzaga chegava ao fim, sem que Iara tivesse
nem por um momento participado das brincadeiras junto com a turma. Cristina, uma
das
reservas, tinha sido encarregada por dona Maria Helena de ficar de olho no relógio,
para
garantir a volta de todos no horário estabelecido. Lá vinha ela, batendo palmas e
procurando tanger o desorganizado rebanho de rapazes e moças, que saía da água sem
parar de brincar, de se provocar, produzindo adrenalina para a disputa de logo mais.
Para Iara, parecia não haver mais nenhuma adrenalina armazenada para reagir
ao desaparecimento de Desmond. Todo seu estoque tinha sido gasto na última semana.
"Estoque de quê? Estoque de maldade?" Levantou-se lentamente e lentamente
andou até o ônibus.
"O que eu fiz, hein? Por que o Desmond desapareceu? Não estou entendendo
nada, eu não estou entendendo mais nada..."
16. A dor e o sofrimento
Não levava nem cinco minutos para o ônibus percorrer a distância da praia até o
Colégio Cultura Múndi. Na frente do portão, uma funcionária de guarda-pó azul
recebeu
os jogadores do Queiroz e logo os guiou por dentro do prédio.
À medida que se aproximavam do ginásio de esportes, a barulheira das torcidas
mostrava que os jogos preliminares já estavam em pleno andamento. A funcionária,
muito
gentil, sorridente, levou-os para uma porta lateral do ginásio, que dava para os
vestiários.
— Por aqui, meninos. Temos apenas um vestiário para as moças e outro para os
rapazes. Assim, vocês vão dividi-lo com as equipes adversárias, está bem? Lembrem-se
que uma das principais finalidades do esporte é a confraternização. Queremos que
vocês
lutem bravamente na quadra, mas, fora dela, que tal fazer mais algumas novas e
ótimas
amizades? O pessoal aqui de Santos é sensacional, vocês vão ver.
— Vamos lá, turma — comandava Cristina. — Vamos tirar o sal do corpo!
A prova de que o pessoal de Santos era mesmo sensacional começava pela
hospitalidade: havia sabonetes e toalhas limpinhas para todos os visitantes e numa
mesa
estrategicamente colocada na entrada dos vestiários, um monte de sanduíches e sucos
de diferentes frutas.
Tomada pelo desânimo, Iara mal percebeu que Desmond não se juntava ao
grupo de rapazes que entravam fazendo arruaça no vestiário destinado ao time
masculino. E absolutamente não notou que Adele, Cássia, Roberta, Neusinha e muito
menos Miltão também continuavam ausentes.
Deixou que a água do chuveiro lavasse o mar de seu corpo. Nua, sentou-se num
banco comprido, estalando de novo, e ficou segurando a toalha, sem encontrar forças
para enxugar-se.
De repente, notou o corpo grande de Neusinha a seu lado. Levantou o rosto. A
colega sorria amavelmente e estendia-lhe uma folha de caderno dobrada, exibindo o
curativo no braço, resultante do corte da fatídica tarde de quinta-feira.
— Pegue, Iara. É pra você...
"Um bilhete? O que é isso?"
Pegou o papel e desdobrou-o, avidamente.
— É do Desmond?
Um bilhete de Desmond! Afinal ele não a havia abandonado! O que tinha
acontecido, realmente? Leu:
Querida Iara,
A gente precisa conversar. Por favor, acompanhe a Neusinha. Ela vai levá-la
aonde eu estou, esperando, ansiosamente, por você.
Desmond.
"Desmond! Esperando por mim?"
Numa fração de segundo, sentiu a adrenalina correndo novamente por suas
artérias, levando vida a todo seu corpo. Pôs-se de pé. Não, nem tudo estava perdido.
Desmond não estava perdido. Ela não tinha lutado tanto por nada.
— Vamos, Neusinha! O que você está esperando? Onde está o Desmond?
— O que eu estou esperando? Que você vista alguma coisa, por exemplo...
Sem enxugar-se, Iara vestiu rapidamente o shortinho justo do uniforme do time e
enfiou o minúsculo bustiê, sem nem preocupar-se com as roupas de baixo nem em
calçar
os tênis.
— Pronto. Estou pronta, Neusinha.
Com delicadeza, Neusinha pegou-a pela mão.
— Venha, Iara. Por aqui.
Sem nada mais dizer, Neusinha guiou-a apressadamente pelos corredores.
