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Infinitos e Infinitesimais:

Um problema matemático.

Felipe Sobreira Abrahão

Rio de Janeiro, RJ – Brasil


Junho de 2009

p. 1
Sumário

Introdução - p. 3

Capítulo 1: Breves considerações sobre as raízes históricas dos infinitésimos e do


infinito - p. 4

Capítulo 2: O Cálculo Infinitesimal de Leibniz – p. 7

Capítulo 3: A Formalização pela Teoria dos Limites – p. 11

Capítulo 4: A Insurreição dos Infinitos e Infinitesimais – p. 14

Conclusão – p. 17

Referências – p. 19

p. 2
Introdução:

“O infinito! Nenhuma outra questão tem tocado tão profundamente o espírito do


homem; nenhuma outra idéia tem estimulado de forma tão frutífera seu intelecto;
no entanto, nenhum outro conceito permanece com tanta necessidade de
esclarecimento que o de infinito” (Hilbert 1926, 163) 1

As noções de infinito muitas vezes nos levam a colher frutos do


paradoxo. Sobre isto, este trabalho pretende mostrar as várias características,
assumidas e construídas pelos pensadores da filosofia e da matemática, ao
longo da história, a respeito dos infinitésimos e infinitos.

Não há como separar absolutamente as noções de infinitamente grande


e infinitamente pequeno, chamadas, respectivamente, de Infinito e
Infinitésimo. Os dois conceitos estão atrelados por dois outros: o infinito não-
pensável – definido pela impossibilidade de se pensar infinitos elementos - e o
conceito de medida ou tamanho. De fato, por exemplo, classicamente, um
pode ser obtido pela definição do outro aplicando a operação inversa de
multiplicação. Por esse caminho confuso e, ao mesmo tempo, iluminador,
veremos que, mesmo depois da aritmetização da Análise Matemática e do
Cálculo Diferencial e Integral no século XIX, que adotou majoritariamente a
Teoria dos Limites deixando de lado a interpretação infinitesimal do cálculo,
Abraham Robinson introduz pela Teoria dos Modelos os números
infinitesimais e infinitos na Análise, seguindo, segundo suas próprias palavras,
os passos deixados por Leibniz e surgindo, então, uma nova área de pesquisa
em matemática pela Teoria dos Infinitesimais e outras abstrações como os
números Hiperreais e os Surreais, por exemplo.

1
JAHNKE, H. N. A history of analysis. Providence, RI: American Mathematical Society, [London]:
London Mathematical Society, c2003. 422 p. (History of mathematics,) ISBN 0821826239. p. 32

p. 3
Capítulo 1:
Breves considerações sobre as raízes históricas dos infinitésimos
e do infinito.

“O Cálculo teve sua origem nas dificuldades encontradas pelos antigos


matemáticos gregos na sua tentativa de expressar suas idéias intuitivas sobre as
razões ou proporções de segmentos de retas, que vagamente reconheciam como
contínuas, em termos de números, que consideravam discretos” 2(Boyer)

Começaremos descrevendo algumas características que os infinitésimos


e os, necessariamente correlatos, infinitos juntamente com suas concepções
fundamentais assumidas na história da Matemática.

Foram os gregos os primeiros a procurar a compreensão dos fenômenos


ligados ao infinito, ao contínuo e ao infinitésimo em busca de uma explicação
para o movimento e transformações dos seres. Porém, muito se relutou em
adotar plenamente o estudo de tais fenômenos como fonte real de
conhecimento como, por exemplo, era considerada a astronomia na época.

Possivelmente, a crise dos incomensuráveis, datada no seio da escola


pitagórica, veio a resultar, por meio das polêmicas entre os filósofos pré-
socráticos, em questões de diversas naturezas sobre o mundo físico. 3

Demócrito, aparentemente, no século quinto a.C., foi o primeiro a falar


sobre os infinitésimos com a sua doutrina atomista, na qual o mundo seria
todo composto de partículas infinitamente pequenas, juntamente com o
vácuo. 4 O atomismo transfere o problema metafísico sobre a imutabilidade e
mudança, conforme Parmênides e Heráclito, respectivamente, para o plano
físico. Com a inclusão do vácuo para explicar o movimento na natureza, a
teoria atomista trouxe, agregada a ela, a problemática da existência de um
não-existente (o vácuo verdadeiro). 5

Tais idéias geraram bastantes controvérsias, principalmente, na escola


filosófica de Eléia, pela influência das idéias de Parmênides. Estas chamavam a
atenção para as contradições e os paradoxos que surgiriam em torno de

2
BOYER, Carl Benjamin. The History of Calculus and its Conceptual Development. New York, Dover,
1959. 346 p., p. 4
3
Id., Ibid., p. 21
4
BOYER, Carl Benjamin. op. cit. p. 22
5
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 33

p. 4
considerar o mundo como composto por partículas infinitamente pequenas e
indivisíveis. Zeno, um aluno de Parmênides, ficou historicamente mais famoso
nessa problemática com seus quatro paradoxos sobre a impossibilidade do
movimento contínuo.6

Dentre esses paradoxos, o da Dicotomia e, semelhantemente, o famoso


Aquiles e a Tartaruga, ressaltam a impossibilidade de se percorrer uma
distância contínua, ou seja, divisível infinitamente, em um tempo finito. 7 Uma
solução para esse problema vem com o advento do cálculo diferencial e
integral: no aspecto físico, pela matemática da integração – a soma infinita de
partes infinitamente pequenas pode resultar numa quantidade finita em um
intervalo de tempo finito; no aspecto metafísico, pelas Mônadas de Leibniz – o
espaço contínuo pode ser constituído de partes indivisíveis, infinitamente
pequenas, sem necessidade do vácuo.

