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O ARQUETIPO DO INVALIDO E OS LIMITES DA CURA* Adolf Guggenbiihl-Craig (Zarique) ‘Ao lermos as descrigdes da vida na Corte de Lufs XIV, no século dezessete, nos surpreendemos com 0 fato que esses nobres ¢ damas, embora extremamente ricos e privilegiados em todos os aspec- tos, eram vitimas indefesas das doengas mais triviais. Um abscesso causado por um dente estragado significava agonia durante dias e muitos perdiam todos os seus dentes ainda jovens. Nada podia ser feito para alterar este estado de coi- sas, mesmo se essa perda significasse uma catdstrofe, como no caso da aman- te de Luis, que imediatamente perdeu os seus favores apés a, perda de um dente na frente. O slogan “Sorria” pro- vavelmente teria sido muito impopular naquela época. Um sorriso usualmente mostrava dentes pretos e podres, ou a falta fatal de dentes. A queda de um cavalo ou a menor infecgaio freqiiente- mente significativa a morte ou a inva- lidez para o resto da vida. Tudo que ‘os médicos eram capazes de fazer era prescrever enemas ou sangrias; os cirur- gides sabiam somente cortar ou quei mar. Hoje em dia o tremendo poder de cura da medicina € fato consumado para nds... E como se tudo pudesse ser re- solvido, com excegao da velhice e da morte. Contudo, os médicos, particular- mente os psicoterapeutas e psiquiatras, esto mais ocupados do que nunca. Os custos médicos estio cada vez mais al- tos e as estatisticas prevém que logo 60% de nossa renda ser gasta com satide. Estas maravilhosas técnicas ¢ ins- trumentais médicos sao carissimos, pois requerem pessoal especializado e apa- relhagem dispendiosa. “Bem”, poderia- mos perguntar, “e porque nio?”, Pelo menos esses custos séo recompensado- res. E 0 prego que temos que pagar pa- ta o dominio progressivo da doenca ¢ mutilagSes como as que vimos nos exemplos da corte de Luis XIV. Hoje em dia, entretanto, 0 cenério médico nao € tao glorioso como no pas- sado. Grande parte dos custos médicos € gasta com medicamentos, pessoal, ad- ministragéo ¢ manutengo hospitalar, seguros, etc. Terminaram as batalhas homéricas em campo aberto — Pasteur, Ehrlich, Lister — que acabavam em vitorias decisivas. A maioria das bata- Ihas travadas pelos médicos dé hoje sao contra inimigos octlios ¢ tracoeiros, es- quivos, dificeis de seem apanhados, qual uma guerra de guerrilhas na flo- resta. Estatisticas-aftrmam_que entre 30% © 60% de todos os esforcos mé- dicos esto relacionados com doencas psicossomaticas: todo tipo de doencas Tnexplicdveis e estranhas, como dores de cabeca, fadiga, insOnia, comer em excesso ou de menos, problemas de pe- Ie, ete, Esta lista nem mesmo inclui as inumerdveis neuroses como compulsées, obscesses, ansiedades, fobias, pertur- bacdes sexuais, etc., que nos mantém ocupados continuamente. Estas pertur- * Artigo traduzido com autorizacdo de Spring Publications, New York, do original “The archetype of the invalid and the limits of healing” — Spring 1979, pags. 29-41. 7 bages neuréticas psicossométicas, prin- cipalmente crénicas, si 0 pao de cada dia do médico, Este é 0 trabalho que consome grande parte do tempo do mé- dico e do psicoterapeuta por duas ra- z6es: ptimeiro, porque a grande maio- tia dos pacientes sofre deste tipo de doenca; em segundo, porque parecem que nunca saram completamente. Mais comumente eles pioram para depois me- Ihorarem um pouquinho e freqiiente- mente o médico bate em suas préprias costas dizendo: “Agora estd resolvido”. Contudo, no dia seguinte a mesma dor, a mesma irrupe%o, 0 mesmo cansaco, aparece novamente, Os médicos dos ambulatérios, o clini- co geral, o residente, o ginecologista, todos sabem a que cu me refiro. Aqui, nés médicos ¢ psicoterapeutas, nos ve- mos pressionados contra a parede. Ten- tamos curat com todas as ferramentas médicas, psicoterapéuticas e sociais de que dispomos, dispendendo uma enor- me quantidade de tempo, energia ¢ di- nheiro, Entretanto, conseguimos pou- cos progressos e somente em casos iso- Tados, Aqui esté um exemplo do que eu quero dizer. Uma senhora foi encami- nhada para tratamento comigo, depois de ter sido tratada por um clinico du- rante oito anos como tendo esclexose miiltipla. Parecia que ela nfo tinha esta doenca. Eu a tratei psicoterapicamente cineo anos e no decorrer