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A DANÇA INFERNAL
DOS GIGANTES

Autor
WILLIAM VOLTZ

Tradução
RICHARD PAUL NETO

Digitalização e Revisão
ARLINDO_SAN
Tschato, o leão, juntamente com sua tripulação
homogênea, volta a pilotar uma nova Lion...

Depois de vagarem durante meses pelo cosmos, Perry


Rhodan e seus companheiros finalmente voltaram à Terra, muito
embora sua situação por vezes fora tão desesperadora que
ninguém lhes teria dado uma chance.
Os calendários do planeta Terra registram os meados do
mês de julho do ano de 2.329. Os planos da organização
terrorista Estrela Negra, cujos agentes fanáticos por pouco não
destruíram os mundos principais do Sistema Solar, puderam ser
frustrados. Ninguém mais contesta a posição de Perry Rhodan
como Administrador Geral do império Solar, e em sua maioria
os administradores dos mundos colonizados pelos terranos
reconheceram que nas atuais condições políticas reinantes na
Galáxia é mais seguro colocar-se sob a proteção do Império que
perseguir seus próprios objetivos.
Mas Iratio Hondro, chefe supremo de Plofos, não desiste
nem mesmo depois que seu regime, baseado no terror e na
opressão, é derrubado em virtude da atividade dos agentes de
Allan D. Mercant.
Mesmo depois de expulso do planeta Última Esperança,
Hondro não abandona o jogo. Prossegue na sua fuga e
desaparece nas profundezas do espaço...
Enquanto isso Perry Rhodan dá ordem para que as
unidades da Frota Solar saiam à procura do chefe supremo — e
para que vasculhem o centro da Galáxia em busca do neo-
molkex desaparecido.
Tschato, o leão pertence a um dos comandos de busca.
Entra com a nave Lion na Dança Infernal dos Gigantes...

======= Personagens Principais: = = = = = = =


Nome Tschato — Geralmente conhecido como o, leão.
Dan Picot — Imediato da nave Lion.
Capitão Vertrigg — Cujo veículo explorador colide com os
gigantes dançantes.
Earl Bactas — Engenheiro-chefe da Lion.
Dr. Gaylord — Um pesquisador de estruturas que faz uma
descoberta decisiva.
Duprene e Cashton — As primeiras vítimas da caverna de
metano de Pulsa.
Prólogo

A Lion — mais precisamente, a nova Lion — estava sendo iluminada por oito
holofotes gigantescos, instalados em torno dela. A chuva descia em fios prateados pelo
casco da nave. As outras naves estacionadas no campo de pouso estavam envoltas na
escuridão.
O observador solitário que estava parado na beira do campo de pouso, com a gola
da capa levantada, procurava combater os sentimentos que começavam a apoderar-se
dele. Viera para despedir-se, mas naquele momento sentia a atração irradiada por aquela
nave. Nenhum homem é capaz de esquecer simplesmente sete anos de sua vida.
Sete anos. Durante este tempo Dan Picot fora imediato da velha Lion, até que o
couraçado teve de ser abandonado no setor de Simban. Fora em fevereiro. Agora era
maio.
Picot perguntou-se se Nome Tschato, o comandante de pele escura, já tinha subido a
bordo. Acenou instintivamente com a cabeça. Tschato não era um homem capaz de ter
uma vida particular.
Dan Picot sentiu uma dor na região do estômago. Os médicos afirmavam que seu
estômago estava em ordem. Picot sorriu, enquanto a chuva descia por seu rosto enrugado.
O que é que os médicos sabiam a respeito de Nome Tschato? Tinham conhecimento das
ações em que a vida da pessoa humana só se conta por segundo — até que chega o
segundo decisivo, o último?
Dan Picot decidira não passar este último segundo no espaço. Solicitara sua
transferência para os serviços de superfície. Picot tinha quarenta e três anos, mas parecia
ter cinqüenta.
Picot deu as costas à nave, mas a sombra da Lion parecia correr à sua frente que
nem uma tentação irresistível a deslizar pela chuva. Mas Picot continuou a caminhar
lentamente, até atingir a pequena cantina que ficava na periferia do campo de pouso. A
luz filtrava pelas janelas. Picot sentiu frio. Atravessou a porta oscilante baixa e entrou na
cantina. Olhou para a placa dos homenageados que havia sobre o balcão. Estudou-a
atentamente para desviar os pensamentos da Lion.
Picot sentou. O cardápio e a lista de bebidas apareceu num display luminoso sobre a
mesa. Picot comprimiu o botão correspondente a um café sem leite e açúcar. Dali a um
minuto uma fenda abriu-se lateralmente em baixo da mesa e um caneco foi colocado
sobre a mesma. Picot lançou um olhar distraído para o café. Viu três mecânicos que
jogavam baralho mais ao longe.
Picot surpreendeu-se na tentativa de olhar pela janela para ver o campo de pouso.
As cortinas impediram que visse qualquer coisa.
De repente houve um movimento atrás dele. Picot ficou contrariado, pois não tinha
vontade de conversar. Mas quando virou a cabeça viu o Primeiro-Tenente Nome Tschato
parado ao lado da mesa. Tschato não disse nada. Olhava para Dan Picot com uma
expressão de indiferença. Como sempre, dava a impressão de estar muito satisfeito. Não
parecia haver nada capaz de abalar este grande homem, que caminhava que nem um
felino.
— O senhor é um adivinho? — perguntou Picot, quando o olhar de Tschato
começou a deixá-lo nervoso.
Tschato mostrou um sorriso despreocupado.
— Quando estou interessado em encontrar um lugar onde a gente possa arranjar um
café, sou — respondeu.
Puxou lentamente uma cadeira e sentou. Esticou as pernas, que sobressaíram do
outro lado da mesa. Pediu um café e passou a mão pelo cabelo.
— Não gosto de decolar com chuva — disse. — É um mau presságio. Mas é claro
que os rapazes do instituto de meteorologia não modificarão seus planos por causa da
Lion.
— Não modificarão mesmo — resmungou Picot em tom contrariado. Será que o
leão não tinha outra coisa para conversar senão a decolagem da Lion?
Tschato recebeu seu café.
— O senhor está ficando acordado até tarde, não é, Dan? — perguntou.
— Às vezes — respondeu Picot, esticando as palavras.
Tschato mexeu na túnica do uniforme. Depois de algum tempo tirou um maço de
papéis. Escolheu um e estendeu-o sobre a mesa.
— Conhece isto, Dan?
— Naturalmente — respondeu Picot. — Afinal, fui eu que escrevi isso. É o
formulário do requerimento no qual solicito minha transferência para a equipe de
superfície.
Picot sentiu que estava ficando cada vez mais aborrecido. Como é que Tschato
conseguira pôr as mãos em seu requerimento? Como comandante tinha direito de ser
informado sobre os atos de seus oficiais, mas afinal de contas cabia a Picot escolher o
lugar em que queria trabalhar.
— Já viu a Lion? — perguntou Tschato e ficou empurrando o formulário de um lado
para outro.
Picot confirmou a contragosto. Sim, que diabo, já vira a nave. E daí? Um homem
podia contemplar cem espaçonaves por dia, sem que ninguém tivesse motivo para
aborrecer-se com isso.
— É uma bela nave — observou Tschato. — E bem melhor que sua antecessora.
— Que bom para o senhor — disse Picot em tom sarcástico.
Tschato dobrou cuidadosamente o requerimento de Picot. Suas mãos enormes
faziam o trabalho com uma calma que quase chegava a ser apavorante.
— Já sou bem velho, senhor — disse Dan Picot.
— Quarenta e três, Dan — constatou Tschato.
Rasgou o formulário dobrado em duas partes. Colocou uma metade sobre a outra e
voltou a subdividi-las. Picot pegou o caneco, mas tremia tanto que teve de largá-lo de
novo.
— A coisa reluzente que está lá fora é apenas um envoltório de aço — disse
Tschato. — Um objeto metálico sem vida igual a muitos outros. Dan, certa vez o senhor
disse que a Lion somos nós dois. — Levantou-se e foi apressadamente até a janela. Abriu
a cortina, sem dar atenção às pessoas que jogavam baralho. Levantou o braço comprido e
apontou para o campo de pouso.
— O senhor quer que saia dali a metade da Lion, Dan?
Dan Picot empurrou a cadeira para trás, levantou-se e também foi até a janela. As
pernas tortas davam-lhe o aspecto de um jóquei velho e cansado.
Realmente estava velho e cansado.
Mas quando ficou de pé junto à janela, ao lado de Tschato, e a luz dos holofotes
atingiu seu rosto — um rosto que parecia ser de couro curtido — seus olhos brilharam.
— Querem que participemos das operações de busca do neo-molkex desaparecido
— disse Nome Tschato. — As nuvens exploradoras que foram atrás da substância que
saiu voando pelo espaço não conseguiram nada.
— Quando decolaremos? — perguntou Dan Picot, imediato da velha e da nova
Lion.
1