Muito se deve a Zeno e seus paradoxos sobre o dito Horror ao Infinito


que surgiu na cultura grega antiga, apesar de Hermann Weyl considerar que a
grande conquista dos gregos tenha sido a construção de uma interação
frutífera para a aquisição de conhecimento entre o finito e o infinito. 8 De fato,
eles mostram uma dificuldade inerente ao se compreender intuitiva e
logicamente as noções de infinito e infinitamente pequeno.

“As grandezas não são associadas a números ou pedras, mas a segmentos de reta.
Em Os Elementos os próprios inteiros são representados por segmentos. O reino
dos números continuava a ser discreto, mas o mundo das grandezas contínuas (e
esse continha a maior parte da Matemática pré-helênica e pitagórica) era algo à
parte dos números e devia ser tratado por métodos geométricos”. 9(Boyer)

Eudoxo, aluno de Platão, mesmo com seu Método da Exaustão não


propõe ir até o infinito para resolver algumas questões entre os números e
grandezas geométricas. Ele exclui o uso de infinitésimos com seu axioma
enunciado por Euclides e que acabará sendo conhecido, posteriormente, como
postulado de Arquimedes:

“se da maior subtrairmos uma grandeza maior que a sua metade, e do que restou
subtrairmos uma grandeza maior que a sua metade, repetindo esse processo

6
BROLEZZI, Antonio Carlos. A tensão entre o Discreto e o Contínuo na história da Matemática e no
Ensino da Matemática: O Par Discreto/Contínuo nas Idéias Fundamentais do Cálculo. 1996. 89 p.. Tese
(Doutorado) – USP, São Paulo, 1996.
7
BROLEZZI, A.C. Op. cit.
8
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 32
9
BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard
Blücher, 1974, 488 p., p. 87

p. 5
continuamente, restará uma grandeza que será menor que a menor grandeza
dada”. 10 (Euclides)

Aristóteles considerava o infinito somente como um potencial, um vir-


a-ser, e não como perfeito e real: “Uma sucessão de pontos não gera um intervalo”;
“Como os pontos estão contidos em um intervalo?” (Metaphysics, A 9, 992a). 11

Arquimedes de Siracusa, datado por volta do ano 287 a.C., incorporou o


Método da Exaustão em seus trabalhos mecânicos e físico-matemáticos de
forma mais ampla, por exemplo, achando a área sobre a parábola e
antecipando, dessa forma, mais de dezessete séculos os resultados do Cálculo
Integral. 12

Porém, como conclui Boyer, Arquimedes, ainda compartilhando do


Horror ao Infinito dos gregos e mesmo numa sensível tentativa de
fundamentar logicamente a idéia de infinito e infinitésimo, não expressa a
ideia de limite, pois suas considerações infinitesimais apenas eram usadas
para indicar o resultado, e não para prová-lo. 13

Galileu, que deixou as fundações da mecânica moderna (incluindo a


dinâmica), não temia o emprego de infinitesimais, conforme visto no “Discorsi”
(1638). Para ele, a linha contínua é um agregado de infinitos pontos, ou seja,
um infinito real. 14 Ele e outros, como Simon Stevin, Kepler e Fermat, ainda
vieram a dar contribuições para a matemática e para a física usando métodos
infinitesimais semelhantes ao de Arquimedes.

10
EUCLIDES. The Thirteen Books of Euclid's Elements. Trad. e com. por Thomas Little Heath. 2a ed.
New York, Dover, 1956. 13vols. em 3 vols. Vol. III, p. 14
11
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 34-35
12
Cf. BOYER, Carl Benjamin. The History of Calculus and its Conceptual Development. New York,
Dover, 1959. 346 p., pp. 49-50
13
Cf. BOYER, op. cit., p. 59
14
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 35

p. 6
Capítulo 2:
O Cálculo Infinitesimal de Leibniz.

“Podemos dizer assim que, em termos de tendência, ou estilo, Newton teria


chegado ao Cálculo pela via do contínuo, e Leibniz, pela via do discreto. Ambas as
maneiras de abordar o problema mostraram-se igualmente úteis, pois, enquanto
não estava estabelecida a noção de limites, as idéias de movimento contínuo e de
infinitésimos discretos surgiram como tentativas de esquematizar as impressões
sensíveis a respeito da variação”. 15(Brolezzi)

É remetido a Gottfried Wilhelm Leibniz (1646 – 1716 d.C.), nascido em


Leipzig na Alemanha, e igualmente ao seu contemporâneo Isaac Newton
(1642-1727), nascido na Inglaterra, a autoria do Cálculo Diferencial e Integral,
o qual os dois desenvolveram paralelamente entre as décadas de 1660 e
1680. 16 Mostraremos as principais características do Cálculo de Leibniz no
concernente primórdio da Análise e no tratamento distinto dos infinitesimais.