Subiram dois lances de escadas e a colega parou na frente da porta de uma sala de
aula.
— Entre, Iara. Desmond está esperando por você. Sem poder controlar as
batidas do coração, Iara passou pela porta. Era o final de maio, e o sol já se punha
mais
cedo. Estava escuro lá dentro e seus olhos demoraram a acostumar-se.
— Pronto. Podem acender a luz.
"Como? Que voz é essa? Dona Maria Helena?!"
O braço de Neusinha, entrando atrás de Iara, esticou-se um pouco além da
moldura da porta e um dic iluminou a sala.
Sim, Desmond estava ali, à sua espera. Mas estavam também dona Maria
Helena, João Massa, Emílio, Miltão, Roberta, Cássia e... e Adele, abraçada a Desmond.
E
o rapaz estava com a medalha dourada no pescoço!
Iara tentou dizer alguma coisa, como "o que é isso?", "que brincadeira é essa?",
mas seus lábios só tremiam, como se estivesse enregelada pela água do banho que não
havia enxugado do corpo.
Desmond! Naquele momento, os olhos de Desmond não eram dissimulados,
nem eram ondas do mar que ameaçassem tragar a alma de Iara. Eram diretos, claros,
lúcidos.
Olhares... Os olhares de todos fixavam-se nela. Estava mais do que claro que o
centro daquela reunião era ela mesma.
Emílio foi o primeiro a falar. Aproximou-se com a maior delicadeza do mundo e
parou a dois passos dela, sem tocá-la:
— Iara... A gente queria falar com você...
— Não... — balbuciou ela, de modo quase inaudível.
— A gente quer ajudar você...
— Não... — sussurrava, como se implorasse que tudo aquilo fosse um sonho, a
surpresa de um sonho mau, que se apagaria com o amanhecer.
— Não tenha medo — continuava o rapaz, como se estivesse se aproximando de
um cachorrinho assustado. — Não fique nervosa. Ninguém aqui está querendo fazer
nada
contra você.
Por que um despertador não tocava agora, agora mesmo, para salvá-la daquele
pesadelo? A voz de dona Maria Helena, profunda, também tentava acalmar a aluna:
— Vamos conversar, Iara? Emílio falou com todos nós...
"Falou? Falou o quê?", o pensamento de Iara corria solto, imaginando uma
reunião em que Cássia, Roberta, Miltão, Adele e Desmond e até Neusinha
reconstruíam
toda aquela semana, falando dela, revelando o que ela havia tramado...
— Não...
— Cada um contou o que sabia — dona Maria Helena confirmava as suspeitas
de Iara. — Você deve imaginar como foi difícil esclarecer tudo isso, não é? Nós
sabemos
que você se meteu numa enrascada ruim, deixou que o melhor dos seus sentimentos, o
amor, acabasse causando estragos. Estragos que poderiam prejudicar outros, mas que
se
voltaram principalmente contra você mesma...
— Não... não... — sussurrava ainda a menina, acuada, procurando recuar para a
porta.
— Eu sei o que é a paixão — acrescentava a professora, como se sua matéria
fosse educação sentimental, e não física. — A paixão não pensa, nem tem juízo. O
mundo
estaria perdido, Iara, se a gente não tivesse um pouco de juízo para equilibrar nossa
paixão.
Iara respirava ofegante, os olhos esbugalhavam-se, o suor começava a correr-lhe
pelo rosto. Seus olhos passeavam em volta, encontrando cada expressão que a
encarava. Muita coisa podia ser lida nessas expressões: dor, espanto, susto. Havia
tristeza nos olhos de Desmond, um pouco de medo nos de Miltão, aflição nos de Adele,
autoridade nos de dona Maria Helena, quase desespero nos de Emílio, mas nenhum
deles parecia acusador, inquisidor, como ela esperava. Nenhum deles eram os olhos
violentos do pai.
O olhar de Cássia era o único que parecia dividido entre a compreensão e a
raiva. A menina falou, com uma voz tímida:
— Não sei se vou conseguir perdoar o que você me fez, Iara. Quando a Roberta
contou tudo, acho que eu quis que você morresse, ou que fosse expulsa do time, do
colégio... Nunca senti ódio por ninguém, mas... — a frase foi engolida por um soluço.
— Calma, Cássia, calma... — dizia Adele, também a ponto de chorar.
E Cássia terminou chorando, chorando de verdade:
— Bom, eu acabei aceitando que você está numa pior, que a gente tem de tentar
compreender a sua loucura... Compreender! Ai, vou tentar te perdoar, Iara, vou tentar.
