Você está na página 1de 42
%. versao i O Ramo de Ouro lustrada 7 " Preficio: Professor Darcy Ribeiro Traducio: Waltensir Dutra Revisao de Texto: Antonio Monteiro Guimaraes * Bacharel em Ciencias Sociais, Departamento de Sociologia ¢ Politi ,PUC-RY Supervisio Técnica: Luis Fernando Dias Duarte Professor do Departamento de Antropologia, ‘Museu Nacional, UFRJ ‘Titulo original: The Iluserated Golden Bough Fegoe sori de pines ingen publica em 1978 poe ‘Macmillan London Limited; projsadaeprodustda por George Rassoied Limited, de Tondees, Inglacerca, House edicor: Felicity Lused; pienaes and captions Sabine MacCormack; ddsigner: Alan Barcum; indexer: Chrisopher Wallis. Ilusteaced abeidgment copyright © Geoege Rainbied Limited, 1978 Porraguese language tastation copyright Zaher Editors, 1982 ‘Todos os direitos reservados, A repcoducio fo-autorizada desta publicagto, ns todo ou em parte, ‘constiuiviolagio do copyright. (La 5.988) Este novo resumo daedigio em tree volumes de The Golden Bough fot ‘ico com geil pecmisto de The Council, Trinity College, Cambie (Os editors sfo gatos & Bodlelan Library (Ox‘or, 20 British Maseum, National Gallery ed Wallace Collection (Londges) pela ptmnssn ira reprduaie suse fcograise, 1982 Dieses par lingua portugues guides por’ zatak eprom oa Caixa Psel 207 (20-00) Rio de Jenciro uese sera apropiolae dst vessio Iipreso no Bra Oramo de ouro ‘fmonmsHlcio. Asibilade Cumas, profess eprotérorade Eoéaseza suaaventura para fundar Roma, segura 0 ram de ouro que permiccia a Enéas oacesso 20 mundo das mas, de onds poderia observar a grande do facuro de Roma. Ao fando,o lage de Nem, smorada de Dian. O Zamo de ouro, gravura de Turner, British” ‘Museum, Landzes (A pintura de Turner, na pégioa 250, ‘eprodunidegracas i corcesia da Tate Galery, Londres.) Introdugao de Mary Douglas Sacrificios humanos.e espftitos nfo chegam a constituir um problema sério na cultura moder- na, ¢ 0 mesmo se pode dizer dos cultos demo- niacos do canibalismo. Se os idolos mancha- dos de sangue tém algum Iuger em nosso es- quema de idéias, esse lugar é na ficgo cienti- fica’ e nos filmes de terror. O final dessas hist6- rias sangrentas nunca explica a crueldade dos sacerdotes e de seus faniticos seguidores, exce- 4o através de um toque fantasioso, como a insinuago da existéncia de poderes satfinicos a solta no mundo ou — mais moderadamen- te — apresentando os vilGes como luniticos perigosos. Mas esses mesmos temas, hoje usa- dos no entretenimento, foram objeto de gran- de interesse intelectual ¢ provocaram reflexdes sérias entre os eruditos de hf cem anos. O alvorecer do pensamento humano foi um problema de importéncia fundamental para os pensadores do século XIX. Num certo momen- to de sua evolugio, nossos ancestrais se distin- guiram dos animais selvagens, e certamente a consciéncia que passaram a ter de si_mesmos foi gradualmente climinando os resquicios da origem animal. Os mais remotos esforgos do homem para compreender 0 mundo segura- mente devem ter sido marcados por crueldades destiais © erros grosseiros. Os costumes dos povos primitivos proporcionaram algumas cha- Ves para a compreensiio do pensamento arcai: co, e informagSes novas sobre crencas apaten- temente insanas chegeram em profusio Europa gragas aos relatos de exploradores, comerciantes © missiondrios. Dar sentido 20 que parecia insensato e absurdo foi o grande “ desafio daquela época, A’ atengio popular voltou-se para os antropélogos, que se empe- nhavam numa corrida internacional para deci- frar um cédigo que ento parecia tho excitante quanto qualquer coisa que os fisicos possam dizer a um piiblica moderno sobre a vida em ‘outros planetas. Bem se pode dizer que James Frazer yenceu 8 corrida, ¢ de maneira tio completa que, com © iiltimo volume de O ramo de ouro, ela pode ser dada como terminada, O respeito que con- quistou em vida-mostra que ele derrotou seus rivais. Uma cétedra universitéria de antropolo- gia social foi criada para ele em 1927 — pela primeira yez no mundo. Frazer foi feito lorde em 1914, tomou-se membro da Royal Society em 1920 e recebeu a Ordem do Mérito em 1925, Muitas universidades, na Gri-Bretanha © no exterior, concederam-Ihe titulos honoré- rios. Muitos eruditos conquistam alto prestigio ainda em vida e sio depois esquecidos. Mas, no foi esse 0 destino de Frazer. Embora a maiotia dos antropSlogos dele discordem num ou noutro ponto, dificilmente haveré quem se considere tao impértante ponto de julgar-se rebaixado por criticar Frazer, ou de achar que isso seria perda de tempo. Frazer nio.foi es- quecido, pois é atacado com freqiiéncia, 20 Passo que os nomes dos contemporfneos que © ctiticaram sto ignorados: € essa a prova de que seu trabalho ainda tem significacio. Os treze volumes de O ramo de ouro constituem um monumento, Como evoluiu esse monumen- to? Qual o seu valor atual? Qual a sua rele- vancia para nossas preocupagées de hoje? Antes de examinarmos como evoluiram os treze volumes de O ramo de ouro ou levantar- mos scus pontos fortes ¢ seus pontos fracos, devemos situar Frazer no seu contexto, pois ele deve ser lido e conhecido como um pensa- dor representative do séoulo XIX, inclusive pela elegincia de seu estilo. Frazer nasceu em 1856. Todos os dias, seu pai lia om vor, alta, para a familia, um trecho da Biblia, mas sempre fechava..o livro sem comentérios. A Jeitura era um ato ritual de-fé, ‘Suponho que ‘essa experiéncia infantil esteja na origem do respeito. que Frazer sempre evi- denciou ‘pelo sentimento feligioso, mas tam- bém de.sva notavel falta de intuicG6 religiosa. B claro quie aquelas histérias estranhas impres- sionaram sua imaginacdo juvenil: Abraio dis- posto a mergulhar 0 punbal: do sacrificio em seu préprio filho, intervengdes miraculosas, diltivios punitivos que se abatem sobre 0 mun- do inteiro, ctiangas incélumes em meio ao fogo, a separagéo das Aguas do mar Vermelho, ¢ Deus. sempre presente diante de seu povo, misterioso e por vezes cruel, dele exigindo um comportamento perigoso ou imoral. Em 1878, Frazer conclufa seus estudos cléssicos em Cam. bridge, durante os quais teve oportunidade de ler mais sobre religides exdticas. Os profundos ensinamentos morais e a visio extética da tra- digdo greco-romana inspiraram-Ihe admiragio pelo que chamava de poesia da religifo; mas também o intrigavam as lendas dos deuses gre- 805, inescrupulosos ¢ lascivos, perseguindo-se mutuamente ow’ correndo atras de rapazes ou mogas, ciumentos e vingativos. Pareciam quase humanos, mas ndo totalmente: a inconseqiién- cia e a gratuidade marcaram-Ihes as intengSes © as vidas. Explicar as crueldades e atitudes irracionais da mitologia foi um dos grandes problemas do mundo érudito, no perfodo 1870-1910, O ramo de ouro comega num tom de misté- rio: um bosque sagrado na Itélia, um sacer- dote que ronda uma 4rvore com a espada na mio, 0 mito de que ele era o guardifio-do san- tudrio de Diana, cujo destino era ser morto pelo seu sucessor, a suposigaio de que a arvore era um carvalho, que o sacerdote protegia um ramo de visco e era 0 consorte humano da deusa Diana — dificilmente se poderia imagi- nar que seriam necessérios treze volumes para desvendar as origens dessa hist6ria, a partir de’ evidéncias