A tripulação da Lion dividira-se em dois grupos, cada um dos quais desenvolvia


suas próprias opiniões sobre o curso que deveria tomar a operação de busca. Para os
astronautas a caça do neo-molkex era uma atividade enfadonha, que provavelmente
nunca traria o resultado desejado. No entanto, os cientistas que tinham subido a bordo
ainda se mostravam tão nervosos como no primeiro dia. Davam a impressão de que
esperavam que a qualquer momento a Lion fosse descobrir um planeta formado por neo-
molkex. Enervavam os astronautas com os prognósticos mais inverossímeis. A única
emoção humana que conheciam parecia ser aquela revelada nas queixas feitas a Dan
Picot, segundo as quais a comida feita por Mulligan continha muita gordura. No entanto,
estas observações só provocavam um sorriso cansado em Mulligan, oficial de
intendência, que continuava a preparar a alimentação dos tripulantes pela forma que
estava acostumado.
Da mesma forma que muitas outras naves, a Lion tentava descobrir o paradeiro do
molkex que se transformara no chamado neo-molkex, depois do bombardeio com o
peróxido de hidrogênio enriquecido com o hormônio B, e depois saíra em direção ao
centro da Galáxia em velocidade alucinante. O chamado efeito drive manifestara-se em
todos os casos, motivo por que os cientistas terranos não tiveram possibilidade de fazer
experiências com o neo-molkex. Assim que voltara à Terra, Perry Rhodan mandara que
várias naves saíssem à procura da substância. Ao que indicavam todos os cálculos, o
molkex só poderia ter desaparecido em algumas das concentrações periféricas do centro
da Via Láctea.
Acontece que essa área imensa nunca poderia ser totalmente vasculhada, mesmo
que se dispusesse de bilhões de espaçonaves. Rhodan tinha esperança de que o acaso
viesse em seu auxílio, indicando a alguma das naves a pista do material desaparecido de
forma tão misteriosa.
A Lion, que estava empenhada nas buscas desde o dia 23 de maio de 2.329, também
não pudera registrar nenhum êxito, embora Tschato manobrasse a nave através das
névoas escuras e das concentrações mais compactas.
A caça do neo-molkex parecia ser a tarefa mais tranqüila e segura que a frota estava
desempenhando.
Mas nas primeiras horas do dia 18 de julho de 2.329 a tripulação do couraçado Lion
percebeu que qualquer operação, por mais enfadonha que seja, de repente pode
transformar-se numa ação extremamente perigosa. Num caso como este o caçador até
pode transformar-se na caça.
Dawson, operador de rádio da Lion, estava de pé atrás do capitão Vertrigg, que há
uma hora ocupara o lugar de Nome Tschato. Dawson não tinha nenhum trabalho além das
comunicações de rotina. Fazia três semanas que se tinham encontrado com outra nave
empenhada nas buscas. Para o operador de rádio fora o acontecimento mais excitante dos
últimos dois meses.
Vertrigg ligara o piloto automático. De vez em quando lançava um olhar para os
controles.
— Se as coisas continuarem assim, todo mundo vai engordar — disse Dawson. —
Até mesmo o imediato já apresenta algumas áreas mais lisas no rosto.
— Estou gostando, Sparks — confessou Vertrigg. — Até parece que juntamente da
velha Lion ficamos livres do azar que fazia com que sempre ficássemos envolvidos nas
piores operações. Enquanto Tschato ficar quieto, podemos dar-nos por satisfeitos com a
situação atual.
— Não acredito que um dia venhamos a descobrir essa substância — disse Dawson.
— Deve ter explodido, ou então se volatilizou. De qualquer maneira, não existe mais.
— Isso seria lamentável — respondeu o Capitão Vertrigg. — Afinal, o neo-molkex
deve proporcionar à ciência novas possibilidades para...
A reação dos rastreadores estruturais foi tão violenta que Vertrigg esqueceu de
completar a frase. Seus olhos brilharam enquanto fitava os rastreadores de hiperimpulsos.
Levou alguns segundos para compreender que estava acontecendo algumas coisas que
provavelmente interromperia a monotonia do vôo.
A reação de Dawson foi um pouco mais rápida. Antes que o Capitão Vertrigg fizesse
qualquer coisa, o rádio-operador correu para junto de seus aparelhos e ligou o
hipercomunicador. Todos os homens que se encontravam na sala de comando já haviam
notado a reação muito intensa dos rastreadores. O Dr. Gaylord, porta-voz dos cientistas,
que também se encontrava na sala de comando, foi-se aproximando dos controles.
Vertrigg ligou o intercomunicador.
— Aqui fala o Capitão Vertrigg — disse. — Nossos rastreadores estruturais acabam
de mostrar uma reação. Os impulsos registrados são tão intensos que não podem ter sido
produzidos por uma nave em transição.
Dali a três minutos o Primeiro-Tenente Tschato apareceu na sala de comando. Foi
seguido de perto por Dan Picot e por Duprene, lógico-chefe da nave.
Vertrigg cedeu a poltrona de comando a Tschato, enquanto. Duprene iniciou
imediatamente seus cálculos. Os valores indicados pelos rastreadores estruturais
permitiam que se determinasse a posição aproximada do respectivo abalo por meio dos
computadores positrônicos.
Bactas, engenheiro-chefe da nave, entrou na sala de comando. Sua figura pequena e
irrequieta parecia espalhar agitação. Dawson trabalhava que nem um louco na
aparelhagem de rádio.
— Não existe a menor dúvida de que não se trata de uma transição — disse Tschato.
Picot sentou a seu lado e pôs-se a observar as telas. Nada indicava a presença de uma
nave desconhecida nas imediações da Lion. Não houvera absolutamente nada, além do
estranho fenômeno do abalo estrutural. No entanto, a continuidade da estrutura espácio-
temporal certamente fora perturbada em algum lugar.
— Quem sabe se alguma nave explodiu ao penetrar no hiperespaço? — conjeturou
o Capitão Walt Heintman.
— Sim — disse Tschato em tom pensativo. — É uma das inúmeras hipóteses que
devem ser consideradas.
— Senhor! — exclamou Dawson no mesmo instante. — Estou recebendo sinais
pela onda de hipercomunicação.
Como se obedecessem a um comando secreto, todos os rostos se voltaram para o
rádio-operador. Dawson estava ocupado com o hipercomunicador.
— São impulsos muito fracos, mas ao que tudo indica trata-se de um pedido de
socorro. Não acredito que tenham sido expedidos por uma nave terrana. Os sinais são
repetidos a intervalos regulares. Não se trata de palavras faladas. O transmissor emite
sinais Morse.
As palavras de Dawson causaram um aumento da tensão reinante entre os homens.
Picot viu o Dr. Gaylord estreitar os lábios. Bem que gostaria que os cientistas não
estivessem a bordo. Não sabia por quê, mas o fato era que pareciam prejudicar o trabalho
de equipe. Gaylord era um homem grisalho, e tinha exatamente o aspecto que Picot
esperava encontrar em um cientista.
Mais uma vez os computadores positrônicos entraram em funcionamento. Tschato
mandou fazer a determinação goniométrica da posição do misterioso transmissor.
— Que acha, Dan? — perguntou Tschato.
Picot sabia perfeitamente que se tratava de uma pergunta puramente retórica.
Provavelmente Tschato nem prestaria atenção quando ele desse sua resposta.
— Talvez seja um truque — disse Picot. — Devemos ter cuidado para não entrar
numa armadilha.
A risada de Tschato mostrou o que o mesmo achava de uma armadilha e o que faria
com qualquer pessoa que se atrevesse a molestá-lo dessa forma. Há anos Picot tentava em
vão acostumar-se ao fato de que o comandante parecia livrar-se com uma irritante
negligência de tudo que pudesse causar-lhe dificuldades. Picot nunca seria capaz de
compreender como apesar dessa atitude arbitrária costumava ter êxito em suas operações.
— Encontramo-nos no interior de uma concentração de estrelas, senhor — lembrou
Picot em tom irritado. — Onde existem sóis também existem planetas. O setor espacial
em que nós encontramos até parece ter sido feito sob encomenda para alguém colocar
uma armadilha.
— Hum — fez Tschato.
Tratava-se de um pronunciamento que Picot poderia interpretar como uma
manifestação de concordância ou de discordância.
Dali a instantes Duprene trouxe a posição do transmissor, calculada com base nos
ensaios goniométricos. Tschato examinou o resultado. Depois fez com que a Lion
mudasse a rota que vinha seguindo. Picot não se sentiu muito à vontade ao notar que
penetravam cada vez mais profundamente na concentração de sóis. As energias emitidas
pelas estrelas perturbavam consideravelmente o funcionamento dos rastreadores. A Lion
levou quase quarenta minutos para encontrar o transmissor.
Os contornos de uma nave esférica com pólos achatados apareceram nas telas do
rastreamento espacial. Ao ver a nave desconhecida, Picot ficou ainda mais nervoso.
— Uma nave aconense, senhor — observou. — Não se esqueça do sistema de
Simban.
Tschato lançou um olhar para os controles.
— A nave desloca-se em queda livre — constatou. — Não há nada que indique a
presença de outras naves nas proximidades.
A Lion aproximou-se da nave desconhecida e os homens que se encontravam na
sala de comando constataram que a mesma apresentava graves avarias em vários lugares.
Na parte inferior da esfera via-se uma incandescência vermelha. O emissor aconense
continuava a transmitir em morse. Dawson manifestara a opinião de que poderia tratar-se
de um impulso permanente, irradiado ininterruptamente. Diante disso Picot concluiu que
não havia mais ninguém a bordo da nave aconense. Se a mesma possuísse tripulantes, os
mesmos certamente teriam reagido à aproximação da nave terrana com a modificação dos
sinais transmitidos pelo rádio.
Tschato mandou que Dawson expedisse uma mensagem para a nave desconhecida.
Durante cinco minutos os tripulantes da Lion esperaram em vão por uma resposta,
embora Dawson repetisse constantemente a mensagem.
— Será que estão todos mortos, senhor? — perguntou o Capitão Walt Heintman.
— Certamente estão mais mortos que vivos — respondeu Tschato. — Parece que se
não formos lá para verificar o que está acontecendo, nunca saberemos a verdade.
— Verificar no local? — exclamou Picot com um gemido.
— Será que o senhor quer subir a bordo dessa nave do inferno?
Tschato levantou o polegar da mão direita e apontou para o mesmo com o indicador
da direita.
— Primeiro, constatamos um abalo estrutural que em hipótese alguma pode ter sido
causado por uma única nave. Em segundo lugar — seus dedos indicadores tocaram-se —
temos uma nave destroçada à nossa frente, a bordo da qual talvez haja náufragos que
precisam de auxílio. Em terceiro lugar, o senhor me acompanhará na excursão.
Picot sentiu seu estômago revoltar-se. Dois meses de calma absoluta pareciam ter
chegado ao fim. O leão acordara. Seu faro pelo perigo, conhecido há muito tempo,
provavelmente lançaria a Lion mais uma vez numa aventura à qual Picot provavelmente
não sobreviveria, pois era o homem que devia permanecer ao lado de Tschato. E onde
estava Tschato também estava o perigo. Neste lugar parecia concentrar-se numa
densidade fulminante. Mas enquanto Tschato resistia com uma indiferença quase absoluta
aos acontecimentos mais terríveis, Picot acreditava que já não havia a menor dúvida de
que sofria uma perda cada vez maior de substância pessoal.
“Passei a ser somente a sombra desse gigante negro”, pensou, zangado. “Como o
Sol sempre parece iluminá-lo bem de cima, sou uma sombra bem franzina.”
Picot levantou-se com a atitude de quem tem pesos de chumbo nos pés. Sentiu
alguma coisa fria subir-lhe pela espinha.
Tschato destacou mais dez homens que o acompanhariam na excursão à nave
aconense. Pediu uma ligação com o hangar e mandou que uma nave espacial fosse
preparada. Retirou-se da sala de comando com uma aparente lentidão, mas Picot, que
sabia avaliar seu andar de felino, acelerou o passo e chegou ao elevador antigravitacional
que subia ao hangar quase ao mesmo tempo que o comandante.
— Acho que deveríamos levar pelo menos algumas armas, senhor — disse,
enquanto estavam sendo levados para cima pelo campo antigravitacional. — Não gosto
de ficar indefeso quando sou atacado.
— As torres de canhões da Lion nos darão cobertura. Certamente serão suficientes
para demover eventuais sobreviventes que se encontrem a bordo da nave desconhecida de
um ato irrefletido — disse Tschato. — Naturalmente pode levar uma arma portátil, se
quiser.
Uma arma portátil! Aquilo era típico de Tschato. Seria o mesmo que tentar extinguir
um incêndio atômico com um balde de água.
Uma vez chegados ao hangar, colocaram os trajes voadores usados em combate.
Picot certificou-se de que trazia uma arma desintegradora no cinto. Assim que todos os
homens estavam reunidos, Tschato deu sinal de partida. A eclusa do hangar abriu-se,
deixando livre a visão para o espaço cósmico. Picot olhou através da carlinga,
diretamente para o centro da Galáxia. As estrelas ficavam tão próximas uma da outra que
por vezes antes pareciam fitas luminosas.
O jato saiu da nave-mãe e precipitou-se para o espaço livre. O comandante
encarregara-se da pilotagem. A nave aconense encontrava-se a vinte milhas da Lion.
Tschato seguiu diretamente para a mesma. À medida que se aproximavam dela, os sinais
de uma terrível destruição tornavam-se mais nítidos. Aos poucos Picot começou a ter suas
dúvidas de que realmente se tratasse de uma armadilha. Será que os aconenses seriam
capazes de destruir uma de suas naves, somente para atrair os terranos?
O jato atingiu a nave destroçada. Tschato contornou a linha equatorial da mesma e
descobriu um rombo suficientemente grande para permitir a entrada da nave auxiliar.
Com um gesto tão tranqüilo que até se podia ter a impressão de que se tratava de uma
missão de rotina, o primeiro tenente ligou o holofote principal. As áreas situadas em torno
do rombo ficaram tão bem iluminadas que Picot reconheceu todos os detalhes. As bordas
entrecortadas e escaldadas mostravam que houvera explosões em temperaturas
extremamente elevadas.
Tschato fez o jato passar pela abertura feita a força e penetrou na nave destroçada.
Picot colocou a mão na frente dos olhos, para enxergar melhor. O sistema de propulsão
antigravitacional do jato foi ligado. A velocidade reduziu-se a tal ponto que o
deslocamento do veículo se tornou quase imperceptível.
Picot viu um corredor ou pavilhão à sua frente. Naquele momento não podia ver o
que realmente era.
Tschato fez circular o holofote até que este iluminasse a parede interna. O efeito
luminoso fez com que Picot tivesse a impressão de ver uma parábola que parecia levar ao
infinito. O raio luminoso foi descendo, passou por travessas metálicas contorcidas e
acabou parando no chão. No revestimento de plástico que se estendia embaixo do jato
aparecia afundamentos ondulados. A massa plástica entrara em ebulição com o calor
extremamente forte e sofrerá uma deformação.
O jato espacial foi descendo levemente, até que suas colunas de apoio tocassem o
chão. Picot olhou para o giroscópio estabilizador. O desnivelamento do chão foi
compensado pelas colunas de apoio telescópicas.
Tschato abriu a eclusa do jato. A lâmpada de seu traje protetor acendeu-se.
— Está vendo? — disse, dirigindo-se a Picot. — Não há nenhum assassino doido
para atirar em nós.
Picot atirou a cabeça para trás. A lâmina transparente do visor de seu capacete
produziu uma distorção nas inúmeras rugas de seu rosto, que lhe dava um aspecto de
fantasma. Atirou as pernas tortas para fora da eclusa e saltou para o ambiente estranho
antes do comandante. Surpreendeu-se fazendo passar a mão pelo gatilho do
desintegrador. Um eco parecia sair da escuridão. De repente viu uma luz a seu lado. Era
Tschato, que entrava na escuridão com uma leveza inigualável.
A cada passo as lâmpadas que os homens traziam em seus trajes subiam e desciam,
lançando sombras grotescas nas paredes parcialmente destruídas do corredor. Quando
tinham percorrido dez metros, encontraram os primeiros cadáveres. Picot parou
instintivamente quando a luz de sua lâmpada atingiu um rosto pálido atravessado por
inúmeras veias azuis. Levou alguns segundos para compreender que o homem que se
encontrava à sua frente estava morto. Morrera de falta de ar. E atrás dele havia mais sete
mortos. Ao que tudo indicava, pretendiam chegar a um lugar bem definido. Talvez fosse o
hangar, onde pretendiam tomar a nave espacial para ir a um lugar mais seguro.
Picot sentiu que a visão dos mortos lhe dava náuseas. Estava acostumado a
defrontar-se com a morte em todas as formas, mas os aconenses que ali jaziam num mudo
desespero pareciam antes demônios vindos de um terrível submundo que humanóides
mortos.
— Venha, Dan. Vamos andando — disse Tschato. — Em algum lugar deve haver
sobreviventes da catástrofe.
Picot desprendeu o olhar dos mortos. Uma pergunta deixava-o cada vez mais aflito.
Qual fora a causa do desastre? Será que o veículo espacial aconense tinha sido atacado
por outra nave?
Tiveram de passar por cima dos mortos para continuar a avançar nave a dentro.
Tschato foi na frente. Chegaram a um elevador antigravitacional, mas o mesmo não
estava funcionando. Depois de uma ligeira busca encontraram a escada que poderia levá-
los na mesma direção. Tschato parou à frente do buraco feito no chão. Picot colocou-se
ao lado do comandante, que tinha dois metros de altura, e viu uma luz vinda de debaixo
no interior do poço do elevador. Também viu um aconense que, segundo parecia, tentara
subir pela escada. No mesmo instante em que estendera as mãos em direção aos degraus
para puxar-se para cima fora alcançado pela morte. Seu corpo contorcido estava deitado
junto à escada.
Tschato segurou as travessas da escada com mão de ferro. Desceu com movimentos
tranqüilos. Picot viu o tenente chegar embaixo e carregar o cadáver alguns metros.
— Tudo bem, Dan! — disse sua voz, transmitida pelo rádio-capacete. — Pode
descer com os outros.
Picot engoliu em seco. Aquilo parecia cada vez mais apavorante. Mas naquela altura
não havia como voltar atrás. Tschato os impelia constantemente. Ele os obrigaria a
atravessar o inferno em sua companhia, caso julgasse necessária a caminhada.
Picot desceu atrás do comandante, seguido pelos outros homens. Quando chegou
embaixo, viu outros cadáveres. Nem tentou contá-los. Ao que tudo indicava, o pânico se
espalhara no corredor em que estavam entrando. Os aconenses tinham lutado. Cada qual
queria pegar a escada antes dos outros, quando o elevador antigravitacional entrou em
pane. Certamente estavam terrivelmente apavorados.
As luzes de emergência estavam funcionando. Espalhavam uma luminosidade
pálida. Os cadáveres eram a melhor prova de que a nave destroçada não era nenhuma
armadilha, mas Picot sentia-se cada vez mais inquieto. Sabia que os astronautas
aconenses mantêm uma disciplina rigorosa. Se tinham entrado em pânico, certamente
houvera um bom motivo para isso.
Tschato levou-os pelo corredor em cujo interior parecia estar os cadáveres de
metade da tripulação. Um técnico da Lion descobriu um robô num nicho. A máquina
estava em perfeitas condições, mas retirara-se ao notar que não havia mais nada que ela
pudesse fazer.
Assim que Tschato se aproximou do técnico, o robô saiu rolando de seu nicho. Só
possuía uma única perna, mas era mais ágil do que Picot acreditara. Seus braços armados
levantaram-se instantaneamente. Fizeram pontaria para Tschato e o homem que se
encontrava a seu lado.
Picot agiu sem pensar antes. Tirou o desintegrador. Ao que parecia, o robô ainda não
tinha certeza se os homens que se encontravam à sua frente eram amigos ou inimigos.
Picot não esperou que a máquina optasse por uma dessas alternativas. Disparou um raio
concentrado. A máquina caiu bem à frente de Tschato. Ouviu-se um chiado e uma nuvem
de fumaça saiu do corpo metálico.
— Daqui em diante precisamos ter cuidado! — advertiu Tschato. — É possível que
ainda nos encontremos com outros robôs.
Prosseguiram em sua marcha. Depois de algum tempo chegaram à sala de comando.
A entrada da mesma estava enegrecida pela fumaça, mas se houvera um incêndio por ali,
o mesmo já se extinguira.
Examinaram o centro de comando da nave destroçada. Parecia antes um montão de
escombros. Todos os aparelhos que não estavam presos em alguma coisa tinham caído.
As telas estavam rachadas. Os controles mostravam um quadro de devastação total. Em
toda parte deviam ter ocorrido explosões menores. Picot concluiu que o ataque não
poderia ter vindo somente do espaço. Será que os aconenses tinham lutado entre si? Ou
será que alguma influência externa liberara uma quantidade de energia capaz de fazer
explodir os aparelhos?
Picot sabia perfeitamente que nenhum dos mortos espalhados pela sala de comando
lhe poderia dar informações sobre isso.
Esperou que Tschato desse ordem de retirada. Mas o comandante passou por cima
dos destroços de uma máquina sem dizer uma palavra. Avançou até o outro lado da sala
de comando. Inclinou-se para o chão. Picot não podia ver o que Tschato acabara de
descobrir.
— Venha cá, Dan — disse Tschato, fazendo um sinal para Picot.
Picot mandou que os homens permanecessem onde estavam. Para chegar ao lugar
em que estava Tschato, teve de fazer um verdadeiro exercício de alpinismo. Quando se
aproximou do comandante, viu que o mesmo estava inclinado sobre um homem que
usava traje protetor. Esse homem estava vivo. Tinha os lábios cerrados e sua respiração
era irregular. As pálpebras tremiam.
— Um sobrevivente — disse Picot em tom de espanto.
— Sua perspicácia me surpreende — afirmou Tschato. Sentou ao lado do aconense,
segurou o capacete do mesmo entre as mãos e virou-o para a esquerda e para a direita,
para contemplar o náufrago de todos os lados.
— Não poderemos conversar com ele enquanto usar este capacete. E não podemos
tirar seu traje protetor enquanto não chegarmos ao jato espacial.
— Parece que vai morrer a qualquer momento — disse Picot.
Neste momento o aconense abriu os olhos. A expressão de pavor dos mesmos era
inconfundível. Moveu os lábios.
Tschato colocou o rosto perto do visor do capacete do homem e mostrou um sorriso
tranqüilizador.
— Vamos, Dan — disse Tschato. — Devemos levá-lo daqui.
Quando levantaram o homem, o mesmo soltou um grito de dor tão forte que
ouviram através do capacete. Picot segurou mais firmemente as pernas do aconense.
Tschato afastou violentamente os escombros que lhe barravam o caminho. Sua figura
enorme parecia um tanque atravessando a sala de comando.
Entregaram o ferido a quatro tripulantes da Lion, que se encarregaram de seu
transporte. Quando chegaram ao elevador antigravitacional, o aconense foi colocado
entre Tschato e Picot, que o levaram por meio de seus trajes voadores ao convés em que
estava estacionado o jato espacial. Dali a alguns minutos o comando de abordagem estava
reunido no interior do jato.
Picot, que esperara que Tschato fosse voltar imediatamente à nave-mãe, viu que se
enganara. Juntamente com outro homem, libertou o aconense de seu traje protetor. Abriu
seu próprio capacete. Neste meio-tempo o náufrago perdera os sentidos. Só se recuperou
quando Tschato deu algumas palmadinhas em sua face.
— Onde... onde estão os outros? — perguntou o homem com a voz apagada. Falava
o intercosmo, mas com um sotaque tão estranho que o sentido de suas palavras quase
ficou desfigurado.
Tschato fez um gesto vago.
— Mortos? — perguntou o aconense. — Estão todos mortos?
— Parece que sim — limitou-se Tschato a responder.
O aconense fechou os olhos. Picot ouviu-o suspirar. Tschato esperou pacientemente
que o ferido voltasse a falar.
— Receberam nosso pedido de socorro? — perguntou depois de algum tempo.
— Recebemos — respondeu Tschato. — Viemos imediatamente com uma nave
auxiliar.
O homem tentou abanar a cabeça, mas quando esboçou o primeiro movimento
sentiu-se dominado pela dor. Seu rosto parecia cansado.
— Também vou morrer — disse num tom indiferente, que deixou Picot abalado. —
Agradeço por seus esforços. Não acredito que, se estivéssemos no seu lugar, teríamos
agido como os senhores.
— Aí está a diferença entre os aconenses e os terranos — disse Tschato em tom
indiferente. — Como aconteceu a catástrofe?
O ferido tossiu. Tschato fez um sinal e dois astronautas ergueram-no
cautelosamente. Por um instante Picot receou que o desconhecido voltasse a perder os
sentidos, mas depois de algum tempo falou com a voz firme.
— A nave em que nos encontramos é uma nave exploradora aconense. Recebemos
ordens para testar os efeitos do hiperespaço sobre um novo hiperpropulsor. Quando
estávamos fazendo nosso trabalho, a nave colidiu com uma massa.
— No hiperespaço? — perguntou Tschato em tom de perplexidade. — Meu caro,
não somos tolos a ponto de acreditar em lorotas. Conte a verdade.
O aconense atirou a cabeça para trás.
— Meu nome é Gena-Tart — disse em tom orgulhoso. — Não costumo mentir.
— Não é possível — disse Tschato. — No hiperespaço não pode existir matéria
estável.
— Era o que pensávamos — disse Gena-Tart. — Mas basta olhar para nossa nave. É
a melhor prova de que minhas palavras correspondem à verdade. A colisão com uma
unidade de matéria hiperestável realmente ocorreu.
Tschato pôs-se a refletir por um instante. Finalmente ligou o rádio de bordo e
chamou a Lion.
— Preste atenção, Dawson. Quero que Gaylord venha com mais alguns homens
num jato espacial até a nave destroçada. Todos os pontos de impacto da nave aconense
terão de ser cuidadosamente examinados.
— Perfeitamente, senhor — confirmou Dawson.
Dali a alguns segundos ouviu-se o zumbido de rádio. Tschato ligou a recepção.
— Que houve? — perguntou. — Algo de errado, Dawson?
— Aqui fala Gaylord — disse uma voz. — O rádio-operador acaba de dizer que
devemos examinar os locais de impacto existentes na nave aconense. Poderia informar o
que devemos procurar?
Picot pensou que Tschato fosse explodir, mas o gigante negro limitou-se a sorrir.
— Quero que procurem vestígios de um tipo de matéria que se mantém estável no
hiperespaço — disse.
— Ha, ha, ha! — fez Gaylord. — Vejo que possui senso de humor, tenente.
Acontece que seu humor é maior que sua criatividade, pois do contrário teria inventado
coisa maior para dar algo a fazer aos cientistas.
— Enquanto estiver a bordo da Lion, o senhor tem de obedecer às minhas ordens,
Gaylord — disse Tschato em voz baixa. — E eu lhe ordeno que venha imediatamente
para cá numa nave espacial e execute a tarefa que lhe foi atribuída.
— Naturalmente — resmungou Gaylord. — A caça aos fantasmas pode começar.
— Este homem está transbordando de arrogância — observou Picot, depois que
Tschato tinha desligado. — Já o vejo salutar com suas pernas tortas por entre os destroços
e farejar tudo.
— Vamos com calma, Dan — disse Tschato. Voltou a dirigir-se ao aconense.
— Tem alguma idéia de como pode surgir uma concentração de matéria no interior
do hiperespaço? — perguntou.
— Não — respondeu Gena-Tart. — Não tivemos tempo para fazer suposições.
Imediatamente após a colisão todos os hiperagregados deixaram de funcionar. Seguiram-
se inúmeras explosões. Talvez fosse uma espécie de antimatéria. A tripulação tentou pôr-
se a salvo no interior das naves auxiliares, mas o oxigênio escapou por tantos rombos que
todos morreram. Por acaso ainda consegui chegar ao meu traje protetor. Tive de constatar
que este instrumento de salvamento também tinha sido vítima da destruição. Consegui
arrastar-me de volta para a sala de comando e liguei a transmissão do pedido de socorro.
Como o transmissor principal também estava em pane, só pude emitir sinais Morse pelo
transmissor de emergência.
— Vamos levá-lo a bordo de nossa nave — prometeu Tschato. — Nossos médicos
cuidarão do senhor.
— Obrigado — respondeu Gena-Tart.
Dali a alguns minutos chegou a segunda nave auxiliar. Gaylord e outros cinco
cientistas saíram do mesmo e dirigiram-se em seus trajes protetores a um dos rombos
abertos no casco da nave. Coletaram amostras de metal e foram a outro ponto de impacto.
Tschato acomodou-se no assento do piloto do jato e dirigiu a minúscula nave para
fora dos destroços. Os cientistas foram os únicos que ficaram para trás. Gena-Tart morreu
enquanto voavam em direção à Lion. Seu cadáver foi lançado no espaço através da
eclusa.
— Ele ainda nos poderia ter dado muitas informações — disse Tschato em tom
triste.
Picot ergueu as sobrancelhas. De Tschato só se poderiam esperar palavras
insensíveis. Se um dos homens da Lion tivesse encontrado a morte, sua fala não seria
diferente.
Picot não conseguira ver um inimigo em Gena-Tart. Ficara impressionado com o
orgulho demonstrado pelo mesmo, apesar da situação desesperadora em que se
encontrava.
Os cientistas voltaram para a Lion uma hora depois de Tschato e seus
companheiros. Gaylord deu início imediatamente às experiências com as amostras
colhidas.
Dali a vinte minutos apareceu na sala de comando.
— Encontramos o que nunca poderíamos ter esperado — disse. — Em todas as
partes havia vestígios de neo-molkex perto dos locais de impacto.
Tschato e Picot entreolharam-se. Depois de dois meses de buscas incessantes,
finalmente tinham encontrado uma pista da substância que procuravam. Mas o neo-
molkex parecia existir num lugar em que ninguém acreditaria: no interior do hiperespaço.
Picot refletiu sobre as conseqüências desse fato. Imaginou que a Lion e seus tripulantes
teriam pela frente mais uma série de dias agitados. Tschato era um homem que seguia
obstinadamente qualquer pista com que se deparava, por mais pobre que fosse.
2