desse periodo ela apresentou crises de alucinagées, Hoje é uma paciente muito grata, embo- ra o cansaco e a fraqueza geral ainda estejam presentes, treze anos apés ter iniciado seu tratamento médico. Até que nés todos tenhamos atingido o estado de satide, como € definido. pela Organiza- cdo Mundial de Satide — um perfeito bem estar mental, fisico e social — ainda temos um longo caminho a tri- Ihar. Neste meio tempo os profissionais entusiastas que se propdem a ajudar 98 seus pacientes continuam sujeitos a se tornar deprimidos, cfnicos ou resigna- dos. E claro, entéio, que existem limites definidos & cura, embora a propria pa- lavra sugira o contrério. Curar, em ale- mao heilen, tem sua origem em uma palayra raiz que aparece em muitas lin- guas; provém de heilag, total, comple- to. Satide tem a mesma origem. Quere- Mos que nossos pacientes se tornem completos, fisica, mental e psicologica- mente. E quando queremos curé-los, queremos fazélos completos. Mas mi. Ihdes de pacientes quase nunca estéo plenamente sos. De certa forma cles nunca querem se tornar sios e nunca somos capazes de fazé-los sos. Porém hd uma necessidade desesperada em di- regio 4 plenitude. Nés trabalhamos com vistas plenitude sexual, erética, men- tal ¢ fisica, o tempo todo; nds médicos e pacientes, que esperamos atingir isso através da medicina preventiva, pelo viver saudével, pela dieta, exercicio, correr, esquiar, gindstica, natacdo, mas. sagem. Nossa nogio de satide psicold- gica também significa totalidade; por isso procuramos terapias de todos os tipos, continuamente lutando nesta di- rego. Mas 6 um trabalho de Sisifo, pois nfo acaba nunca. Todos os tipos de dores e achaques, de sintomas psicos- sométicos, parecem estar, como o pobre, “sempre conosco”. Séo. nossos objeti- vos otimistas por uma satide plena, vis- tos como totalidade perfeita, um mal entendido? O que foi que saiu errado para que aquilo que nés buscamos e 0 que realmente € estejam tao distantes? Abordemos a questo na cléssica for- ma médica, através de “casos”. H4 al- guns meses li as cartas de Mrs. Jane Carlyle. Ela era a mulher de um fa- moso escritor filésofo, Thomas Car- Iyle. Aparentemente estava sempre doen- te: continuas dores de cabeca e nas costas, estava sempre apanhando ou se recuperando de um resfriado. Quando mais velha, chegou mesmo a fazer uso de morfina. Era também uma senhora ambiciosa, que se deleitaya com a fama do marido, ¢ pessoas que se sentiam atraidas por ele acabavam fazendo uma visita de doente para cla. Mrs. Carlyle € uma escritora muito famosa, suas car- tas sdo realmente cheias de humor e fascinantes. Contudo, através de todas essas cartas, temos a impressdo que Mrs. Carlyle estava antes de tudo sofrendo; supostamente uma invélida total, entre- tanto, ela Viajava por toda a parte, ia A festas e tinha uma boa vida. Em suas cartas a descrigéo de seus sofrimentos é penetrante e divertida. Ela queria que © meio a ajudasse a aliviar seus sofri- mentos crénicos, mas néio esperava real- mente ser curada. Ela parecia aceitar essas infinddveis pertubagdes psico- somiticas como parte de sua vida. Seus amigos aparentemente também aceita- yam isso e Ihe respondiam descrevendo em detalhes maravilhosos as suas pro- prias dores, resfriados e febres. Hoje a descreveriamos como uma mu- Iher que sofre de “histeria de conver- so”; ou ditfamos ainda que é uma pa- ciente psicossomética, altamente neuré- tica ou uma “viciada em comprimidos”. Decidirfamos que esta mais do que ma- dura para uma psicoterapia, que esta t20 inconsciente de seus prdprios motivos que necessita um tratamento extensivo, um assistente social, conselheiro matri- monial... Hoje temos muita gente co- mo Mrs. Carlyle. Mas suas familias ¢ amigos os querem curados. Esta invali- dez, este sofrimento continuo, simples- mente j4 nao € mais aceito. Vejamos um outro exemplo — menos engracado que o de Mrs. Carlyle — o de Mrs. K. Ela vivia numa pequena cidade e, entre a idade de trinta € ses- senta anos, 0 médico local diagnosticou- the cerca de dezesseis tipos diferentes de doencas; todas nunca foram real- mente confirmadas. Tinha tido proble- mas cardiacos, renais, no figado, no es- tOmago, além de problemas nas costas e em outros Orgdos. Sofria diferentes do- res, em diferentes partes de seu