tio frégeis, Por que Frazer the deu tanto destaque? Jé se.chegou mesmo a di- zer que O ramo de ouro apenas uma longa dispersiva nota de pé de pagina a um verso " de Ovidio sobre o santudrio de Diana préximo a0 lago de Nemi (Fasti, VI, 756). Se € assim, por que Frazer escolheu esse verso.e nfo ou- tro, € por que, voltou sempre a essa histéria? Em minha opinifid, 0 sacerdote de Nemi e mesmo 0 fureo ramo de visco nfo so a ori- gem, nem o objetivo principal do livro, mas artificios da caixa de mAgicas de um narrador talentoso. O sacerdote de Diana e 0 deus nér- 10 dico Balder, presentes no infcio e final do livro, so o que Henry James chamou de uma “ficelie”,.wm fio essencial que mantém coesa a narrativa ¢ ajuda o leitor a sentir a estrutura antes que toda ela se revele. ‘Uma das restriges mais comuns a O ramo de ouro € que Frazer teria acumulado fato sobre fato, estabelecendo entre cles uma liga Ho preeéria, © que todo o edificio teria se tornado tio pesado. que a idéia inicial se per- dera de vista. Firmou-se uma tendéncia a des- carté-lo como um colecionador senil e incoe~ Tente de fatos curiosos, como, alids, pode de fato ter parecido nos seus wiltimos anos, Até mesmo seu bom amigo, o Professor E. O. James, disse: “A medida em que o livro crescia em suas méos, 0 frégil fio de ligagio com o assunto original ameagava romper-se sob o peso de cada edigao sucessiva da obra” (Dictio- nary of national biography). Mas tal observa- so realmente néo procede: se um estudioso teve algum dia uma preocupacio exclusiva, esse estudioso foi Frazer, que nunca se afastou do tema do deus imolado, Nossa nova edicdo separa o argumento central da massa de deta- Ihes. A Dra. MacCormack, que tao competen- temente reduziu os treze volumes a estas pro- porgdes modestas, insiste em que Frazer nao se distancia nunca de seu argumento. Ela me pa- rece ter conseguido fazer um resumo que deixa claro 0 significado ¢ toma vivo o interesse, sem que nada se perca do famoso estilo, Em sua nota editorial, & pagina 251, ela descreve como este livro foi feito © as decisées editoriais que teve de tomar para apresentar o texto desta maneira direta, A teoria de Frazer foi delineada em trés etapas. A primeira, em 1888, quando escreveu os verbetes sobre totemismo e tabu para a Encyclopaedia britannica, Ele nos conta que, naquela época, e por toda a sua vida, sofreu profunda influéncia de seu amigo William Robertson Smith, autor de um livro que goza- ia de fama justificada, Religion of the semites, © que seria publicado em 1889. B provavel que, como estudioso, a primeira intengio de Frazer fosse fazer‘em relagdo a tradig&o greco- latina 0 que seu amigo havia feito em relagio a tradicao judaica, j } j Durante toda a sua vida, Robertson Smith foi um cristo devoto e praticante, cuja tarefa erudita era a de submeter a Bfblia’a um exame hist6rico rigoroso para, com isso, protegé-la das criticas destrutivas dos cientistas, Sua ma- neira de defender a Biblia dos ataques intelec- tuais que a ameagavam foi escolher o que nela havia de nobre e racional e deitar fora 0 que parecia primitive ¢ irracional. Ele ¢ Frazer escreveram nos, vinte a cingtienta anos imedia- tamente posteriores ao abalo que The origin of species, de Darwin, havia causado & velha interpretagdo fundamentalista da Biblia: foi o homem criado por um tinico ato divino, como dizia 0 livro sagrado, ou evoluiu a partir do macaco? A maneira engenhosa que Robertson Smith encontrou para responder &.onda de cri- ticas @ Biblia foi mostrar que a hist6ria da religifo judaica também havia evoluido. As ver~ tentes da justica e da miscricérdia sempre nela haviam estado presentes, vidveis e com ener gia suficiente para sobreviver, a0 passo que as tendéncias bérbaras haviim sofrido um pro- cesso de selecdo gradual. A magia, disse ele, estava ligada ao culto de errantes deménios maléficos, sem ligagdo com o deus da comu- nidade. A magia acabou dando lugar, no jue dafsmo, ao culto de um s6'deus. O sacriffcio de sangue.deu lugar ao arrependimento dos coragées humildes, ¢ o animal abatido que re~ presentava o deus’ da comunidade deu lugar a uma concepgio espiritual do culto sacrifical. A esséncia do tema do deus imolado, que preocupou Frazer duranté toda a sua.vida, sur- ge no seu primeiro artigo sobre totemismo, no qual descreve a representacio da morte e do Tenascinento em cerimOnias de iniciagio e su- gere que os ritos totémicos sfo realmente sa- crificios nos quais o deus morre pelo seu povo. ‘A segunda etapa corresponde publicagio da primeira edicdo de O ramo de ouro em 1890 (dedicada “ao meu amigo W. R. Smith”), Diz Frazer em seu préficio que a idéia central do livro 6'0 conceito do deus imolado, deri vado de Robertson Smith. F aqui que apare- com pela primeira vez 0 sacerdote condenado de Nemi e Balder, 0 deus nérdico que morre. © objetivo do livro é descobrir a unidade ori- | ginal do pensameintd religioso, desde o cillto primitive dos arianos, que se difundiria. pelos bosques de carvalhos da Gélia, da Prissia da Escandindvia, tendo se'mantido‘em sua for- mia quase original no bosque sagrado de Nemi: “O rei do: bosque viveu e morreu como: uma encarnago do, supremo deus dos arianos, cuja vida estava no visco,,ou ramo de 6uro”. As re- ligi6es bascavam-se todas numa fatima comu- nhio entre os adoradores © seu Quando afirmou que o' deus imolado era a idéia central de O ramo de ouro, Frazer real- mente devia pretender qué assim fosse. Tal como Robertson Smith, ele. acreditava num pro- cesso de evolugio social que j4 entio havia formulado um juizo irreversivel contra todas as imolagdes rituais, quer a vitima fosse um animal ou-um ser humano, ou o préprio deus - fosse miorto para ser oferecido a si mesmo, em favor de seu povo. A ambicfo profunda de O ramo de ouro & colocar todas as doutri- nas sacrificais do cristianismo e, com elas, as doutrinas da Encarnagio, da Imaculada Con- ceigdo e da Ressurreic&o, sob a mesma perspec- tiva da adoragho totémica, lado a lado com as luxuriosas excentricidades do pantefio grogo © com as carcacas queimadas ou ensangiientadas dos antigos altares dos ‘israelitas. Quaisquer que fossem.as histérias, deviam ser considera- das como: verses parciais, imperfeitas. Surgia agora uma viséo mais completa, mais profunda © vigorosa. ‘Essa visio moderna identifica a evolucdo fluente da religido, desde os seus sig- nificados carnnis:at6 seus refinados significa- | dos espirituais. Essa nfo poderia ter parecido idéia arriscada a defender no contexto cultural racionalista da década ‘de 1890. Os que ainda se apegavam ao dogma religioso fundamenta- lista. levantariam objecSes, mas, para os meios académicos esclarecidos, a tarefa a que se pro- punham'os sucessivos volumes de O ramo de. ouro ‘significeria a aduglo de evidencias. cada yez maiores da evolucio mundial rumo a uma espiritualidade mais pura, Mas, entre 1890 © 1910, na terceira fase do seu pencamento, Frazer desenvolveu novas idéias sobre a maneira pela qual o'pensamento _ magico funcionava e como se enquadrava na psicologia moderna, Argumentou, basicamente, que o estégio mais remoto da evolucio filos6- 1 fica era magico, o segundo, religioso, ¢ o ter- ceiro, cientifico, Frazer admitia que os