O sol com suas pulsações provocou pela segunda vez uma reação violenta nos
rastreadores da Lion. Descobriram a estrela quando se encontravam a uma distância de
cinco meses-luz da mesma, enquanto Gaylord ainda prosseguia em sua exposição sobre
as características dos locais de impacto encontrados nos destroços da nave aconense.
O sol emitia um brilho esverdeado, mas de cada vez que liberava novas quantidades
de energia para o espaço tornava-se mais claro. O fenômeno podia ser observado muito
bem na tela da Lion.
— O efeito mostrado pelos rastreadores é idêntico ao que foi constatado na presença
da nave aconense — constatou Tschato em tom frio. — O estado de excitação desta
estrela deve ter começado há pouco tempo, pois os rastreadores só começaram a reagir
agora.
— Isso é uma impossibilidade astronômica — observou Gaylord e fitou o
comandante com uma expressão séria. — Nunca ouvi falar numa estrela que pulsasse. —
De repente empalideceu. — Faço votos de que esta estrela não se transforme numa nova.
Picot assumiu uma postura agressiva e entesou-se em sua poltrona. Será que não
havia ninguém que dissesse a esse idiota que a torrente energética de uma eventual nova
teria de percorrer exatamente cinco meses-luz para atingir a Lion? Os hiperaparelhos
supersensíveis do couraçado seriam capazes de detectar a irrupção energética ainda
durante sua formação. Mesmo que se supusesse que a avalanche da luz de uma nova, que
esmaga tudo à sua passagem, atingisse dentro de cinco meses o lugar em que a Lion se
encontrava no momento, não havia nenhum perigo para a nave.
— Também acreditávamos que a existência de matéria estável no hiperespaço fosse
impossível — disse Tschato, dirigindo-se ao cientista. — O estranho comportamento
deste sol não pode ser obra do acaso. Deve haver alguma relação entre a nave aconense, o
neo-molkex e esta estrela.
Gaylord parecia pensativo.
— A audácia de suas conclusões só é excedida pela realidade deste sol — disse. —
Pois eu digo que esta estrela não tem nada a ver com a nave aconense.
— Não existe nenhuma relação direta — ponderou Tschato. — Mas não podemos
excluir a possibilidade de que esta estrela esteja sujeita ao mesmo fenômeno que destruiu
a nave.
Gaylord fungou num gesto de desprezo.
— De qualquer maneira vamos verificar o que está acontecendo nas proximidades
do sol — anunciou Tschato.
— Os exames da nave destroçada ainda não foram concluídos — protestou Gaylord.
— Acho que as novas análises metalúrgicas serão mais promissoras que...
— No momento os destroços não interessam — interrompeu Tschato. —
Cuidaremos da estrela verde.
O comandante sempre impunha sua vontade. Gaylord retirou-se um tanto
contrariado. Tschato batizou o sol misterioso com o nome de Whilor. Segundo as
primeiras medições, Whilor ficava a quarenta e oito mil, trezentos e trinta anos-luz da
Terra.
A Lion saiu em alta velocidade. Dentro de pouco tempo os rastreadores mostrariam
que as irrupções energéticas oscilantes não poderiam provir exclusivamente do sol. Pela
primeira vez os homens que se encontravam na sala de comando conjeturaram que
Whilor devia possuir pelo menos um planeta.
Quando o couraçado saiu da zona intermédia nas proximidades do misterioso sol, as
operações de rastreamento revelaram que um novo sistema solar acabara de ser
descoberto. Quatro mundos ao todo circulavam em torno de Whilor.
O planeta cuja órbita ficava mais distante, um gigante do tamanho de Júpiter,
apresentava as mesmas características de Whilor, muito embora suas irrupções
energéticas não fossem tão violentas como as do sol.
Tschato designou o quarto planeta pelo nome de Pulsa.
— Uma coisa muito estranha está acontecendo por aqui — disse, dirigindo-se a
Picot. — Para os fenômenos observados no sol talvez poderia haver uma explicação, mas
diante deste planeta qualquer teoria parece pecar contra a lógica.
Avisou Gaylord, que esqueceu seus ressentimentos e voltou a aparecer na sala de
comando. Tschato mostrou-lhe o grande planeta, do qual a Lion ia se aproximando.
— Que acha disso, senhor Gaylord?
— Estranho — respondeu o cientista. — Por que fomos encontrar este fenômeno
justamente e exclusivamente no quarto planeta? Os outros mundos do sistema não
parecem ter sido atingidos pelo mesmo.
— Precisamos descobrir a causa — disse Tschato. — Vamos olhar Pulsa mais de
perto.
Gaylord, que ainda não conhecia Tschato há bastante tempo para estar informado
sobre as peculiaridades do comandante, disse:
— Acho que é meu dever chamar sua atenção para os perigos que provavelmente
nos esperam neste planeta.
Picot fitou o cientista com uma expressão zangada. Se ainda houvesse alguma
chance de manter o leão afastado de Pulsa, as palavras de Gaylord a tinham destruído de
vez. Tschato faria tudo para provar que não se detinha diante de nenhum perigo.
Novas medições foram efetuadas. O mundo exterior do sol Whilor era do tamanho
de Júpiter. Apesar do tamanho, o planeta Pulsa levava pouco mais de nove horas para
completar uma rotação em torno do próprio eixo. Em virtude disso a força centrífuga era
bastante intensa na zona equatorial, fazendo com que o planeta se alargasse. Pulsa parecia
antes uma elipse que uma esfera, de tão achatado que era nos pólos.
A Lion penetrou no campo gravitacional de Pulsa, que avançava bastante espaço a
dentro. As medições revelaram que nos pólos a gravitação atingia a marca dos 2,8 gravos,
enquanto na zona equatorial, onde a força centrífuga era mais intensa, esse valor subia
para quatro gravos.
A força de atração do planeta gigantesco não poderia representar nenhum perigo,
diante das poderosas máquinas da Lion. Mas Picot, que observava o mundo de metano na
tela panorâmica, preferiria que o couraçado se mantivesse afastado de Pulsa.
Se Tschato realmente resolvesse pousar com a Lion, certamente mandaria sair um
ou mais veículos voadores. As tremendas hiperondas que partiam de Pulsa deram o que
pensar a Picot, que fazia votos de que Tschato não se envolvesse numa coisa de que
pudesse vir a arrepender-se.
Os rastreamentos de grande alcance feitos nos outros mundos faziam supor que não
havia vida em nenhum lugar do sistema de Whilor. Pulsa parecia ser o único planeta
interessante que girava em torno do planeta pulsante.
Tschato resolveu enviar uma nave-girino sob o comando do capitão Walt Heintman.
Este recebeu ordem de informar a frota terrana sobre os acontecimentos que se
desenrolavam no sistema de Whilor. Em outra oportunidade essa providência já se
revelara vantajosa no setor de Simban.
A Lion Três saiu pela eclusa. Dan Picot sabia que o jovem Heintman era um homem
de confiança. Já percorrera a distância enorme a que ficava o setor de Simban, e trouxera
auxílio. O imediato da Lion ficou mais tranqüilo. O couraçado estaria protegido. Dentro
em breve chegariam as primeiras naves terranas para dar apoio à Lion.
Mas até lá muita coisa poderia acontecer. Só mesmo quem não conhecesse Tschato
seria capaz de acreditar que o comandante da Lion era um tipo fleumático.
Na verdade, Nome Tschato era um oficial que costumava agir depressa.
O último contato de rádio com a Lion Três revelou que a nave-girino continuava a
acelerar e estava saindo do sistema de Simban.
Tschato virou-se preguiçosamente na poltrona de comando. Parecia sonolento ao
olhar para Dan Picot.
— Cuide da operação de pouso, Dan — ordenou. — Vamos descer na área polar. É
um terreno mais fácil para os carros voadores.
Essas informações lacônicas diziam tudo para Picot. Mas não havia tempo para
refletir sobre isso. Assumiu o comando da Lion, enquanto Tschato abandonava seu lugar
e se aproximava de Gaylord, que estava sentado atrás da mesa dos mapas com o rosto
arrogante.
Picot resolveu agir com muito cuidado, até mesmo num simples pouso. Era possível
que lá embaixo acontecesse alguma coisa que tornasse impossível a descida da nave. O
imediato não fazia nenhuma questão de fazer a nave precipitar-se numa catástrofe.
Desacelerando constantemente, a Lion entrou numa órbita estreita em torno de
Pulsa. Picot examinava atentamente os controles. Por um instante pensou no que
aconteceria se os neutralizadores de pressão da Lion falhassem naquele instante. Picot era
muito dado a reflexões pessimistas como esta. Chegava a ser supersticioso até certo
ponto. A atmosfera de metano que se agitava lá embaixo não era de molde a melhorar seu
estado de espírito. Qualquer pessoa que entrasse nessas torrentes sem traje protetor seria
esmagada.
Talvez Melbar Kasom pudesse sobreviver com um aparelho de oxigênio. Mas quem
poderia comparar-se a este monstro ertrusiano? Quanto mais o próprio Picot, que até
tinha dificuldades em encontrar um uniforme que assentasse em seu corpo magro.
Os rastreadores voltaram a reagir. Desta vez os rastreadores estruturais passaram
além da marca superior. Dan Picot segurou-se instintivamente ao leme. Não teve
nenhuma dificuldade em manter a Lion na rota.
— Comandante! — gritou, mas Tschato já estava a seu lado.
Picot fitou as telas com os olhos arregalados.
— Corpos estranhos, senhor — constatou com a voz insegura. — De onde vieram?
Embaixo deles blocos de matéria batiam na superfície de Pulsa. Por enquanto sua
origem estava envolta em mistério.
— O espaço em torno da Lion está vazio — constatou Tschato. — Por todos os
planetas do Universo, até parece que essas coisas se formam na atmosfera e caem na
superfície.
— As indicações dos rastreadores são as mesmas das transições — disse Picot, que
não se sentia nada à vontade.
— Isso mesmo, Dan! — exclamou Tschato, estupefato.
— Os corpos estranhos vêm do hiperespaço. Só saem de seu ambiente de dimensão
superior nas imediações da superfície do planeta.
Picot procurou imaginar algo parecido, mas sua criatividade ficava bem atrás dos
acontecimentos. Só tinha certeza de uma coisa. Se a suposição de Tschato era correta, a
Lion estava em perigo.
O número das indicações de corpos estranhos nos rastreadores aumentou. Uma
verdadeira saraivada parecia descer em Pulsa.
De repente um ranger atravessou a sala de comando, fazendo com que os cabelos da
nuca de Picot se eriçassem. Antes que qualquer coisa pudesse ser feita, os rastreadores
estruturais sobrecarregados ultrapassaram a marca máxima, produzindo um forte estalido.
Os aparelhos não resistiram à investida contínua da hiperenergia.
Sem querer, Picot lembrou-se da nave aconense destroçada. A simples idéia fez
porejar o sangue em sua testa. Não era um homem medroso, mas até mesmo o astronauta
mais corajoso ficaria abalado ao saber que sua nave se defrontava com perigos contra os
quais não possuía nenhuma defesa.
Enquanto os homens ainda fitavam os rastreadores estruturais destruídos com uma
expressão de perplexidade, o gigantesco kalup começou a fazer um barulho surdo. De
início era apenas um trovejar fraco. Picot lançou um olhar para os controles e viu que se
tratava da unidade energética cuja finalidade consistia na criação do campo defensivo
kalupiano. A máquina começou a funcionar em ritmo alucinante, sem que ele tivesse feito
as respectivas manipulações.
Picot engoliu em seco e pôs-se a mexer freneticamente nas teclas de controle. O
resultado foi igual a zero. Tschato gemeu e atirou-se na poltrona de comando, mas nem
mesmo o fato de o comandante ter assumido novamente a Lion podia acalmar o
nervosismo de Picot. As coisas que estavam acontecendo poderiam representar a morte
da tripulação.
O rugido da unidade energética transformou-se num uivo agudo. As máquinas
sobrecarregadas pareciam trovejar. De um instante para outro toda a nave parecia ter sido
colocada num estado de agitação. O intercomunicador emitiu um zumbido quase
imperceptível.
Tschato inclinou-se para a frente. Parecia calmo, mas seus olhos chispavam fogo.
— O que foi? — perguntou.
— O kalup ficou incandescente! — gritou uma voz masculina desesperada. — Está
vermelho. O que devemos fazer?
Picot fungou, apavorado. Não se atrevia a olhar para Tschato, pois tinha medo de
que o comandante reconhecesse a expressão de pânico em seu rosto.
— Temos de desligar a máquina — disse Tschato.
— E o que estou tentando o tempo todo — disse Picot em tom queixoso. — Até
parece que não temos mais nenhuma influência sobre o kalup. Suas energias já não criam
um campo defensivo em torno da Lion. Escapam em forma de um raio concentrado em
direção à superfície de Pulsa.
— Comandante! — A voz saída do alto-falante do sistema de intercomunicação
quase se atropelou. — O kalup já entrou num estado de incandescência branca.
Recorremos à equipe de extinção de fogo formada por robôs, mas a substância
refrigerante se evapora sem produzir o menor resultado. Se não fizermos alguma coisa,
estaremos perdidos.
— Dinamitem o kalup! — gritou Tschato, superando o barulho que se tornava cada
vez mais forte.
Seria um procedimento mais que arriscado. Sem o kalup, a Lion não teria a menor
chance de regressar à Terra. O Capitão Heintman seria a única esperança. Qualquer
incidente com a Lion Três bastaria para exilar a tripulação da Lion para todo o sempre no
sistema solar em que se encontravam.
O homem que se encontrava do outro lado da linha tossiu. Depois começou a falar
lentamente.
— Não conseguimos chegar lá. O kalup vai explodir. Somos obrigados a retirar-nos.
Tschato saltou da poltrona de comando como se alguma coisa o tivesse catapultado.
— Vamos, Dan! — gritou com a voz potente. — Faremos voar esta máquina
infernal para os ares.
Picot lembrou-se de que ainda era muito rápido.
De repente Dawson, chefe da equipe de rádio, deu um grito. Foi caindo lentamente
da poltrona, acabou no chão e rastejou-se, choramingando. Os olhos de Picot viram o
hipercomunicador, que estava reduzido a uma parede de metal incandescente. O imediato
olhou instintivamente para os outros aparelhos que funcionavam na base de
hiperimpulsos. Em todos eles notava-se o mesmo fenômeno.
Certamente a nave exploradora dos aconenses fora destruída desta forma.
— Já é tarde — disse Picot. — Não podemos fazer explodir mais o kalup.
Tschato espalmou os dedos é esticou os braços. Parecia um touro numa arena, que
não consegue pegar o adversário. Um som irreal saiu de sua boca. Picot voltou ao seu
lugar a passos cambaleantes e sentou. A temperatura no interior da sala de comando subiu
abruptamente. Alguém foi para junto de Dawson e levantou-o. O rádio-operador tinha
sofrido queimadura no rosto e nos braços. O rosto estava transformado numa careta, mas
seus gritos eram abafados pelo rugido do kalup.
Picot sentiu duas mãos potentes que o seguravam e puxavam para cima. Virou-se
abruptamente e viu o rosto de Tschato. Nunca vira o leão desse jeito e assustou-se com
aquele homem, que antes parecia um monstro negro.
— Não entregue os pontos, Dan! — disse Tschato com a voz penetrante. — Temos
que tirar a Lion daqui.
Picot atravessou a sala de comando ao lado de Tschato. A vontade férrea desse
homem servia-lhe de estímulo. Cada passo podia ser o último, mas Picot sentiu uma nova
esperança. Parecia inacreditável que um homem como Tschato pudesse deixar de existir.
De repente tudo ficou em silêncio. Os ruídos produzidos pelo kalup cessaram. No
mesmo instante a sala de comando estremeceu.
O kalup explodiu, pensou Picot. Uma detonação silenciosa destruíra a massa
enorme. A única coisa que se percebia eram os abalos, que se tornavam cada vez mais
fortes. Picot perdeu o equilíbrio e tombou para a frente. A sala de comando parecia girar
em tomo dele. Contorcia-se que nem um animal gigantesco sob o impacto das explosões.
Tschato caiu ao lado de Picot que nem uma árvore abatida. O imediato
compreendeu que era o fim. Com uma estranha clareza, viu-se a si mesmo, parado no
porto espacial e olhando para a Lion. Teve a impressão de que a chuva fria voltara a bater
em seu rosto, embora no interior da sala de comando o calor fosse cada vez mais forte.
Naquele dia Dan Picot selara sua sentença de morte.
Picot fez um esforço tremendo e conseguiu virar a cabeça, para ver Tschato. As
pernas e as mãos do leão faziam movimentos convulsivos. Parecia que aquele homem
enorme tentava levantar-se. Para Picot esse esforço era a coisa mais formidável que já
tinha visto. Compreendeu que apesar de tudo Tschato ainda não desistira.
Depois disso perdeu os sentidos.
3