A problemática do infinitamente pequeno já se encontra justamente


nessa dualidade entre os criadores do Cálculo. Para Newton, conforme Boyer,
as noções estavam ligadas a uma propriedade Contínua, se satisfazendo com a
noção de Velocidade. 17As quantidades representadas pelas variáveis x e y nas
equações, por exemplo, eram consideradas como fluentes, sujeitas a uma taxa
de variação ou sendo fluxos. 18 Ele relutava em agregar infinitésimos como
constituintes das variáveis. Seu tratamento matemático era voltado para uma
descrição mecânica e cinemática, considerando a derivada uma velocidade
finita, e não propriamente uma razão entre infinitesimais. 19 É interessante
notar que Jahnke no seu livro “A History of Analysis” argumenta que o contínuo
a que tanto Newton quanto Leibniz se referiam não era o da reta real e sim o
geométrico e cinemático. 20

Em seu artigo de 1965 “Metafísicas do Cálculo”, apresentado em um


colóquio devotado à Filosofia da Ciência, Abraham Robinson analisa as
fundações do cálculo na história e percorre seus autores discutindo os

15
BROLEZZI, A.C. op. cit.
16
STROYAN, K. D. Introduction to the theory of infinitesimals. New York: Academic Press, 1976. 326
p. ISBN 0126741506. p. 3
17
BOYER, op. cit., p. 213
18
BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard
Blücher, 1974, 488 p., p. 290 – 291.
19
BROLEZZI, A.C. Op. cit. p. 30.
20
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 73-74

p. 7
aspectos matemáticos e ontológicos dos infinitesimais e dos infinitos. 21
Quanto a Newton e Leibniz, ele vê o primeiro numa tentativa de alguma forma
ambígua no tratamento do cálculo – hora por limites, hora por quantidades
ínfimas -, e ao segundo, explicitando claramente sua preferência pelo seu
ponto de vista, atribui uma tentativa clara e não ambígua de fundar o cálculo
incluindo quantidades infinitamente pequenas. 22

A distinção entre o cálculo de Leibniz e Newton, no entanto, se mostra


muito sutil. Jahnke defende que as diferenças entre eles não se devem calcar
sobre a sintaxe e a semântica de suas obras e que, assim como para A. R. Hall,
os dois desenvolveram simbolismos matematicamente equivalentes. Mas não
se pode negar o rumo pragmático distinto que os dois formalismos tomaram.
Para Sigurdsson, Bertoloni Meli e Jahnke, diferentes aspectos formais e
técnicos como esses levam, quase sempre, a diferentes direções de pesquisa,
tipos de conhecimento, métodos de ensino, formação matemática e filosofias
de suporte para um método, preferencialmente, do que para o outro. Um
exemplo disso é a cisão entre a escola Britânica, newtoniana, e a escola do
continente, leibniziana, na época. 23

Leibniz, também teólogo e filósofo, preferiu usar suas quantidades


infinitamente pequenas, em analogia às suas partículas metafísicas, as quais
ele chamava de Mônadas, em suas deduções do Cálculo. Acreditava que
Infinitesimais eram números ideais úteis para a arte da invenção matemática,
pensando-os como os números “imaginários” que são tratados
algebricamente, e mantendo as mesmas propriedades que os números
usuais. 24 O emprego de infinitésimos era visto como uma ferramenta
heurística, provavelmente, concordando com Newton sobre as variáveis
variarem continuamente e sobre as curvas serem suaves.25 Incluindo, também,
os números Infinitos dentro de seus números ideais, seu cálculo diferencial,
chamado de d-calculus, operava com a multiplicação e adição na obtenção dos
diferenciais, sendo estes quantidades infinitesimais. 26 Aplicava o símbolo d,
para a diferencial, e ∫, para uma “soma de algo”, sobre uma quantidade finita x
2
- ou sobre dx ou ∫x, se obtendo 𝑑𝑑2 x e ∫ 𝑥𝑥 e assim por diante- gerando, uma
quantidade infinitamente pequena e uma infinitamente grande,
respectivamente. 27 Dessa forma, o infinitamente grande era obtido
21
DAUBEN, Joseph Warren. Abraham Robinson: the creation of nonstandart analysis: a personal and
mathematical odyssey. ISBN: 0-691-03745. Princeton: Princeton University Press, 1995. p. 362 -366
22
Id., Ibid., p. 362 – 363, p. 422
23
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 96-97
24
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. op. cit.. p. 3-4.
25
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 96
26
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. op. cit.
27
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 89

p. 8
reciprocamente aos diferenciais, relacionando o sinal de integração e de
diferenciação pelo Teorema fundamental do Cálculo. Ele publicou suas regras
para o Cálculo Diferencial em um curto e complicado artigo de 1684. 28

“Leibniz quis basear seu cálculo diferencial e integral sobre um sistema numérico
que incluía quantidades infinitamente pequenas e infinitamente grandes. Mais
precisamente, ele considerou os novos números como familiares aos números reais
e afirmou que a introdução deles era útil para a arte da invenção”. 29 (Robinson)