primiti- ‘vos podiam pensar suficientemente bem quan- do se tratava de construir uma casa, cagar um gamo ou parir filhos, mas achava que, sem as vantagens da ciéncia modema, eles tendiam a reforgar suas agdes recorrendo & magia: sim- patica, Prevalecia entio, de um modo geral, a idéia de que toda magia funcionava segundo um princfpio simpético, Mas Frazer distinguiu dois tipos de simpatia: a simpatia das partes orginicas ¢ a simpatia das semelhancas obser- vadas. A primeira supunha que coisas antes reunidas e depois separadas conservavam per- manente poder umas sobre as outras: assim, quando dois amigos bebiam mutuamente os respectives sangues, cada um deles, a partir de entdo, entrava em comunicacio fisica direta com 0 outro, podendo saber quando perigos ameagavam a este ou até mesmo definhando ‘ou mozrendo quando o outro era atacado, Jd © segundo tipo de simpatia € bastante. diverso do primeiro. Se, por exemplo, o ouro é con- siderado como sendo de um amarelo positive € a icterfcia como de um amarelo negativo, entio 0 ouro sera usado na cura desta, para subjugar o tipo negativo de cor amarela, Esses dois principios de contégio e similaridade de- ven ser considerados como uma influéneia po- derosa no pensamento primitivo. Em toda a literatura do pensamento primi- fivo repetem-se esas simpatias. Organizando- as como similaridade e contégio (ou conti dade), Frazer relacionou-as com a moderna psicologia da associagio mental, e com isso atualizou todo o seu assunto. Os prinefpios de associago ocupam, ainda hoje, um lugar curioso na psicologia e na fi- losofia, Tendem a ser tratados como uma ener- gia espontinea, incontrolada, da mente indi- vidual, uma energia que é gradualmente domi- nada ¢ ensinada pelo raciocinio analitico. E s6 agora se comeca a admitir a necessidade de um grande poder analitico para reconhecer a si- milaridade. Todds nés estamos sujeitos a asso- ciagdes erréneas de idéias. Rompemos essa su- jeigio pelo caminho que levou A cigncia. Mas, para Frazer, a mente primitiva néo estava for- jtamente & mercé das associagSes enganosas. 12 Ble estava decidido a revelar uma inclinagio particular, uma inguietaco que dominava nos- sos ancestrais, ou seja, a concepedo, to antiga quanto ‘0 homem, «de qué™a humanidade faz parte da naturéza. Essa concepcilo povoava a natureza de espfritos animados ¢° exigia um sentido do maravilhoso atrelando culpas e-¢s- perangas impossfveis. Ela produziuo prot6ti- po de todas as religiGes, a crenga no deus en- camado, que morre para redimir seu povo ¢ € ressurreto no momento adequado. Serd preciso miencionar algumas restrigdes hoje feitas 2 O ramo de ouro. As principais criticas modernas so,’ primeizo, que Frazer cra intoleravelmente arrogante em relagdo a mentalidede primitiva e, segundo, que tratou superficialmente de assuntos profundos, E cer- to que ele faz dos supostos selvagens uns per- feitos idiotas. Se alguém escrevesse hoje dessa forma sobre a mentalidade primitiva, seria acusado de racismo. Mas Frazer nfo era um racista, tal como habitualmente se entende essa expresso, Ele nfo visitou nunca nenhum dos povos ou lugares que descreveu, e scus exem- plos so, com freqiiéncia, colhidos em sua pr6- pria raga, em Londres, na Escécia, na Irland, na Franga ou na Alemanha, bem como em terras mais distantés. Também & certo que Fra- zer trivializa reflexes graves sobre a morte ¢ a divindade. E que teve certa tendéncia a tritu- rar duendes ¢ deuses, imparcialmente, pela mesma m4quina analitica. Mas 0 erro esté em tratar Frazer como um autor do século XX s6 porque ele viveu até 1941. Ble nfo estava li- dando com um problema moderno. Seu pen- samento jé estava formado em 1910, 0 pé- blico de sua escolha continuou sendo constitui- Go pelos eruditos de sua juventude. Frazer con- siderava seu trabalho sobre a religiio como relacionado com a pré-histéria, algo passado ¢ concluido: “a longa tragédia da loucura e do softimento humanos que se desdobra ante os Ieitores destes volumes e sobre a qual a cortina se prepara, agora, para baixar”. O Professor E. O. James, que 0 conhecia bem, disse que “Frazer era impressionado sobretudo pelo que Ihe parecia ser a total inutilidade do mundo que estudava”. Para julgar, se ele de fato.me- receu essas criticas de supérficialidade e atro- gincia, devemos situd-lo corretamente na sua época, Os coniemporiineos de Frazer achavam, sem divida, que a idade da religiio dogmética e da superstigdo estava chegando ao fim. As criticas de superficialidade:e arrogdncia aplicam-se. apenas se retirarmos Frazer do contexto de Jsua época. A visio que Frazer tinha da men- | talidade primitiva era positivamente clevada em comparagio com a de alguns de seus contem- \ porneos, muito cultos e respeitados. Um deles chegou a se perguntar, a sério, se a humanidade nao haveria atravessado uma fase de loucura temporéria — © concluiu que assim deve ter acontecido. Max Miiller, o grande fildlogo, tentou imaginar nossos primeiros ancestrais lu- tando com a fala, fazendo uso de apenas uns poucos tempos verbais ¢ incapazes de desen- volver idéias abstratas. Era natural que cles se confundissem horrivelmente quanto as transfe- réncias de significados entre individuos cujos nomes tinham origem em certos eventos € os eventos que haviam dado nome as pessoas. * Admitindo-se que cada palavra supunha um individuo ¢ Ihe atribuia um género gramatical, ent com uma palavra masculina para sol, como “o que brilha”, ¢ uma palavra feminina para a aurora, “a que queima”, seria impossi- vel dizer que © sol vem depois da aurora, sem sugerir com isso um macho perseguindo uma fémea, Como todos os outros estudiosos da época, Miller achava f4cil compreender hist6- ias Sobre deuses nobres ¢ justos, mas ea ne- (cessdrio invocar alguma teoria sobre a confu- séo mental primitiva para que se pudesse com- preender “o elemento tolo, insensato ¢ sclva- gem”. A explicago dos mitos por meio da confusio entre palavras que designam coisas da natureza sugere’ que todos os mitos surgi- ram originalmente como, mitos da natureza. O problema 6 que podemos considerar como mi- tos da natureza: tudo o que desejarmos. Até mesmo a histéria de Chapeuzinho Vermelho pode ser considerada como um’ mito da natu- Teza, se tomarmos sua capa vermelha ea sua juventudé:como 0 alvorecer, a avé idosa como a luz do entardecer e o grande lobo que engo- Ie toda a av com suas mandibulas negras, como a noite; felizmente, o lenhador mitico salva 0 alvorecer:e assim o sol s¢ levanta mais uma yez. Frazer desprezou desde o infcio essas teorias ‘bascadas num mal-entendido yerbal. Cem anos depois, aprendemos alguma coisa além de es- , pecular desmedidaméitte sobre o primeito mo- mento da fala humana, embora reconhecamos que se trata’ de um tema fascinante. As teorias do proprio Frazer cram, certa- mente, muito menos superficiais do que as su- geridas (pelos mit6logos. Em lugar de ver 2 ‘hhumanidade primitiva como paralisada de es- panto pelos seus primeiros © canhestros esfor- gos para talar, Frazer prefere vé-la na contem- plagéo dos iesmos temas que os cristios de sua pr6pria poca, E por isso que cle pode falar da deusa virgem Diana ao mesmo tempo em que fala da Virgem Maria e evocar os deuses imolados ¢ as divindades: encarnadas sob a perspectiva da teologia cristé. Gracas a sua formacdo e ao respeito pelas religides, ele tem 0 cuidado de’nfio ofender. No procura humilhar 08 cristos nem causar-Ihes constran- gimentos, Mas também néo tenta proteger a doutrina deles dos” ataques cientificos. Para Frazer, a chave do entendimento futuro esté na ciéncia, nfo na religiZo ou na magia. Muitos concordario com ele: hé progresso na ciéncia, hé prova de transformacio cumulativa, mas, na religiéo, as verdades reais parecem ser as ver- dades antigis, © h4 um esforgo permanente para reconquistar e proteger uma visio antiga © ameacada, Apesar de tudo isso, Frazer nfo pode fugir a. acusagéo, de superficialidade. Ele preferiu ocupar-se de reflexes sobre a vida e a morte, a humanidade e a animalidade, a divindade'e a imortalidade. “Que estreiteza de vida espi- ritual. encontramos em Frazer”, diz Ludwig Wittgenstein, “é, em conseqiiéneia disso, como Ihe foi.imposs{vel compreender um modo’ de Vida diferente'do modo.de vida inglés. de sua épocal” (“Remarks on Frazer's Golden bough”, The Human World, maio de 1971). Trata-se, em parte, de uma questo de estilo. Quando escreve com espitito, a idéia é bem apresenta- da e bem transmitida, mas quando Frazer ado- ta 0 tom sblene,'h4 algo que soa pomposo ¢ mesmo falso..2 como se Frazer soubesse que 13 € facil ironizar a religiao dos outros, e tentasse evitar 0 solecismo adotando uni tom de voz untuoso. Mas a superticialidade no é a diferenga que separa a antropologia moderna do ponto de vista de Frazer. Nenhum antropélogo moderno, por mais sensfvel que séja, pode aplicar os ins- trumentos de seu oficio a um sistema religioso estrangeiro e escapar totalmente & mesma cri- tica. Os mais modernos instrumentos de ané- lise so necessariamente imperfeitos, o que re- velam é parcial, a visio final 6 tosca. e, com freqiiéncia, cética. A diferenga essencial esté em que 0 antropélogo moderno pretende estu- dar um sistema simb6lico, ao passo que Frazer dé menos énfase & simbolizagio consciente e mais aos erros inconscientes sobre a, realidade fisica. Citando novamente os comentfrios de Wittgenstein sobre Frazer: “Vejo, enitre muitos exemplos similares, o de um rei’ da chuva-na Africa a quem 0 povo recorre para que faca chover, quando chega a estacdo chuvosa. Mas isso significa, sem diivida, que nfo acreditam que ele possa realmente fazer chover, pois se acreditassem pediriam chuva nos perfodos de seca, durante os quais a terra é ‘um deserto crestado e drido’. Pois mesmo que suponhamos ter sido a estupidez que outrora levou as pes- soas a instituir esse cargo de rei da chuva, ainda assim 6 evidente que elas sabiam, pela expe- rigncia, que as chuvas comegam em marco e que a obrigacio do rei da chuva era desempe- har suas atribuicoes em outros periods do ano, Ou ainda: ao amanhecer, quando o sol esté na iminéncia de surgir, celebram-se os itos do comeco do dia, mas 0 mesmo no ocor- ye ao anoitecer, quando apenas s¢ acendem as Tampadas”. Embora Frazer reconhecesse. nfo ser o'ritual automaticamente eficiente como um tito magico, toda a forca de seus argumentos est yoltada para descobrir 0 modo de pensar caracterfstico dos primitivos. A abordagem moderna do problema esco- Ihido por Frazer d4 énfase ao aspecto simbé- lico do comportamento humano, aos ritos de icelebragdo, sem insistir demais em distinguir (0 gue & simbélico e o que é prético, tarefa | muito mais dificil do que parece. O antropélo- go se detém na cultura local como se fosse 14 um,sistema completo, com todas as suas expli- cagdes contidas em si mesmo, Nao pula de uma cultura em Bornéu para outra no Peru ‘ou'na Roma’ antiga, pois nao supde que isso eve a respostas adequadas. A primeira coisa a fazer 6 compreender um sistema cultural co- mo uma maneira racional de comportamento Para pessoas que se conhecem que partem dos mesmos pressupostos: A crenga em demé- nios ¢ deuses, feiticeiros e poderes misteriosos de abencoar e amaldigoar, tem sentido se co- nhecemos a totalidade do contexto no qual é usada. A maior diferenca:com relégto 4 ma neira pela qual Frazer apresenta o problema est na suposigdo de que todas as crengas tém emprego ativo. Ele pensava que as creneas se estruturavam de maneira contemplativa, como numa ligo de catecismo dominical. Hoje, é mais comum traté-las como objeto de utiliza so prética, no aqui e agora da agitacho da vida social. Assim, quando se acredita’que um rei 6 capaz de fazer chover, sendo essa a sua principal responsabilidade perante seu povo, 0 interesse politico se focaliza no momento em que a chuvg tarda — estarla ele aborrecido? Teria alguém cometido uma ofensa contra 0 reino, que o rei © seus ancestrais puderam pereeber? Se assim for, o crime deve ser re- velado imediatamente, confessado e expiado, para que o rei se acalme ¢ libere as nuvens de chuva. A rivahidade dinéstica reveste-se de especial interesse politico. Suponhamos que a seca persista porque a coroa foi tomada pelo rei errado, que expulsou o rei de direito, de- tentor do poder de fazer chover. O farsante deve ser desmascarado © 0 herdeiro legitimo, instalado no trono. Vemos assim como as idéias sobre a magia da chuva podem ser uti- lizadas politicamente, constituindo uma’ espé- cie de prova meteorolégica da legitimidade po- Wtica. B essa a tendéncia atual na interpreta- so da magia. .O exemplo mostra o campo de agio para o ceticismo e para a redugo da rica tessitura de crencas que uma cultura estran- geira oferece & andlise. A tarefa de compreen- der tomou-se muito’ mais dificil do que antes. Em lugar de tentar compreender a totalidade, 08 antropélogos tendem hoje a isolar um frag- mento ¢ a desenvolver instrumentos refinados para a sua interpretagio. H4 uma concentra- go nos instrumentos, nos métodos e, com isso, uma humildade que equivale, a duvidar se poderemos jamais compreender outra cultura. Por enquanto o problema fundamental que interessava o$ contemporaneos de Frazer de maneira tao apaixonada esté posto de lado. Exsses contemporineos realmente acredita- vam que as grandes crueldades cometidas pelo homem contra 0 préprio homem eram coisa do pasado. Sentiam-se indignados com a pré- tica de sactificios humanos ou com o caniba- lismo ritual, e surpresos de que alguém pudes- se acreditar em fantasmas sugadores de sangue ou num céu habitado por divindades amantes das orgias ¢ que toleravam atrocidades. Eram miuitas as crucldades que o homem:praticava contra o homem na-década de 1890, mas nos- sos sdbios daqueles dias viviam vidas muito protegidas. Podiam’ ter esperancas em relagiio & evolugo humana. E dificil, para nés, com- preender até que ponto a elite intelectual. podia estar protegida e provida de antolhos. Até mes- mo aos professores universitérios era poupada a confrontagao direta com os alunos. O pré- prio Frazer, depois de nomeado para a cétedra de antropologia social de Liverpool, nio tardou a concluir que the era mais conveniente tra- balhar doze horas por dia em suas pesquisas no Trinity College, em Cambridge, embora nao Ihe tenha parecido necessario renunciar & cé- tedra de Liverpool. ‘Houve uma modificagdo em nossa conscién- cia. Duas guerras mundiais ‘contribufram’ para abalar'a confianca