Dan Picot teve a impressão de que o peso de um edifício de vários andares lhe
comprimia o peito. Quis libertar-se do mesmo, mas os braços ainda não obedeciam aos
comandos do cérebro. O cheiro de queimado penetrou no nariz de Picot, levando-o a
espirrar.
Abriu os olhos e viu o rosto do Primeiro-Tenente Nome Tschato bem à sua frente.
Era bem verdade que o mesmo ainda parecia um tanto confuso.
Picot suspirou e voltou a fechar os olhos.
— Diga-me uma coisa, comandante. Estamos no céu ou no inferno? — perguntou
com a voz rouca. Estava com a boca ressequida e sua garganta parecia fechar-se a cada
palavra que pronunciava.
— Diria que estamos na ante-sala do inferno — disse Tschato em tom pachorrento.
— Mas pode ser que alguém tenha outra opinião.
O toque de ironia na voz de Tschato podia parecer tudo, menos sobrenatural. Picot
pôs-se a escutar, mas não percebeu nenhum ruído do qual pudesse concluir onde se
encontrava.
Sentiu que Tschato o agarrava e levantava. Voltou a abrir os olhos e viu que
continuava no interior da sala de comando da Lion. Todos os aparelhos que funcionavam
em base hiperenergética pareciam defeituosos. Mas não havia destroços na sala de
comando. Nada indicava a ocorrência de uma catástrofe semelhante àquela que destruíra
a nave exploradora aconense. Os braços vigorosos de Tschato soltaram Picot. Em toda
parte viam-se homens rastejando sobre as mãos e os joelhos. Outros levantavam-se,
apoiados em vários objetos. Picot observou a tela de imagem. Uma massa ondulante
cinzenta desenhava-se na mesma. O imediato lembrou-se prontamente de que a Lion
ainda se encontrara numa órbita em torno de Pulsa quando ele perdera os sentidos.
— Onde estamos? — perguntou.
Seus olhos bem treinados perceberam que a Lion permanecia imóvel. Procurou uma
explicação para isso, mas só compreendeu que a nave não se encontrava mais no espaço
quando Tschato respondeu:
— Em Pulsa.
Num gesto nervoso, Dan Picot passou a língua pelos lábios rachados.
— Pulsa — repetiu. — Quem fez o pouso?
Tschato sorriu.
— É o que também fico me perguntando — disse. — Ao que parece, todo mundo
estava inconsciente. Quer dizer que a Lion só pode ter pousado em virtude de alguma
influência exterior.
Uma influência externa! Picot percebeu que os objetos começavam a tremer à sua
frente. Segurou-se por um instante e a vertigem logo passou. Uma influência externa!
Isso podia significar muita coisa, mas dificilmente seria uma coisa boa.
— Todas as hiperinstalações derreteram — informou o comandante. — Os
propulsores e o sistema de rádio comum estão funcionando. Quer dizer que a destruição
se restringiu a certos tipos de máquinas.
— Isso só torna a situação ainda mais misteriosa — interveio Gaylord, que parecia
um tanto esfarrapado. — O motivo dos fenômenos estranhos que acabamos de presenciar
deve ser procurado lá fora, no inferno de metano.
Tschato ocupou a poltrona de comando. Conseguiu comunicar-se com todos os
setores do couraçado pelo rádio comum. Ficou sabendo que não houvera mortes. Apenas
um técnico caíra de forma tão infeliz que tivera de ser levado à enfermaria. Da mesma
forma que na sala de comando, o abalo que se seguiu à destruição do kalup fizera com
que nos outros setores da nave os tripulantes ficassem inconscientes. Ninguém era capaz
de informar de que forma tinha sido realizado o pouso. Um exame rápido das naves-
girino guardadas no hangar revelou que os hiperaparelhos das naves espaciais também
tinham sido destruídos. Em compensação os campos defensivos comuns continuavam a
funcionar perfeitamente.
— Até parece que em Pulsa existe alguma coisa que está interessada na hiperenergia
— observou Tschato, depois que os tripulantes puderam avaliar os estragos. — Tiraram
da Lion tudo que ela pode oferecer neste ponto.
— Fomos espremidos que nem um limão, comandante — disse o Capitão Vertrigg.
Duprene, o lógico-chefe, formulou uma pergunta decisiva.
— Quem será o alguém que fez isso?
— Deve ser alguma coisa que não nos é declaradamente hostil — disse Picot. —
Depois de termos sido roubados, já não parecemos ser muito importantes. — Ao dizer
isso, estava contrariando sua convicção mais profunda. Nem de longe acreditava que todo
o perigo para a nave e seus tripulantes tivesse passado. Uma força — fosse ela qual fosse-
— que estava em condições de fazer pousar um couraçado e destruir suas
hiperinstalações, sem dúvida era capaz de dar cabo de vez da Lion.
Tschato apoiou os cotovelos nas braçadeiras da poltrona de comando. Apontou
ligeiramente para a tela de visão exterior. A única coisa que se via era uma série de
contornos cinzentos.
— Lá fora há alguma coisa que nos é totalmente desconhecida — disse. — Podem
ser formas de vida desconhecidas, ou então um conjunto de máquinas intactas,
produzidas por uma civilização desaparecida. Também pode ser um fenômeno natural
que só existe neste mundo.
— Se esta última hipótese fosse verdadeira, Pulsa seria um sol gêmeo de Whilor —
objetou Gaylord. — Nenhum planeta pode resistir por muito tempo a descargas
energéticas desse porte, nem mesmo um gigante do tamanho de Pulsa.
— Quer dizer que em sua opinião neste mundo vive uma raça tão desenvolvida que
é capaz de influenciar qualquer forma de hiperenergia segundo seus desejos? —
perguntou o Capitão Vertrigg.
O Dr. Gaylord levantou os braços em sinal de protesto.
— Não afirmei nada disso — objetou. — Até acho bastante improvável que alguma
forma de vida possa desenvolver-se nas condições aqui reinantes. Em minha opinião a
idéia do comandante, segundo a qual em Pulsa podem existir máquinas em
funcionamento, criadas por uma civilização desaparecida, é indefensável. Deve haver
outra explicação para o incidente.
— Sem dúvida — asseverou Tschato. — Mas não acredito que possamos encontrar
essa explicação se continuarmos sentados aqui, discutindo. Faremos sair um robô.
— Excelente idéia! — disse Gaylord. — Desta forma poderemos descobrir alguma
coisa sem enfrentar um risco pessoal.
Tschato mandou preparar um dos robôs achatados de múltiplas finalidades. Os
técnicos montaram uma câmara especial na máquina, câmara esta que deveria irradiar as
imagens para as telas de imagem exterior. Depois disso o robô foi colocado na superfície
de Pulsa, através da eclusa.
Picot acompanhou os preparativos com a maior tranqüilidade, mas a sensação de
insegurança que experimentava era cada vez mais forte. A idéia de fazer sair um robô
parecia boa, mas era perfeitamente possível que produzisse um efeito de bumerangue. Em
sua opinião, teria sido mais sensato fazer decolar a Lion por meio dos propulsores
comuns e levá-la de volta ao espaço. Mas Tschato não aceitaria uma sugestão nesse
sentido. O caráter estranho desse planeta, os fenômenos misteriosos que se verificavam
no mesmo, tudo isso o estimulava tanto que nem pensava em bater em retirada.
Depois de pouco menos de dez minutos a câmara do robô versátil começou a
funcionar em virtude de um impulso expedido pela Lion. Os contornos cinzentos
projetados na tela modificaram-se. Foi ficando cada vez mais claro. Picot reprimiu a
tosse. Sentiu que os homens que acompanhavam as imagens estavam cada vez mais
tensos. Todos esperavam ver alguma coisa. Na fantasia de cada homem havia certas
concepções sobre o mundo exterior. Mas Picot duvidava de que qualquer um deles
conseguisse aproximar-se da realidade.
O robô foi deslizando ininterruptamente através das nuvens de metano. Rochas
parcialmente cobertas com neve de amoníaco entraram no campo da objetiva. Tschato fez
a máquina parar por meio do controle remoto. Depois fez com que girasse lentamente em
torno do próprio eixo. Quando as colunas de apoio da Lion apareceram na tela, Tschato
interrompeu o movimento giratório. O couraçado estava completamente só na superfície
do mundo estranho. Não havia nada que indicasse a presença de outras formas de vida.
Tschato fez o robô rolar para cerca de cem metros da nave. Viu-se que a Lion tinha
pousado numa depressão. Todas as colunas de apoio que entraram no campo de visão da
objetiva estavam intactas.
O robô versátil subiu uma coluna. Quando atingiu o topo e iniciou a descida, parte
da Lion tornou-se visível. Mais uma vez o robô foi levado a fazer um movimento
giratório em torno do próprio eixo.
De repente Picot teve a impressão de ter visto um movimento na tela. Mas também
podia ser uma nuvem de neve de amoníaco. Nuvens de cloro, metano e gás sulfuroso que
passavam rente ao solo também podiam iludir o olho humano.
A câmara não penetrava muito longe na penumbra sombria. Mas Picot teve a
impressão de que estava ficando cada vez mais claro. Era possível que um novo dia
estivesse começando nesta face do planeta. Como o movimento de rotação de Pulsa era
muito rápido, logo deveria clarear de vez.
— É um deserto cinzento — constatou Tschato. — Provavelmente o quadro será
sempre o mesmo, seja qual for o lugar ao qual mandarmos o robô.
— Quer mandar voltá-lo à nave? — perguntou o Dr. Gaylord, decepcionado.
— Quero — confirmou Tschato. — Não está conseguindo mais que as telas de
visão exterior. Se quisermos descobrir mais alguma coisa sobre este mundo, teremos de
arriscar-nos a sair pessoalmente.
— Faça a máquina descer ao menos pela outra encosta da colina — pediu Gaylord
em tom insistente. — Talvez descubramos alguma coisa.
— Está bem — condescendeu Tschato. Voltou a dedicar sua atenção ao controle
remoto. Picot sentiu-se grato pela demora. Enquanto a máquina permanecesse do lado de
fora, seria pouco provável de que Tschato mandasse sair um carro voador.
O robô aumentou de velocidade. A superfície do planeta parecia tornar-se mais
acidentada. As imagens transmitidas mudaram de repente. Nome Tschato parecia cada
vez mais desinteressado nessa operação. Fez o robô contornar duas rochas que a máquina
não poderia superar. A tela voltou a escurecer. O robô ficou envolto numa nuvem densa.
Tschato olhou para o Dr. Gaylord.
— Satisfeito? — perguntou.
Gaylord fez que sim. Reconheceu que dessa forma não descobririam mais nada
sobre Pulsa. Nas imediações da Lion não havia qualquer dado do qual pudessem tirar
uma conclusão sobre os fenômenos misteriosos que se tinham verificado. O robô fez
meia-volta e saiu rolando em velocidade máxima na direção em que estava a Lion.
Explodiu pouco antes de chegar ao topo da colina. Um lampejo apareceu na tela,
mostrando aos homens que se encontravam na sala de comando que a máquina versátil
deixara de existir. O controle remoto não reagia mais. Dan Picot lançou um olhar de
perplexidade para as telas, nas quais se viam mais claramente as imediações da Lion, uma
vez que lá fora estava mais claro e Tschato tinha ligado o sistema de transmissão de
imagens externas.
— Foi... foi destruído, comandante? — perguntou Gaylord em tom nervoso.
— Completamente — respondeu Tschato. — Se só a câmara tivesse sido destruída,
o controle remoto ainda estaria funcionando. A máquina explodiu.
Gaylord esfregou o queixo. Por um momento abandonou sua arrogância. Era apenas
um homem assustado, levado a um mundo estranho.
— Como pode ter acontecido isso? — perguntou. Tschato deu de ombros.
— Não sei, da mesma forma que não sei dizer por que os hiperaparelhos foram
destruídos. O robô não funcionava em base hiperenergética. Apesar disso explodiu.
— Estou preocupado — confessou Gaylord. — O que faremos se todas as
instalações da nave que funcionam com energia comum forem destruídas?
Picot achava que a pergunta tinha sua razão de ser. Mas mais uma vez o primeiro-
tenente mostrou sua veia fatalista. Sua resposta limitou-se a um ligeiro sorriso. O robô
colocado fora da nave provara que na paisagem desértica que os cercava havia perigos à
sua espreita.
— Conferenciarei com os colegas sobre o incidente — decidiu o Dr. Gaylord. —
Faça o favor de avisar-nos quando decidir enviar um carro voador para fora.
— Esta decisão já foi tomada — disse Tschato. — Temos de dar uma olhada lá fora.
Partiremos assim que sua conferência estiver concluída.
Se a informação que acabara de ser dada surpreendeu Gaylord, ele não o mostrou.
Caminhou para fora da sala de comando com as pernas duras. Tschato seguiu-o com os
olhos; parecia pensativo. Picot tentou adivinhar os pensamentos que havia atrás da testa
escura.
Tschato fez uma ligação com o centro de comando de tiro. Dali a um instante estava
falando com o Tenente Gordella.
— Farei sair alguns carros voadores — anunciou. — O senhor fica incumbido de
repelir qualquer ataque aos veículos de esteira capazes de voar com todas as armas de que
dispõe, enquanto os carros estiverem dentro do alcance dos canhões. Qualquer ataque
contra a Lion também deverá ser repelido com todos os meios que estiverem ao seu
alcance.
— Entendido, senhor — respondeu Gordella em tom rígido. — Devo lembrar que a
falha das hiperinstalações afetou parcialmente o centro de comando de tiro. Nossas
possibilidades de rastreamento estão limitadas às armas mais lentas que a luz.
— Naturalmente — disse Tschato com a voz calma. — Acredito que nem haverá
um confronto. Apesar da perda de um robô, não há indícios da presença de uma força
desconhecida.
— Não senhor — confirmou Gordella em tom hesitante. Tschato ligou para o
hangar e mandou que os homens que estavam de serviço por lá preparassem todos os
carros voadores.
— Por enquanto faremos sair três carros — informou. — O Capitão Vertrigg se
encarregará de um deles, e o senhor, Dan, do segundo. Irei no terceiro, juntamente com o
Dr. Gaylord e mais três cientistas. Picot e Vertrigg basicamente ficarão incumbidos de
dar-nos cobertura. Se um dos veículos for obrigado a pousar, os outros ficarão acima da
superfície, para proteger esse veículo. E possível que os cientistas estejam bastante
interessados num pouso durante a viagem.
Tschato escolhera o trabalho mais difícil para si mesmo. Foi o que Picot constatou
no seu íntimo. Isso correspondia ao seu caráter. De qualquer maneira, a saída simultânea
de vários carros parecia mais segura que a tentativa de penetrar na paisagem
desconhecida com um único veículo.
Tschato levantou-se. Dava a impressão de que era capaz de vencer qualquer inimigo
que cruzasse seu caminho. Mas a conclusão não era verdadeira. Muitas vezes o próprio
comandante da Lion não tivera outra alternativa senão uma fuga precipitada.
Nome Tschato olhou para o relógio de bordo.
Faltava pouco para as 15 horas. O letreiro luminoso embaixo do relógio indicava o
dia 18 de julho de 2.329.
Dali a pouco três veículos iniciaram o vôo para o desconhecido.
4