Uma conotação instrumentalista é percebida nos textos de Leibniz,


assim como, nos de Newton. Questões ontológicas e lógicas sobre a existência
dos infinitésimos e legitimidade dos limites possuíam respostas similares nos
dois. Como comenta Yahnke, ambos consideravam que infinitesimais não
existiam, apenas eram ficções úteis para abreviar provas. O uso de
infinitesimais poderia ser completamente deixado de lado por demonstrações
baseadas no limite, sendo este último equivalente ao método da exaustão
arquimediano e bem fundado pelo conceito de continuidade. Apesar de alguns
leibnizianos defenderem a existência dos diferenciais, o próprio Leibniz os
considerava ficções sem significado, apesar de bem fundados, diferentemente
de Newton, que não concordaria que a matemática pudesse ser destituída de
significado, talvez, por isso, tendo evitado usá-los em seus trabalhos. Em
outros textos posteriores, o matemático alemão chegou a considerar os
diferenciais como abreviações simbólicas para o método dos limites. Newton
tomava uma posição similar a essa, dizendo que os infinitesimais eram apenas
atalhos para uma demonstração mais longa e rigorosa baseada em limites.
Para este, como comentado por Robinson anteriormente sobre sua
ambiguidade, os infinitesimais poderiam ser definidos como algo entre o zero
e o finito, num âmbito difuso entre o nada e a existência. No entanto, Leibniz
apenas aludiu à possibilidade de seu cálculo ser estruturado por meio de
limites, enquanto Newton explicitamente o desenvolveu por esse método, por
exemplo, no Principia e no De quadratura, nos quais se esforça para abolir os
infinitesimais. 30

Apesar da beleza e do poder demonstrado pelo método leibniziano,


com suas vantagens técnicas na sua notação e na sua difusão pelo continente
Europeu na época, as suas fundações lógico-analíticas ainda levavam consigo
contradições internas - se sujeitas a um criticismo mais severo. Vale à pena
tomar como exemplo o trabalho de Bishop Berkeley em 1734 sobre as
dificuldades da análise infinitesimal, que engatinhava naquele primórdio do

28
Id., Ibid. p., 90
29
ROBINSON 1963b, p. 285; Robinson 1979, 2, p. 99.
30
JAHNKE, H. N. op. cit. p. 97-99

p. 9
desenvolvimento do cálculo, criticando o uso do sinal de igualdade, enquanto
este liga um termo, contendo um limite, a outro termo qualquer – o que levou
à igualdade ser substituída pelo sinal de “tender” ou “ser infinitamente
próximo a” -, que culminou em um comentário de que os infinitesimais seriam
fantasmas de quantidades mortas. 31

31
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. op. cit.. p. 3-4.

p. 10
Capítulo 3:
A Formalização pela Teoria dos Limites.

[...]a completa aritmetização da análise só se tornou possível quando, como


Hankel previra, os matemáticos compreenderam que os números reais devem ser
encarados como “estruturas intelectuais” e não como grandezas intuitivamente
dadas, legadas pela geometria de Euclides. 32(Boyer)

Newton e Leibniz já tinham a concepção de que a análise, enquanto


fundamenta o cálculo diferencial e integral, estudando processos infinitos,
tratava de grandezas contínuas e, no entanto, que a teoria dos números
tratava de grandezas discretas. 33 No século dezenove veio a se concretizar a
fundamentação do cálculo diferencial e integral pela constituição da Análise
Matemática, no caso, a Análise Padrão.

Em 1826, Cauchy formaliza a noção de limites, dando uma definição


relativamente precisa e excluindo a necessidade do uso da geometria, de
números infinitesimais ou de velocidades. Enquanto muitos matemáticos
anteriores tinham pensado no infinitésimo como um número fixo muito
pequeno, Cauchy definiu-o claramente como uma variável dependente,
asseverando ser tão pequena quanto se queira, atingindo, então, o limite
zero. 34 Paralelamente a ele, Bernhard Bolzano (1781 – 1848), cunhado de “o
pai da aritmetização” por Klein, também desenvolveu idéias semelhantes, já
tendo percebido a necessidade do rigor na análise em 1817. Porém, seus
resultados só vieram a ser reconhecidos mais tarde que os de Cauchy. 35

Tentativas de demonstrações puramente aritméticas já tinham sido


tentadas por Bolzano, por exemplo, na álgebra, enquanto Klein via na recente
teoria dos conjuntos uma possível unificação dos aspectos discretos e
contínuos sob o conceito de grupo. 36

“O século dezenove foi de fato um período de correlação na matemática, e a


aritmetização da análise, frase cunhada por Klein em 1895, era um aspecto dessa
tendência.” 37(Boyer)

32
BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, Edgard
Blücher, 1974, 488 p.. p. 409
33
Id., Ibid., p. 404
34
Id., Ibid., p. 380
35
Id., Ibid., p. 408
36
Id., Ibid., p. 404
37
Id., Ibid., p. 404

p. 11
No cerne dessa nova proposta matemática estava o conceito de função,
ainda não definido e nem referido no cálculo de Newton e Leibniz. Foi no
esclarecimento deste conceito, por meio, principalmente, dos trabalhos de
d´Alembert, Euler, Bernoulli e Fourier (1768-1830), que surgiu a tendência da
aritmetização da análise. Há ainda os trabalhos de Dirichlet (1805-1859),
permeando as estranhezas e maus comportamentos das funções e séries e
dando contribuições no rigor de Fourier quanto à convergência de suas séries
e na aplicação da análise à teoria dos números. Bernhard Riemann (1826-
1866), um sucessor de Dirichlet, também conseguiu profundos teoremas
relacionando a teoria dos números com a análise clássica. O ano de 1872 foi
marcado por importantes contribuições na direção da aritmetização da análise,
ressaltando Méray (1835-1911), Karl Weierstrass (1815-1897), Heine (1821-
1881), Georg Cantor (1845-1918) e Dedekind (1831-1916).

