Você está na página 1de 17

Capítulo 2

Referencia
GAULEJAC, V. Gestao como doenga social -
Ideología, poder gerencialista e fragmentagao
social. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2007

O s fundam entos
da ideología geren cialista

Os gestionários sao pcssoas serias e eficazes que,


portanto, nao tcm tempo para perder
com qualquer reflexao epistemológica.
Alain-Charks M artinet

gestao apresenta-se corno pragmática e, portanto, nao-


ideológica, ftmdada sobre a eficacia da agao, mais do que sobre
a pertinencia das idéias. Ela se torna urna “metalinguagem” que
influencia fbrtemcnte as rcpresentagócs dos dirigentes, dos qua-
dros, dos empregados das empresas privadas, mais igualmente
das empresas públicas, das administragóes e do mundo político.
Os experts da gestao tornaram-se pessoas que prescrevem
modelos. Propoem encarregar-se dos negocios do mundo.
Os modelos sobre os quais fundamentam sua competencia
sao construidos sobre diferentes paradigmas. Um paradigma
descreve o conjunto das crengas a partir das quais os pesqui-
sadores eíaboram suas hipóteses, suas teorías e seus métodos.
Entre as ciencias da gestao e a ideología gerencialista, as re-
lagoes sao ambiguas. Ás primeiras cabe descrever e analisar as
modalidades de organizagao da agáo coletiva. As segundas es-
tao a servigo do poder gerencialista para garantir sua empresa.
A gestao se per ver te quando favorece urna visáo do mundo
na qual o humano se torna um recurso a servigo da empresa.
Gestao e ideología

A gestao é amplamente concebida, pelos práticos e pela


grande maioria daqueles c]ue a ensinam, como um conjunto
de técnicas destinadas a pesquisar “a organizado da me-
lhor utilizado dos recursos financciros, materiais e huma­
nos” para garantir a perenidade da empresa (Bouilloud e
Lécuyer, 1994). Sua reflexao c orientada para a realizadlo
de tima finalidade. Nessa perspectiva, a particularidade da
gestao “reside no fato de que nao se trata de perseguir urna
finalidade escolhida por individuos, nem urna finalidade ne­
gociada no interior de unía coletividade, mas urna finalidade
imposta do exterior” .1
Ciliada por engenheiros, a gestao foi por muito tempo
dominada por urna c o n c e p to física da empresa, representa­
da como um conjunto mecánico. Alais rcccntcmcnte vimos
aparecerán outras preocupadas que integram o fiator hu­
mano, as interayoes e a complexidade. Ela se torna, entao,
urna disciplina multiforme, sem corpus próprio. Urna dis­
ciplina científica define-se antes de tildo por seu objeto: a
natureza pela física, o ser vivo pela biología, a sociedade pela
sociología, os comportamentos humanos pela psicología...
Ao se definir cm rolado a urna finalidade prática — fazer a
empresa funcionar — a gestao passa ao lado de seu objeto.
Ela se decompoe entao em dominios especializados, como a
gestao estratégica, a gestao de p r o d u jo , a gestao comercial,
a gestao contábil, a gestao financeira, a gestao de marketing,
a gestao do pessoal e dos recursos humanos etc. Diversos
saberes práticos que tém como fu n d o modelar comporta­
mentos, orientar processos de decisáo, estabeleccr procedi­
mientos e normas de funcionamiento. Temos ai a co n stru y o
de um sistema de interpretado do mundo social “que im-

| 1 Jacques Girin, “A análisc empírica das situafócs de gestao”, em A.-C.