O crepúsculo sombrio para o qual Dan Picot, imediato da Lion, dirigiu o carro
voador, não poderia ser comparado com um dia do planeta Terra. A superfície do planeta
que se estendia embaixo deles parecia um pedaço enorme de roupa suja. As manchas
mais claras eram formadas por neve de amoníaco.
Picot lançou um olhar para trás e viu a Lion destacar-se que nem um castelo entre as
brumas gasosas. O gravímetro indicava um valor pouco inferior a três gravos. Para o
oficial, isso era uma prova de que a nave não tinha pousado nas proximidades do
equador. Os três veículos usavam a propulsão antigravitacional para voar. Uma segurança
adicional para os homens era representada pelos pesados trajes protetores, com os quais
seriam capazes de resistir ao triplo de seu peso normal, caso um dos carros voadores
falhasse.
Picot fazia votos de que as coisas não chegassem a este ponto. A sua frente voava o
veículo blindado de Tschato. O veículo ainda não tinha atingido a velocidade máxima. Ao
que tudo indicava, o comandante preferia afastar-se lentamente da Lion, para examinar
atentamente a área circunvizinha. Enquanto podia ver a Lion, Picot ainda se sentia mais
ou menos seguro.
Olhou para o lado. A uns cinqüenta metros de distância o Capitão Vertrigg fazia o
terceiro veículo atravessar as nuvens de gás. Era um quadro irreal, que ficou fortemente
gravado na mente de Picot. Bem que gostaria de ver o sol, mas os raios do mesmo não
eram capazes de atravessar a atmosfera venenosa.
Além do comandante e do Dr. Gaylord, havia mais três cientistas e técnicos a bordo
do veículo de Tschato. Picot levava consigo cinco tripulantes da Lion, entre eles Dawson,
chefe da equipe de rádio. O Capitão Vertrigg levava seis homens. A bordo de seu veículo
estava Duprene, o lógico e cibernético. Mais dois carros voadores estavam prontos para
decolar do hangar da Lion. Poderiam ser chamados a qualquer momento para apoiar os
outros veículos.
Sobrevoaram o topo da colina sobre a qual explodira o robô.
A voz de Tschato s00u no alto-falante do rádio normal.
— Veículo um chamando veículos dois e três. Vamos descer um pouco para
examinar o lugar em que explodiu o robô.
Picot confirmou o recebimento da mensagem e reduziu a velocidade. Viu que
Tschato fazia descer seu veículo de esteira. Lá do alto não via muita coisa. Havia
inúmeras manchas escuras, e qualquer uma delas poderia ser formada pelos destroços da
máquina.
— Já descobrimos os rastros — informou Tschato.
O veículo blindado descreveu um círculo estreito. Picot olhou atentamente para a
depressão. Não viu nenhum movimento nas proximidades da Lion. Do outro lado da
colina também estava tudo quieto. As nuvens de gás pareciam um pouco mais agitadas.
Redemoinhos em forma de funil surgiram em vários lugares.
— Ali está ele! — exclamou Tschato.
Picot foi contagiado pelo nervosismo, muito embora não pudesse enxergar aquilo
que o comandante acabara de ver.
— Descobrimos o robô — anunciou Nome Tschato. — Derreteu. A força da
explosão fez com que afundasse um pedaço.
De repente Picot teve uma idéia.
— Aqui fala o veículo dois — disse. — Comandante, se o senhor descobriu os
rastros da máquina, talvez consiga ver outros rastros.
— Já pensei nisso, Dan — respondeu Tschato. — Mas neste chão revolto não posso
saber quais são os rastros criados por influência da atmosfera. Conhecemos as marcas
deixadas pelo robô e por isso podemos distingui-las das outras.
— Talvez exista alguma marca que se repita a intervalos regulares — disse Picot.
— Não vejo nada — respondeu o comandante. — O Dr. Gaylord também acha que
é impossível encontrarmos os rastros dos seres que eventualmente vivem aqui.
— Está bem — disse Picot, decepcionado. — Talvez haja outras indicações.
— Na volta levaremos os restos do robô — prometeu Tschato. — Talvez uma
análise ajude em alguma coisa.
O veículo do comandante voltou a ganhar altitude. Picot reconheceu que não havia
outra alternativa senão penetrar mais profundamente neste mundo. A cada metro que se
afastavam da Lion aumentava a ameaça que Pulsa parecia irradiar.
Percorreram trezentos metros planando. De repente a superfície mudou embaixo
deles. A coloração suja desapareceu. Deu lugar a uma camada marrom uniforme. Picot
não atribuiu muita importância à mudança. Mas a voz de Tschato logo se fez ouvir.
— Gaylord quer dar uma olhada no solo — informou. — Parece que suspeita de
alguma coisa.
O tom da voz de Tschato não revelava se o mesmo compartilhava as suspeitas dos
cientistas. Provavelmente o comandante sabia tão pouco quanto Picot sobre quais eram as
suposições dos cientistas. Picot olhou instintivamente para trás, através da carlinga
transparente do carro voador. Os contornos da Lion continuavam a desenhar-se entre as
nuvens. Às vezes a nave aparecia em todo o tamanho, às vezes só em parte, conforme a
modificação das correntes atmosféricas.
Picot atravessou um redemoinho de gás. O veículo balançou ligeiramente e logo
saiu do mesmo. O veículo de esteira de Tschato preparava-se para pousar.
O carro voador pilotado por Vertrigg chegou mais perto. Picot ficou com os olhos
semicerrados. A visibilidade era má. Constantemente as nuvens de gás lhe davam a
impressão de ter visto um movimento na superfície.
Tschato comunicou que acabara de pousar seu veículo.
— A massa marrom parece ser alguma cobertura — informou. — Gaylord afirma
que não combina com a imagem que ele e seus colegas formaram de Pulsa.
Picot manteve seu veículo em posição ligeiramente lateral em cima do veículo
pousado. Constantemente tinha de usar o leme, para não ser carregado pelas correntezas
da atmosfera revolta.
A voz de Tschato voltou a soar.
— Alô, vocês aí em cima. Gaylord afirma que a camada marrom é formada por neo-
molkex.
Picot franziu a testa. Gaylord era um tipo arrogante, mas como cientista merecia
toda confiança. Não faria uma afirmativa tão arrojada se não houvesse um fundamento
para isso.
Dan Picot voltou a olhar para baixo e ficou espantado ao notar que uma figura
estava saindo do veículo blindado. Picot praguejou fortemente. Havia sido decidido que
só numa emergência alguém sairia dos veículos. Num ambiente como o de Pulsa os trajes
protetores geralmente não mereciam muita confiança. Sem dúvida havia escafandros
especiais, mas no momento não dispunham dos mesmos.
Picot perguntou-se quem seria o homem que arriscava a vida lá embaixo para
resolver um problema.
***
O Dr. Neven Gaylord chegou aos quarenta anos acreditando firmemente que um dia
morreria numa cama. Esta expectativa e seus conhecimentos na área das mudanças
estruturais fizeram com que desde o início ocupasse um lugar na sociedade humana com
o qual não estava satisfeito. Perante seus semelhantes ocultava essa insatisfação atrás de
atitudes arrogantes e falas pomposas. Mas também a ocultava de si mesmo. Dessa forma
chegou a criar um complexo. Acreditava que seu estilo de vida era o único aceitável e
desprezava todas as pessoas que não eram da mesma opinião.
Depois de ter subido a bordo da Lion, a insatisfação do Dr. Gaylord aumentou ainda
mais. Não era tanto por causa do vôo, mas por causa do Primeiro-Tenente Nome Tschato.
Gaylord não demorou a compreender que o gigante de pele negra não se impressionava
com nada. O comandante não se interessava pelo estilo de vida de um certo Dr. Gaylord.
Esperava simplesmente que o cientista se orientasse por seus planos, tal qual faziam as
outras pessoas que se encontravam a bordo. No início Gaylord tentara rebelar-se contra
este tratamento, mas Tschato parecia liso como uma enguia: não oferecia nenhum ponto
de ataque.
Naquele momento o Dr. Neven Gaylord, que pretendia morrer na cama e se
encontrava a mais de 40.000 anos-luz da mesma, ofereceu-se a sair e enfrentar um mundo
estranho e perverso.
Gaylord não sabia o que o levara a oferecer este tipo de colaboração a Tschato.
Talvez quisesse impressionar o comandante.
— Nas condições reinantes aqui podemos dizer que o tempo hoje está bom — disse
Tschato em tom zangado. — Apesar disso o ambiente lá fora é bastante perigoso para um
homem inexperiente. Deixe que Placidia saia.
Placidia era o técnico que subira a bordo juntamente com Tschato e os cientistas.
Dirigiu-se imediatamente à parte traseira do veículo, para sair pela eclusa.
— Espere aí! — gritou Gaylord.
O técnico parou. Parecia contrariado. Esperou que Tschato lhe desse ordem para
prosseguir, mas o comandante virou o rosto para Gaylord.
— Em minha opinião encontramos uma camada de neo-molkex — disse Gaylord.
— Mas para provar que é assim, terei que examinar as formações em bloco que se
encontram lá fora.
— Posso trazer-lhe qualquer quantidade que o senhor desejar — interveio Placidia,
que ficou aborrecido porque Tschato não dava logo a ordem definitiva.
— Se realmente é molkex, o senhor não conseguirá desprender um grama do
material que seja — disse Gaylord. — Preciso ver de perto para chegar a uma conclusão.
— Volte ao seu lugar! — disse Tschato, dirigindo-se ao técnico. — O senhor poderá
sair pela eclusa, doutor. Mas quero que volte imediatamente, se houver algum problema.
Se eu o chamar de volta, o senhor não deverá demorar em cumprir minha ordem. Prefiro
partir sem o senhor a colocar em perigo este carro, no qual encontram proteção mais
cinco homens.
— Não sou nenhuma criança — queixou-se Gaylord.
Tschato sorriu. Fez questão de examinar cuidadosamente o traje protetor de
Gaylord. Depois disso mandou que o cientista se dirigisse à câmara da eclusa. No
momento em que a porta que ligava a mesma ao interior do veículo se fechou, o Dr.
Gaylord repentinamente se sentiu completamente abandonado. Teve a impressão de que
já sabia o que significava sair sozinho para um inundo desconhecido. Uma pressão que
nunca antes sentira comprimiu-lhe o peito. Respirou pesadamente. Imediatamente
concentrou-se nas indicações dos instrumentos existentes no interior da câmara da eclusa.
As indicações do medidor de pressão mudaram. Gaylord teve a impressão de estar
sentindo falta de ar, mas os instrumentos que leu não o enganavam. Era o medo que o
martirizava.
Mordeu na língua com tanta força que a dor sufocou qualquer outro sentimento.
Mas foi só a idéia de enfrentar o sorriso irônico de Tschato se o mesmo visse o Dr.
Gaylord voltar sem ter saído da câmara que fez com que o cientista vencesse o pânico.
Estava decidido a não oferecer ao comandante o espetáculo de um homem que treme de
medo.
Mas quando a parte externa da eclusa se abriu, Gaylord recuou instintivamente para
os fundos da câmara. Um mundo estranho estendia-se à sua frente. A única coisa que o
separava do mesmo era a lâmina transparente de seu traje protetor. O neutralizador de
pressão do traje estava funcionando perfeitamente.
Gaylord foi caminhando lentamente em direção à saída. Agora, que não se
encontrava mais no interior do veículo, de repente teve a impressão de que a locomoção
com o traje protetor lhe causava dificuldades. Fazia votos de que houvesse algo de errado
com seu traje, pois assim teria motivo para voltar.
— Pode descer — disse Nome Tschato, que parecia estar bem a seu lado.
Gaylord levantou os braços, num gesto instintivo de defesa. Mas não havia
ninguém. Acabara de ouvir a voz do comandante pelo rádio-capacete.
— É o que estou fazendo — ouviu-se dizer com uma voz que já não era sua.
Talvez fosse porque as ondas sonoras não podem espalhar-se no interior do
capacete. Mas era mais provável que o medo estivesse modificando o tom de sua voz.
O Dr. Gaylord saltou para fora. Viu-se cercado unicamente por nuvens de gás que se
agitavam de um lado para outro, e a tontura ameaçou tomar conta dele. Virou-se num
gesto de desespero e viu o veículo. Comprimiu a mão contra a borda da eclusa aberta.
Lembrou-se de que as pessoas que se encontravam na carlinga podiam vê-lo. Tirou a mão
imediatamente.
Ficou parado por algum tempo, sem lembrar-se do motivo que o levara a sair do
carro. O mundo desconhecido parecia fechar-se sobre ele. Sentiu a ameaça que este
mundo exalava. Deu instintivamente um passo para a frente. O chão que comprimia as
solas dos sapatos especiais era tão duro que até parecia que estava caminhando numa
pista de concreto. Isto fez com que se lembrasse do motivo por que tinha vindo.
Afastou-se do veículo. Queria provar a Tschato que não tinha medo.
— Vamos com calma, doutor — disse a voz de Tschato. — Por que está indo tão
longe? O senhor pode encontrar o material nas proximidades do carro.
— Sou especialista no assunto. Deixe por minha conta a escolha do lugar mais
apropriado — respondeu Gaylord em tom indignado. Pretendia parar, mas as palavras de
Tschato fizeram com que se afastasse mais vinte metros do veículo.
Ficou de joelhos e apalpou a massa marrom que cobria o solo em grandes blocos.
Tirou o martelete vibratório do cinto e ligou-o. Era um pequeno aparelho capaz de tirar
lascas de uma chapa blindada. Gaylord encostou a cunha ao material e tentou fazê-la
afundar, mas a mesma escorregou na superfície como alguma coisa que escorrega sobre o
gelo. O pesquisador de estruturas inclinou-se para a frente, para que o peso de seu corpo
aumentasse a pressão contra a talhadeira. Sentiu as vibrações quase imperceptíveis do
aparelho, que se sucediam a intervalos regulares. A talhadeira não penetrava no material.
Gaylord levantou-se. Respirava com dificuldade. Examinou a ponta da talhadeira e notou
que havia recortes na lâmina de aço especial, endurecido por meio de um processo
complicado. O material preso ao solo era mais duro que a talhadeira.
Gaylord resmungou satisfeito e colocou o martelete vibratório de volta no cinto.
Naquele momento nem se lembrava do mundo que o cercava. Desprendeu dois frascos de
plástico que trazia presos ao cinto e abriu o fecho de rosca do primeiro. Derramou parte
do líquido no solo. Despejou alguns pingos do líquido contido no segundo frasco dentro
da poça que se formara. Aguardou o resultado com o rosto tenso. Dentro de pouco tempo
o material marrom foi mudando de cor. Grandes poros abriram-se no mesmo e sugaram o
líquido. Gaylord emitiu um som borbulhante.
— Comandante! — exclamou. — Realmente encontramos neo-molkex.
— Muito bem — respondeu Tschato. — Volte imediatamente.
Neven Gaylord sentiu-se como se um peso tivesse caído de cima dele. Deu-se conta
de que a descoberta que acabara de fazer promoveria seu nome entre os especialistas.
De repente Nome Tschato disse com uma calma um tanto forçada.
— Seria bom se voltasse imediatamente, doutor.
Gaylord prendeu os dois frascos no cinto e espreguiçou-se.
Lançou um olhar para a planície que se estendia à sua frente. O que viu fez com que
ficasse petrificado de susto.
***
Por que Tschato permitia que esse maluco se afastasse tanto do carro? Dan Picot
esforçou-se em vão para reconhecer os detalhes do lugar em que se encontrava. O Dr.
Gaylord encontrava-se acerca de sessenta metros do carro voador. Estava realizando
experiências com a massa marrom que cobria áreas extensas da superfície de Pulsa.
De repente o Capitão Vertrigg chamou.
— Acho que vi alguma coisa se mexendo lá embaixo, comandante — informou. —
Só o vi confusamente entre as nuvens de gás.
Vertrigg era um oficial antigo e experimentado, que não se abalava por pouca coisa.
Mas desta vez havia um tom de medo em sua voz. Dan Picot ficou com os olhos
semicerrados e esforçou-se para reconhecer alguma coisa capaz de confirmar as suspeitas
de Vertrigg.
— Não vejo nada — informou Tschato. — Forneça a posição aproximada, capitão.
— Cerca de vinte graus à esquerda de Gaylord, atrás dele — informou Vertrigg
apressadamente. — Deve estar a uns cem metros do cientista.
Picot virou abruptamente a cabeça.
— Olhe! — disse Dawson entre os dentes. — Ali está!
Picot teve a impressão de enxergar uma sombra entre as nuvens cinzentas. Esta
sombra saltitava na direção do cientista. Como o vulto desaparecia constantemente entre
formações de nuvens mais densas, o imediato da Lion não teve possibilidade de ver
exatamente o que era.
— O Capitão Vertrigg não se enganou, comandante — comunicou a Tschato. —
Alguma coisa aproxima-se de Gaylord lá embaixo. Do lugar em que se encontra o senhor
não pode ver.
— Chamarei Gaylord de volta — asseverou Tschato.
Uma rajada de vento atingiu o veículo de Picot e arrastou-o uns vinte metros. Picot
soltou uma praga e fez o veículo voltar ao mesmo lugar. Quando voltou a dedicar sua
atenção ao que se passava lá embaixo, o Dr. Gaylord ainda continuava parado no mesmo
lugar. Picot sentiu os nervos de seu estômago se contraírem.
Nesse instante o veículo de Tschato saiu rolando na direção do cientista. Picot olhou
para a figura solitária que estava parada na superfície e perguntou-se por que Gaylord não
estava fugindo. A atmosfera tornou-se mais agitada. Os dois carros voadores que se
encontravam suspensos em cima do palco dos acontecimentos tiveram dificuldade em
manter suas posições. Porções de neve de amoníaco foram tangidas pelo vento, passando
em grossas nuvens sobre o neo-molkex. O Dr. Gaylord continuava parado no meio da
correnteza cada vez mais forte.
E a quarenta metros do lugar em que se encontrava saltitava a criatura mais
medonha que Picot já tinha visto.
***
Envolto em cortinas de neve de amoníaco e cloro, Gaylord observava a estranha
criatura. A voz insistente de Tschato, que quis convencê-lo a voltar, não foi ouvida. Neve
Gaylord lera muita coisa sobre formas de vida extraterrenas. Vira fotografias de criaturas
muito mais fantásticas que as formas criadas pela imaginação do homem.
Uma mistura de medo e fascínio prendeu Gaylord ao lugar.
A criatura que se aproximava possuía um corpo fino que nem uma estaca e não
tinha cabeça. Tinha cerca de três metros de altura. Gaylord distinguiu sete pernas finas
dispostas em círculo na parte inferior do corpo em forma de estaca. Até parecia uma vara
colocada sobre um suporte de sete pés.
A criatura era capaz de dobrar as sete pernas ao mesmo tempo. Quando voltava a
esticá-las, podia dar saltos de vários metros. Duas das sete pernas pareciam estar
equipadas com garras.
A criatura parecia executar uma dança fantástica. Saltava para o alto, girava por
alguns instantes em torno do próprio eixo e voltava a pousar agilmente no chão. Gaylord
notou que todas as pernas tinham duas articulações.
O pesquisador de estruturas percebeu que a criatura estava muito mais interessada
no neo-molkex que em sua pessoa. Mas aproximava-se cada vez mais. Gaylord olhou
para o alto, onde os dois veículos flutuavam inquietos entre as nuvens de gás. A idéia de
que os homens que se encontravam lá o observavam muito preocupados fez com que
acenasse com a cabeça de tão satisfeito que estava. Gaylord atirou a cabeça para trás.
Entesou o queixo.
Depois disso saiu caminhando ao encontro da criatura.
— Pare imediatamente, seu idiota! — gritou Tschato.
Gaylord olhou para trás com uma expressão zombeteira no rosto. Viu o carro voador
aproximar-se pelo solo marrom. O comandante queria alcançá-lo e colocá-lo no veículo
de esteiras antes que entrasse em contato com a criatura do planeta Pulsa.
Gaylord apressou o passo. O traje protetor impediu-o de avançar mais depressa, mas
a distância que o separava da criatura dançante diminuía rapidamente. A criatura atirou-se
sobre o neo-molkex. Rolava sobre o material, esticando as sete pernas para cima. Uma
rajada de vento passou por cima de Gaylord. Por alguns segundos não enxergou nada.
Roços de amoníaco agitavam-se diante do visor de seu capacete. O pesquisador de
estruturas resistiu obstinadamente à tormenta. A atmosfera não demorou a ficar mais
calma.
Quando voltou a enxergar, teve a impressão de que o dançarino — nome que
Gaylord dera à criatura — crescera. Mas provavelmente isso acontecia porque a distância
que o separava do mesmo tinha diminuído.
O carro voador já se aproximara a vinte metros. Tschato manteve-se calado.
Gaylord perguntou-se se o gigante negro perdera algo de sua calma. A lufada de vento
que se seguiu fez com que Gaylord cambaleasse. Escorregou e tombou de frente. Aparou
a queda com as mãos. As juntas estalaram. Voltou a sentir medo. Ao que parecia, os
homens que se encontravam no carro o tinham perdido de vista, pois o veículo ia se
afastando dele.
Gaylord abanou a cabeça. Estava um pouco atordoado.
— Aqui, comandante! — gritou.
Olhou para o outro lado, onde supunha que estivesse o dançarino.
Compreendeu que o carro não errara o caminho. Tschato resolvera bater em
retirada. Fugia de centenas de criaturas de sete pernas que atravessavam a planície.
Gaylord soltou um gemido. Voltou a pôr-se de pé e saiu correndo atrás do carro.
Mas os gigantes já estavam nos seus flancos. Saltitavam e dançavam sobre o molkex.
Seu número aumentava constantemente. Milhares dessas criaturas saíram saltando
das brumas.
— Comandante — cochichou Gaylord.
— Eu o avisei — disse Tschato em tom calmo.
— Não! — gritou Gaylord. — Não me abandone.
— Não arriscarei a vida de cinco pessoas para salvar o senhor — disse Tschato.
— O que farei para defender-me de tantos dançarinos? — perguntou o pesquisador
de estruturas com a voz rouca.
— Dançarinos — repetiu o primeiro-tenente. — É um nome bem apropriado para
estas criaturas. Não me esquecerei dele.
Uma sombra caiu no chão bem ao lado de Gaylord. O cientista magro virou a
cabeça. Tremia que nem vara verde. Viu outro carro voador pousar bem perto dele.
Compreendeu que Tschato só quisera meter-lhe medo. Queria dar-lhe uma lição, para que
compreendesse que era muito perigoso agir por conta própria.
A eclusa do veículo abriu-se.
No mesmo instante Gaylord ouviu a voz de Dan Picot.
— Vamos, doutor — exclamou o imediato em tom nervoso. — Entre.
Gaylord saiu caminhando em direção ao carro voador. Os dançarinos aproximaram-
se de todos os lados. A tempestade era tão violenta que ameaçava tanger Gaylord para
longe da eclusa. Finalmente chegou à entrada da mesma com a cabeça encolhida. Atirou-
se para dentro da câmara. Sentiu-se grato ao notar que a parede exterior se fechava.
Aquelas criaturas já não poderiam alcançá-lo.
O veículo decolou. Gaylord esperou que a compensação de pressão fosse concluída
e a parede interna se abrisse. Sentiu-se exausto. Agora, que estava em segurança, a raiva
que sentia de Tschato tornou-se mais forte. O comandante levara-o a acreditar que não
tomaria nenhuma providência para salvá-lo. Gaylord sentiu-se furioso justamente por ter
a impressão de conhecer os motivos dessa conduta. Entrou no carro. Picot, que ocupava o
assento do piloto, fez um sinal para que se aproximasse. O veículo já estava deslizando a
uma altura de vinte metros. Embaixo deles viam-se verdadeiros enxames de dançarinos.
Gaylord abriu o capacete e dobrou-o para trás.
— Quero falar com Tschato — pediu.
Picot cedeu-lhe o lugar.
— Será que o senhor aceita qualquer coisa que o comandante mandar? — perguntou
Gaylord.
Seu rosto ficou vermelho.
— Aceito — respondeu Picot em tom preocupado. —Geralmente não temos outra
alternativa.
Gaylord inclinou-se sobre o microfone.
— Aqui fala Gaylord — disse em tom violento. — O senhor me ouve, Tschato?
Uma risada saiu do alto-falante.
— Então o temos de volta são e salvo, doutor? Acho que por enquanto seu desejo de
aventura está saciado.
— Um dia alguém há de encontrar a agulha de que precisamos para dar uma picada
num homem inchado como o senhor, para que se encolha — disse Gaylord com a voz
gelada. — Preste atenção, comandante. A partir deste momento recuso-me a prestar-lhe
qualquer colaboração.
— Por quê? — perguntou Tschato. — Porque contrariou minhas ordens, afastando-
se demais do veículo e colocando em perigo a vida de outras pessoas?
Gaylord encerrou a palestra.
Picot olhou-o com uma expressão tranqüilizadora. — Vá lá para trás —
recomendou. — Vamos voltar à Lion, para interpretar os resultados.
— Que resultados? — chiou Gaylord. — Preciso sair mais uma vez para verificar o
que os dançarinos fazem com o neo-molkex.
— Agora não — disse Picot em tom categórico. — O senhor acha que vamos fazer
pousar um veículo no meio deste enxame de gigantes?
A observação levou Gaylord a olhar para fora. A planície parecia estar coberta de
ponta a ponta com as criaturas apavorantes do planeta Pulsa. O pesquisador sentiu um
calafrio. Imaginou que nesse mundo havia um mistério a desvendar. Ao que tudo
indicava, criaturas como os dançarinos não podem desenvolver-se num mundo com as
características de Pulsa. As formas de vida expostas a uma gravitação tão elevada
costumavam ter corpos largos e achatados.
Por isso havia duas explicações para a presença dos dançarinos. Os mesmos não
provinham desse mundo, ou alguém resolvera criá-los no mesmo. Ambas as alternativas
faziam concluir pela existência de uma potência que dominava a hiperenergia e o neo-
molkex.
E qualquer potência que fosse capaz disso poderia dominar a Galáxia.
5

