(oN aye) a
Vicente José da Cruz Trovisqueira
enviadas do Rio de Janeiro entre 1863 e 1869,PREFACIO
No século XIX, Portugal, e em particular o Norte Litoral, foi assolado por uma
forte vaga emigrat6ria que submergiu todos os estratos da sociedade, em cres-
cendo até as vésperas da Primeira Guerra Mundial. Ao nivel individual e fami-
liar, 0 futuro vislumbrava-se quase s6 no Brasil, dada a estagnaciio dominante
no crescimento econémico portugues e a consequente falta de perspectivas
oferecidas por uma economia fortemente marcada pela auto-suficiéncia.
A corrente migratéria para o Brasil apresentava, porém, fortes raizes histéricas,
plasmadas num conjunto de afinidades (lingua, tracos culturais e religiosos)
que eram fruto de um anterior percurso comum. Foi essa situacdo que favore-
ceu a migracaio em rede e a insercaio de emigrantes em nticleos que podemos
considerar privilegiados do mercado de trabalho, com destaque para 0 comér-
cio. Conhecem-se as configuracées gerais deste processo, que arrastava, em
cadeia, familiares, vizinhos e conhecidos, ou simplesmente compatriotas, atra-
vés de mecanismos como as "chamadas'" e as, "tecomendacées". E este proces-
SO, que assegura a partida de rapazes muito jovens, ainda que outras situagdes
verifiquem em que os emigrantes ficam desprotegidos.
Falta, no entanto, documentagao em quantidade que permita mapear a diver-
sidade de situacdes, pois a documentacao oficial relativa aos emigrantes quase
se reduz aos processos burocraticos de pedidos de passaporte, casos de poli-
cia, legados testamentdrios e pouco mais. £ no dominio dos arquivos particu-
lares que repousam testemunhos e provas documentais que, colocados ao
servico da historiografia, permitirao desenhar as ligacées, as afinidades, as
colaboragées, as dificuldades, os sucessos.
E a disponibilizacao de um conjunto de cartas de natureza comercial e/ou
familiares que este livro propée, ajudando a compreender os lacos migrat6riosque prendem um conjunto de irmaos de Vila Nova de Famalicao - os irmaos
Trovisqueira, filhos de um lavrador de Gaviao, dos quais 0 mais célebre pas-
sou a ser conhecido como Bardo da Trovisqueira, figura hist6rica de referéncia
neste concelho, dado o seu percurso politico na fase do retorno. Trata-se de
um quadro que nao fugird muito do padrao acima descrito, largamente prati~
cado na 4rea de emigracdo em redor do Porto, em que o emigrante raramente
est sozinho, embora todo o percurso migratério assente na afirmagao da indi-
vidualidade.
Através destas cartas é um mundo de negécios e de afectos que se desdobra
perante nés, fruto do quotidiano de pessoas vulgares que longe labutam para
um dia regressarem a terra. Modalidades comerciais, dificuldades conjunturais
do comércio, impacto da situaco politica no mercado, investimentos, inte-
resses particulares, saudades ¢ lembrancas de amor filial e fraternal s4o temas
que nelas perpassam e que nos permitem ver 0 emigrante como pessoa na vida’
concreta. Por elas se pode observar que a visdo do emigrante em causa (Vi-
cente José da Cruz Trovisqueira) é de uma pessoa esclarecida, sem devaneios,
mas atenta A evolugdo social e politica. Com a publicacao pela Camara Muni-
cipal de Vila Nova de Famalicdo, no ambito do Museu Bernardino Machado,
do presente livro presta-se um servico a historiografia e honra-se a tradi¢ao mi
gratéria da regido, de que os irmaos Trovisqueira sao um exemplo. 0 mérito é
extensivo ao organizador da edicao, pela descoberta, transcrigao e estudo das
cartas de familia, fazendo-as sair do recato de um arquivo particular para as
apresentar ao grande ptblico numa atil fungao de divulgacio.
Jorge Fernandes Alves
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
6 Cartas de Vicente José da Cruz Trovisqueira