corpo, estava cansada o tempo todo, ¢ apesar de todos os diagnésticos e tratamentos continuava a mesma. O efeito que isso causava a sua yolta era opressivo. Seus filhos se sentiam continuamente culpa- dos. Quando surgia uma confrontagao na familia, era sempre dito “mamae nao esta se sentindo bem, ela precisa descangar”. Ela no se sentia bem por causa da confrontagio? De qualquer forma seus filhos se sentiam culpados; seu marido foi escravigado. Ele assumia as tarefas desagradaveis, pois: “Ela nao esta passando bem e 0 doutor disse que precisa de descanso”, Ela nunca safa de casa e tiranizava a todos do seu pré- prio terreno: desenyolveu até um zelo missiondrio pela doenca ¢ uma de suas filhas — apesar de robusta e saudavel — foi declarada uma crianca doentia e no final todos acreditavam nisso. Ento, 0 que esté acontecendo com Mrs. Carlyle ¢ Mrs. K, e com milhdes de pessoas como essas? Parece hayer al- go em acio que desufia todos os es- foros bem intencionados como desafia a propria vontade do paciente. Algo forte, terrivelmente desumano, parece estar atuando aqui, um deménio inven- civel. Todavia, uma possibilidade bési- ca de vida humana parece surgix atra- vés deste fendmeno. Poderia ser algum arquétipo? Nao fui capaz de ligar este fenémeno bésico e universal a nenhum dos bem conhecidos arquétipos clés- sicos. Assim pude compreendé-lo como um padrao, um atquétipo proprio e de- nominei-o de “O invélido”, para poder apreendélo. Prefiro, de iltimos trabalhos de Jung, compreen- der O-arquétipo nao principalmente co- mo- imagem, mas _como_uma_func&o, “um patréo inato de comportamento numa situacao léssica, tipicamente hu- i —~ 5) 'A invalidez certamente sempre nos companhou. Todos os seres hhumanos ‘pascem com estas deficiéncias gracas 2 certas infecgSes intra-uterinas, & he- reditariedade, ott a qualquer outa cau- sa, Além disso, 4 medida que a vida passa, nos tornamos “estragados”, cada vez mais “invalidados”, continuamente hd algo sendo destrufdo, algo perma: nentemente em desarranjo. Essas falhas funcionais sio freqiientemente muito Gbvias: por exemplo, um dedo faltan- do ow uma mao ou um olho, ou man- camos por causa de uma perne muito curta, Ou sdo menos evidentes; um. or gio, tal como a vesicula biliar, ¢ defi- ciente no seu funcionamento. Ou temos que lidar com deficiéncias do cérebro, que levam ao mau funcionamento das fingSes mentais; ou, ainda, o. funei namento é pobre em virtude das fe: das na alma ou lacunas inatas. Ter qus. viver com ¢ reagir a. partir de uma de- ficiéncia @ certamente uma situag: ‘em muitos aspecios uma situacao arquetipica. E portanto_valido_abordar este Fendmeno a partir ‘de um ponto de ta arquetipico. — © ARQUETIPO DO INVALIDO Creio que o que esté em acto nesses estados crénicos de deficigncia € 0 ar quétipo do invélido. Aqui, algumas ob- servacdes a respeito da natureza dos arquétipos tornam-se necesséias. Nos nao precisamos neste contexto repetir toda a teoria ou examindla criticamen- te. Entretanto, para nossa discussio ¢ importante compreender que uma_rea- cao arquetipica pode _ser_parcialmente faseada numa sifuagéo concreta_exte- rior, mas que eyentualmente_os_arqué- ‘Tipos_se_liberam’e se_tormam. indepen- dentes. Podem mais tarde aparecer_sem a situagao. jor_real. Por exemplo, a jaternidade, ou o arquétipo da mie, po- de aparecer na vida de uma mulher sem que jamais ela tenha tido filhos. 100 © arquétipo da mae poderia permear tudo que ela faz sem que haja filhos na realidade. Esta independéncia do arqué- tipo da realidade externa se a olica a0 arguétipo do inv: ido também, no ne- cessitando da invalidez real para set ativado. Um invélido real, alguém que tenha perdido uma perna ou um olho pode atuar 0 arguétipo do invalido ou ndo — ou num gratt muito menor que esperado, om vista da sua incapacida- de fisica real. A vida pode ser viven- ciada sob a estrela da satide ou sob a estrela da invalidez, jndependentemen- te do real estado de satide. Nesta altu- ra poderiamos perguntar: “Onde ape rece 0 arquétipo do invélido na mitolo~ gia?”