Em condições normais o encontro com os cientistas teria produzido um efeito


tranqüilizador em Dan Picot. Gostava de ficar cochilando com os olhos entreabertos
enquanto Nome Tschato era o único oficial da Lion obrigado a dar-se ao incômodo de
ouvir as explicações dos cientistas.
Más desta vez as condições eram outras. Todas as hiperinstalações da Lion tinham
entrado em pane. Pouco depois do regresso dos três carros voadores começara uma
tempestade que se tomava cada vez mais violenta. E este mundo em revolta estava cheio
de seres aos quais Gaylord dera o nome de dançarinos.
Picot caminhou tranqüilamente pelo corredor principal, que levava do elevador
antigravitacional a sala de comando. Tschato e Gaylord tinham celebrado uma espécie de
trégua. Ou melhor, Gaylord a tinha celebrado, já que Tschato não se abalava com nada.
Ao entrar na sala de comando, Picot viu alguns oficiais e cientistas reunidos em
torno da coluna central. Tschato estava sentado com as pernas cruzadas em uma das
poltronas e ouvia com uma expressão paciente a alocução de Mulligan, oficial de
intendência, que falava enfaticamente com o auxílio de ambas as mãos. Provavelmente
Mulligan estava manifestando suas preocupações com a situação do abastecimento da
Lion. Era o que costumava fazer. Mas também era possível que os cientistas se tivessem
queixado mais uma vez da monotonia do cardápio oferecido por Mulligan. No seu íntimo
Picot acreditava que os métodos nutricionistas de Mulligan eram responsáveis por um
terço das moléstias de estômago que ele sofria. Os dois terços restantes eram debitados a
Tschato.
Os pensamentos de Picot logo foram substituídos por reflexões menos fúteis,
quando viu Gaylord parado com o rosto contrariado junto à coluna central. Ao ver o
cientista, o imediato lembrou-se imediatamente de todos os problemas que os afligiam. E
estes eram mais que suficientes.
Caminhando com as pernas tortas e aprofundando as rugas que se desenhavam em
seu rosto de pele de couro por meio de um sorriso débil, Picot foi para junto dos outros
oficiais. Colocou-se numa posição em que nem Tschato nem Mulligan podiam vê-lo.
Tschato já mandara muitas vezes Mulligan apresentar suas queixas a Picot, motivo por
que este não queria assumir o risco de ouvir outro sermão.
De repente Tschato apareceu entre eles. Mulligan não estava mais perto dele. Os
outros ficaram calados. Até parecia que sabiam que Tschato iria fazer uso da palavra.
Tschato colocou-se no centro da sala de comando. Como sempre, seus movimentos
davam a impressão de serem incrivelmente lentos. Com os ombros caídos, parecia
cansado, sem muita vontade de tomar decisões. Bocejou antes de começar a falar, mas em
seus olhos havia um brilho disfarçado que revelava o verdadeiro Tschato.
— Estamos reunidos a pedido dos cientistas — disse em tom tranqüilo. — Querem
discutir os resultados dos exames com os oficiais da Lion. Como ainda não estou
informado a este respeito, — foi baixando o olhar até fitar Gaylord, que balançava
nervosamente as pontas dos pés — ouvirei a exposição com o mesmo interesse dos
outros tripulantes.
Gaylord adiantou-se. Ouviu-se um arrastar de pés. O cientista pigarreou.
— Prefiro não mencionar os motivos que me impediram de falar pessoalmente com
o comandante sobre nossas pesquisas — principiou. — No momento isto não importa.
Diante da situação, que face às averiguações realizadas pode perfeitamente ser
considerada perigosa, todas as forças da nave devem unir-se na defesa contra qualquer
inimigo.
Picot gostaria que o pesquisador tivesse ido diretamente ao assunto, deixando de
lado as peças de retórica.
— Descobrimos que a superfície do planeta Pulsa está coberta em vários lugares por
blocos de neo-molkex com vários quilômetros quadrados de extensão. Mas vejo-me
obrigado a decepcionar qualquer pessoa que se sinta inclinada a acreditar que este neo-
molkex seja o material liberado durante as batalhas espaciais que os terranos travaram
com os blues. — Gaylord fez um gesto amplo. — O neo-molkex que se encontra em
Pulsa vem de várias naves de molkex que ainda existem. Os diversos povos dos blues
também já descobriram a arma com a qual pode ser destruída a blindagem de molkex. O
neo-molkex existente em Pulsa chegou a este mundo pouco antes de nós. Localizamos os
blocos do material quando os mesmos estavam saindo do hiperespaço e descendo em
Pulsa. Os impulsos que captamos vieram desse material, parte do qual caiu, dentro do sol.
— Por que o neo-molkex desceu justamente neste mundo? — perguntou Duprene.
Gaylord virou-se para o cibernético de estatura baixa.
— Para a queda do material no sol existe uma explicação simples: a gravitação
enorme desta estrela. Neste ponto poderíamos ser levados a afirmar que a elevada
gravitação de Pulsa fez com que parte dos blocos de neo-molkex caísse neste planeta.
Mas seria uma conclusão falha.
— Qual é em sua opinião a causa da queda dos blocos em Pulsa? — perguntou
Bactas, engenheiro-chefe da nave.
— Os dançarinos — respondeu Gaylord.
Uma arma energética disparada no interior da sala de comando não teria produzido
um efeito mais fulminante. A agitação transformou-se em tumulto. Os oficiais deixaram
perfeitamente claro o que achavam da teoria de Gaylord.
A calma só se restabeleceu diante do grito de advertência de Tschato. Picot percebeu
que Gaylord estava cada vez mais nervoso. Esfregava nervosamente os dedos.
— Os dançarinos não são seres vivos no sentido convencional da expressão — disse
Gaylord, levantando a voz. — Ninguém deixará de reconhecer que não se originaram
neste mundo. O fato de que assim mesmo vivem aqui só prova que podem sobreviver
praticamente em qualquer lugar da Galáxia. Mais uma vez viu-se interrompido por um
murmúrio.
— Mesmo no espaço? — perguntou uma voz irônica.
— Perfeitamente! — gritou Gaylord. — Mesmo no espaço. Os dançarinos são seres
superdimensionais, que aqui são obrigados a levar uma espécie de existência fictícia. Não
são inteligentes e não possuem raciocínio. Da mesma forma que sua forma primitiva, o
suprahet, não era inteligente.
A reação a estas palavras foi muito diferente das anteriores. Um silêncio assustador
passou a reinar na sala. O suprahet, um ser inimaginável que há vários eônios absorvera
sistemas solares inteiros, surgiu na imaginação dos homens como uma tremenda ameaça.
Todos tinham ouvido falar no que se tinha apurado a respeito das características desses
seres. Fora principalmente o cientista Tyll Leyden que com a descoberta de um
formidável planetário contribuíra bastante para ampliar os conhecimentos sobre tão
estranhas formas de vida.
— Os cientistas sempre foram de opinião que os vermes do pavor não podiam ser a
única forma de vida que representava um remanescente dessa criatura imensa em nossa
Galáxia. E aqui temos a prova disso. Os dançarinos também são um remanescente do
antigo monstro sideral. Há tempos imemoriais estão esperando alguma espécie de
alimento em Pulsa. E agora encontraram: é o neo-molkex.
Gaylord interrompeu-se. Até parecia que se dava conta da gravidade do que acabara
de afirmar.
— Como se explica a falha de nossas hiperinstalações e o pouso sem interferência
nossa? — perguntou Dawson.
— Os dançarinos não são capazes de distinguir entre a hiperenergia do neo-molkex
e a de nossas hiperinstalações. Trouxeram-nos para baixo, da mesma forma que fazem
com os blocos de molkex sujeitos ao efeito drive.
Picot fechou os olhos para refletir à vontade por um instante. A história de Gaylord
parecia inacreditável, mas não havia como refutá-la. Picot imaginava que os cientistas
solicitariam novos vôos de exploração com os carros voadores, a fim de consolidar suas
teorias. Tschato não costumava recusar pedidos estranhos como este. Pelo contrário.
Desceria ao inferno de metano à frente dos outros.
— Precisamos verificar o que acontece entre os dançarinos e o neo-molkex — disse
Gaylord.
— Permita uma pergunta — disse Nome Tschato. — Como sabemos, o neo-molkex
não pode ser comparado com o molkex em seu estado normal. O neo-molkex é uma
substância proveniente do molkex, modificado em sua estrutura por meio do bombardeio
com hormônio B enriquecido com água oxigenada. Conclui-se que, se os dançarinos
estão interessados pelo molkex, não devem ter o menor interesse pelo neo-molkex.
Picot confirmou com um gesto. Ele mesmo deveria ter-se lembrado disso. Mas a
inteligência penetrante de Tschato fora a única capaz de descobrir a lacuna existente na
teoria de Gaylord.
— Tanto o molkex como o neo-molkex — disse Gaylord sem olhar para Tschato —
têm alguma ligação com os dançarinos. Provavelmente as criaturas que estão lá fora não
são capazes de reconhecer qualquer diferença entre as duas substâncias. Seguem apenas
seu instinto, que os leva a procurar ligação com qualquer coisa que seja hiperenergética.
Teoricamente os dançarinos deveriam estar em condições de transformar-se num novo
suprahet. Só lhes falta o respectivo alimento.
Picot deu-se por feliz porque os dançarinos não se alimentavam com energia
normal. Se o fizessem, a esta hora a Lion provavelmente seria apenas um montão de
destroços incandescentes.
— Na outra face do planeta é noite — disse a voz de Tschato em meio aos
pensamentos de Picot. — Assim que o novo dia raiar, sairemos novamente com os três
carros voadores. Mas só o faremos se as condições climáticas melhorarem. Enquanto uma
tempestade como esta sopra lá fora, é preferível não assumir riscos.
A reunião foi suspensa. Os cientistas voltaram aos seus camarotes. Picot aproximou-
se do comandante.
— Mulligan falou comigo — principiou Tschato assim que viu Picot.
Picot fez uma careta. Naquele momento Mulligan parecia ser o tema menos
interessante que se poderia inventar.
— Já sei — apressou-se em responder. — Pretende sair novamente com Gaylord,
comandante?
— Naturalmente — confirmou Tschato. — Desta vez não perderá a cabeça. No
fundo é um sujeito formidável.
Picot abanou a cabeça de forma quase imperceptível. Para Tschato qualquer pessoa
que não tivesse a intenção de arrancar sua cabeça era um sujeito formidável. O imediato
não compreendia como o comandante podia pensar dessa forma. Para Picot, Tschato era
tão misterioso como o espaço cósmico que costumavam atravessar juntos.
***
No dia seguinte o céu de Pulsa estava coberto de nuvens cor de enxofre. Em tomo
da Lion uma parede cinzenta de brumas venenosas agitava-se, e na mesma surgiam
frestas cor de aço. Até parecia que as telas transmitiam a imagem de um gigantesco
caleidoscópio. A atmosfera revolta impedia os homens de reconhecerem os detalhes.
— O tempo não está nada bom — constatou Gaylord. — Parece que temos que
desistir da excursão.
O rosto de Tschato não revelava o que estava pensando a este respeito.
Provavelmente achava as condições atmosféricas perfeitamente normais para um mundo
com as características de Pulsa. No entanto, Picot não soube explicar o que o impedia de
dar a ordem de partida. Mais uma vez o comandante fez sair um robô. A máquina saiu
rolando pelo inferno de metano, mas a câmara embutida em seu interior não estava
funcionando. Dali a dez minutos o robô deixou de obedecer ao controle remoto. E não
voltou à nave.
Picot estava cada vez mais impaciente. Pelo meio-dia as nuvens amarelo-apagadas
desceram mais. Pareciam enormes chamas de vela. A coloração cor de aço que se vira nas
nuvens desapareceu. Seu lugar foi ocupado por um cinza sombrio. Porções de neve de
amoníaco turbilhonavam diante das câmaras de transmissão de imagens externas.
A luz parecia transmitir uma terrível ameaça. Certa vez um dançarino saltou de
dentro de uma nuvem de bruma. Era uma figura grotesca, que logo voltou a desaparecer
na névoa. A criatura tinha mais de quatro metros de altura e possuía o dobro das pernas
dos outros dançarinos que tinham visto.
Picot não conseguia livrar-se da idéia de que uma coisa terrível estava acontecendo
lá fora. A atmosfera revolta parecia ser uma cortina misericordiosa que encobria um
espetáculo que o olho humano seria incapaz de suportar.
Os cientistas, ficaram nervosos e passaram a discutir violentamente.
O consumo de café bem forte cresceu abruptamente. Quatro horas antes do
escurecer o tempo ficou mais calmo. A visibilidade era de quase cem metros. Na encosta
mais próxima à Lion alguns dançarinos gigantescos se agitavam. Toda vez que davam um
salto, quase chegavam a desaparecer nas nuvens de gás que corriam rente ao solo. O
espetáculo fez com que os homens que se encontravam na sala de comando da Lion
estremecessem.
— Vamos aproveitar a chance — disse Tschato em tom tranqüilo. — É possível que
depois disto o tempo continue ruim por alguns dias.
Picot olhou para o relógio de bordo.
— Já é tarde, comandante — objetou.
— Procuraremos apressar-nos — disse Tschato.
Naquela altura até mesmo os cientistas compreenderam que não havia nada capaz
de modificar a decisão do comandante. Os tripulantes que haviam participado da primeira
viagem de exploração prepararam-se para partir.
Quando os carros voadores começaram a sair do hangar, não se viam mais os
dançarinos na encosta. Picot constatou que a tempestade ainda era muito violenta. Assim
que o carro voador saiu de trás da Lion, o mesmo foi agarrado por uma rajada de vento
que ameaçou comprimi-lo contra o solo. O veículo de esteira do Capitão Vertrigg
precipitou-se a vários metros de distância antes que o piloto conseguisse controlá-lo.
Picot viu o veículo fortemente blindado de Tschato mergulhar nas nuvens. Finalmente
conseguiu fazer subir novamente o veículo pilotado por ele.
Mal atingiram a encosta, a Lion desapareceu na névoa. Picot teve a impressão de
que a última coisa que o ligara à segurança acabara de romper-se. Teve de fazer um
grande esforço para manter o carro voador na rota. Em certos lugares só podia orientar-se
pelos instrumentos, pois o mundo que o cercava parecia mergulhar num torvelinho de
nuvens cinzentas. De repente a visibilidade melhorou. Picot viu o neo-molkex que cobria
a superfície do planeta. Estava rompido em vários lugares, e uma massa de aspecto sujo
saia do material. Encontraram um grupo de dançarinos. Estas criaturas tinham pelo
menos seis metros de altura, mas a única parte de seu corpo que tinha crescido eram as
pernas. O tronco em forma de estaca continuava com o mesmo tamanho. Era um quadro
repugnante e fascinante ao mesmo tempo. Os dançarinos tinham o aspecto de enormes
aranhas obrigadas a transportar um corpo ridiculamente pequeno sobre inúmeras pernas.
Pareciam fantasmas brincando na atmosfera.
— Parece que estão cada vez maiores — observou Dawson com a voz áspera.
— Talvez não sejam mais os mesmos — disse Picot. — Nenhuma criatura seria
capaz de crescer tão depressa.
Suas palavras não foram muito convincentes. A idéia de que os dançarinos
pudessem ser capazes de crescer constantemente, até chegarem a um ponto em que
fossem capazes de esmagar tudo com as pernas, parecia paralisar a capacidade de decisão
de Picot. Só recuperou o autocontrole quando Dawson soltou um grito de advertência e o
carro voador foi arrastado obliquamente para baixo. Picot virou abruptamente o leme. O
veículo obedeceu preguiçosamente. Picot olhou para fora. Só viu o aparelho de Tschato.
— Comandante! — gritou Picot pelo rádio comum. — Parece que Vertrigg
desapareceu. O senhor me ouve, Capitão Vertrigg?
Quem respondeu só foi Tschato.
— Deve estar atrás de nós, Dan — disse Tschato.
— Fornos arrastados para baixo — informou Picot. — Com isso perdemo-nos de
vista. — Ligou o rastreador de massa, que trabalhava em base comum. Mas as inúmeras
superposições tornavam impossível uma localização exata.
Dawson voltou a tentar a sorte com o rádio. Mais uma vez Tschato respondeu ao
chamado.
— Procure manter a atual posição, Dan — ordenou. — Vou voltar. Precisamos
procurar o capitão. Alguma coisa aconteceu com seu carro voador.
— Não acha que deveríamos chamar os dois outros carros, para que nos dêem
apoio?
— Ainda não — respondeu o comandante.
Os olhos de Picot revistaram o solo. Dali a pouco viu perfeitamente o veículo de
Tschato. O veículo de esteira capaz de voar seguiu em direção ao lugar sobre o qual Picot
se mantinha suspenso no ar — ou tentava manter-se, já que as fortes rajadas de vento
tornavam quase impossível a manutenção da mesma posição.
— Temos que descer mais, Dan — disse a voz de Tschato. — Daqui de cima não se
vê absolutamente nada. As nuvens são muito densas.
Picot não ficou nada contente ao fazer descer seu veículo. Perguntou-se o que
poderia ter acontecido com Vertrigg e seus companheiros. O mundo em que se
encontravam deixava-o cada vez mais assustado. Fazia votos de que Tschato não
demorasse em dar ordem para regressarem à nave.
Dois dançarinos apareceram embaixo deles. Pareciam executar uma dança
selvagem, seguindo a melodia de uma banda invisível. Um dos seres saltou bem em
frente do veículo. Picot recuou. Ouviu Dawson praguejar baixinho. O que aconteceria se
um dos dançarinos colidisse com o carro voador?
Outro dançarino saiu das nuvens que se espalhavam pela planície extensa. Picot
assustou-se com seu tamanho. O tronco, que continuava fino que nem uma estaca,
facilmente poderia tocar os dois veículos. O imediato da Lion lançou um olhar para o
altímetro e viu que ainda se encontravam dezoito metros acima da superfície.
Tschato acelerou. Estava obliquamente à frente deles. Dali a pouco chamou pelo
rádio.
— Vamos manter a mesma distância, Dan. Vasculharemos a área situada entre nós e
a Lion, até o topo da colina.
Picot encostou o rosto ao microfone.
— Viu o monstro, comandante?
— Vi — respondeu Tschato. — Gaylord tem certeza de que os dançarinos crescerão
ainda mais. O alimento que ingerem sob a forma de neo-molkex faz com que o número e
o tamanho de suas pernas aumente constantemente.
Picot sentiu que alguma coisa arranhava sua garganta. Pigarreou.
— Não seria preferível voltar à Lion?
— Sem dúvida, mas não voltaremos sem Vertrigg e seus companheiros.
Picot crispou os dedos em torno do leme. Estava furioso. O veículo penetrou numa
nuvem amarelo-pálida. Por um instante o outro veículo desapareceu de seu campo de
visão. Picot sentia-se cada vez mais deprimido. Não era supersticioso, mas naquele
momento tinha a impressão de sentir em toda parte a morte que o espreitava.
Dali a instantes encontraram o veículo de Vertrigg.
Ou melhor, o que sobrava do mesmo.
6