Vai
ser difícil, mas eu juro que vou tentar...
Adele abraçou-a. As duas choravam.
Os olhos de Iara permaneciam arregalados, em choque. Tudo o que a menina
percebia era que suas mentiras tinham sido desmascaradas. Aquela era a hora da
verdade.
— Iara... — choramingava Roberta, sem conseguir olhar em seus olhos. — Eu
sei que também tive culpa. Quando o Emílio veio falar comigo, eu tinha de contar o que
a
gente estava fazendo. Eu já não conseguia dormir com aquele peso, com aquele
remorso...
Lágrimas embaçavam o olhar de Iara. Por um momento, aquelas pessoas
transformavam-se em réplicas de seu pai, figuras masculinas agressivas, de cinta
dobrada na mão, ameaçando violência. Uma surra de cinta, era uma surra de cinta que
Iara esperava agora, como conseqüência de tudo o que havia feito. Talvez uma surra
de
cinta pudesse purgar um pouco da culpa que ela sentia, da vergonha que a sufocava...
— Não... — continuava a repetir, balbuciando, o braço protegendo o rosto, como
se se precavesse contra uma bofetada.
Mas aquelas pessoas não vestiam a fantasia do pai. Nenhuma delas mostrava
raiva.
Por que não mostravam raiva? Por que não mostravam ódio? O que eles
estavam pretendendo?
Abraçada a Cássia, Adele chorava, chorava de verdade, mas seu olhar para Iara
era de súplica. Suplicava que a amiga entendesse que eles lutavam para compreendê-la:
— Iara, quando eu soube de tudo, quis ver você morta. Mas agora eu quero te
perdoar. Eu preciso te perdoar. Ainda sobra muita coisa boa entre nós...
— Não... não...
— Quem fez o que você fez não é você de verdade — continuou Adele, com um
fio de voz. — O que você fez não pode apagar todas as provas de carinho e amizade
que
já me ofereceu. Quando você brigou com o Gustavo porque ele havia me ofendido,
mostrou que era minha amiga. Quando assumiu a cola de Geometria por mim, provou de
novo que era minha amiga...
— Não... não... — balbuciava ela, batendo os dentes, incontrolavelmente, e ainda
não conseguindo elevar o tom de voz. — Aquilo não foi de verdade... aquilo da cola foi
uma... também foi uma armação... Não...
— E a luta com o Gustavo, Iara? Também foi armação?
Emílio aproximou-se, tentando abraçá-la:
— Iara, você precisa de ajuda... Deixe-me...
— Não... não... — era só o que ela conseguia repetir, recuando de leve, evitando
o abraço, como se tentasse livrar-se de um perigo.
— ... ajudar você, Iara!
Ajudar! Todos eles se portavam como advogados de defesa, nenhum a acusava
realmente. Mas, num julgamento, não deve haver acusação? Não há o terrível papel do
promotor? De repente, Iara sentiu que ela mesma era o promotor. Tinha culpa
estampada
no rosto, e teria de ser também seu próprio juiz e proferir a sentença.
"Estou condenada..."
— Não fuja de mim, Iara, por favor, chega de fugir de mim! — insistia Emílio. —
Tudo vai ficar bem. Eu não deixei de gostar de você. Nós gostamos de você. Queremos
ajudar você!
Agora foi um grito que saiu da garganta da menina:
— Não!!!
Virou-se e, antes que o grupo atônito, emocionado, pudesse fazer um gesto, Iara
desapareceu pelo corredor.
17. Lamentar uma dor passada
Iara correu como louca, primeiro perdendo-se no labirinto dos corredores do
colégio anfitrião, depois encontrando a saída e disparando rua abaixo. Nunca havia
estado naquele lugar mas, como se fosse por um instinto natural, um instinto selvagem,
suas narinas percebiam qual o lado do mar. Correu seguindo a pista de sal.
A velocidade que ela conseguia era impressionante. Logo encontrou-se na larga
avenida que margeava a praia e embarafustou-se entre os carros, livrando-se do
trânsito
e chegando à areia.
Já estava bem escuro, mas, à sua esquerda, no poente, o céu coloria-se como
se aquele fosse um momento especial, merecedor de um cenário de ópera.