Méray se engendrara pelos problemas de raciocínio circular nos critérios


de limite e de número real que vinham desde Cauchy e, talvez, tenha chegado
a resultados parecidos aos de Weierstrass contemporaneamente.

Cantor, em 1971, tinha iniciado um terceiro programa de aritmetização,


semelhantes aos de Méray e aos de Weierstrass, e, se estendendo pela teoria
dos conjuntos, chegou mais tarde a resultados tão paradoxais que ele mesmo
escreveu, em 1877, a Dedekind: “Eu vejo isso, mas não acredito”. 38 Porém,
surpreendentemente, apesar de aceitar a realidade de conjuntos infinitos,
desaprovava o emprego de magnitudes infinitamente pequenas – e, de fato, a
Análise tradicional ou padrão veio a ser a matemática das magnitudes
contínuas. 39

A noção de infinitésimo está atrelada a de contínuo e nesta última


questão a atenção do matemático Dedekind foi atraída desde 1858. Para
resolver o problema da definição de um intervalo de números reais, concluiu
que sua característica fundamental estava justamente na possibilidade da
divisão deste intervalo e não na sua densidade, construindo, pelo uso da teoria
dos conjuntos, sua definição por cisões na reta real, chamados de Cortes de
Dedekind. Dessa forma, observa Dedekind, os teoremas fundamentais sobre
limites poderiam ser provados sem recurso à geometria, apesar de ter sido ela
que indicou o caminho para tal definição conveniente por meio da aritmética
formal. 40

38
Id., Ibid., p. 404-406, 409-410, 415
39
JAHNKE, H. N. A history of analysis. Providence, RI: American Mathematical Society, [London]:
London Mathematical Society, c2003. 422 p. (History of mathematics,) ISBN 0821826239. p. 35
40
BOYER, Carl Benjamin. op. cit.. p. 410-411

p. 12
Houve uma lacuna de quase cinquenta anos entre a obra de Bolzano e
de Weierstrass, que não publicou suas idéias sobre a aritmetização da análise,
sendo divulgadas pelos estudantes Ferdinand Lindemann e Eduard Heine, os
quais assistiram suas aulas. Os resultados de Weierstrass, não só contribuíram
com uma definição satisfatória de número real, como também, com uma
definição melhorada do conceito de limite, publicada por Heine, e, apesar de
ter publicado seu primeiro trabalho reconhecido, no caso, sobre funções
abelianas, somente aos quarenta anos de idade, foi geralmente reconhecido,
durante o último terço do século, como o maior analista do mundo. 41

“A linguagem sem ambigüidades e o simbolismo de Weierstrass e Heine


expulsaram do Cálculo a noção de variabilidade e tornaram desnecessário o
persistente apelo a infinitesimais fixos. A “Idade do Rigor” chegara
verdadeiramente, substituindo os antigos artifícios heurísticos e os antigos
conceitos intuitivos por precisão lógica crítica[...] as definições de limite de uma
função encontradas em livros atuais são essencialmente as mesmas que Weierstrass
e Heine introduziram há quase um século. As chamadas provas por épsilons e
deltas são agora parte do instrumental comum dos matemáticos.” 42 (Boyer)

No entanto, esse aparente esplendor do rigor e formalismo, refletido em


toda ciência da época, nunca deixou de carregar consigo questões
interpretativas e, aparentemente, paradoxais quanto à epistemologia inerente
aos conceitos de continuidade, limite e discretude nos fundamentos do
cálculo, desde Newton e Leibniz, e, agora, na análise. 43 Como comenta Petitot:

“Ora, se se remonta do seu formalismo de base - a saber, o formalismo diferencial -


até ao seu conceito primitivo - a saber, o de infinitesimal -, depara-se com uma
contradição. Com efeito, dada a estrutura arquimediana da reta real, uma
quantidade infinitesimal é necessariamente nula; sendo o contínuo divisível sem
resto até ao infinito, não poderiam aí existir nem "átomos" indivisíveis fazendo
parar o processo de divisão, nem infinitamente pequenos que o
excedam.” 44(Petitot)

Seguindo o caminho da resolução desta problemática, veremos, a


seguir, a teoria iniciada por Abraham Robinson que resultará na introdução
formal dos infinitos e infinitésimos dentro da teoria matemática.

41
Id., Ibid.. p. 410-412
42
Id., Ibid., p. 411
43
BROLEZZI, Antonio Carlos. A tensão entre o Discreto e o Contínuo na história da Matemática e no
Ensino da Matemática: O Par Discreto/Contínuo nas Idéias Fundamentais do Cálculo. 1996. 89 p. Tese
de Doutorado – USP, São Paulo. p. 34-35
44
PETITOT, Jean. Infinitesimal. IN: Enciclopedia Einaudi, Vol. 4 (Local/Global). Trad. João Sàágua.
Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. pp. 209-285, p. 209

p. 13
Capítulo 4:
A Insurreição dos Infinitos e Infinitesimais.