. E este ¢ um problema real. Nés esperamos que todos os arquétipos apa regam de alguma forma na Mitologia, aeim onde estaria a figura arquetipi- fa do invélido? Onde a imagem cole- tiva? Os deuses gregos podem ter momen: ‘oe de enfermidade, mas nunca parecem ee invélidos crénicos, éxceto Hetats- os que claudica. Os ‘outros deuses gre- gos eram extremamente saudaveis. Tal- aes) Mitologia Grega, tendo chegado t ads principalmente através dos Ro- méanticos, tenha sido adocicada de tal forma que podemos af encontrar poucos sinais deste arquétipo- ‘Naturalmente, to- das as figuras principais da tragédia grega eram ligadas a padroes crdnicos de auto-destruicao ¢ eles ‘usualmente la- mentavam suas condigdes. Entretanto, nao eram invalidos (exceto, talvez, 10 Taso de Filotetes) assim a ttagédia nao deveria ser confundida com invalidez, em os invélidos deveriam ser trégicos. Os deuses germanicos sé um pouco diferentes. Ziu, o deus da Guerra, ti nha uma grande mé em sua testa. E: tava, certa vez, em uma batalha @ foi olpeado na cabeca com uma mo que ge quebrou e em virtude disso formow se um aleijao permanente. Outros deux ses getménicos so desctitos como fe- tidos ou sem mio; de fato todo o mun- do dos deuses germfnicos & de certa forma invélido, pols Yggdrasil, a gran- de arvore de cinzas sobre a qual se apoia o mundo, est podre nas raizes ¢ pode eventualmente cair. A iconografia crist_nos_mostra_mui- tas Imagens de invalidez. As catedrais @stao Cheias de imagens grotescas, de seres humanos invélidos. Estas escultu- ras, bem como os deyotos nos altares dos Santos que promovem a cura, pode- riam muito bem ser inspirados pelo ar- quétipo do invalido. Mas, é nas artes que vamos encontrar este arquétipo, por exemplo, nas pintu- ras de Velasquez que pintou suas figu- ras de forma distorcida, E alguns dire- tores de cinema que procuram represen- tar seus personagens como invélidos. Nos filmes de Fellini aparecem perso- nagens que sio ou muito magros, ou muito gordos, com vozes bizarras, etc. Q invdlido como figura da imaginagao aparece, além disso, em estérias clas- sicas de aventuras. Na Ilha do Tesouro, de Stevenson, Long John Silver tem uma perna de pau; 0 Capitio Gancho, no Peter Pan, tinha um gancho ao invés de uma mao. Um pirata usualmente nfo tem uma perna ou um brago, ou usa um tapa-olho, Outra imagem familiar do invélido é o do corcunda Quasimodo, o corcunda de Notre-Dame. Embora nao duvide que as artes e re- ligides do mundo possam estar reple- tas de tais figuras, devo aqui confessar minhas préprias limitagdes em pesqui- sa simbélica. Além disso, suspeito que, mutitas_mitologias, pelo menos da for- ma que nds as conhecemos, s40 tao de- fensivas em suas imagens e t&0 repre: sivas com telago-a este arquétipo, c tho a psique individual e coletiva. B. di- ficil lidar com o arquétipo do invalido, como Veremos postetiormente; mais di- Teil mesnio que-o- arquétipo da doen- uereens t e ga. A doenga ao menos pode ser cura- day para a invalidez nao hi esperanga. Nas proximas Jinhas tentarei fazer um breve diagnéstico diferencial do invdlido, Primeiro ele nao tem nada a ver com © arquétipo da crianga. A. crianga como 0 invélido é frégil, mas cresce, torna-se um adulto, “mata o pai”, tem um futuro. A crianca € so- mente temporariamente fraca. Segundo, o-arquétipo da doenga € também algo a mais, pois doenca leva A morte, & satide ou a invalidez. A doenca é usual- mente limitada_a um curfo periodo; é “ama ameaca passageira, uma catdstrofe, um evento agudo, dindmico. A invalidez ualmente_nfo leva & morte_nem & fide, ¢ uma-deficigncia-do-corpo, do “cérebro ou da mente. Em terceiro lu- gar, embora a invalidez possa ser crd- nica, pode ser distinguida do arquéti- po do Senex, ou Saturno, pois pode nao ser acompanhada pela miséria, solidio e depressao. Mrs. Carlyle vivia uma vir da bastante social em meio a suas quei- xas. Digamos: era uma invélida sem ser uma Senex. Pessoas que vivem plenamente sob 0 arquétipo do invélido parecem ser mui- o inritantes, - _chatas. Mas o wrquétipo da satide também pode ser muito irritante! Se alguém nao para de falar do que pode ou nao pode fa- zet por causa de suas dores nas costas, se torna muito magante. Mas, 6 certa- mente muito mais magante aquele que nao para de falar de suas corridas, e de como seu coracao depois de dez quild- metros ainda bate devagar, e de como ele faz exercicios todas as manhis ¢ vai para o trabalho tao bem como se tivesse nascido naquele dia. Os arquétipos nfia sia. nem bons nem maus, nem