na bondade humana; uma profundidade maior marca a percepefo que te- mos de nosso potencial de agir cruelmente e de nossa propria cegueira para com a crueldade que nos cerca. Vivendo com-a guerrilha urba- na, as explosdes de. bombas ¢ © terrorismo aberto, nfo podemos acreditar que o livro da Joucura humana tena sido fechado. Isso faz uma certa diferenca. "Quem criticar Frazer, hoje, est4 criticando nfo tanto um autor, mas, todo 0 perfodo que ele representou, hé cerca de cem'anos. Por. si s6, essa jé € uma boa raziio para ler O ramo de ouro. Nio ha muita certeza de que 0 ponto de observagiio a partir do qual yoltamos 0 olhar para aquela época.esteja cla- ramente acima dela. Temos a nossa prépria auto-estima ¢ arrogincia, que nos caracterizam como membros de nossa civilizacio. Por exem- plo, certas pessoas, entre nés, se chocam com. ‘a observagio de Frazer de que o homem igno- rante e pouco inteligente tende a acreditar na magia. Espantar-se.com isso, porém, pareceré antes uma atitude um tanto acanhada para quem estiver convencido da superioridade in vencfvel de nossa citncia modema. Dentro de menos de cem anos, as nossas atitudes parece- rio tio patemalistas, quanto as de Frazer. J4 entdo, poderemos ter conhecido pessoas que ignordim a cigncia, mas sfio perfeitamente ver- sadas no significado dos sonhos, ou capazes de falar com animais, ou de controlar seu pen- samento © seu .corpo ‘gragas a aptidées que nossa cifneia' 6 incapax de compreender. Mary Douglas 15 Prefacio & edigéo de 1911 Quando me ocorreu a idéia do trabalho cuja primeira parte € agora entregue’ a0 piiblico, numa terceira edi¢Zo ampliada, minha inten- gio era simplesmente explicar a estranha rogra do sacerdécio ou da realeza sagrada de Nemi ¢,com ela, a Ienda do ramo de ouro, imorta- lizada por Virgilio, que a voz dz Antiguidade associon ao sacerdécio. A explicagio foi-me sugerida por certas regras similares, antigamen- te impostas aos reis do sul da India, e, a prin- cfpio, pareceu-me que ela poderia ser exposta, adequadamente, dentro dos limites de um pe- queno volume. Verifiquei logo, porém, que, na tentativa de solucionar uma questo, eu havia Ievantado muitas outras: perspectivas cada vez mais amplas se abriam A minha frente; passo @ passo, fui levado a dominios sempre mais vastos do pensamento primitivo, pouco explo- rados pelos que me precederam. O livro cres- ceu em minhas maos e, dentro em pouco, o ensaio projetado se transformava, na realidade, num volumoso tratado, ou, antes, numa série de dissertagdes separadas, mal aliahavadas por um ténue fio de conexdo com meu tema origi- nal. A cada edigdo sucessiva, essas dissertagSes cresceram em mémero e engordaram em volu- me com o acréscimo-de material novo, até que © fio que as unia’ afinal ameagou romper-se sob 0 sett peso. Assim sendo, é seguindo a su- gestéo de um critico cordial, resolvi dividir meu agigantado livro em seus elementos cons- ituintes e publicar separadamente as varias dissertagSes de que ele se compe. Os volumes presentes, formando a primeira parte do todo, contém uma pesquisa picliminar dos princi- pios da magia ¢ da cvolucdo.da realeza sa- grada emgeral. A eles se seguird, proxima- mente, um Yolume que examina os principios do tabu em sua aplicaco particular aos reis, sagrados e aos reis sacerdotes. O restante da obra seré dedicado principalmente ao mito e a0 ritual do deus que morre ¢, como o assunto 6 amplo e fecundo, a anflise que dele farei se 16 dividiré, por uma questo de comodidade, em varias partes, das quais uma, que trata de al- guns dos reis que morrem na Antiguidade, no Egito e na Asia ocidental, jé foi publicada sob 0 titulo de Adonis, Autis, Osiris. Embora eu tenha procurado organizar meu livro, em sua forma prépria, como uma cole- G0 de ensaids sobre varios tépicos distintos mas relacionados exitre si, ao mesmo -tempo preservei-the a unidade, tanto quanto possivel, conservando 0 titulo original em toda a série de volumes ¢ observando, de tempos em tem- pos, a relacZo que minhas conclusoes gerais tém com o problema especifico que constituiu © ponto de partida da pesquisa. Essa apre- sentagdo do assunto pareceu-me oferecer cer- tas vantagens que superavam as desvantagens Obvias. Deixando de lado a forma austera, mas sem prejudicar, ao que espero, a substancia s6lida de um tratado cientifico, procurei dar ao meu material uma aparéncia mais artfstica € com isso talvez.atrair leitores que poderiam ter sido afastados por uma disposic¢ao mais rigidamente légica e sistemética. Foi assim que resolvi trazer, 0 misterioso sacerdote de Nemi ao primeiro plano do quadro, por assim dizer, agrupando outras Iigubres figuras do mesmo tipo por trés dele, num segundo plano, ndo certamente porgie as considerasse menos im- portantes, mas porque o pitoresco do ambiente natural que cerca o sacerdote de Nemi, em meio As colinas arborizadas da Itélia, o préprio mistério que 0 envolve e sobretudo a magia sedutora do verso de Virgilio, tudo se combina para cercar de enéanto’o vulto trégico que guarda o ramo de ouro, e tornd-lo digno de figurar no centro de uma tela sombria. Espero, porém, que o alto-relevo em que foi esculpido nessas minhas paginas nfo leve meus leitores a exagerar-Ihe a importincia hist6rica em com- paragio com a de algumas outras figuras que esto por trés dele, escondidas nas sombras, ou a atribuir 4 minha teoria do papel por ele ‘de- varam: sempenhado um grau de probabilidade maior do que ela merece. Mesmo que se tornasse evidente que esse velho sacerdote italiano deve, afinal de contas, ser riscado do longo rol de homens que se mascararam de deuses, essa ‘inica omissfo no invalidaria dé maneira sig- nificativa a demonstracdo, que espero ter feito, de que os pretendentes humanos a divindade foram muito mais comuns, e sens crédulos ado- radores muito mais numerosos do que até en- to se supuaha, Da mesma forma, mesmo que minha teoria sobre esse caso especifico d morone — ¢ reconheco plenamente a fra; dade dos alicerces que a sustentam —, sua queda dificilmente abalaria as minhas conchi- sbes gerais relacionadas ‘com a evolugio da religifo ¢ da sociedade primitivas, que se ba- seiam numa ampla coleta de fatos totalmente independentes e bem autenticados. Amigos versados na filosofia alema obser- que minhes opiniSes sobre 2 magia © a religifo, suas relacdeg mituas na histéria, tém certa margem de concordincia com as de Hegel. Tal concordancia é totalmente fortuita ¢ inesperada para mim, pois nunca estudei os escritos desse fil6sofo, nem freqiientti suas es- peculagGes. Mas como chegamos a resultados semelhantes por caminhos muito diferentes, a coincidéncia parcial:de nossas conclus6es tal- vez possa ser tomada como uma razio para presumir em favor de sua verdade. Com relago a hist6ria da realeza sagrada, que delincei nestes ¥olumes, desejo repetir uma adverténcia feita no texto. Embora eu tenha mostrado haver razdes para se acreditar que, em muitas comunidades, os reis. sagrados evo- Iufram’a partir dos magos, estou Jonge de pre- tender que tal suposi¢do possa ter validade universal. As causas que determinaram o esta- belecimento da monarquia variaram muito, si divida, nos diferentes paises e em diferentes épocas: nao