“Leibniz e seus seguidores nunca foram capazes de justificar seu ponto de vista e,
por isso, tal tentativa foi “abandonada” pelas gerações futuras que prefiriram a
confiável base para o cálculo dada por Cauchy e Weierstrass. Robinson ficava
contente em explicar como ele tinha sido bem sucedido onde Leibniz não tinha,
graças a Teoria dos Modelos. Inspirado pelo trabalho de Thoralf Skolem, ele foi
capaz de produzir um modelo dos números Reais que legitimamente contém tanto
números não-padrões infinitesimais quanto infinitos e ele estava ansioso para
mostrar aos matemáticos, assim como aos lógicos, quão útil a Análise Não-Padrão
poderia ser.” 45(Dauben)

A teoria matemática dos infinitesimais parecia sem esperança e deixada


de lado, tirando o fato de atrair a atenção de alguns grandes matemáticos.
Seguindo os passos da construção dos números de Cantor, em 1958 e 1959,
respectivamente, C. Schmieden e D. Laugwits apresentaram um sistema
numérico alargado, capaz de conter não só números finitos, mas, também, os
infinitamente pequenos e grandes, assim como, números de tamanho
indeterminado. No entanto, somente em 1960, Abraham Robinson descobre
um método totalmente novo e diferente capaz de solucionar os problemas dos
infinitesimais de Leibniz, abordados no cálculo. 46

Introduzindo, formalmente, pela Teoria dos Modelos, os números


infinitesimais e os números infinitos, mais precisamente, mostrou-se que
existem extensões próprias – isto é, uma extensão não conservativa -, do
corpo dos números reais R, simbolizadas por *R e chamadas de conjunto dos
números Hiperreais, as quais, em certo sentido, possuem as mesmas
propriedades de R. 47 Uma das propriedades de *R com um foco mais
problemático é sobre ele ser não-arquimediano e não-isomorfo a R e a
nenhum de seus subcorpos. 48 No entanto, esse paradoxo de se possuir as
mesmas propriedades de R ou não pode ser apenas aparente, dependendo da
força com que se interpreta tais propriedades sob olhar específico de uma
linguagem formal de cada extensão. 49

45
DAUBEN, Joseph Warren. Abraham Robinson: the creation of nonstandart analysis: a personal and
mathematical odyssey. ISBN: 0-691-03745. Princeton: Princeton University Press, 1995. p. 331.
46
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. Introduction to the Theory of Infinitesimals. New York:
Academic Press, 1976. p. 5
47
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. op. cit.. p. 5
48
Id., Ibid. p. 52-53
49
Id., Ibid., p. 5

p. 14
Robinson, sendo também filósofo, defendia o ponto de vista de Leibniz,
até mesmo quando este não ousava acreditar na realidade dos infinitesimais –
e mesmo ele também não acreditava, por exemplo, também, discordando da
visão de Kurt Gödel sobre a existência de uma quantidade real infinita. 50 Mas
ele sabia das consequências ontológicas que ressurgiam com a criação da sua
Análise Não-Padrão. O problema dos infinitésimos e dos infinitos sempre
permeou as discussões filosóficas e matemáticas na história, pois, de fato,
sempre pareceu estar envolvido inconsistências e paradoxos. Sua desculpa a
favor da argumentação leibniziana se dava pela falta de expressão precisa,
delimitada e formal do século XVII, criticando uma imputação de não
intuitividade que é geralmente dada a ela, 51 e agradecendo, então, ao
desenvolvimento da linguagem Lógico-Matemática no Século XX, permitindo
resolver e justificar as questões deixadas por Leibniz. 52

Robinson também comenta sobre a fundação da Análise do século XIX,


discutindo os aspectos do Limite em Weierstrass, Dedekind e Cauchy. 53 Sobre
este último é interessante a argumentação de que em suas demonstrações
havia sim um conceito embutido de infinitesimais, talvez, não declarado e que,
possivelmente, a isso se devia os problemas em suas demonstrações – na
análise não-padrão é possível mostrar que a convergência uniforme de séries
infinitas equivale à convergência ponto-a-ponto em um intervalo, por
exemplo. 54 Em discussões filosóficas e matemáticas, e até mesmo quanto à
natureza dos infinitesimais presentes nas teorias físicas – a Análise Não-
Padrão se mostrou útil e vantajosa em várias aplicações, por exemplo, na
Teoria Quântica 55 -, Robinson assumia favoravelmente uma posição menos
realista, tentando, provavelmente, uma imparcialidade que ele atribuía ao
tratamento matemático. 56

Logo depois da descoberta ou invenção de Robinson, ficou claro que


seu método poderia ser aplicado com sucesso equivalente a outras estruturas
matemáticas além dos sistemas dos números Reais e Complexos. Inaugurou-
se, então, a teoria dos infinitesimais. 57 Numa apresentação diferente da de
Robinson em seu “Non-Standard Analysis” [1966], Stroyan e Luxemburg
dedicam seu livro “Introduction to the Theory of Infinitesimals”, a crença,
conforme dito por eles, na aplicação desse novo campo à Análise Moderna,

50
DAUBEN, J. W.. op. cit.. p. 330 - 331
51
Id., Ibid., p. 350 - 351
52
Id., Ibid., p. 422
53
Id., Ibid., p. 364
54
Id., Ibid., p. 352
55
Id., Ibid., p. 416 - 418
56
Id., Ibid., p. 365 - 366
57
STROYAN, K. D.; LUXEMBURG W. A. J.. op. cit.. p. 5

p. 15
Topologia e Álgebra. 58 Ambos não consideram que há um conflito com o
formalismo originado de Weierstrass. Apenas há diferentes caminhos de se
chegar a um mesmo problema. Apesar disso, os dois autores esperam que os
infinitesimais provar-se-ão vantajosos na formulação e solução de questões
ainda abertas e no entendimento mais claro das já conhecidas. 59