Martinet (ed.), 1990. A epígrafe deste capítulo foi tirada dessa obra.
plica urna ordeni de valores e urna c o n c e p to da a d o ” , ou
soja, urna ideología no sentido definido por Raymond Aron
(1968).
Designar aquí o caráter ideológico da gestao é mostrar
que, por trás dos instrumentos, dos procedímentos, dos dis­
positivos de inform ado e de com unicado encontram-se era
a^ao certa visao do mundo e um sistema de érenlas. A ideolo­
gía é um sistema de pensamento que se apresenta como racio­
nal, ao passo que mantém urna ilusao e dissimula um projeto
de dom inad0 ; ilusao da onipoténcia, do dominio absoluto,
da neutralidade das técnicas c da m odelado de condutas hu­
manas; dom inado de um sistema económico que legitima o
lucro como finalidade. Esse projeto aparece claramente por
meio dos mecanismos de poder, dos quais sao objeto a forma­
d o e a pesquisa em gerenciamento. Na hora da globaliza^ao,
cías sao cada vez mais dominadas por um modelo americano
que impóe suas normas ao mundo inteiro.

As ciencias gerencialistas em questáo

Cerca de 70% dos artigos publicados ñas revistas


de pesquisa sobre gestao, os ruáis cotados entre 1991
e 2002 sao marcados por pelo menos um autor esta-
beleeido nos Estados Unidos, sendo um tato que mais
de 95% délas sao americanas. Os Estados Unidos con­
solidan) sua dom inado por meio do saber em ciencia
gerencial. Suas normas contábeis se impoem a todos
os países. A form ado em gestao se torna urna arma
geopolítica. Desse modo, urna das primeiras ajudas
ofcrecida em 2002 pelo presidente Bush ao Iraque é
um programa de bolsas de form ado em gestao nos
Estados Unidos [...].
Ñas escolas de gestao, nao se trata de cstudar os
fenómenos de poder e de dom inado, como se repar-
tem as desigualdades, quem paga c quem beneficia.
Ficamos acantonados únicamente nos problemas situa­
dos acima da a^ao, bem como á c o n c e p to e á execu-
9áo de solugóes eficientes e eficazes. A referencia é o
quadro dirigente de urna organizado económica, e
nao a política da empresa e scu lugar na sociedade.
As revistas mais cotadas sao-no por meio de um pro-
cedimento quantitativo (e, portanto, suposto como ob­
jetivo) amplamente regulado pelos universitarios e insti-
tuigóes que se situara no topo do dispositivo. O escalona-
mento da qualidade das revistas repousa sobre as taxas de
citagoes, cujos artigos figurara ñas revistas mais bem clas-
sificadas. Entre autores, instituigocs e revistas da elite, a
protejan do posto passa por pl áticas de autocitagao e pelo
esquecimento seletivo de revistas, autores e instituidles
que nao fazem parte do mundo que eles compóem.
Ora, rendas académicas induzem rendas financei-
ras. Os grandes gabinetes internacionais de conselho
recrutam MBA. As doagóes das empresas vao para as
escolas mais visíveis [...] A ciencia gerencial é comer­
cializada e se torna um centro de lucro generalizado.
Ponte: Entrevista coin Jcan-Claude Thocnig, revista
Sciences HumaineSy “Decidir, gerir, reformar. Os caminhos da
govemabilidade”, fora de serie n. 44, margo-abril-maio de 2004.

A servido do poder gerencialista, a ideología gerencialista


se funda sobre certo número de pressupostos, de postulados,
de érenlas, de hipóteses e de métodos, dos quais convém
verificar a validez. O paradigma objetivista dá um verniz de
cientificidade á “ciencia gerencial”. Ele se declina segundo
quatro principios que descrevem a empresa como um univer­
so funcional, a partir de procedimientos construidos sobre o
modelo experimental, dominado por urna conceptúo utilita­
rista da agáa e de urna visao economista do humano.
Compreender é medir