pretendo discutir ou sequer enu- merar todas elas, Escolhi simplesmente uma causa particular porque se rélacionava diret mente com minha pesquisa especifica, ¢ d Ihe €nfase porque:me pareceu ter sido ela es- quecida.por autores que se ocuparam da ori- gem das’ instituig6es politicas, autores esses que, embora sébrios:e racionais pelos padrées modemos, nfo deram, em suas exposigées, peso suficiente & enorme influéncia que a su- perstigfo exerceu na conformagio do passa- do da humanidade, Nao quero, porém, exa- gerar a-importancia dessa causa.particular, as expensas de outras que podem ter sido igual- mente influentes, ou mais ainda, Ninguém pode ter maior consciéncia do que eu do risco de levar demasiado longe uma hip6tese, de amon- toar uma multidao de casos particulares incon- gruentes, sob uma formula estreita, de reduzir a vasta, a inconcebfvel complexidade da na- tureza ¢ da histéria a uma aparéncia enganosa de simplicidade te6rica. Bem posso ter errado. nessa direg&o, repetidas vezes; mas pelo me- nos tive pleco conhecimento do perigo de erro ¢ lutei para proteger-me, ¢ aos meus Ieitores, . contra ele. Até que ponto tive éxito neste, © em outros objetivos: que fixel para mim a0 escrever esta-obra, deixo A imparcialidade do piiblico decidir. 3.G. Frazer 17 Em Nemi, perto de Roma, havia um santudrio onde, até os tempos imperiais, Diana, deusa dos bosques € dos animais e promotora da fecundidade, era cultuada com o seu consorte masculine, Virbio. A regra do templo era a de que qualquer homem podia ser 0 seu sacerdote ¢ tomar o titulo de rei do bosque, desde que primeiro arrancasse um ramo — 0 ramo de ouro — de wma certa érvore sagrada do bosque em que ficava o templo e, em seguida, matasse o sacerdote. Era essa @ modalidade regular de sucessiio no sacerdécio. O objetivo de O ramo de ouro é responder a duas perguntas: por que o sacerdote tinha de matar seu predecessor, € Por que devia, primeiro, colher 0 ramo? Como nao hé uma résposta simples para nenhuma das duas perguntas, Frazer recolhe e compara analogias com 0 costume de Nemi. Mostrando a existéncia de regras semelhantes em: todo 0 mundo e através de toda a historia, ele espera chegar d compreensao da maneira pela qual a mente primitiva funciona para, a partir dessa compreensio, langar luz sobre a regra do santudrio de Nemi. Ao recolher analogias, Frazer no busca paralelos totais, mas divide a tradic@o de Nemi em suas partes componentes, examinando-as uma a uma. Na verdade, cada uma de suas descobertas estabelecidas como evidencias pode ser usada em relagio a mais de um aspecto da questo. 18 Em todo O ramo de ouro, o interesse de Frazer se volta para a maneira pela qual © pensamento primitivo busca controlar e regular 0 mundo. De acordo com ele, 0 problema da causalidade — como uma coisa afeta outra — pode ser enfrentado através de dois tipos-de associagao. O primeiro é a associagdo pela similaridade, isto 6, uma causa se assemetha ao seu efeito. Por exemplo, uma pessoa que deseje fazer mala um inimigo destruiré uma imagen: dele, na esperanca de que isso tenha repercussdes sobre @ pessoa visada. A segunda é a associagao por contisitidade, isto é, as coisas que estiveram juntas € foram depois separadas continuam a manter uma relacao de influéncia miitua. Nesse caso, um objeto pessoal do inimigo seré destruldo, e no a sua imagem. Essas duas' modalidades de associagao também se aplicam & prépria estrutura de O ramo de ouro. Em sua selecao de evidéncias, Frazer relaciona o sacerdécio de Nemi com aquilo que Ike & semelhante em outras culturas € outros periodos, isto é, personagens sagradas que eram mortas, ritualmente ou nao, € com o que Ihe E contfguo, como, por exemplo, a natureza da deusa de Nemi, os mitos do lugar do culto e suas observancias religiosas. Hé, portanto, uma ligacéo crucial enire as evidéncias de Frazer e seu método de interpretd-las, entre a prética e a teoria. Parte 1. A arte da magia e a evolucdo dos reis Frazer comega descrevendo a regra de acesso ao sacerdécio de Nemi para passar em seguida ao estudo da magia. A magia é relevante para a resposta a pergunta: porque o rei tem de morrer (o deus que morre)? Mas também ajuda a esclarecer o papel do rei do bosque durante sua existéncla, pois a magia € um meio de controlar a natureza &, portanto, uma fungao essencial do offcio real. Frazer distingue dois tipos de magia: @ magia imitativa (ou por similaridade) — a chuva caird depois de uma ceriménia que, de certa maneira, a imita; e a magia contagiosa (ou por contigitidade) — um amante pode conquistar a afeigdo de sua amada langando um encantamento sobre mechas do cabelo dela. Em seguida, Frazer explora a significagio do bosque de Nemi , mais particularmente, da drvore da qual o pretendente ao oficio de sacerdote tinha de arrancar um ramo. E consia que, em multas soctedades, atribuem-se poderes fecundantes ds drvores, ¢ que, na Europa antiga, 0 carvatho era, sob esse aspecto, a mais importante delas. £ adequado, Portanto, que Diana, deusa da fertilidade, tenha um santudrio num bosque, ¢ deduzimos que sua drvore sagrada deve ter sido um carvatho. Virblo, parceiro de Diana no “santudrio, aparece como uma manifestagdo local de Tiipiter, 0 deus do carvatho e do céu, € 0 rei do bosque como a encarnagao humana desse deus. Mages ¢ name tim podees extaoradios pare ajudar e proteger os feres hamancs porque fodem entender-ze com esplitos invisivels de todos os tipos e enirentilos. Estes poderes se manifestam tanto em atos como em atributos, Assim, esse xama da Florida do séevlo XVI é retsatado com um pésstro ‘ma atitude de quem levanta vo, De Bry, América, 1590, Bodleian Library, Oxford. -| 19 1. O rei do bosque lake that sleeps Beneath Aricia's trees — Those trees in whose dim shadow The ghastly priest does reign, ‘The priest who slew the slayer ‘And shall himself be slain.” * ‘Macautay Diana e Virbio Quem niio conhece o quadro de Tumer sobre © ramo de ouro? A cena, banhada do brilho dourado da imaginacfo com que Turner im- pregnava c transfigurava até mesmo a mais bela paisagem natural, é uma visic onfrica do lago silvestre de Nemi — “Espelho de Diana”, como cra chamado pelos entigos. Quem tenha visto aquela 4gua calma 20 fundo de uma de- pressio verdejante dos montes Albanos, jamais poderd ésquecé-la, As duas aldeias caracteris- ticamente italianas que dormem as suas mar- gens, € 0 paldcio igualmente italiano cujos jar- dins aterragados descem em declive acentuado até o lago, nao chegam a perturbar a trangii lidade, a solidio mesmo, desse “cendrio. A propria Diana ainda poderia vagar por essas margens solitérias, cagar ainda nessas florestas. Aqui, no préprio coracio dos montes verde- jantes, sob o declive abrupto hoje coroado pela aldeia de Nemi, a deusa silvestre Diana tinha um antigo e famoso santudtio, freqiien- tado por peregrinos de todas as partes do Lé- cio, Era conhecido como o bosque sagrado de Diana Nemorensis, ou seja, Diana dos Bosques. Lago € bosque etam por vezes chamados de Arfeia, nome da cidade mais préxima, Mas esta, a Aricia moderna, est4’a cerca de cinco quilémetros de distancia, a0 pé dos. montés, separada do Iago por um longo e acentuado declive. O-santuério estava'situado num espa- + “Imével dorme o cristalino lago /'De tricia sob as 4rvores, / a cuja sombra nemorosa reina / OQ Iivido sacerdote, 7 Aquele que matou um matador, / E por ‘sua vez morio serd."