J.H. Conway, interessado em jogos, sobre os quais construiu um


formalismo para generalizar a teoria clássica dos jogos imparciais, descobriu –
aplicando o termo “descobrir” ao invés de “construir”, conforme comentado por
H. Gonshor, por lhe parecer um sistema mais natural 60- os Números Surreais
por volta do ano 1970, fazendo uma generalização dos Cortes de Dedekind
para definir um número, e foi mais profundamente nesse assunto no seu livro
“On numbers and Games”. Um pouco mais tarde, por volta de 1974, Donald E.
Knuth começou um estudo sobre tais números sob a forma de uma novela, na
qual os personagens estão tentando usar seus talentos para descobrir
demonstrações à medida que se constrói a teoria dos Números Surreais. 61

Na obra de Harry Gonshor “An Introduction to the theory of surreal


numbers” os números surreais são definidos como objetos mais concretos
para a maioria dos matemáticos do que da forma como Conway o fez. 62 Ele
constrói a definição por classes de equivalências de objetos indutivamente
definidos. 63 Os números Surreais formam classes próprias contendo os
números reais, os hiperreais, os ordinais e outras coisas. Conforme o autor, se
obtém, então, uma nova e boa maneira de se construir, também, o sistema dos
números reais, valendo a pena de ser vista lado a lado com as outras já
estudadas pelos matemáticos. Ao invés de ser compelido a criar novas
entidades a cada estágio e fazer novas definições, ele constrói definições
unificadas, obtendo os números Reais como um subsistema do que se obtém
delas. O conjunto dos números Surreais, pelo caminho de uma nova estrutura,
possui interessantes e novas propriedades. 64

58
Id., Ibid.
59
Id., Ibid.
60
GONSHOR, Harry. An introduction to the theory of surreal numbers. Cambridge ;: New York:
Cambridge University Press, 1986. 192 p. ; (London Mathematical Society lecture note series ;110) ISBN
0521312051. p. 2
61
GONSHOR, Harry. op. cit. p. 1
62
Id., Ibid.
63
Id., Ibid.
64
Id., Ibid.

p. 16
Conclusão:

Desde a antiguidade, a matemática vem sendo usada como uma


ferramenta mental para o entendimento da natureza, mas, principalmente, nos
últimos séculos ela vem se desligando dessa função e se estabelecendo como
um jogo abstrato das ideias. Como Platão dizia, a Matemática oferece verdades
certas e eternas, embora não sendo sobre o mundo familiar a nós. 65 Bertrand
Russel acrescenta ainda que as verdades eternas da matemática consistam
meramente no fato da matemática pura não falar sobre o tempo. 66 Permeando
esse caminho, a concepção de infinito e de infinitésimo é carregada junto pela
evolução das concepções matemáticas e filosóficas.

Vimos que as dificuldades de definição do que é infinitamente pequeno


ou grande vieram sendo solucionadas: uma questão era sanada enquanto se
abria outra e assim por diante.

Um ponto interessante e ainda tema de discussão atual na ciência fica a


respeito da transferência ou não do contínuo para o espaço físico – sendo este
composto por quantas dimensões se entender. A divisibilidade infinita de um
intervalo significa coisas diferentes na matemática e na física: o ponto e o
átomo, respectivamente. Leibniz tentou unir essas duas concepções pelas
Mônadas, englobando o contínuo físico e matemático, mesmo quando os
próprios infinitésimos não estavam bem fundamentados na matemática. Com a
formalização da Análise Não-Padrão, talvez, seu projeto se realize.

No final do século XX, como citado na teoria dos números Surreais, o


distanciamento da construção formal, cada vez mais precisa e abrangente, vem
crescendo em relação a algum significado empírico-experimental. Parece que
quanto mais se fundamenta os conceitos de forma precisa, menos eles
representam os problemas reais obtidos nas ciências da natureza, ao mesmo
tempo em que nos parecem mais “naturais” de se pensar. Não obstante a isso,
a aplicação dessas novas formulações vai se tornando cada vez mais poderosa,
mesmo para os problemas antigos. Como, por exemplo, é o caso do Cálculo
Diferencial e Integral de Newton e Leibniz que, apesar de muito
instrumentalismo e tecnicismo matemático, permitiu uma enorme gama
desenvolvimentos tecnológicos. Como citado neste trabalho, vários

65
JAHNKE, H. N. A history of analysis. Providence, RI: American Mathematical Society, [London]:
London Mathematical Society, c2003. 422 p. (History of mathematics,) ISBN 0821826239. p. 35
66
Id., Ibid.

p. 17
pensadores adotaram uma visão instrumentalista no meio desse caminho
tortuoso.