A p re o c u p ad o de o b je tiv a d 0 Por m uito tem po foi


identificada com a quintcsséncia da abordagem científi­
ca. C om preender é m odelar, isolando certo núm ero de
variáveis e de parám etros, que podem os entao medir. A
linguagem “regia” desse processo de o b je tiv a d o é fun­
dada sobre o m odelo das matemáticas.
No mundo da racionalidade formal, todas as variáveis
nao mensuráveis sao, de inicio, colocadas á parte, e depois,
de fato, eliminadas. Referimo-nos a um homo economicus,2
individuo de comportamento racional, que oferece aos pes-
quisadores urna comodidade maior: podemos prever seu
comportamento, otimizar suas opfóes, submeté-Io ao cálcu­
lo e programar sua existencia. Nessa lógica de pensamento,
excluimos da análise tudo aquilo que é considerado como
irracional, porque nao objetivável, nao mensurável, nao
calculável. Os registros afetivos, emocionáis, imaginários e
subjetivos sao considerados como nao confiáveis e nao per­
tinentes. N o limite, cíes nao existem porque nao sabemos
atingi-los, analisá-los ou traduzi-los cm números.
O homo economicus pode ser assimilado a um “monstro
antropológico habitado por urna suposta racionalidade que
reduz todos os problemas da existencia humana a um cál­
culo” (Bourdieu, 2000). Essa fic^ao autoriza certos pesqui-
sadores a nao mais se preocupar com a observado concreta
da condi^ao humana para se evadir no universo abstrato das
equa^óes matemáticas. Há um risco de quantofrenia aguda

2 Aqui nao se trata de assimilar gestao e economía. Um grande número de 67


economistas há milito tempo denunciou o risco do economismo, ou seja, o
viés que consiste cm consideraros Fenómenos sociais apenas por mcio do pris­
ma das teorías que se referem a um homo economicus. Para urna crítica apro-
timdada dessas abordagens, podemos nos referir ao “Manifestó pela economía
humana”, de Jacques Généreux, Esprit, 2002.
(a doen^a da medida) que espreita todos aqueles que, em
vez de medir para mclhor compreender, querem compreen-
der apenas aquilo que é mensurável.

Da transmutado da economía
em matemáticas

Na primavera de 2000, um movimento de protes­


to contra os excessos da modela^ao no ensino da eco­
nomía se desenvolveu na Franca. O seguinte extrato
da redando de urna tarefa de economía ilustra o pro-
cesso de transform ado de urna questao de economía
em equagoes matemáticas.
Consideramos a decisao de poupan^a de unta casa
que vive dois períodos (jovens/vclhos). Notamos pn
o pre^o do bem consumido no primeiro período, e
p n sen pretj’o no segundo período. Supomos que a
casa só pode poupar vía deten^ao de recebimentos
monetarios, m. Notamos C e C2 os consumos do
primeiro e do segundo período da casa. As exigen­
cias ornamentarias instantáneas deste último sobre
seus dois períodos de vida sao definidas por C, +
m = W e por p,C , = m, em que W corresponde ao
salário nominal. O objetivo das loca^des é de maxi-
mizar sua utilidadc intertemporal, notada U , sob sua
exigencia intertemporal. A esse respeito, definimos:
U = log Cj + 1 /(1 + d) log C2... Supomos p2 = (1 +
p) pp em que p e a taxa de inflado ou de defladfo
conforme p > 0 ou p respectivamente...
Fontc: Laurent Mauduit, Le Monde, 21 de junho de 2001.