Por alguns segundos o Capitão Vertrigg teve de combater o pânico, quando Duprene
anunciou que o rádio não estava funcionando. A qualquer momento os outros dois
veículos deveriam aparecer novamente em seu campo de visão. Mas os minutos foram
passando sem que os veículos de esteira saíssem das brumas. Vertrigg examinou os
controles. Será que as rajadas de vento o haviam afastado tanto da rota que perdera o
contato com Tschato e Picot?
Vertrigg sentiu um sabor desagradável na boca. Logo num momento como este o
rádio foi falhar. Duprene pôs-se a trabalhar no equipamento, mas era duvidoso que o
cibernético fosse capaz de reparar os defeitos. A falha do rádio representava o corte de
sua veia vital, a não ser que conseguissem estabelecer contato visual com a Lion ou com
os outros carros voadores.
Vertrigg teve a impressão de que iria vomitar. O solo que se estendia embaixo deles
era igual em todos os lugares. A orientação era praticamente impossível. O Capitão
Vertrigg foi levando o veículo de um lado para outro. Tinha de prestar atenção para não
afastar-se cada vez mais da Lion.
De repente houve um movimento abrupto bem à frente da carlinga. Vertrigg
arregalou os olhos. Duprene soltou um gemido. Alguém que se encontrava na parte
traseira da carlinga gritou apavorado.
O carro voou diretamente para um gigantesco dançarino que estava saindo da
neblina. Vertrigg contemplou o monstro sem poder fazer um movimento. O dançarino
tinha pelo menos quarenta metros de altura. Estava apoiado sobre cerca de cem pernas,
cada uma mais grossa que o tronco de uma árvore. Quase não se via seu corpo em forma
de estaca. Parecia ser uma figura surgida em um pesadelo.
Vertrigg fez o veículo cair para a frente. A pressão de suas mãos contra o leme
parecia o único contato que mantinha com a realidade.
As pernas do dançarino faziam movimentos convulsivos, dando o aspecto de que
eram articulações de um brinquedo gigantesco. De repente encolheram-se num ângulo
muito estranho. O carro voador descreveu uma curva ampla em torno da criatura.
— Está saltando! — gritou um dos ocupantes do veículo.
Os olhos de Vertrigg quase saltaram das órbitas. O dançarino catapultou-se do solo e
precipitou-se para dentro das nuvens baixas. O mundo parecia girar em torno de Vertrigg.
Fez o carro voador avançar ao acaso, em alta velocidade.
O dançarino voltou. Suas pernas, que antes pareciam garras de uma mão gigantesca,
desceram sobre o veículo. A carlinga escureceu. A seguir veio o impacto.
Vertrigg soltou um grito. O assento do piloto foi arrancado dos suportes e o capitão
viu-se arremessado contra Duprene, que continuava agachado junto ao transmissor. O
carro voador capotou no ar, passou raspando entre duas pernas gigantescas do dançarino
e começou a cair em parafuso. A carlinga resistira ao embate. Vertrigg já não sabia onde
era em cima e embaixo. Tentou rastejar até o leme para ver se encontrava um meio de
evitar o desastre. Um homem esbarrou nele e derrubou-o. Viu rostos que apareciam à sua
frente como se fossem luzes, com os olhos vidrados e a boca escancarada.
Os homens só não foram mortos porque o veículo tocou o solo em sentido quase
tangencial. O carro voador voltou a saltar para o alto antes de imobilizar-se de vez. Ficou
envolto numa nuvem de neve de amoníaco. Estava meio tombado de lado. A parte traseira
estava totalmente esmagada. As sapatas da esteira propulsora se haviam enfiado uma na
outra.
Vertrigg abriu caminho entre o ajuntamento de homens que procuravam pôr-se de
pé, praguejando e gemendo de dor. Viu Duprene à sua frente. A cabeça do cibernético
balançava lentamente de um lado para outro. Vertrigg levantou os olhos e ficou
apavorado ao notar que Duprene estava preso pela calça do uniforme à parte superior da
carlinga. Quebrara a nuca. Vertrigg soluçou enquanto ia passando por ele. Segurou o
lógico-chefe da Lion por trás e puxou com toda força, para soltar o cadáver. De repente
Duprene ficou livre, e Vertrigg caiu juntamente com ele pelo piso inclinado. Com a ajuda
de mais um homem o capitão conseguiu empurrar o morto para baixo da popa esmagada.
Vertrigg estava encharcado de suor. Deu ordem para que todos fechassem os
capacetes de seus trajes protetores, pois bastaria uma pequena fenda no casco do veículo
para que os gases venenosos da atmosfera de Pulsa penetrassem no mesmo.
Vertrigg não se entregou a ilusões quanto ao estado do veículo. O mesmo não seria
capaz de voar, nem de deslocar-se na superfície. Não havia possibilidade de entrar em
contato com os outros carros voadores. Vertrigg percebeu que só lhes restava uma
possibilidade. Teriam de voltar a pé para a Lion. Talvez tivessem sorte e um dos outros
veículos o descobrisse no caminho. O cadáver do cibernético tinha de ser deixado para
trás.
Bastava olhar para fora da carlinga para convencer-se de que suas chances de
chegar vivos ao couraçado eram mais que reduzidas. O perigo os espreitava em toda
parte.
Vertrigg não era nenhum jovem. Não fazia nada sem antes pesar cuidadosamente os
prós e os contras. Qualquer outro oficial experimentado provavelmente teria tomado a
mesma decisão.
— Vamos sair — disse, dirigindo-se aos outros. — Não vale a pena esperar pelos
outros. É bem possível que nunca encontrem o veículo destroçado. Precisamos voltar a pé
para a Lion. Não temos alternativa.
Os rostos pálidos que o fitaram não demonstraram a menor emoção. Os homens
confiavam no capitão, mas tinham pouca esperança de chegar vivos ao couraçado.
— Lá fora está soprando uma tempestade violenta — disse Vertrigg. —
Provavelmente excede qualquer coisa que vocês já tenham visto. Por isso precisamos
caminhar bem juntos. Ninguém deve perder de vista o homem que se encontra a seu lado.
Os homens limitaram-se a confirmar com um aceno de cabeça. O primeiro
problema surgiu quando tentaram sair do veículo. A comporta externa da eclusa estava
emperrada. Não se abria. Vertrigg mandou que os homens ficassem reunidos no interior
da câmara e começou a desmanchar a carlinga com o desintegrador. Concluiu a tarefa
com a maior calma. Flocos de amoníaco entraram na cabine, cobriram os instrumentos e
passaram por cima do cadáver de Duprene.
Vertrigg passou por cima dos destroços e puxou-se para fora da carlinga. A
tempestade atingiu-o com uma força surpreendente. Por um instante Vertrigg ficou
cambaleando sobre a borda estreita da carlinga, mas logo desceu para a superfície do
planeta. Agachado junto ao carro voador, esperou que outro homem saísse: Estava
protegido contra o vento, e por isso sua situação era mais ou menos suportável. Vertrigg
lançou os olhos para a paisagem estranha. Teve a impressão de que nunca estivera tão
perto da morte.
Viu o segundo homem sair da carlinga. O náufrago era ágil e colocou-se ao lado de
Vertrigg com movimentos seguros. Mas o sorriso que exibiu ao agachar-se ao lado do
capitão era um tanto forçado. Vertrigg mandou que se retirasse um pouco, para dar lugar
aos outros.
Antes de concluir esta fase da operação, perderam mais um homem. Foi Cashton,
técnico-chefe do hangar. Foi o último a sair. Vertrigg viu a figura envolta num traje
protetor movimentar-se pela borda da carlinga com a agilidade de um macaco. Nesse
instante Cashton foi atingido por uma rajada de tempestade vinda de lado. Emitiu um
som surdo, que soava terrivelmente nos rádio-capacetes, e caiu para trás. Depois disso
tudo ficou em silêncio. Vertrigg sentiu alguma coisa apertar sua garganta. Olhou por cima
dos homens agachados junto à esteira destruída, já que não podia ver seus rostos.
— Cashton — cochichou. — Alô, Cashton.
Não obteve resposta. O técnico nunca mais responderia a ninguém. Vertrigg puxou-
se para cima pela esteira e enfiou a cabeça pela borda esfacelada da carlinga. Viu Cashton
deitado no interior do veículo. Seu capacete fora despedaçado. Havia uma expressão de
espanto em seu rosto. Até parecia que era incapaz de compreender o que tinha
acontecido.
Vertrigg mordeu o lábio. Sentiu-se dominado por uma raiva impotente.
— Vamos — disse em tom áspero. — Precisamos dar o fora.
Agarrados uns aos outros e bem abaixados, os homens foram penetrando na terra de
ninguém. Já começava a anoitecer, e a tempestade era cada vez mais furiosa. Ao
desaparecer no meio das brumas, podia-se ter a impressão de que os cinco, homens eram
fantasmas.
***
Os destroços do veículo do Capitão Vertrigg formavam uma mancha escura na
superfície coberta de neve de amoníaco. Picot fazia votos de que aquilo que estava vendo
lá embaixo fosse uma ilusão. Mas quando viu o carro voador de Tschato descrever curvas
fechadas sobre o local do acidente, Picot compreendeu que não se enganara.
— Nós o encontramos — disse Dawson com a voz apagada.
— Dan! — disse a voz de Tschato no alto-falante. — Vamos descer para dar uma
olhada.
— Sim senhor — respondeu o imediato.
Os pressentimentos sombrios que não lhe tinham deixado paz nas últimas horas
pareciam confirmar-se. Vertrigg, Duprene, Cashton, Iv, Torenski, Alijis e mais um
homem, cujo nome Picot não conhecia.
A tempestade rugia em torno do veículo destroçado, não havia o menor sinal de vida
lá embaixo.
— Será que estão todos mortos? — perguntou Dawson dando a impressão de que
adivinhara os pensamentos de Picot.
Picot fez de conta que tinha de concentrar-se na operação de pouso. Só assim podia
esquivar-se a uma resposta. Viu o veículo de esteira descer a quinze metros do carro
voador destruído. O terceiro aparelho desceu bem ao lado dos destroços.
Dawson olhou para fora. Levantou os braços, num gesto que quase chegava a ser de
súplica.
— A carlinga foi destruída — anunciou.
— Vamos descer! — gritou Picot num tom mais grosseiro do que pretendia. —
Daqui não se vê nada.
Sabia que estava mentindo. Na verdade, via-se tudo. O carro tombado. A popa
esmagada, quase totalmente coberta de neve. Picot saiu caminhando em direção à eclusa.
Quando ia saindo ao lado de Dawson, viu Tschato aproximar-se do outro lado. Até
mesmo no interior de um traje protetor sua figura enorme era inconfundível. Alguém
tossiu com tanta força que os alto-falantes de capacete retumbaram. Picot, Dawson e
Bomhardt, que era o terceiro homem que tinha saído com ele, seguraram-se um no outro
para evitar que a tempestade os derrubasse.
Tschato era o único que caminhava com o corpo ereto. Tratava-se de um homem
teimoso, que sabia enfrentar um ambiente hostil com uma energia férrea. Foi o primeiro a
alcançar o veículo destroçado. Picot viu que se segurava com ambas as mãos na esteira
emperrada. Outra figura apareceu atrás de Tschato. Tinha quase a mesma altura do
comandante, mas era magro e parecia meio indefeso no meio do furacão. Na opinião de
Picot devia ser o Dr. Gaylord.
Tschato puxou o corpo para dentro da carlinga. Picot fungava fortemente quando
atingiu a máquina de Vertrigg. Dawson e Bomhardt agarraram-se na parte externa do
veículo de esteira. Seus rostos pareciam tensos. Picot foi avançando passo a passo para o
lado oposto, para que pudesse seguir Tschato para o interior do veículo. Gaylord estava a
dez metros de distância. Cambaleava que nem um espantalho que tivesse sido arrancado
dos suportes por uma tempestade. Mas seus movimentos de forma alguma poderiam ser
considerados ridículos. Antes notava-se neles uma admirável persistência.
Finalmente Picot conseguiu agarrar a borda da carlinga. As costas largas de Tschato
impediam a visão para o interior da mesma. Por um instante permaneceram na mesma
posição, como se um acontecimento inconcebível estivesse a exigir certa dose de
devoção. Foi só quando a tempestade tangeu um homem de encontro a Picot, fazendo
com que o mesmo quase perdesse o equilíbrio, o oficial despertou de seu torpor. Gaylord
estava caído ao chão a seu lado. Via-se o rosto do cientista através do visor de seu
capacete. Havia nele uma expressão de medo. De medo, de cansaço e de mais alguma
coisa que não encontrava expressão, mas estava estreitamente ligada à personalidade de
Gaylord.
Tschato foi virando a cabeça. Estava agachado, com o corpo encolhido. Ao virar-se,
permitiu que os outros vissem um homem deitado bem à sua frente. O capacete desse
homem tinha sido despedaçado.
Esse homem era Cashton.
Nesse momento Gaylord puxou o corpo para cima, gemendo baixinho. Picot tentou
afastá-lo, pois acreditava que o quadro que acabara de presenciar pudesse fazê-lo entrar
em pânico. Mas Gaylord dispunha de reservas de energia de que ninguém desconfiava.
Conseguiu colocar-se ao lado de Picot e olhar para dentro do carro voador.
— Duprene está deitado lá atrás — disse Nome Tschato. — Parece que os outros
abandonaram o veículo destroçado através da carlinga, depois de destruir sua cobertura
com o desintegrador.
Pela primeira vez Picot sentiu que o tom indiferente da voz de Tschato produzia um
efeito benéfico. Num ambiente terrível como este o homem precisava de alguma coisa em
que apoiar-se.
— Em que é que Tschato se apóia? — perguntou Picot a si mesmo. — Será que era
duro como pedra? — Era a velha pergunta, para a qual parecia não haver resposta.
Tschato sempre seria Tschato, mesmo agora que ficara sabendo que houvera os primeiros
mortos entre os homens do comando.
— Vamos levar os mortos para um dos carros para transportá-los à Lion? —
perguntou Picot.
Tschato abanou a cabeça.
— Não, Dan. Temos de procurar Vertrigg e os outros sobreviventes. Assim que
tivermos voltado à Lion, poderemos mandar um carro voador para levar Duprene e
Cashton.
Picot reconheceu que o Primeiro-Tenente tinha razão. No momento era mais
importante salvar os homens que provavelmente ainda estavam vivos. Naquele momento
Picot não imaginava que nunca chegariam a recolher Duprene e Cashton.
Tschato saiu do carro destroçado. Dawson e Bomhardt também se tinham
aproximado do mesmo.
— Onde vamos procurar, comandante? — perguntou Dawson.
— Sem dúvida Vertrigg e seus companheiros tentarão chegar à, Lion — conjeturou
Tschato. — A área não é muito grande. E onde devemos co...
Foi interrompido pelo grito estridente de Bomhardt. A mão estendida do mesmo
apontava para as nuvens de gás. Um dançarino, cuja parte superior estava oculta nas
nuvens tangidas pela tempestade, encontrava-se perto deles. Suas inúmeras pernas
formavam um círculo de pelo menos cem metros de diâmetro.
— Será que estamos sonhando? — perguntou Picot com a voz pesada.
Gaylord deu uma risada confusa.
— Sonhando? — repetiu. — As coisas ainda ficarão muito piores. Estas criaturas
não pararão de crescer enquanto encontrarem neo-molkex.
— Vamos para os carros, depressa — ordenou Tschato. Picot pôs a mão na arma,
mas no mesmo instante concluiu que seria inútil atirar numa criatura dessas. Dali a pouco
o dançarino deu um salto enorme em direção às nuvens e desapareceu. Onde quer que
descesse, foi muito longe para que os homens pudessem ver o lugar.
— Já dão saltos de centenas de metros — disse Gaylord. — Comandante, ajude-me
a examinar o neo-molkex num lugar em que tenha sido tocado por um dançarino. Quero
verificar se sofreu alguma alteração.
— Não temos tempo para isso — decidiu Tschato. — Precisamos cuidar dos
náufragos.
— O exame do neo-molkex talvez seja de importância vital.
— Para Vertrigg e seus companheiros não é — respondeu Tschato.
Gaylord tirou um recipiente oval que trazia preso ao cinto.
— Se possível, quero levar algumas amostras do material modificado — disse. — O
senhor não me pode proibir de fazer isso.
Tschato entesou o corpo.
— Está bem — disse. — Já que faz tanta questão, dou-lhe dez minutos para
encontrar aquilo que está procurando.
O cientista não perdeu tempo: afastou-se do carro. Foi literalmente tangido pelo
vento.
— Vamos atrás dele antes que quebre todos os ossos — disse Tschato em tom
calmo. Picot encostou-se ao metal duro do veículo. Não podia ver o rosto do comandante,
mas sabia que o leão estava sorrindo. Era uma destas situações que divertiam Tschato.
Picot amaldiçoou a idiotice, que sempre o levava a atravessar o espaço ao lado desse
homem. Antes que pudesse desenvolver o pensamento, viu-se arrastado pelos outros. As
pernas tortas de Picot tropeçavam uma na outra. Mas logo controlou-se e procurou andar
ereto que nem Tschato. Mas a única coisa que conseguiu foi cambalear. “Afinal, também
é uma forma de locomoção”, pensou Picot num assomo de sarcasmo. Viu o vulto de
Gaylord à sua frente. Era outro destes malucos que não se sentem satisfeitos enquanto
não podem arriscar a vida. Picot ansiava por calma, calor aconchegante e um ponche
quente para acalmar os nervos rebeldes de seu estômago. Mas ao que tudo indicava,
nunca mais se deleitaria com estas coisas.
Uma rajada de tempestade rompeu a corrente formada pelos quatro homens.
Bomhardt, o baixote, saiu escorregando pelo chão até que os braços vigorosos de Dawson
o segurassem. Picot viu Gaylord ajoelhar-se à sua frente. Seu tronco balançava
fortemente. Finalmente caiu para a frente.
Quando chegaram perto dele, estava deitado de bruços. Suas mãos estendidas
agarravam o recipiente, que passava cuidadosamente sobre uma massa gelatinosa.
Sentaram ao lado do pesquisador de estruturas. Se a gente deitava, os efeitos da
tempestade diminuíam. Ficaram em silêncio enquanto Gaylord enchia o recipiente.
— O neo-molkex realmente sofreu uma alteração — disse o cientista. — Acho que
os dançarinos retiraram toda a hiperenergia contida na substância. Agora já temos uma
explicação para seu crescimento.
— Já terminou? — perguntou Tschato em tom impaciente.
— Suas pernas funcionam como gigantescos acumuladores, nos quais armazenam a
energia — disse Gaylord, enlevado. — O senhor não compreende o que isso pode
significar?
— Dou-lhe três segundos para terminar o trabalho — disse Tschato. — Se não ficar
pronto, nós o deixaremos aqui.
Gaylord terminou pacientemente o movimento que fazia para recolher a massa.
Puxou o recipiente para junto de si e fechou-o. Voltou a prendê-lo no cinto. Picot poucas
vezes vira alguém que demonstrasse tamanha satisfação. A arrogância do pesquisador
desaparecera por completo. Pulsa parecia ter forças para modificar qualquer pessoa.
Qualquer pessoa, exceto Tschato.
A voz do comandante fez com que se erguessem abruptamente e voltassem a lutar
contra a tempestade. Quando chegaram aos carros voadores, Picot sentiu-se totalmente
esgotado. Esperou que um dos homens fechasse a eclusa e atirou-se no assento do piloto,
respirando aliviado.
— Dan — disse a voz potente de Tschato, saída do rádio. — Vamos decolar. Está
escurecendo cada vez mais. Temos de apressar-nos, senão não encontraremos Vertrigg
antes do anoitecer.
— Está bem — disse Picot e segurou o leme.
Suas mãos fizeram os necessários movimentos em gestos que quase chegavam a ser
automáticos.
Os dois carros voadores levantaram-se da superfície.
***
Quando o crepúsculo começou a envolver a paisagem, Vertrigg teve certeza de que
não encontrariam a Lion. Todas as tentativas de entrar em contato com o couraçado ou os
carros voadores pelo rádio-capacete tinham falhado. As fortes interferências tornavam
absolutamente impossível a recepção a uma distância maior. Por três vezes tinham-se
encontrado com dançarinos. O último grupo que tinham visto ainda apresentava o
tamanho normal, mas os outros tinham assumido proporções gigantescas. Nenhum deles
demonstrou qualquer interesse pelos cinco homens. Vertrigg acreditava que era
principalmente por causa dos dançarinos que não conseguiam estabelecer contato por
meio dos rádios-capacete. Quando essas criaturas se encontravam nas imediações, até
mesmo as comunicações entre os homens que caminhavam lado a lado se tornavam
pouco nítidas.
Todas as forças pareciam ter-se unido contra os cinco náufragos.
Aos poucos Vertrigg foi perdendo a noção do tempo, mas seu intelecto lhe disse
que, quando muito, estavam caminhando há uma hora.
— Vamos parar um instante para orientar-nos — decidiu.
Sentaram no chão, para oferecer uma área de ataque menor às rajadas de
tempestade. O cabo Iv praguejava baixinho, até que Vertrigg mandasse que ficasse
calado.
— Isso é bom para mim — disse Iv. — É bom contra o medo.
— Se o senhor não tem medo, não precisa de nenhum remédio contra o mesmo —
disse Vertrigg em tom irônico.
— Vou praguejar baixinho, comandante — disse Iv sem perturbar-se.
Depois de alguns minutos a respiração dos homens parecia mais regular. Vertrigg
sentiu uma necessidade de ficar onde estava e esperar o fim. Ninguém se oporia à idéia.
Vertrigg levantou os olhos para o céu escuro. Não tinha a menor esperança de ver
um dos carros voadores lá em cima.
— Por que não continuamos? — perguntou Allijs.
Porque não vale a pena, quis responder Vertrigg, mas seus lábios permaneceram
calados. Admirou-se de que estivesse lutando pela vida, embora soubesse que era inútil. A
única esperança de salvação era serem descobertos por algum dos carros voadores.
O capitão levantou. No mesmo instante a fúria da tempestade parecia dobrar. Mal
conseguia distinguir os rostos dos companheiros atrás dos visores dos capacetes. Assim
mesmo sentiu que todos acompanhavam atentamente seus movimentos.
— Vamos partir — resmungou. — Vá na frente, Torenski. Acho que é o mais forte.
Enquanto se erguiam com grande esforço, um dançarino gigantesco apareceu à sua
frente. Parecia ter caído do céu. As pernas que Vertrigg conseguia distinguir tinham quase
um metro de espessura e chegavam às nuvens. Os homens agarraram-se uns aos outros e
contemplaram a criatura monstruosa.
O cabo Iv tirou a arma do cinto e disparou um tiro. Antes que pudesse dar o
segundo tiro, Vertrigg arrancou-lhe a arma da mão. O dançarino não demonstrou a menor
reação.
— Precisamos atacá-lo — fungou Iv.
Vertrigg saiu andando sem dizer uma palavra. Embora estivessem armados, estavam
totalmente indefesos diante do dançarino. Provavelmente um tiro energético não
produziria nenhum efeito sobre o mesmo.
Seguiram na direção em que acreditavam estivesse a Lion. Vertrigg não sabia se
estavam caminhando em círculo. Quando tinham percorrido uns cinqüenta metros sem
quaisquer incidentes, mais três dançarinos apareceram à sua frente. As criaturas ainda
eram relativamente pequenas, mas sempre tinham três vezes o tamanho de um homem
normal. Um deles rolava pelo chão, enquanto os outros dois dançavam e de vez em
quando davam saltinhos.
O grupo parou. Os três dançarinos fechavam-lhes o caminho que, segundo
acreditavam, levava à Lion.
— E agora? — perguntou La-Marck, o quinto homem do grupo.
— Vamos contorná-los — decidiu Vertrigg, embora sentisse que seus joelhos
tremiam. O dançarino que rolava no chão aproximou-se. Suas pernas formavam figuras
grotescas enquanto se agitavam no ar. Vertrigg percebeu que a criatura estava revolvendo
a neve para poder chegar ao neo-molkex.
Vertrigg mudou de direção e saiu caminhando lentamente. Dali a pouco sentiu que
alguém o segurava no braço. Era Iv, que vinha logo atrás dele. Sem dizer uma palavra, o
cabo apontou para trás.
Um dos homens estava caído de joelhos. Apoiava-se com as mãos. Vertrigg parou
Sem dizer uma palavra, os outros homens deixaram-se cair no chão. Por um instante
Vertrigg foi o único a ficar de pé. Estava furioso com a fraqueza dos outros. Teve de fazer
um grande esforço para voltar sobre os próprios passos.
O homem caído ao chão era Allijs. Vertrigg aproximou-se dele e segurou-o embaixo
dos braços. Allijs parecia pesar algumas centenas de quilos.
— Que houve? — perguntou o capitão. — Não consegue andar mais?
— Falta de ar — gemeu Allijs.
As interferências no rádio faziam parecer que sua voz vinha bem de longe.
De repente o corpo de Allijs pesou mais nos braços de Vertrigg. Este sentiu-se
dominado pelo pânico. Colocou o companheiro apressadamente no chão e examinou o
equipamento de oxigênio. Não descobriu nenhum defeito no mesmo. Segurou Allijs pelos
ombros e começou a sacudi-lo. A cabeça do mesmo caía de um lado para outro, como se
não encontrasse apoio.
Vertrigg olhou pelo visor do capacete. Ao ver o rosto de Allijs, compreendeu que o
astronauta estava morto. Morrera asfixiado por falta de oxigênio. Houvera alguma avaria
em seu traje protetor.
Uma tosse seca sacudiu Vertrigg. Pulsa exigira mais uma vítima.
— Allijs está morto — disse com a voz apagada.
Seus companheiros não fizeram o menor movimento. Olhavam para as brumas,
como se por lá houvesse certas coisas que os olhos de Vertrigg não podiam enxergar. O
grande dançarino tinha desaparecido, mas os três menores continuavam nas
proximidades.
— Temos que deixá-lo — disse Vertrigg. — Vamos, levantem; precisamos
continuar.
Os homens tiveram de esforçar-se para levantar. La-Marck continuou sentado no
chão.
— O senhor também, La-Marck! — gritou Vertrigg.
A voz de La-Marck foi transmitida juntamente com uma onda de ruídos de
interferência. Era uma voz cheia de escárnio e revolta, mas também havia nela uma certa
resignação. Vertrigg não compreendeu o que o homem disse. Deu três passos na direção
do companheiro deitado no chão. Por pouco a tempestade não o derrubou. Deu um
pontapé em La-Marck. Foi um remédio eficiente. La-Marck levantou.
— Quem sabe se o senhor não será o próximo? — disse em tom agressivo.
— E possível — disse Vertrigg.
Desde que Allijs morrera, não sentia mais nenhuma fraqueza nas pernas. Sentiu-se
dominado por uma vontade inquebrantável de chegar à Lion. E não era só isto.
— Está quase escuro! — exclamou La-Marck.
Voltaram a agarrar-se uns aos outros e prosseguiram.
Anoitecia tão depressa que quase não viram mais os dançarinos. Vertrigg mandou
que ligassem os faróis. Mas a luz não adiantou nada. Era absorvida pelas brumas de gás.
A orientação era cada vez mais difícil.
Iv voltou a praguejar em voz alta. Desta vez Vertrigg não o proibiu. Ficaram
andando até que escurecesse de vez. Chegaram a passar a poucos metros de um
dançarino. Só viram parte de algumas pernas à luz dos faróis. Logo o quadro se
desmanchou como se tudo não passasse de uma feitiçaria irreal.
— Estamos caminhando em círculo — disse Torenski depois de algum tempo. —
Vamos esperar que seja dia.
— Não — decidiu Vertrigg. — Se pararmos, morreremos.
Os homens pareciam sentir que ele tinha razão, pois seguiram-no sem nenhuma
objeção. Vertrigg admirou a condição física de Torenski, que caminhava constantemente
na ponta. Às vezes Vertrigg caminhava com os olhos fechados, enquanto o cansaço era
cada vez mais forte. O capitão movimentava-se que nem uma máquina. Suas pernas
teriam continuado, mesmo que desse ordem de parar.
La-Marck teve um calafrio. Tiveram de parar até que se acalmasse. Depois de cada
pausa, tornava-se mais difícil prosseguir. Calafrios desciam pelas costas de Vertrigg.
Torenski, que continuava a conduzir o grupo, tropeçou numa rocha e arrastou os outros
consigo. Caíram um sobre o outro, mas nem por isso Iv parou de praguejar. Rajadas
violentas fustigavam a área. A luz dos faróis a atmosfera parecia um enorme gêiser ou
uma onda na arrebentação, que se estendesse de horizonte a horizonte.
Ajudavam-se uns aos outros para pôr-se de pé. La-Marck tremia tanto que a gente
sentia através do traje protetor. Iv chingou Torenski, porque o mesmo não tinha visto a
rocha, e Torenski praguejou contra a rocha sobre a qual tinha caído. Vertrigg e Iv tiveram
de apoiar La-Marck.
Ninguém sabia quanto tempo já tinha passado quando viram uma única perna de um
dançarino na luz dos faróis. Vertrigg admirou-se porque Torenski continuava a andar em
direção à mesma, mas estava tão cansado que não teve forças para chamá-lo de volta.
Foi só quando Torenski atirou os braços para o alto e saiu correndo que Vertrigg
compreendeu que não tinham descoberto a perna de um dançarino.
Uma das colunas de apoio da Lion erguia-se bem à sua frente.
***
Desde o início da noite Dan Picot vira-se obrigado a conduzir o carro voador com
base nas indicações do altímetro. O farol de proa adiantava pouco, pois só de vez em
quando, nos momentos em que as nuvens se abriam um pouco, sua luz chegava à
superfície do planeta. Por duas vezes Picot mal e mal conseguira evitar uma colisão com
um dançarino. Tschato também o informou sobre incidentes semelhantes. Picot esperava
que depois do anoitecer o comandante desse ordem de suspender as buscas, mas Tschato
insistira no prosseguimento das mesmas.
— Se não encontrarmos logo Vertrigg e seus companheiros, eles morrerão Dan —
dissera.
Na opinião de Picot, os náufragos já deviam estar mortos. Se não fossem as
interferências causadas pelos dançarinos, que afetavam principalmente as transmissões de
menor potência feitas pelos rádios-capacete, eles já teriam descoberto o que acontecera
com o grupo de Vertrigg. Mas do jeito que estavam as coisas, não tinham certeza se os
membros do mesmo ainda estavam vivos. Os rádios comuns dos dois carros voadores e
da Lion tinham potência suficiente para superar as interferências.
Picot recostou-se no assento do piloto, para encontrar uma posição mais
confortável. Finalmente fez um sinal para Dawson.
— Assuma por um instante, Sparks — ordenou. — Já estou todo duro. — Esfregou
os olhos irritados, que há horas tentavam em vão atravessar as nuvens de gases. Trocou
de lugar com Dawson. Os outros homens também observavam ininterruptamente a
superfície, sempre que a mesma se tornava visível.
De repente viram uma luminosidade nas proximidades. Picot estremeceu, mas
finalmente compreendeu que era o farol do outro carro voador que os iluminava. Os
rastreadores indicavam a distância exata que os separava do aparelho de Tschato. Assim
mesmo a aproximação do outro veículo causou certo mal-estar a Picot. As constantes
rajadas de tempestade arremessavam os veículos voadores a vários metros de distância,
sem que o piloto pudesse evitá-lo.
Fez um sinal para Dawson, que mudou imediatamente de direção.
A luz do farol do outro veículo continuou a aproximar-se.
Picot inclinou-se sobre o rádio.
— Aqui fala Picot, comandante — disse. — Seu aparelho está chegando muito
perto.
— Isso vai mudar logo — respondeu Tschato. — Preciso substituir Placidia na
direção. Ele acaba de ter uma cãibra.
Picot lançou os olhos para Dawson, que deu uma expressão indagadora ao seu rosto.
No mesmo instante o carro sofreu uma pancada, que o abalou fortemente.
— Um dançarino! — gritou Bomhardt. — Vi-o saltar contra nós.
Dawson escorregou para fora do assento e por um instante perdeu o controle do
veículo. De repente a carlinga foi mergulhada numa luz forte.
— Que diabo, Dan! — disse a voz de Tschato saída do alto-falante. — O senhor
ficou louco?
O impacto do dançarino viera simultaneamente com uma violenta rajada de vento,
que atingira o veículo e o atirara para o lado. Por um instante teve-se a impressão de que
o aparelho de Picot passaria por baixo do de Tschato, mas um movimento instintivo de
Dawson, que voltou a segurar o leme, fez subir o carro voador.
O rangido que se seguiu fez com que Picot sentisse um calafrio. O farol do veículo
de Tschato quebrou-se. Picot teve a impressão de que a iluminação no interior do carro
era escassa. Tschato fez uma tentativa desesperada de desviar-se do outro veículo, mas as
sapatas de seu aparelho prenderam-se atrás da carlinga do outro carro, que ficou
pendurado embaixo dele. Sem que o quisessem, Dawson e Tschato fizeram com que os
propulsores antigravitacionais executassem movimentos em sentido contrário.
Picot lançou um olhar para o altímetro e viu que a catástrofe era inevitável. Dali a
alguns segundos as máquinas bateram violentamente na superfície. A popa do veículo de
Picot foi totalmente esmagada pelas pesadas sapatas do outro veículo. O carro de Tschato
foi tombando de lado. Ameaçava arrastar o outro veículo consigo. Picot fechou os olhos,
à espera do momento em que fosse atirado através da carlinga. Mas tudo ficou em
silêncio.
— Que bela manobra, Dan — disse Tschato em tom sarcástico.
— Fomos atingidos por um dançarino, comandante — respondeu Picot. — Não
pudemos evitá-lo.
— De qualquer maneira, estamos presos — disse Tschato. — Dessa forma não
poderemos ajudar o Capitão Vertrigg. Só nos resta esperar até que seja dia, quando os
dois veículos que ficaram na Lion deverão tirar-nos daqui.
— Quem sabe se não podemos sair com nossos próprios recursos? — conjeturou
Dawson.
— As sapatas de meu veículo estão engatadas no seu — respondeu Tschato. —
Qualquer tentativa de separar os dois aparelhos poderá levar à destruição da carlinga de
um deles. Com isso um dos grupos dependeria dos trajes protetores. — Depois de uma
ligeira pausa, acrescentou: — Gaylord, receio que os dançarinos também apareçam por
aqui. Nem sequer poderemos fugir. Eles já são mais altos que uma casa. Se uma dessas
criaturas for parar aqui depois de um salto, estaremos perdidos.
Num pressentimento sombrio, Picot teve a impressão de ouvir o estrondo de uma
carlinga arrebentada, e viu algumas pernas gigantescas passarem por cima do veículo. A
simples idéia fez com que tivesse calafrios.
— Desligue o farol — ordenou Tschato. — Não acredito que a claridade atraia esses
monstros, mas todo cuidado é pouco.
Dawson apagou a luz. Por algum tempo tudo permaneceu em silêncio. De vez em
quando o estalido de metais atravessava seus capacetes. Toda vez que o veículo de cima
era atingido por uma rajada de tempestade, o mesmo começava a balançar de forma
quase imperceptível e parecia querer desprender-se do outro. Picot perguntou-se o que
Tschato e seus companheiros estariam sentindo no interior de um veículo tão inquieto.
— Os dois carros voadores caíram — informou Tschato. — Não houve mortos e
feridos.
— Iremos buscá-los, senhor — respondeu Bactas prontamente.
— Não — contestou Tschato. — Não faça nada enquanto estiver escuro. Ainda não
descobrimos o menor sinal de Vertrigg e seus homens. Talvez consigam chegar à Lion.
Bactas passou a falar um pouco mais baixo.
— A Lion foi atacada duas vezes por um dançarino — informou. — Mas acredito
que a criatura gigantesca tenha parado junto à nave por acaso. Quando fez a segunda
tentativa, abrimos fogo contra ele. Afastou-se aos saltos, sem perturbar-se com os tiros.
Pelo que se pode ver, há centenas destes monstros nas proximidades.
— Pare de atirar nos dançarinos — ordenou Tschato. — Na opinião de Gaylord,
com isso só conseguirá atrair outros monstros.
— O que faremos se a Lion for atacada por vários dançarinos?
Tschato pigarreou.
— As coisas não chegarão a este ponto, Bactas. Assim que raiar o dia, envie os dois
carros voadores ao local do acidente.
O engenheiro-chefe Bactas confirmou o recebimento da ordem e a ligação foi
interrompida. Picot esforçou-se em vão para romper a escuridão que se estendia fora da
carlinga. O veículo estava coberto por uma camada de neve de amoníaco. Pelo menos os
dançarinos pareciam ter-se retirado da área.
Mas dali a meia hora aconteceu uma coisa que fez com que todos os planos de
Tschato se tornassem ilusórios.
7