(N. do T.) 20 oso terraco, ou plataforma, limitado ao norte ¢ a leste por grandes muros de sustentagdo que penetravam nos flancos do monte ¢ os firma- vam, Nichos semicirculares cavados nesses muros; com colunas a sua frente, formavam uma série de capelas que, nds tempos moder- nos, produziram uma rica seara de oferendas votivas. Do lado do lago, ‘0 terrago repousava sobre forte muralha, com mais de duzentos metros de comprimento e nove metros de altu- ra, construfda sobre botaréus triangulares, como os que vemos diante dos pilares das pon- tes © que se destinam a romper o gelo flutuan- te. Nos dias de hoje, muro e terrago ficam a algumas centenas de metros do‘lago; outrora, seus botaréus podem ter sido banhados pelas fguas. Se comparado com as proporeées do sitio sagrado que 0 rodeava, o templo em si ndo era grande, mas suas ruinas mostram que era de construcio limpa e slida, de blocos macigos de peperino? e adornada de colunas déricas do mesmo material. Complicadas cor- nijas-de mérmore ¢ frisos de terracota conti bufam para o esplendor externo do edificio, que parece ter sido ainda mais ressaltado por telhas de bronze dourado, Uma grande quantidade de estatuetas de Dia- na, devidamente vestida com a tinica curta © 98 altos coturnos de cacadora, a aljava penden- te do ombro, foi encontrada no local. Algumas delas representam a deusa com o arco nas midos ou um cao de caca ao lado, Langas de bronze de ferro e imagens de veados e corcas encoh- tradas ao redor do santuério podem ter sido oferendas de cacadores & sua deusa, destinadas a propiciar 0 éxito na caca. Da mesma forma, tridentes de bronze, também encontrados em Nemi, talvez tenham sido levados por pesca- dores do lago, ou mesmo por cagadores que haviam Ianceado javalis nos bosques, pois esse animal foi. cagado na Itélia até o fim do sé- * Rocha granulada, sedimentéria e yuicnica, cor de plmenta, muito comum na regia romana (N. do T) ‘A senhorn dos animats © culto da deusa alada que segura leSes fol trazido do Oreste Prgrimo para a ii no ilo dos tempos, Ietéricos. Na Grecia ma, essa antiga divindade da floresta fof ndorade como Dian, & tetera dos casadores Abaixo. Diana com sevs le, num colar de ouro de odes, séenlo VITt a.C3 British Museum, Londres ABAIO, h ESQUERDA. Friso em terracota do Templo gp Diane om Nem. Castle Museum, Nottigharn. Foto publicada originalmente em G. H. Wallis, Glasscal antiquities from: Nem, 1893 anArKo, 1 DIRETA. O Imperador Trajano faz um crt 2 depois da caca, Medalhfo do Arco + de Constantino, em Roma. Foto: Anderson, 21 culo primeiro da nossa era: Plinio, 0 Jovem, com a sua habitual ¢ encantadora afetacio, nos conta como estava sentado junto as redes, meditando e lendo, quando trés jevalis foram por elas colhidos. E mesmo mil ¢ quatrocentos anos depois, esse género de caga era ainda passatempo favorito do Papa Leo X. Um fri- so de terracota com relevos pintados encontra- do no santudrio de Nemi, e.que pode ter ador- nado o Templo de Diana, retrata a deusa sob a forma conhecida como Artemis Asiética, com asas que lhe saem da cintura e um lefo com a8 pata’ pousadas em seus ombros. Algumas toscas imagens de vacas, touros, cavalos e por- cos, desenterradas no local, talvez indiquem ter sido Diana ali adorada também como pro- tetora dos animais domésticos, além ‘dos ani- mais selvagens do bosque. ! Até 0 declinio de Roma, observou-se em Nemi um costume que nos parécs remontar (imediatamente da civilizagio para a barbéri Havia no bosque sagrado uma certa arvore, em toro da qual, a qualquer hora do dia ¢ provavelmente até tarde da noite; uma figura sombria podia ser vista rondando de guarda. Levava na migo uma espada nua ¢ todo o tem po olhava cautelosamente A volta, como se esperasse ser atacada a qualquer morbento por um inimigo, Era sacerdote e assassino, e 0 ho- mem a quem espreitava iria maté-lo, mais cedo ou mais terde, para ocupar seu Jugar como sacerdote, Era essa a regra do santudrio, O candidato a0 offcio sacerdotal s6:poderia as- cender a ele matando o sacerdote e, concluido © assassinato, ocupava © posto até chegar a sua vez de set morto por alguém mais forte ou mais habil. verdade que esse posto, em que ele se instalava téo precariamente, conferia © titulo de rei: mas certamente nenhuma cabe- ga coroada jamais esteve tio pouco segura sobre 0s ombros, ou foi visitada por piores sonhos, do que a sua. Ano apés ano, no verdo ou no inverno, com bom ou mau tempo, o rei do bosque tinha de, manter sua solitéria vigilancia e, toda vez que se arriscava a um sochilo agitado, fazia-o com perigo de vida, | Avestranha regra desse sacerdécio néo tem | paralelo na Antiguidade cléssica, que néo a J explica, Para compreendé-la teremos de nos 22 aventurar mais longe. Ninguém negaré,_prova- velmente, que’ esse costume tem o sabor de uma idade barbara ¢, tendo sobrevivido até 0s tempos imperiais, contrasta, por seu notével isolamento, com a refinada ‘sociedade italiana da época, como uma rocha primeva que se erguesse num terreno perfeitamente aplainado, B a propria crueza e barbarie do costume que nos permite a esperanga de encontrar a sua explicagio, Pesquisas recentes sobre a histéria remota do homem revelarem uma similaridade essencial subjacente as muitas diferencas su- perficiais na forma pela qual a mente humana elaborou a sua primeira ¢ imperfeita filosofia de vida. Assim sendo, se pudermos mostrar que um costume bérbaro, como o do culto de: Nemi, existiu’ em outros lugares; se pudermos perceber os motives que levaram a sua institui- co; se pudermos provar que esses motivos existiram de mancira geral, talvez universal- mente, na sociedade humana, produzindo, em circunstincias vatiadas, numerosas instituigdes especificamente diferentes, mas genericamente semelhantes; se pudermos mostrar, finalmente, que esses mesmos motivos, com algumas das instituigdes deles derivadas, existiram efetiva- mente na Antiguidade clssica, entio podere- ‘mos deduzir, com justeza, que numa época - mais remota deram origem a regra de acesso ao sacerdécio de Nemi, Essa dedugio, a falta de evidéncias diretas de como esse sacerdécid na verdade apareceu, jamais. poderé ter pre~ tensdes A comprovacio. Sera, porém, mais ou menos ‘provivel’ dependendo das proporgies em que satistaca as condigSes que indicamos. © objetivo deste livro 6, atendendo a essas condigées, oferecer uma explicagéo provével do sacerdécio de Nemi. ‘Come¢amos expondo os poncos fatos e len- das que chegaram até nés relacionados com 0 assunto, De acordo com um dos relatos exis- tentes, 0 culto de Diana em Nemi foi instituido por Orestes, que, depois de matar Toante, rei do Quersoneso Téurico (a Criméia), fugiu com sua irmé Ifigénia para a Itilia, levando a ima- gem de Diana Téurica escondida num feixe de gravetos, Quando morreu, seus ossos forara le- vados de Aricia para Roma ¢ enterrados diante do Templo de Saturno, no monte Capit6lio, a0 Diana, deusa da natureza Cimureta, ramalhetes de arruda em prata, com simbolos mégicos, foram considerados como um Femanescente do culto de