Esse exemplo mostra como um problema económico


é tratado, definitivamente, como urna tarefa de materna-
lica. A preocupaban pela objetividade é louvável. Mas co­
locar a realidade em urna equa^ao jamais permitirá com-
prcender o com portam ento dos homens e a historia das
o rg a n iz ares.
M uitos gestionários m antém urna confusao entre ra­
cionalizado e razao. A racionalizad0 é um mecanismo
de troca, a partir da pesquisa de urna linguagem comum
e de urna p reo cu p ad o de esclarecimento. Mas é tantbém
um mecanismo de defesa que, sob as aparéncias de um
raciocinio lógico, tende a neutralizar aquilo que é per­
turbador, aquilo que incomoda, aquilo que nao entra em
“sua” lógica. Nesse sentido, a racionalizado está do lado
do poder, ao passo que a razao está do lado do conheci-
mento. Este último nao deve submeter-se a um principio
de eficacia, e sim a um principio de pesquisa do sentido.
Ora, sob muitos pontos, a eficiencia se opóe ao sentido
(Barus-Michel, 1997). O conhecim ento deve permitir a
cada individuo tornar inteligíveis sua experiencia, as si­
tu a r e s que ele encontra, os conflitos que ele é levado a
viver. Deve trazer respostas a sua neccssitiade de coerén-
cia, de lógica, fazendo apelo á razao. Deve, finalmente,
permitir que ele desenvolva suas capacidades de histori-
cidade, ou seja, a faculdade de melhor com preender o
passado para m elhor se situar no presente e se projetar
no futuro. Estamos longe de urna c o n c e p to objetivista
e utilitarista. O im portante nao é fazer o repertorio dos
fatores, de medir seus parám etros, de calcular fu n d e s co-
letivas, razoes de custos/vantagens ou custos/cficácia, de
otimizar curvas de vendas ou de maximizar sua margem.
O im portante é com preender significares, ajudar cada
um a analisar o sentido de sua experiencia, definir as fina­
lidades de suas ayóes, perm itir que ele contribua na pro-
du^áo da sociedade em que ele vive.
A organizado é um dado

A análise organizacional é abordada pelas ciencias da


gestao em urna perspectiva funcionalista. O funcionalismo é
urna teoría que tende a ligar os fenómenos sociais as fun^oes
que eles garantem. Sobre o modelo da fisiología, podemos
assim detectar o ato particular que cada entidade deve exe-
cutar para contribuir para a m anutengo ou para a harmonía
do conjunto do qual ela depende. Aplicada á gestao, a teoría
funcionalista, assim como as abordagens comportamenta-
listas para o individuo, considera a organizado como um
dado, um sistema, urna entidade que tem um funcionamen-
to “normal” , e cuja finalidade é garantir sua reprodu^ao.
Ela se apóia sobre os modelos da física, da cibernética ou
da biología para medir os desvíos em re la jo a norma, cal­
cular os níveis de desenvolvimento e de crescimento que é
preciso alcanzar em fu n d o de ciclos e de parámetros pré-
construídos, considerados como indicadores dos níveis óti-
mos. Nessa perspectiva, os conflitos sao considerados como
disfundes. O próprio termo “d isfundo” subentende a exis­
tencia de urna norma de funcionamcnto apresentada como
ideal. Mas esse ideal raramente é questionado, como se fosse
absoluto, porque é o objeto de unta aceitado tácita, consi­
derada como indiscutível.
Aabordagem funcionalista nao questiona a ordem subja-
cente as diferentes fangóes estudadas no seio da organizado.
Ela procura nao tanto analisar a realidade do funcionamento
do individuo e da organizado, e sim encontrar os nteios de
melhor adaptar um ao outro. Estamos em urna perspectiva
rnais normativa do que explicativa, ntais adaptativa do que
compreensiva. Se os individuos podent ter comportamcn-
tos considerados como desejáveis em um dado contexto c,
portanto, adaptados as expectativas e as exigencias de um
ambiente, os pressupostos que fundam essa normalidade
devem ser analisados, Quando reduzimos a análise das con-
ilutas humanas a descoberta dos mecanismos de adaptado e
ile desvio, colocamo-nos implícitamente a servido do poder
estabelecido. Todo poder impoe normas, rcgras explícitas e
implícitas e, portanto, urna “ordem ” á qual os agentes de-
vcm se submeter. Ele sanciona todo afastamento em rela^ao
a exigencias apresentadas como “normáis” . Os pesquisado-
res nao devem validar essa ordem, e sim compreender suas
raízes. Quanto aos atores, eles devem compreender seus
fundamentos se quiserem discutir sua pertinencia e determi­
nar sua conduta com conhecimento de causa.