Ouvia o estrondear das ondas arrebentando-se na praia. Corria descalça pela
areia que ainda guardava o calor do dia. Alcançou o mar e entrou por ele, esforçando o
passo, como se estivesse apenas num rio, como se pudesse alcançar uma outra margem,
onde houvesse outra vida, onde pudesse deixar para trás todo o pesadelo que ela vivia
naquele momento.
Uma onda mais forte chocou-se de frente contra seu rosto, e ela virou para trás,
bebendo água. Procurou aprumar-se e percebeu que seus pés não mais alcançavam a
solidez do fundo. Bateu os braços, querendo nadar, querendo continuar em frente,
procurando alcançar algum porto que se escondesse na escuridão do abismo negro que
se estendia no infinito à sua frente.
"O infinito... Adeus..."
Nova onda, forte e furiosa, vinha tentando expulsa-la do mar, mostrando que ali
ela era uma intrusa, que ali não havia lugar para a menina traidora chamada Iara. A
onda
que castiga os invasores e leva para o fundo os insistentes.
Não havia mais como saber para que lado ela tentava nadar, para que lado
poderia livrar-se do abraço negro do mar ou para que lado haveria de entregar a ele
sua
virgindade, no casamento eterno com a morte.
"O infinito..."
Poderia ser um peixe, um peixe grande que a abocanhava, abreviando aquela
luta que ela não sabia bem se era contra o mar ou contra a vida. Sentiu-se agarrada,
mas
o peixe não mordia, não feria.
Era um abraço. Era Emílio.
Logo, a menina sentia a areia sob os pés. Na certa não tinha ido tão longe,
entrara apenas na arrebentação, e Emílio facilmente pôde arrastá-la. Deixou-se levar,
nada pensava, nenhuma força tinha para resistir, não resistia...
Exaustos, os dois caíram na areia molhada, com os corpos sendo lambidos a
períodos pelas línguas que o mar estendia fracamente sobre a areia, como se lambe um
sorvete.
Ajoelhados, abraçavam-se.
— Iara...
— Emílio... me deixa morrer... me deixa morrer, Emílio...
— Iara, quietinha...
Aos poucos, o fôlego dos dois recuperava-se e Iara olhava para o rosto de
Emílio, iluminado pelo amarelo das luzes da cidade e dos faróis dos carros que rodavam
pela avenida.
Atrás da cabeça dela, Emílio via-a emoldurada pelas últimas luzes do crepúsculo,
formando um quadro escuro, triste, desolado, tétrico até, mas lindo, mas tão lindo...
— Você... — sussurrou ela. — Por que, Emílio? Por que você... por que eu... por
que eu fiz tudo isso...?
— Não pense em nada agora. Eu acompanhei toda essa loucura. Eu vi nos seus
olhos que as coisas não estavam bem, que você não estava agindo como sempre foi, que
estava deixando que alguma coisa muito ruim tomasse conta de você.
— Não, não...
— Mas essa coisa não é você! Isso é como um resfriado, que a gente tem de
espirrar para fora. Eu vi quando você entrou no vestiário dos homens durante aquele
treino. Quando Desmond ficou desesperado, não encontrando a medalha, eu já
desconfiava de tudo...
Molhados, os dois sentiam frio agora, um frio intenso, que os fazia tremer. Iara
agarrou-se ao peito de Emílio, abraçando-o com força.
— Ai, Emílio... Por que eu fiz isso tudo? Agora nem sei se eu queria o Desmond,
ou se eu queria me vingar dele, ou de Adele, ou de Cássia... Mas por que Cássia? Ela
nunca me fez nada! Ninguém me fez nada... Só eu faço mal a mim mesma... Não tenho
mais o direito de viver... Eu quero morrer, Emílio...
— Não, meu amor, minha Iara... Você tem o direito de aprender. Você tem o
direito de crescer...
— Eu brinquei com os sentimentos das pessoas, Emílio. Como se elas tivessem
uma boneca no lugar do coração... Eu destruí tudo!
— Iara... Iara... Nada foi destruído! O que precisa agora é reconstruir a si mesma.
Para mim, minha Iara, para mim!
Iara falava loucamente, quase juntando uma palavra à outra:
— Eu me apaixonei, Emílio, e deixei que a paixão tomasse conta de tudo, que
justificasse tudo, até a violência! E amor que começa violento só pode acabar em
violência...
— Não, Iara, não! Nada acabou, vamos recomeçar!
— O que eu fiz não merece perdão. Eu pensava que o que eu fazia era por muito
amor, que o amor poderia justificar qualquer coisa...