Diana. Na Teélia do sfculo XIX, ainda eram usados como ialisma para atrair boa sorte e prosperidade, H4 dois mil anos, objetos semelhantes eram oferecidos a Diana. Na ema romana, Diana segura um ramo e uma vasilha com frutas, Ao seu lado, a corga sagrada. NO ALTO, Cimurata, século XIX, Pitt Rivers Museum, Universidade de Oxford. AcIMA: Gema. Antikenmuseum, Bildarchiv. Preussischer Kulturbesitz, Berlin Ocidental. Foto: Isolde Luckert. lado do Templo da Concérdia, O ritual san- grento, atribuido pela lenda a Diana Téurica, € conhecido dos Ieitores dos clissicos: todo estrangeiro que. desembarcava nas praias da Téurida era sacrificado em seu altar. Transpor- tado para a Itélia, porém, o rito assumiu for- ‘ma mais moderada. Dentro do santuério de Nemi crescia uma certa frvore da qual nao se podia cortar nenhum galho. S6 a um escravo fugido era periitido arrancar um de seus ra- mos, se 6 pudesse fazet. O éxito nessa tenta- tiva dava-lhe o direito de Iuter com 0 sacer- dote em combate. singular, e se o vencesse, passaria a reinar em seu lugar, com o titulo de rei do bosque (rex nemorensis). Segundo a opinifio geral dos antigos, o ramo fatfdico era aquele ramo de ouro que, por instrugdes da Sibila, Enéias arrancou antes de iniciar sua perigosa jornada ao mundo dos mortos.* Di- zia-se que a fuga do escravo representava a fuga de Orestes; seu combate com o sacerdote era uma’reminiscéncia dos sacriffcios humanos outrord oferecidos a Diana Téurica, Essa re- gra de sucesséo pela espada foi observada até os tempos imperiais, pois, entre suas outras loucuras, Caligula, achando que o sacerdote de Nemi j4 vinha ocupando o cargo hé muito tempo, contratou um rufiio mais forte para matéJo; ¢ um viajante grego que visitou a Itélia na época dos Antoninos observa que a dignidade sacerdotal ainda era o prémio da vitéria em combate singular. Hi ainda outros tracos marcantes que podem ser identificados no culto de Diana em Nemi. Evidencia-se,.pelas oferendas votivas encontra- das no local, que ela era considerada especial- mente como uma cagadora e, em seguida, como propiciadora de fertilidade para homens e mulheres, proporcionando a estas titimas um parto fécil. Também 0 fogo parece ter desem- penhado um papel destacado no seu ritual, pois durante sua festa anual, realizada a 13 de agos- to, na época mais quente do ano, em seu bos- que luziam imimeras tochas, cujo brilho aver- melhado se refletia no lago. E por todo 0 terri- t6rio da Itélia essa data era comemorada com ritos sagrados em cada lar. Estatuetas de bron- ze encontrad:s no local do templo representam 23 @ propria deusa com uma tocha na mio direita exguida, e as mulheres a eujas preces dera ouvi- dos vinham coroadas de grinaldas © condu- 10 trecho de Virgilio a. que Frazer se refere, ¢ 40 qual volta repetidamente no decorrer deste tivo, en contravse no canto sexto da Eneida, Respondendo ao ‘pelo de Enéias para que the ensine 0 caminho ¢ abra 5 portas sagradas do inferno, a Sibila diz (133-148): “Quod sf tantus amor menti, si tonta eupido est / bis Styaios innare lacus, bis nigra uldere / Tartara, ct insano tuuat indulgere labori, / accipe quae peragenda Prius, Latet arbore opaca /' aureus ef follis ef lento imine ramus, / Iunoni infernae dictus sacer; hune tegit omnis /'lucus et obscuris claudunt conuallibes umbrae. / Sed non ante datur telluris operta subire 7 auricomos quam qui decerpserit arbore fetus. / Hoc sibi pulchra suom ferri Proserpina.munus / institut Primo auolso mon deficit alter / aureus, et stmill frondescit uirga metallo. J Ergo alte uertiga oculs at rite repertum / carpe manu; namgue ipse facitigue Sequetur, / si fata uocant; aliter non uiribus ullie 7 luincere nee duro poteris conuellere ferro”. ("Se tent tio grande desejo, tal avider de atravessar dues veces 4s ondas do Estlge, de duas vezes ver 0 sombrio Tan, ‘aro, e se te agrada empreender essa tareja insensata, uve primeiro o que tens de jazer. Uni ramo, cuja fle. xivel haste ¢ as folhas sdo de ouro, oculta-se sob tone 4rvore copada consagrada a Juno infernal. Todo o bosque a protege, e 0 vale escuro a envolve com sua sombra. Mas é impossivel penetrar as profundezas da terra antes de ter arrancado da drvore o ramo de fo. "agen dourada, £ 0 presente que Prosérpina exige para a sua beleze. Arrancado 0 ramo, outro nasce, de ure como @ primeiro, e cuja haste se cobre dat mes. mas folhas de metal precioso. Assim, levanta os olhos « busca. Quando o tiveres encontrado, calhe-o com a mdo, segundo o rito: ele se soltaré facilmente por sf mesmo, se 0 destino te chama; se néo; nip haverd ferga que 0 possa dobrar, nem ferro que 0 passa ar ranear.") No caminko, Enéias encontra duct pombas que the serve de guia até a-drvore do ramo de ow, ro: “inde ubi uenere ad fouces graue olentis. Auerni, 7 tollunt se celeres liquidumgue per aera lapsac sedibus optatis gemince super arbore sidunt, / discolor unde auri per ramos aura refuleit. / Quale solet siftis brumali frigore uiscurn / fronde uirere nowa quod non sua seminat arbos, / et croceo feiu teretis clrcumdare truncos, / talis erat species auri frondentis paca? ice, sie leni crepitabat brattea uento. / Corripit © Aeneas extemplo auidusque refringtt / cunctantem, et uuatis portat sub tecta Sibyllae”. (201-211) ("Chegadas a8 gargantas pestilentas do Averno, elés se eleva com um bater de asas , deslizando no ar lmpido, pousam ambas no lugar sonhado, na drvore onde o reflexo dourado brilha e contrasta entre as folhagens. Como enire as brumas do inverno, no fundo do bos. que, 0 visco, estranho ds drvores que 0 abrigam, re nasce com folhas novas e envolvethe os tronces fe dondos cont seus fruios cor de agafrdo, a fothagem dourada surge na azinkeira cerrada e sucs folhas br. nantes balancam ‘ao vento ligeire. Enéias imediata- mente puxa-o para sie arranea avidamente 0 ramo que custa a desprender-se, e 0 leva a morada da Sibt- la") (N. do E) 24 zimido tochas acesas até o santuério em cum- primento de suas promessas, Um andnimo dedicou & deusa uma chama perene, numa pequena ermida em Nemi, pela seguranca do Imperador Cléudio e de sua familia. As lanter- nas de terracota encontradas no bosque talvez tenham servido a fins semelhantes, para pes- soas mais modestas. Se assim foi, a analogia com 0 costume catdlico de acender velas bentas nas igrejas serd Sbvia. Além disso, o titulo de Vesta, usado por Diana em Nemi, indica clara- Mente a manutengao de um fogo sagrado per- pétuo em seu saintudrio, Em sua festa anual, comemorada em toda a Itélia a 13 de agosto, os eées de caga eram coroados ¢ os. animais selvagens nfo eram mo- lestados; os jovens se submetiam a ceriménias purificadoras em sua honra. Bebia-se vinho e ‘comiam-se carne de cabrito, bolos servidos bem quentes em pratos de folhas e mags ainda pen- dentes dos ramos. A Igreja Cat6lica parece ter ‘Diana homenageada na vindima ‘cba. Cabeca eoroada de folhas ¢ cachos dle uvas, Oferenda votiva romana encontrada em Nemi, Castle Museum, Nowtingham. Foto publicada originalmente em G.H. Wallis, Classical antiquities from Nem. 1893, AO Lavo. Criangas com tochas e oferendas de uvas dante de uma imagem de Diana, Mural do Ostia, séoulo I, Vaticano, Roma, Foto: Anderson.

Você também pode gostar