O reino da expertise

A atitude experimental consiste em pesquisar leis cau­


sáis entre diferentes elementos a partir de experiencias que
podemos repetir ao infinito, e que produzem resultados si­
milares. O saber pode, entao, se inscrevcr em urna lógica de
predifao, aínda que tais p re d ic es se verifiquen! apenas no
quadro da experiencia. Os sucessos dessa abordagem nos
dominios da física e da biología levaran! alguns pesquisado-
res a identificá-la com “a” atitude científica e a querer aplíca­
la as ciencias do homem e da sociedade.
A gestao encontra no modelo experimental os funda­
mentos de urna cientificidade que lhe escapa. Por exemplo,
a “organizado científica do trabalho”, ainda que hoje seja
considerada como ultrapassada, é urna referencia importante
das “ciencias” da gestao. Nessa orientado, o trabalhador é
o objeto de urna observado atenta c sistemática por experts
que irao tirar suas conclusóes operatorias. O ato de trabalho é
decomposto em unidades de base, que permiten! reconstituir
a atitude ótima na exccu^ao das diferentes tarefas a realizar.
O objetivo de tal abordagem é, evidentemente, nielhorar a
produtividade e o rendhnento. Os trabalhadores sao conside­
rados como as engrenagens de unía máquina ou como os ele-
meneos de um sistema. A racionalidade instrumental consiste
em por cm a^ao urna panoplia impressi o liante de métodos e
de técnicas para medir a atividade humana, transformé-la eni
indicadores, calibrá-la em fungao de parámetros precisos, ca­
nalizada para responder as exigencias de produtividade.
No universo experimental, o expert domina as modali­
dades de elaboraban e de aplicado do método. A discussáo
sobre o “com o” tende a eliminar a questáo do “porqué” .
Os agentes podem, a rigor, discutir sobre os meios, mas nao
sobre as finalidades. A demonstraban experimental impóe
sua “lógica” de verdade a todas as outras formas de saber.
A competencia se torna a referencia maior no processo de
decisáo. O poder tecnocrático pode entño se desenvolver:
poder do saber mobilizado pelos especialistas que impócm
urna modelabño do real sob a forma de painéis de instru­
mentos, de indicadores, de ratios etc., igualmente lingua-
gens normativas que se impóem aos atores da empresa.
O expert reina, entáo, como senhor. É ele que sabe
aquilo que convém fazer, apoiando-sc sobre urna demons­
traban inevitável, urna observado rigorosa de fatos e urna
análise “científica” da realidade, o que torna seus julga-
mentos indiscutíveis. Espera-se do expert um discurso de
verdade sobre aquilo que é preciso fazer oti nao. Os traba-
lhadores sao considerados como objetos sobre os quais se
procede com experimenta^des diversas: comparabao com
grupos tcstemunhas, levantamento de informabóes por
meio de questionários fechados, observabao de compor-
tamentos e medidas diferenciáis a partir da variabao das
condiboes de experiencias etc. Eles sao tratados como co-
baias e, conseqüentemente, despojados da capacidade de
intervir sobre sua própria situabño. As célebres experiencias
feitas na Western Electric de 1924 a 1933, sempre citadas
nos manuais de gestao como m om ento fundador do mo­
vimiento de relaboes humanas, sao, a csse respeito, particu­
larmente significativas (Lécuyer, 1994).
O método experimental é um m étodo de investigado
que, com urna preocupad0 de cientificidade, contribuí para
instrumentalizar aqueles que dele sao o objeto. Seu interesse
é evidente nos registros da física, da química, das ciencias
naturais, ou aínda na medicina, quando se trata de testar
um medicamento. Convém, entao, medir precisamente o
impacto de urna m odificado sobre um sistema suficiente­
mente identificado. Mas o método é pertinente apenas se
certas condi coes estiverem reunidas: a identificad0 dos di­
ferentes tátores causáis no interior de um sistema finito, do
quai se possa descrever com precisao todos os elementos e
suas interafoes. É preciso poder aplicar a célebre fórmula
dos físicos: “todas as coisas iguais de um outro ponto de
vista” . Kssa condido raramente está presente no campo da
atividade humana, particularmente ñas empresas confronta­
das com mudanzas continuas. No turbilháo da historia, A
nunca é igual a A. Estamos aqui diante de um paradoxo: a
gestáo é unta ciencia que se pretende a-histórica, ao passo
que assume a tarefa de apreender urna realidade social pro­
fundamente marcada pela historia.