interessantes_nem_desagra- daveis. De certa forma séo “neutros”. Podem, contudo, ser_vivenciados_posi- fiva ou negati Nosso trabalho @ nosso dever como analistas € o de es- 101 iudar e refletir sobre esses arquétipos, sobre suas qualidades, de tal forma que possamos lidar com eles na prética. O arquétipo pode ser vivenciado negati- Ya ou muito positivamente pelo meio ou pelas pessoas que estejam sob seu dominio. Vejamos, por exemplo, um ca- so do aparecimento positivo e simpéti- co do arquétipo do invilido. Eu tenho um grande amigo que so- fre de dores crénicas nas costas. Esta sempre um pouco deprimido, queixa-se de cansaco e sofre de varizes, Real- mente € um prazer t@-lo ao lado; faz- nos sentir prestativos e titeis. Pode-se fazer algo por ele, darthe uma cadeira confortavel, uma cama firme, e ele per- cebe nossos esforgos. Nao é ameaga- dor, é fraco, desamparado e nfo com- petitivo. Evoca bondade, descontraca © arquétipo do invélido, quando vivi- do, inspira reflexo e discussio. Por exemplo, quando alguém o conyida pa- ra um passeio ele agradece dizendo: “Bu estou com dor nas costas, preferi- tia ficar sentado perto da lareita con- versando”. Q_arquétipo_do invdlido pode tam- ‘bém ter um efeito positive para a_pes- soa que o vivencia. Elle se opde 3 so- berba e promove a modéstia. A fraque- za humana é compreendida em sua ple- nitude por essas pessoas ¢ assim torna- se possivel um tipo de espiritualizacao. Flas vivem continuamente com um tipo de memento mori; esto sempre se con- frontando com a decadéncia de scu pro- prio corpo — nao se vé aquela ambi- cio centrada em si mesmo, baseada no corpo. E um arquétipo que constela em outras “pessoas_bondade € “paciéncia Por ser tio humano pode o arquétipo ser muito humanizador. Satde, portan- to, propria dos Deuses — e af esta © perigo. © complexo de Deus ligado 20 arquétipo da satide transparece no fanatismo com o qual a satide é culti vada. Ela é perseguida com conviccdo 102 religiosa e dogmatismo: “ché de gin- seng é bom para vocé, nfo se importe com 0 sabor”. Invalidos, por outro la- do, raramente tentam converter vocé. O arquétipo do invalido é importante para a relacéo. Hoje em dia esté em yoga uma fata morgana psicoldgica, a fantasia da Pessoa Independente. Todos somos dependentes, da mulher, do ma- rido, do pai ou da mie, dos vizinhos, das ‘criancas, dos amigos. Viver_ _as- quétipo da invalidez significa_compre- r sua propria dependéncia_etema igo ou de alguém, Uma pessoa com 6 sentimento de vida invélido seré sem- pre dependente de uma pessoa com um sentimento de vida forte e saudé- yel. Dependéncia unilateral e mitua tem sua azo de ser no arquétipo da invali- dez. Ele contrabalanca a imagem arque- tipica do heréi independente ou do vi jante, sempre livre, nao ligado a alguém. © arquétipo da invalidez desempe- nha um papel importante na transferén- cia. A dependéncia na transferéncia € principalmente vista como © padrao de pais/filhos ou regressdo. Mas a teoria pais/filhos com freqiiéncia se revela insatisfatéria na transferéncia. Freqiien- temente um analisando é dependente do analista como invélido e nao como crianca ¢ este tipo de dependéncia do jnvélido deve ser aceito como qualquer outro arquétipo. O aparecimento do in- vélido na andlise € algo bastante enig- mético e ardiloso. As vezes percebe- mos que os analisandos se tornam de- pendentes de nés por anos a fio. A crianga parece que nunca cresce, con- tudo nao hé crianga. Haverd invalidez ¢ dependéncia para sempre. Os resul- tados disso para o analista sto usual- mente dificeis de suportar. Ele pergun- ta a si mesmo se a anélise se transfor- mou numa penséo para velhos. Talvez © proprio analista tenha se tornado uma muleta, a muleta psicoldgica de um invélido emocional. Mas nfo ha na- ca esteve um s6 dia doente, ole ainda faz alpinismo aos oitenta”, A idéia predominante de que satide € estar sfio de corpo e alma, um idea- lizado deus grego, ndo leva em consi- deragio o arquétipo do inyélido den- tro de nds mesmos, e nos torna inca- pazes de lidar com o invdlido quando ele surge dentro de nds. Nossa fanta- sia de sade também nos faz projetar nossa invalidez em criangas com pa- ralisia cerebral, nos velhos nos asilos, nos paraplégicos, preocupando-nos com cles e nos esquecendo ao mesmo tem- po que ela