Resta, no entanto, se perguntar aonde essas abstrações irão nos levar


enquanto não se entende seus significados, ou melhor, até que nível
poderemos interpretar uma construção abstrata na obtenção de outra. Por
exemplo, a questão ainda reminiscente disso sobre o problema lógico-
simbólico na definição formal dos infinitos: por mais que a intuição nos pareça
evoluir para a elaboração de uma formalização de uma dada quantidade
infinitamente grande ou pequena – por exemplo, pelos axiomas de Peano,
números Hiperreais ou números Surreais -, ainda estamos limitados pela
quantidade finita de símbolos e ideias empregados e submetidos a uma
interpretação mental, de onde vem a dificuldade de se entender seus
significados. É como se, em última análise, concebêssemos o infinito por um
não-ser: o infinito não é tudo aquilo que se é capaz de pensar – embora tal
não-ser possa ser simbolizável formalmente. À medida que se obtém coisas
novas, o infinito continua não sendo o que se tinha antes, mesmo quando
somado tais coisas obtidas no presente. Nesse ponto, voltamos ao infinito
não-pensável mencionado na introdução e ficamos tentados a questionar o
título deste trabalho: não só um problema matemático, mas também,
cognitivo, epistemológico e filosófico. Apesar da força da palavra pensável, a
emprego aqui porque mesmo que um conceito de infinito seja posto em
questão, antes mesmo do problema de se poder imaginá-lo ou não, parece
que sempre se pode definir outro infinito que não é tudo aquilo que o conceito
anterior dizia que era. 67 Isso fica bem nítido, por exemplo, no problema do
conjunto dos números surreais ter uma cardinalidade maior que qualquer
outro cardinal que obedece a Hipótese do Contínuo Generalizada.

É o que acontece, também, no problema clássico da apreensão do


contínuo pela intuição. A reta aparece a nós como um elemento – uma imagem
- e, no entanto, podemos interpretá-la como um infinito de pontos. Nem o
ponto matemático pode ser imaginado: a nós somente vem a imagem de uma
pequenina esfera que pode ser tomada tão pequena quanto se queira. Logo,
mesmo definindo o conceito de reta contínua por uma infinidade de pontos,
não podemos imaginá-la como tal. Como apresentado na aritmetização da
análise, derivada de Dedekind, e na teoria de Cantor, o contínuo veio a ser
definido por operações com o discreto - o que, filosoficamente, não é muito
distante da concepção de Leibniz, que discretizou o contínuo com suas

67
Poderíamos dizer, então, que há sempre um não-ser ?

p. 18
Mônadas. Voltamos novamente ao problema lógico-simbólico mencionado
acima. Sobre essa problemática do contínuo e do discreto comenta Da Costa:

“No entanto, a relação entre a idéia do discreto e a continuidade na Matemática


contradiz nossa intuição de que ambos os conceitos de algum modo situam-se no
mesmo nível; dentro da nossa tradição matemática, o discreto aparece como a
propriedade fundamental, enquanto que o contínuo é subordinado a ele.(...) Assim,
dentro da nossa compreensão usual de sobre o que é a Matemática, a idéia do
contínuo repousa rigidamente subordinada à do discreto.” 68 (Da Costa)

Uma explicação bem definida desse nosso ranço lógico do discreto e do


finito, até mesmo numa construção formal incluindo infinitos e infinitésimos,
se estendendo, consequentemente, por exemplo, aos conceitos físicos de
espaço, ainda é pendente.

68
DA COSTA, Newton C. A. & DORIA, F. A. Continuous & Discrete: A Research Program. IN: Bol
Soc. Paran. Mat. (2a Série), v. 12/13, n. 1/2. Curitiba: Ed. da UFPR, 1991/2, p. 123-127, p. 124

p. 19
Referências:

BOYER, Carl Benjamin. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo,
Edgard Blücher, 1974, 488 p.

BOYER, Carl Benjamin. The History of Calculus and its Conceptual Development. New York,
Dover, 1959. 346 p.

BROLEZZI, Antonio Carlos. A tensão entre o Discreto e o Contínuo na história da Matemática


e no Ensino da Matemática: O Par Discreto/Contínuo nas Idéias Fundamentais do Cálculo.
1996. 89 p. Tese (Doutorado) – USP, São Paulo

DA COSTA, Newton C. A. & DORIA, F. A. Continuous & Discrete: A Research Program. IN:
Bol Soc. Paran. Mat. (2a Série), v. 12/13, n. 1/2. Curitiba: Ed. da UFPR, 1991/2

DAUBEN, Joseph Warren. Abraham Robinson: the creation of nonstandard analysis: a personal
and mathematical odyssey. Princeton: Princeton University Press, 1995. ISBN 0-691-03745

EUCLIDES. The Thirteen Books of Euclid's Elements. Trad. e com. por Thomas Little Heath.
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GONSHOR, Harry. An introduction to the theory of surreal numbers. Cambridge ;: New York:
Cambridge University Press, 1986. 192 p. ; (London Mathematical Society lecture note series
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JAHNKE, H. N. A history of analysis. Providence, RI: American Mathematical Society,


[London]: London Mathematical Society, c2003. 422 p. (History of mathematics,) ISBN
0821826239

PETITOT, Jean. Infinitesimal. IN: Enciclopedia Einaudi, Vol. 4 (Local/Global). Trad. João
Sàágua. Porto: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985

ROSA, Luiz Pinguelli. Tecnociências e Humanidades: novos paradigmas, velhas questões. São
Paulo: Paz e Terra, 2005. ISBN 85-219-0761-3

STROYAN, K. D. Introduction to the theory of infinitesimals. New York: Academic Press,


1976. 326 p. ISBN 0126741506

p. 20

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