A reflexao a servido da eficacia

Conforme o paradigma utilitarista, cada ator procura


“maximizar suas utilidades”, ou seja, otimizar a rela^ao en­
tre os resultados pessoais de sua a d ° e os recursos que a
isso consagra. A preocupado com a utilidade é fácilmente
conccbível em um universo em que as p reo cu p ares com a
eficiencia e a rentabilidade sao constantes. E preciso ser sem-
pre mais eficaz c produtivo para sobreviven A com petid0
é considerada como um dado “natural”, ao qual é preciso J
adaptar-se bem.
Nesse contexto, a pesquisa c o conhecimento sao con­
siderados como pertinentes apenas á medida que levam a
solu^óes operacionais. A gestao se compromcteu com um
proccsso de autolegitima^ao, colocando á frente “o pragma­
tismo como finalidade, o empirismo como método e a re­
tórica como meio. A pesquisa da verdade científica se apaga
diante das proclam ares de eficacia, a dem onstrado diante
da forgi de c o n v ic io ” (M artinet, 1990).
A otimiza^ao reina como senhora. “Sejam positivos!” é
urna injun^ao permanente. Convém praticar “a abordagem
solugao”, ou seja, só evocar um problema a partir do m o­
mento em que podemos resolvc-Io. Ouvimos freqüentemen-
te responsáveis declararcm a seus subordinados: “Aqui nao
há problemas; há apenas solugics!” O pensamento é consi­
derado como inútil se nao permitir contribuir para a eficien­
cia do sistema. Cada individuo é reconhecido conforme suas
capacidades de melhorar seu funcionamento. A pertinen­
cia do conhccimento é medida pelo metro de sua utilidade
para a organizado. É difícil, nesse contexto, desenvolver
um pensamento crítico, salvo se a crítica for “construtiva” .
Podemos exercer a liberdade de pensamento e de palavra,
com a condigao de que essa liberdade sirva para melhorar os
desempenhos. Aquele que levanta um problema sem trazer
sua sol ligio é percebido como alguém que perturba, um ser
negativo, ou ate um contestador, que é melhor eliminar. O
conformismo é a contrapartida do utilitarismo.
Alais profundamente, tudo aquilo que nao for útil é
considerado como nao tendo sentido. O único criterio re­
conhecido como dando sentido é o criterio de utilidade. A
questao nao é mais, cntao, produzir conhecimento em fun­
d o de critérios de verdade, mas segundo criterios de efici­
encia e de rentabilidade dos objetivos fixadospelo sistema. É
um outro aspecto da racionalidade instrumental, que tende
a considerar como irracional tudo aquilo que nao entra em
sua lógica. Aquilo que H erbcrt Marcusc (1972) chamava de
universo do discurso fechado, “que se fecha para qualquer
outro discurso que nao empregue scus termos” .
O humano é um recurso da empresa