aparece nas menores quei- xas do cotidiano. Nao vemos que so- mos defeituosos incurdveis. Dissocia- mos satide de invalidez, reprimindo que temos pernas curtas, pés chatos, méisculos fracos e que nossos cora. ges disparam; ou que sofremos de pe- quenos comprometimentos cerebrais, que somos exaltados, indolentes, com. pulsivos ¢ psicossomaticamente pertu- bados. A. conseqiiéncia mais desagradavel da falta de se cultivar o arquétipo do invdlido aparece no moralismo da sati- de e da totalidade. Isto proyoca resul- tados desastrosos para os que sofrem de neuroses e doencas psicossomiticas, ‘Ao discutir casos, surpreendo-me com o tom moral que nés psicoterapeutas to freqiientemente usamos com rela- g40 aos doentes. Sio — é essa nossa atitude — simplesmente pessoas infe- riores; eles nfo querem — principal- mente quando so psicologicamente in- vélidos — serem curados. Néo que- rem crescer, mudar e por isso mantém- se atrds de suas defesas; embora vocé veja através delas que simplesmente nao querem colaborar. Nao podemos deixar de desprezélos. Somente os aceitamos quando participam de nossas fantasias de crescimento, sanidade ¢ to- talidade. Somente quando concordam ‘em serem curados ¢ tratados despertim algum interesses em nés. Alguns de 104 nossos pacientes sio realmente doentes € podem ser tratados até certo ponto; mas muitos, pelo menos na pritica psi coterdpica, so dominados pelo arqué- tipo do invélido. Nao podem ser cura- dos, pelo menos no sentido de se tor- narem sos. Esté mais do que na hora de refletirmos sobre 0 arquétipo do in- vélido. Este arquétipo tem sido extre- mamente deselegante — como a sexua- lidade hh oitenta anos atrés. E, como naquela época, a relutancia para ver um arquétipo provoca infelicidade em nossos pacientes. Pois, quanto_mais. queremos curar a todos que estejam crénica, neurdtica_ou_psicossomati mente doentes, tanto mais essas_pes- rivendo sob o_arquétipo_do_in- valido, devem se defender_desespera- mente, sem saber o que est4_acontecen- io com eles. Tornam-se mais tiranicos e mais exigentes e solicitam mais re- médios, mais cuidados, mais pensdes e menos trabalho. Toda uma sociedade que solicita mais cuidados médicos, apoio, seguranca e bem estar. Por ne- gar um arquétipo podemos sofrer uma terrivel e cruel vinganca. MilhGes de pessoas sfio levadas por seus incons- cientes a esperar aquele momento em que possam entrar abertamente para servir 0 arquétipo do invdlido, Um pe- queno acidente, uma pequena perda de alguma capacidade fisica ou mental ¢ eles param imediatamente de traba- Thar. Exigem compensagGes, pensdes, seguro de invalidez, etc. Fazem com que todos & sua volta se sintam culpa- dos e parecem dizer: “Agora sou um Invélido, minha invalidez inata foi fi- nalmente reconhecida e agora posso di- zer minhas exigéncias, me tornar de- pendente”. Nao podemos ajudar esses _pacien- tes a se livrarem do arquétipo do inva- lido, apenas podemos mosirar-Thes co- mo viver com ele, como lidar com ele e, talvez, estimular um outro arquéti- po. Podemos auxilié-los a vivenciélo de uma forma menos negativa. Como j4 disse, pessoas que estao yivendo o arquétipo do invalid, como qualquer outro padrfo arquetipico, poderdo fa- zé-lo de forma agradavel ou desagra- davel, criativa ou nfo criativa, com amor ou sem amor. O lado negativo do padrao pode ser mais pronunciado tal como: tirania, egoismo, prepoténcia, culpa, fuga da realidade; ou os lados positivos como a modéstia, acomoda- Gio, reflexdo, habilidade de aceitar a dependéncia, religido, etc. Se a vivén- cia agradével, ou nao, do arquétipo nao depende do arquétipo em si, de que entdo ela depende? EROS Nessa altura gostaria de apresentar algumas reflexes relacionadas ao deus Eros. E gostaria de acrescentar algo do que ja disse acima, acerca do arquéti- Po como padrao de reacio. Os argué- tipos_podem também ser compreendi- dos ‘deuses, 1810 , como pode res“divinos eternos_e_independentes nesses padres de teacdo. Como tais, so nao-humanos e remotos, simples- mente comportamentos neutros, a me- nos que um outro fator esteja envolvi- do na sua encarnagio, numa vida hu- mana. Este “fator” eu considero co- mo sendo um outro arquétipo, o deus Eros. De acordo com algumas lendas, Eros € o mais velho de todos os deuses, se- gundo outras, 0 mais jovem. O