— Iara...
— Mas agora eu vejo que não há amor quando a conseqüência é a dor e o
sofrimento. Então eu mereço isso, Emílio, eu mereço ficar com os dois. Com a dor e o
sofrimento. Sozinha!
— Não, menina, minha menina louca...
— Me deixe, Emílio, me deixe!
— Eu nunca vou te deixar, Iara...
Os dois choravam, perdidamente, expulsando a dor, expulsando o pesadelo de
seus corações...
— Dois a zero! Dois a zero! Como é que isso pode estar acontecendo? João, me
ajuda! O que é que a gente pode fazer?
Dona Maria Helena, desesperada, procurava o conselho de João Massa. Era o
intervalo do segundo para o terceiro set e as meninas do Queiroz estavam levando um
banho das adversárias.
— A Iara! A Iara não apareceu? Onde é que ela foi parar? Nosso time está
entregue!
Todas haviam lutado tudo o que podiam. O braço de Neusinha até sangrava,
tendo aberto o corte, de tanto tentar bloquear o ataque alto das meninas do Cultura
Múndi.
Cássia era uma parede na defesa, mas a maioria de suas bolas se perdia,
encontrando uma Adele desatenta, que distribuía bolas para companheiras
desentrosadas. Sandra errava saques sem parar, nervosa. Na posição de Iara, Magda
dava tudo o que tinha, mas não se entendia com Adele e muitas vezes estava no lugar
errado na hora do passe.
Dona Maria Helena tinha tentado tudo, mudando o jogo, alternando as jogadoras,
colocando a inexperiente Norminha junto com Lorena na quadra, tentou até jogar com
Roberta como levantadora, na esperança de que as reservas se entendessem melhor,
mas a treinadora não conseguia anular o nervosismo de todas elas.
— Desculpa te dizer, Maria Helena — foi a única ajuda de João Massa —, mas o
seu time está apavorado. Esse jogo está perdido...
As meninas voltavam à quadra, para o terceiro set. O serviço estava na mão de
Adele. A menina jogou a bola para o alto e saltou, caprichando numa enfiada em
diagonal,
à procura de um dos pontos menos fortes das adversárias. Do outro lado, uma menina
alta aparou a pancada com uma manchete e serviu na medida para a levantadora. Hábil,
a menina fez o passe atravessar a quadra e encontrar livre de marcação uma atacante
alta do Cultura Múndi que estava fazendo a festa naquela noite.
"Pronto...", pensava desconsolada a treinadora. "Acabou. Agora o serviço está
com elas e acabou..."
De repente, um grito:
— Ei, vejam!
Os jogadores do Queiroz, roucos de tanto torcer, de gritar para as colegas, de
tentar dar-lhes força, levantaram-se: no alto das arquibancadas, vindos da entrada
principal, surgiam dois jovens, molhados de mar, com os cabelos e os corpos imundos
de
areia.
— Dona Maria Helena! — gritou Magda no meio das reservas. — É o Emílio! E a
Iara!
De mãos dadas, os dois desciam correndo os degraus das arquibancadas e
pulavam a mureta, entrando em quadra.
Pararam por um segundo. Emílio olhava no fundo dos olhos da menina. De
repente, na frente dos colegas, na frente da multidão, os dois uniram-se num beijo
longo,
num beijo de entrega, num beijo de força, num beijo de esperança...
Os lábios separaram-se e Emílio sussurrou:
— Vai lá, meu amor. Arrasa com elas!
Suja, descabelada, Iara enfiou a camiseta do uniforme por cima do bustiê e só
teve tempo de calçar um par de tênis que dona Maria Helena lhe estendia.
— Vamos, gente! Raça agora! Vamos virar!
Entrou como uma leoa entra no picadeiro, disposta a devorar o domador antes
de ser obrigada a saltar por dentro de uma argola de fogo.
Adele suspirou alto. Olharam-se. As duas amigas, as duas companheiras, as
duas melhores jogadoras da equipe do Queiroz naquele momento juraram luta, sem
usar
nenhuma palavra.
Norminha saía da quadra e Iara entrava na ponta, pela direita. O saque veio do
outro lado, forte como nunca, forçado como nunca. Marisa jogou-se e aparou com um
antebraço só, em direção a Adele. O passe veio alto, mas a menina subiu...
Na outra quadra, as adversárias entreolhavam-se, estranhando aquela nova
jogadora, tão suja, que fintava o bloqueio e enfiava o passe da companheira em uma
porrada violenta, raivosa, magistral!