N o setor comercial, definitivamente tem sentido ape­


nas aquilo que é rentável. O imaginario social é dominado
pela lógica capitalista que canaliza os fantasmas, os desejos,
as aspirares, mas também a “pulsáo epistemológica” , ou
seja, a curiosidade que impele a produzir o conhecimento.
A gestao se tornou a ciencia do capitalismo, subentendida
por urna vontade de dominio que se apresenta como fun­
damentalmente racional. Esse dominio nao tem em vis­
ta apenas o campo da economía, mas a socicdade inteira.
“Nao é somente na p r o d u jo que ela deve se realizar, mas
igualmente no consumo, e nao somente na economía, mas
na educado, no dircito, na vida política etc. Seria um erro
— o erro marxista — ver essas extensóes como secundarias
em rclayáo ao dominio da p r o d u jo e da economía, que
seria o essencial. É a própria significado imaginaria social
que se apodera das esferas sociais, urnas depois das outras”
(Castoriadis, 1997),
A justificado desse estado de coisas é a de racionalizar a
p ro d u jo com menor custo para favorecer o crescimento e
satisfazer as “nccessidades” dos consumidores. Podemos ficar
admirados com a eficiencia dessa visao do mundo. Podemos
também ficar inquietos com os custos que nao sao levados
em coma, quer se tratem dos atentados ao meio ambiente, do
desperdicio de certas matérias-primas, da pressao do traba-
lho, de suas conseqüéncias psicológicas, como o estresse ou o
cerco moral, ou aínda da exclusao de todos aqueles que nao
podem ter acesso a esse mundo ou por ele foram rejeitados.
O paradigma utilitarista transforma a sociedade em máquina
de p ro d u d o e o homem em agente a servido da produdo. A
economía se torna a finalidade exclusiva da sociedade, partici­
pando da transformado do humano em “recurso” ,
A maioria dos manuais de gestao desenvolve o seguinte
pressuposto: a empresa é um conjunto de fatores em in-
tera^ao uns com os outros. Convcm, portanto, estudar as
diferentes funfócs necessárias para o desenvolvimiento desse
sistema. Essas fun^oes definem as diferentes especialidades
que constituem as ciencias da gestao: finanzas, estrategia,
contabilidade, comercial, marketing, dircito, adm inistrado,
controle de gestao etc. Mas liá um fator que apresenta pro­
blemas particulares: o “fator hum ano” . Daí a coloca^ao em
plática de um departamento especializado, chamado de “re­
cursos humanos” . O recurso humano se torna um objeto de
conhecimento e urna preocupado central da gestao.
Essa abordagem repousa sobre dois pressupostos rara­
mente explicitados:

• o humano é um fator da empresa;


• o humano c um recurso da empresa.

Afirmar que o humano é um látor da empresa leva a ope­


rar urna inversáo das rela^oes entre o económico e o social.
De lato, é a empresa, como construyo social, que é urna pro­
d u d o humana, e nao o inverso. Temos aqui urna coníusáo
das causalidades, expressao suplemental' da primazia concedi­
da á racionalidade dos meios sobre as finalidades. Considerar
o humano como um fator entre outros é interinar um proces-
so de reificaqao do homem. O desenvolvimento das empresas
só tena sentido se contribuir para a melhoria da socicdade c,
portanto, do bem-estar individual c coletivo e, definitivamen­
te, se estiver a servido da vida humana. Gerenciar o humano
como um recurso, ao mesmo título que as materias-primas,
o capital, os instrumentos de p ro d u d o ou ainda as tecno­
logías, é colocar o desenvolvimento da empresa como urna
finalidade em si, independentemente do desenvolvimento da
sociedade, e considerar que a instrumentaliza^áo dos homens
é um dado natural do sistema de produdo.
Afinal de contas, a concepyao gestionaría leva a interpe­
lar cada individuo, a fim de que ele se torne um agente ativo
do m undo produtivo. O valor de cada um é medido cm
fu n d o de criterios finalicemos. Os improdutivos sao rejeira
dos, porque eles se tornam “inúteis para o m undo” (Castel,
1995). Assistimos ao triunfo da ideología da realizado de si
mesmo. A finalidade da atividade humana nao é mais “fazer
soeiedade”, ou seja, produzir liga^ao social, mas explorar re­
cursos, sejam eles materiais ou humanos, para o maior lucro
dos gestionários dirigentes que governam as empresas.
O quadro seguinte resume os principáis paradigmas em
a^ao nos manuais de gestao e as razdes pelas quais cíes nao
sao pertinentes para compreender o mundo da empresa e
das organizares.