mais velho e o mais jovem — o que certa- mente indica um deus muito especial. Encaremos Eros primeiramente como deus do Amor no sentido de amor se- xual, da amizade, e no sentido do en- volyimento por alguma coisa ou por alguém. Eros no somente esté presen- fe no amor que uma mulher tem por um homem ou um homem por uma mu- ther, mas est presente também no en- volvimento que um politico tem pela politica ou o interesse que um mate. miético mostra pela matemética. Sem ele nao haveria geracdes de deuses e nenhum movimento entre eles. Eros é responséyel pela unio de deuses ¢ deusas e pelos seus enconttos com se- res humanos como amantes, para que haja novos deuses, novos herdis ¢ no- vas formas humanas. Eros torna os deuses, ou arquétipos criativos, aman- tes, envolvidos. Conseqiientemente, os deuses so criativos, passionais, aman- tes, ciumentos, somente sob a influén- cia de Eros. De outra forma permane- cem néo-humanos, sem significado, frios e distantes. Assim os arquétipos sdo criativos somente com Eros; se mo- vem € nos moyem unicamente através de Eros, Por exemplo, o trickster sem Eros € um burléo, um mentiroso e trapac ro, um criminoso desalmado. O tri- ckster quando aparece com Eros tor- na o homem ou a mulher estimulantes, cheios de surpresas, olhando para a vi. da por um angulo inesperado, saindo- se bem de uma situagdo dificil, nunca sendo apanhado num procedimento convencional. Um guerreiro sem Eros € brutal, uma maquina de matar, um deménio exterminador, um assassino desprovido de sentido. Por outro lado, o guerrei- ro com Eros é um denfensor, ou um missiondrio armado com valores que so sublimes para ele, pronto a sacrifi- car sua vida por outros, ou na defesa de ideais mais altos — ideais que po- dem ser extremamente importantes pa- ra um grupo de seres humanos. O arquétipo da mae quando aparece sem Eros € apenas superprotetor, su- focando seu filho com segurancas mate- riais, demasiadamente preocupada com alimentaco e calor; hd uma auséncia de motalidade, nao ha ideais, no hd espirito; para ela existe unicamente 105 seu filho no centro do mundo, um ins- trumento usado pelo poder e dominio, um prolongamento bioldgico dela mes- ma. O arquétipo da mae quando apa- rece com Eros, entretanto, ama seu fi- tho de forma desprendida; deseja o me- Thor para sua alma, espera que lute por outros valores, que desenvolva o espitito e os ideais que ela como mae actedita importantes para o grupo, a nagio, ou mesmo a humanidade. Uma mae com Eros nao quer ver seu filho apenas como prole material e biolégi- ca. Ela 0 quer representante do seu espirito ou do espirito do pai, ou o por- tador do simbolo do amor que a ligou ao seu amado. Num inyélido com Eros observamos © mesmo fenémeno: as pessoas A sua yolta tornam-se prestativas e gentis ¢ ‘0 portador do arquétipo mostra-se mo- desto. Sua invalidez estimula uma ati- tude néo-herdica que leva & contem- placdo filoséfica @ religiosa, nfo se prendendo & competicfio, mas compre- endendo as limitages de seu corpo ¢ de sua psique humana. Como resulta- do, os valores espirituais tornam-se mais importantes. O invélido sem Eros 6 mau, tirdnico, parasita, mau-humo- rado, compensando, desesperadamente, a invalidez através de artimanhas astu- tas ou se deixando obssecar por bens materiais. E invejoso, pessimista, de- sesperancado, cheio de ddio e melan- colia. Eros nfo nos d4 paz e tranqiiilidade e-nossas aces guiadas por Eros nos tiarfo freqiientemente dificuldades, de- sespero ¢ tragédias. Pelo menos Eros 106 produz um envolvimento cheio de sig- nificado 20s padrdes arquetipicos que vivemos. Sio, com Eros, nflo apenas forcas n@o-humanas que atuam sobre nés, porém, também maneiras de nos- sas psiques agirem e de nosso espiri- to se iluminar. a Tentei mostrar algumas limitages de nossos esforgos de cura, relacionando estas limitacdes ao arquétipo do invé- lido. Tentei lembrar que desde que sur- git o set humano fomos ¢ ainda somos seres mais ou menos imperfeitos. Nossa natureza fisica jamais funciona de maneira completa e perfeita. Somos imperfeitos desde que nascemos ¢ a medida que atingimos a maturidade e \ a velhice mais limitacSes vo se acres- centando. Arquetipicamente nosso cor- | po, através do qual nossa psique se ma- | nifesta, € um organismo defeituoso, im- preciso, sempre