— Eeeeeehhhhhh! — subia a torcida dos rapazes do Queiroz. — Bola no chão!
Vai, Iara! laraaaa!!
A rede não girou mais, até o fim do terceiro set. Como se fossem uma só cabeça,
Adele e Iara variavam os ataques a cada ponto, pela esquerda, pela direita,
fintando para o arremate de Neusinha, para as pancadas de Sandra. Atrás, Marisa
ainda
conseguiu dois aces, duas bolas diretas, em saques fulminantes.
A torcida adversária não entendia: o que estava acontecendo? Quinze a zero?!
Foi um rebuliço. A torcida agora gritava o nome de Iara, o nome de Adele,
espantada com aquelas duas feras, a fera negra e a fera suja, que pareciam não ter
ossos, que pareciam não precisar respirar, que adejavam como borboletas pela quadra
e
matavam como tigres.
O quarto set foi uma guerra campal. O time do Cultura Múndi começou a reagir,
lutando bravamente, mas a história parecia ter mudado de direção. O Queiroz fechou
o
set com uma cortada sensacional de Neusinha: do outro lado, a bola voava, trazendo o
sangue da menina, e explodia no peito de uma adversária.
— Meu Deus! — espantou-se a capitã do Cultura Múndi, vendo a camiseta da
colega. — Você se machucou?
— Não... — dizia a garota, sem compreender o que acontecia. — Veja: a bola
está ensangüentada...
A partida foi para o tie break, naturalmente. Mas o time das donas da casa já não
sabia o que fazer. O nervosismo que havia tomado conta das meninas do Queiroz ainda
há pouco tinha atravessado a quadra e o grupo do Cultura Múndi parecia um bando de
baratas tontas, caindo, revezando-se, tentando resistir à avalanche de bolas que
quase
estouravam ao bater no chão da quadra.
— Cobre lá! Cobre lá! É a sujinha! A sujinha que vai receber a bola! Bloqueia!
Bloqueia! Ai! Eu não disse pra bloquear?
Quatorze a dez. Adele e Iara, lado a lado, respirando como pequenos touros,
suando, sorriram uma para a outra. Iara piscou o olho. Adele jogou a cabeça para trás
e
sinalizou para a defesa. Sandra sacou, enfiando uma bola difícil que foi aparada do
outro
lado e voltou, para a manchete de Cássia. A menina esforçou-se e a bola foi direto
para...
para Iara!
E todos viram a "sujinha" subir como um beija-flor e assumir a função da
levantadora, passando a bola para Adele. E a amiga, como um ponto final, enterrava a
bola do outro lado, no papel de uma atacante!
O público levantou-se, rugindo como em gol de Copa do Mundo. Ajoelhadas no
chão, Adele e Iara apertavam-se num longo abraço, sem mais necessidade de perdão,
sem mais necessidade de mentiras, selando aquela amizade, sólida agora para sempre...
A quadra era invadida e uma montanha de jovens formava-se por cima do abraço
das duas...
Mais de três horas da manhã, no ônibus, nos braços de Emílio, aninhada,
sentindo-se segura, Iara lembrava a euforia da vitória, que logo fora complementada
pela
espetacular vitória do time masculino. Tinha sido demais. Tudo tinha sido demais.
Mas ainda havia uma sombra a toldar-lhe o olhar, quando ela encarou o garoto:
— Ai, Emílio... Tudo parece tão bom, tão bom... mas sempre haverá a lembrança
da loucura que eu cometi...
Emílio beijou-lhe delicadamente os lábios e falou:
— Não há mais loucura. Você agora já é outra. Aquela ficou para trás...
— Mas a lembrança...
O namorado interrompeu:
— Iara, esqueça tudo. O passado a gente não pode mudar. O que a gente pode
fazer é trabalhar bem o presente, para que o futuro possa ser melhor. Nada há a
lamentar,
só a aprender. Uma vez, eu li uma frase linda, nem sei bem de quem é. Ouça só:
Lamentar uma dor passada, no presente, é criar outra dor, e sofrer novamente...
Iara cerrou os olhos. Tinha de lutar contra as lembranças amargas. Emílio estava
ali, para ajudá-la a adoçar o futuro.
O luar invadia o interior do ônibus, que sacudia levemente, subindo a Serra do
Mar.
Prateada, Iara adormeceu nos braços de Emílio.

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