Crítica dos paradigmas que fundamentam a gestao

PARADIGMAS PRINCIPIO CRÍTICA


BÁSICO

O h ju t iv is t a Compreender é Primado da
medir, calcular linguagem
matemática sobre
qualquer outra
linguagem

F l'N O I O N A L I S T A A organizado é um Ocultaban dos


dado mecanismos de
poder

E x p e r im e n t a r A objetivado é um Dom inado da


dado científico racional idade
instrumental

U t il it a r is t a A reflexáo está a Submissáo do


servido da a d o conhecimento a
critérios de utilidade

E c o n o m is t a O humano é um Reducto do
fator da empresa humano a um
recurso da empresa
Primado da a^ao, da medida, da objetividade, da
utilidade, o pensam ento gestionário é a encarnando ca­
ricatural do pensam ento ocidental. No m undo ocidcntal
convém pensar “distintam ente” . A m o d elad o m atem áti­
ca e as tecnologías da informa^ao se inscrevem cm urna
lógica fundam entalm ente binaria: A ou B. É um pensa­
m ento do acontecim ento e nao do m om ento.3 Criando
o acontecim ento, cada ocidcntal eré dom inar o curso da
historia. Nossas re p re se n ta re s do tempo sao prisionei-
ras de urna obsessao da medida de um tem po abstrato,
de urna c o n c e p to entre um inicio e um fim. Elas se en-
contram , definitivamente, descoladas do tem po da vida
humana. Elas obrigam os hom ens a sofrer um tem po abs­
trato, program ado, ao contrário de suas necessidades. A
temporalidade do trabalho leva a im por ritmos, cadencias,
rupturas que se afastam do tem po biológico, do tem po
das estafóes, do tem po da vida hum ana. A medida abs­
trata do tem po perm ite desliga-lo das necessidades fisio­
lógicas ou psicológicas: o sono, o alimento, a procriafao,
o cnvelhecimento etc. O individuo subm etido á gestao
deve adaptar-se ao “ tempo do trabalho” , as necessidades
produtivas e financeiras. A adaptabilidade e a flexibilidade

1 Franfois Jullicn salienta que a China cscreve sua historia eni termos de
processos e de “transformafoes silenciosas”. O acontecimento é apenas a es­
puma da historia, sem dúvida nao a determinando. Ele nao é ntais que um
índice de transformafoes invisíveis. Os acontecinicntos se hierarquizam, um
eclipsa o outro, ao passo que os momentos se complctam, se apóiam, se rc-
forfam mutuamente. “Ha urna fecundidade da China no tato de pensar o
indistinto e, portanto, a transifao e, portanto, a mudanfa; c há unta fecundi­
dade na Europa pelo fato de pensar o distinto e, portanto, o afastamento e,
pórtame, o movimento [...] O enveíhecimento nao é a passagem entre dois
estados distintos, mas um proccsso que corre imperccptiveimente ao longo
de toda a existencia. Ele nao se define cm relafao a um antes e a um depois,
mas por indicios, de inicio imperceptívcis, depois cada vez ntais precisos: urna
ruga, um fio branco no cábelo, um reflexo ntais lento do que o costumeiro,
um inesperado lapso de memoria...” fjullien, 2001). F.ssc texto é resumido
por Cathcrine Espinasse (2003).
sao exigidas em mao única: cabe ao homem adaptar-se ao
tempo da empresa e nao o inverso.
O gcstionário nao suporta as férias. É preciso que o
tempo seja útil, produtivo e, portanto, ocupado. A desocu­
p a d o lhe é insuportável. A abordagem da qualidade ilustra
de modo caricatural essas representares que concebem a
vida humana em urna perspectiva instrumental e produti-
vista.

79

Você também pode gostar