vivenciado como par- cialmente funcionando e parcialmente nao funcionando. A medicina atual / realmente consegue maravilhas, os de- feitos mecnicos podem ser em parte cortigidos, mas, nfo completamente eliminados. Por isso sofremos conii- nuamente de uma permanente imper- feigdo limitadora. F este o estado real de totalidade, uma yerdade de nossa condicaio_existencial que somos par- cialmente defeiftosos sem teparo. Esta € uma vivéncia basica da vidave é esta que deve definir nossa idéia de satide. Um bom analista pode ser visto como um sacerdote do arquétipo do invali- / do cuja atitude frente a invalidez é j) orientada por Eros. —, Tradugio de Glauco Ulson da de alarmante nisso; é algo legitimo. O que nés deverfamos fazer é tentar en- corajélo a transferix esta dependéncia para outras pessoas, eventualmente, ¢ nao deixé-la com o anelista. A depen- déncia em si provavelmente deve exis- tir. Devo repetir que os perigos do ar quétipo do invélido nunca devam ser subestimados. Nés nos tornamos incons- ciente dele, da mesma forma que encon- tramos to poucas imagens miticas em que ele aparece. E um arquétipo muito problemitico, dificil de lidar, por isso nés 0 reprimimos. Ele pode criar uma disposigo do tipo “‘o invélido nos acompanharé para sempre”, um tipo de atitude fatalistica, passiva. Nada pode ser feito, Pode criar uma atitude como a expressa em disticos que podiam ser lidos em alguns velhos hospitais “de doencas incuraveis”. Esta pré-disposi- Go se insinua ao lidarmos com a inva- fidez mental, psicoldgica e social. Esta compteensfo negativa do arquétipo po- deria nos fazer desistir de trabalhar pe- la satide e seu restabelecimento. Todo o tremendo progress da medicina ocorreu parcialmente por causa do arquétipo do invalido ter sido rejeitado, reprimido, negado. Nés analistas vivemos parcial- mente de pessoas que esperam crescet e se curar, nao vivemos de invdlidos. Assim, olhar todo nosso trabalho tera- pCutico desta perspectiva da invalidez falsifica nossa tarefa multifacetada. Somos dominados por muitos arquéti- pos. Muitos nos tem em seu poder. O arquétipo do invélido ¢ somente um padrao de comportamento. Mas, aqui tieste artigo, estou desempenhando o pa- pel de advogado do invdlido e eu que- ro defender esta figura arquetfpica. Quero atacar seus inimigos, pois sio fortes e coletivamente bem aceitos. Quero, portanto, atacar novamente a fantasia da satide, apontando o perigo desta fascinagio pela satide. INVALIDEZ, SAUDE, TOTALIDADE Primeiramente, precisamos reconhe- cer que tanto a satide como a inva- lidez so fantasias arquetfpicas e em segundo, que a totalidade foi iden- tificada unilateralmente com satide. ‘A satide foi até absorvida pela tota- lidade, a totalidade como sinénimo de nao comprometimento da fun- cio e pleno desempenho de seus poderes mentais e fisicos, nfio deixou lugar para a fantasia da invalidez. Nos- sa fantasia de totalidade é unilateral- mente “sauddvel” e nossa fantasia de satide se tornou t&o total que deixou de ser verdadeiramente sauddvel. De acordo com a fantasia de satide con- tempordnea, devemos nos tornar sos; qualquer defeito, mau funcionamento deve ser superado. Em outros tempos, as pessoas prosseguiam através da vi- da com um temperamento melancéli- co; hoje as mesmas pessoas tém que engolir fortes medicamentos até que se tornem descontraidas e estupidamente felizes. Por sabermas que no fundo so- mos todos parcialmente invélidos para sempre, tentamos_ zx onh mento ¢ negar este arquétipo. Trabe- hamos ininterrupta e inutilmente pa- ra manter a satide a qualquer preco. Conhego um casal que era tao fascina- do pelo arquétipo da satide ¢ fazia tan- ta gindstica durante o dia que, & noite, quando ia para cama, estava demasia- damente cansado para fazer amor. Os seguidores da satide, os discipu- los de mens sana in corpore sano ado- ram e ritualizam suas proprias saides. Eles comegam a correr trés meses apds um enfarte, vao a safaris, apesat de so- frerem de diabetes, insistem em estar em plena forma depois de uma operacéo, comem alimentac&o vegetariana e con- sultam um conselheiro matrimonial pa- ra curar seus casamentos, Estéo nor- malmente, claro, bronzeados. Que- rem aparentar satide até morrer. “Nun- 103

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