O Capitão Vertrigg entrou cambaleando na eclusa aberta e deixou-se cair nos braços
dos homens que vieram ao seu encontro, prontos para ajudá-lo. Quase não se deu conta
de que Iv, Torenski e La-Marck foram trazidos para dentro da nave atrás dele. O traje
protetor parecia uma carga insuportável. Sentiu-se aliviado quando alguém tirou seu
capacete. Deixou que o zumbido de vozes agisse em sua mente por algum tempo,
juntamente com os ruídos que pulsavam no interior da nave.
A primeira coisa de que teve plena consciência foi a voz do engenheiro-chefe,
Bactas, que disse em tom zangado:
— Tirem seus trajes protetores.
Vertrigg sentiu que por assim dizer descascaram o traje de cima de seu corpo. Fez o
possível para facilitar o trabalho dos homens, mas seus membros movimentaram-se com
dificuldade. Até parecia que não os usara durante vários anos, e que precisavam habituar-
se novamente às suas funções habituais.
Quando abriu os olhos, a luz forte o fez piscar. À frente da luz desenhava-se o vulto
pequeno e anguloso do engenheiro-chefe Bactas, que parecia não poder ficar quieto.
Bactas lambeu os lábios, dando a impressão de que o quadro oferecido pelos náufragos
lhe dava um prazer todo especial. Vertrigg sentia-se inclinado a acreditar que não fosse
assim, mas a simples idéia o fez sorrir.
— Os outros carros voadores caíram — comunicou Bactas.
Diante disso a alegria de Vertrigg desapareceu imediatamente.
— Estão... estão mortos? — perguntou. Assustou-se com a própria voz, que fora do
capacete protetor parecia penetrar vários quilômetros no espaço.
— Não — respondeu Bactas. — Sofreram uma colisão. Assim que clarear, iremos
buscá-los.
Vertrigg confirmou com um gesto. . — Chegou a ver algum dançarino?
— Já atiramos em um desses monstros — informou Bactas. — Tschato nos proibiu
de atirar de novo.
— Eles crescem — disse Vertrigg e fez um gesto vago, como se fosse incapaz de
mostrar toda a grandeza dessas criaturas.
— Vimos um que era quase do tamanho da Lion — disse Bactas.
Se Vertrigg não tivesse feito a marcha através do inferno de metano, certamente
duvidaria das palavras de Bactas. Mas diante do que tinha visto nada parecia impossível.
Bactas fez um movimento resoluto.
— Voltarei à sala de comando para informar o comandante de sua chegada. Tschato
encontrou Duprene e Cashton. Onde está Allijs?
— Está morto — respondeu Vertrigg.
Bactas não perguntou como tinha acontecido. Parecia adivinhar que Vertrigg não
fazia nenhuma questão de falar sobre o fim do astronauta.
— Assim que estiver recuperado, pode comparecer à sala de comando.
Separaram-se. Quando se dirigia aos camarotes, Vertrigg encontrou-se com
Torenski, que já parecia bem disposto.
— Vou falar com Mulligan, senhor — comunicou, dirigindo-se com Vertrigg. —
Gostaria que ele lhe mandasse alguma coisa?
Vertrigg lembrou-se da alimentação monótona de Mulligan e sacudiu o corpo.
— No momento não — disse. — Prepararei um café. Antes que tivesse tempo de
abrir a porta de seu camarote, o alarme do intercomunicador se fez ouvir. Vertrigg parou e
esperou que Bactas comunicasse o motivo do alarme. A voz do engenheiro-chefe parecia
preocupada.
— Todos a postos! — ordenou. — Os dançarinos estão se reunindo perto da nave.
Vertrigg lançou um olhar triste para a entrada de seu camarote e fez meia-volta. Dali
a instantes chegou à sala de comando. Deu um olhar para as telas de visão externa e viu
que Bactas tinha ligado os holofotes. Além disso os rastreadores que não funcionavam em
base hiperenergética mostravam que vários dançarinos se haviam reunido fora da Lion.
— Olhe só, capitão — fungou Bactas, dando a impressão de que se sentia aliviado
por poder dividir a responsabilidade pela nave com mais alguém.
Os dançarinos eram muito grandes, a ponto de se atrapalharem uns aos outros, mas
apesar disso aproximavam-se cada vez mais da nave. Quando não davam saltos
gigantescos, deslocavam-se que nem aranhas gigantescas. Vertrigg viu as criaturas
estenderem as pernas para apalpar a Lion. Provavelmente estavam à procura de novas
quantidades de energia, pois o neo-molkex tinha sido transformado quase em sua
totalidade numa massa gelatinosa, com o que se tornara totalmente inútil para os
dançarinos.
— Receio que, assim que seu número aumentar, os que estiverem atrás empurrem as
fileiras da frente contra a nave — disse Bactas. — É inútil tentar matar estes monstros.
Por isso não temos alternativa: precisamos fugir.
— E Tschato?
— Temos de trazê-lo a bordo antes disso. Já o informei sobre a nova situação.
Concorda em que a operação de salvamento seja iniciada imediatamente.
Vertrigg deixou-se cair numa poltrona.
— Sabe o que significa fazer sair um carro voador a esta hora?
— Tem medo de que o veículo não consiga passar pelos dançarinos?
Vertrigg confirmou com um gesto.
— E não são somente os dançarinos. Não se esqueça do furacão. Acontece que
apesar das comunicações pelo rádio o senhor levará algum tempo para salvar as
tripulações dos dois veículos.
A mobilidade do homenzinho parecia desaparecer por um momento. A perplexidade
ameaçava apoderar-se dele. Mas finalmente acomodou-se na poltrona de comando.
— Falarei com Tschato — disse. Esperou que o rádio-operador que estava
substituindo Dawson fizesse a ligação.
— Tschato falando — respondeu o primeiro-tenente, que estava preso não se sabia
onde, num carro voador inutilizado.
— O Capitão Vertrigg manifestou dúvidas sobre se devemos fazer sair mais um
veículo, comandante. Os dançarinos praticamente nos cercaram. Quase todos são bastante
grandes para pôr em perigo um carro voador.
— Vertrigg apresentou uma sugestão melhor? — perguntou Tschato.
— Um instante, comandante. O senhor poderá falar com o capitão.
Vertrigg lembrou-se dos homens que se encontravam no inferno de metano de
Pulsa. Um sentimento de culpa começou a tomar conta dele, pois alguém poderia ter a
impressão de que sua objeção tivera por fim impedir a operação de salvamento.
— Aqui fala Vertrigg, comandante — disse em tom áspero. — Não quero que me
interprete mal. Só queria...
— Está bem — interrompeu Tschato, que parecia saber muito bem o que estava
deprimindo a mente do capitão. — Vamos ao assunto.
— É possível que durante o dia os dançarinos se afastem — disse Vertrigg. — Além
disso temos a possibilidade de decolar com os propulsores comuns e pousar nas
proximidades do local do acidente.
— Sem dúvida — concordou Tschato. — Acontece que com isso os dançarinos
poderão ser atraídos para a área em que estamos. Não acredito que dois carros voadores
avariados possam oferecer qualquer tipo de resistência aos dançarinos.
— Sim — disse Vertrigg, embaraçado. — O senhor naturalmente tem toda a razão.
Parece que não temos outra alternativa senão arriscar a saída de um carro voador.
Assumirei o comando do veículo.
— O senhor está muito cansado, capitão — disse Tschato. — Bactas poderá sair.
Enquanto isso o senhor assumirá o comando da Lion.
Vertrigg reconheceu que seria arriscado se ele mesmo saísse de novo. Bactas teria
de encarregar-se da operação, conforme sugerira Tschato. Vertrigg virou a cabeça e fitou
o engenheiro-chefe da Lion.
— Está bem — disse. — Boa sorte.
***
Um único homem acompanhou Bactas no carro voador. Foi Clantworthy, um dos
técnicos subordinados a Bactas. O espaço existente no interior da carlinga era necessário
para abrigar os náufragos.
Bactas pensou nas criaturas gigantescas que se reuniam em torno da Lion. Por
estranho que pudesse parecer, não teve medo. Para ele os dançarinos pareciam ser um
problema puramente acadêmico, que podia ser resolvido por meio do computador. Na
verdade, sua mente se recusava a aceitar essas criaturas como parte da realidade.
Bactas esperou pacientemente que a eclusa do hangar se abrisse. Quando chegou a
hora, admirou-se de ver somente a escuridão completa à sua frente. A tempestade tangia
flocos de amoníaco pela abertura. Brumas de gases cinzentos passavam preguiçosamente
sobre a borda da eclusa. Bactas ligou o propulsor antigravitacional. O veículo saiu do
hangar. No mesmo instante Bactas avistou os dançarinos. Não via seus corpos completos,
pois eram muito grandes. Reconheceu suas enormes pernas à luz dos holofotes da Lion.
Descreviam movimentos convulsivos e se erguiam na escuridão que nem chaminés de
fábrica muito feias. Subiam bem para o alto, até onde a luz não podia acompanhá-los.
Bactas fez cair o veículo assim que saiu da eclusa. Teve a impressão de que seria
muito perigoso fazer subir o mesmo, pois lá no alto a tempestade poderia atingi-lo com
toda força e tangê-lo para dentro dás fileiras dos dançarinos. Bactas ficou manobrando o
aparelho em torno do corpo colossal da Lion, na esperança de encontrar uma brecha na
floresta de pernas. Ainda não sentia medo. Aqueles seres eram muito abstratos — não
pertenciam ao mundo do engenheiro-chefe.
Nuvens de neve de amoníaco foram tangidas sobre a carlinga, turbilhonando entre o
veículo e o casco da Lion, ora subindo, ora descendo. Os turbilhões desmanchavam-se
assim que o aparelho prosseguia em seu vôo, voltando a misturar-se com a torrente
imensa do mundo de metano. Sob a proteção da Lion, o carro voador percorreu sua rota
em relativa segurança. O farol do veículo parecia apalpar nervosamente o corpo da Lion.
De vez em quando Bactas via criaturas menores caminhando entre as pernas dos
dançarinos. Os corpos em estaca balançavam fortemente de um lado para outro, como se
quisessem provocar a admiração dos seres maiores de sua espécie. Mas tudo não passava
da caçada furiosa ao neo-molkex, que não era suficiente para saciar milhões de
dançarinos. Bactas tirou a mão direita do leme e bateu no ombro de Clantworthy. O
técnico virou a cabeça, de tal forma que Bactas pudesse ver seu rosto através do visor do
capacete. Clantworthy dava a impressão de não conhecer o engenheiro-chefe, de tão
absorto que estava nas impressões que o cercavam.
— Parece que não existe nenhuma passagem para nós — disse Bactas. O rádio-
capacete transmitiu suas palavras sob a forma de uma fala rouca, mas ao que parecia
Clantworthy o compreendera, pois confirmou com um aceno de cabeça.
— Ainda não contornamos toda a nave — respondeu.
Bactas teve suas dúvidas de que em algum outro lugar as coisas fossem diferentes,
mas continuou a passar em torno da Lion com seu veículo. No seu íntimo perguntou-se
como fariam para voltar à Lion — isto naturalmente se conseguissem romper o círculo
dos dançarinos. Uma rajada vinda de lado por pouco não comprimiu o carro voador
contra o couraçado, mas Bactas movimentou rapidamente o leme e acelerou.
— Ali adiante! — exclamou Clantworthy de repente. — Está vendo a brecha?
Bactas passou os olhos pela fileira de pernas gigantescas, que cercavam a Lion que
nem uma cerca viva. Havia um lugar em que elas não existiam, onde só se via a escuridão
entremeada de nuvens de gás e neve. Era impossível avaliar a largura da brecha, pois a
mesma mudava constantemente, à medida que os dançarinos modificavam sua posição.
Bactas cerrou os dentes. Lembrou-se de Tschato e de Picot, o perna-torta, e chegou à
conclusão de que os mesmos bem que valiam um risco. O casco da Lion desapareceu do
campo de visão dos dois homens. O carro voador parecia confundir-se com as nuvens em
que penetrou. Bactas teve a impressão de estar ouvindo o rugido da tempestade, mas
eram apenas as interferências que precederam as palavras de Clantworthy.
— E possível que atrás da brecha haja outros dançarinos — disse Clantworthy.
Bactas já pensara nessa possibilidade, mas a idéia de que a mesma pudesse
concretizar-se só provocou uma teimosia obstinada em sua mente. Entrou em contato
com a Lion. Vertrigg respondeu ao chamado. O cansaço que se fazia notar na voz do
capitão tinha dado lugar a certo nervosismo, que provavelmente tinha sua origem no
medo. Bactas não conhecia Vertrigg o suficiente para formar uma opinião sobre o
mesmo, mas o capitão era considerado um dos oficiais mais competentes da Lion. E
numa nave comandada por um homem como Tschato isso significava muita coisa. Sem
querer, Bactas lembrou-se do Capitão Walt Heintman, que naquele momento corria pelo
espaço com uma nave-girino a fim de alarmar a frota.
A voz de Vertrigg o fez retornar à realidade.
— Encontrou uma passagem?
— Encontrei — respondeu Bactas. — Neste momento tentamos passar pelos
dançarinos. A tempestade está muito forte.
Como que para reforçar suas palavras, o veículo foi balançando na direção da fresta
que se abria entre os dançarinos. Clantworthy estava com o corpo bem inclinado para a
frente; a posição parecia um tanto forçada. Bactas lançou um olhar para os controles e viu
que estava voando trinta metros acima da superfície. Fez o carro voador subir mais um
pouco, sem mudar de direção.
As pernas dos monstros pareciam erguer-se ao infinito quando o veículo blindado
de esteiras se aproximou. Bactas via cada uma das pernas-tentáculo que se estendiam em
direção à Lion, que nem tendões finos. A Lion está sendo examinada por uma estranha
equipe, pensou Bactas sem alegrar-se nem um pouco. De repente o medo fez-se presente.
Bactas sentiu algo como um pânico irrompendo nele com a força de um choque. Lançou
um olhar cauteloso para Clantworthy, mas o técnico continuava na mesma posição.
Vigiava atentamente a noite.
O carro voador penetrou em alta velocidade na fresta — e atravessou-a. Nada
indicava a presença de dançarinos à sua frente. Bactas respirou aliviado. Estava com as
palmas das mãos úmidas.
O veículo de esteira continuou a voar pela noite tempestuosa.
Atrás dele, sem que os dois homens o vissem, o círculo de pernas fechou-se por
completo. A única fresta deixara de existir.
***
Ao raiar do dia a tempestade soprou com violência redobrada. Dan Picot começou a
perguntar-se se Bactas ainda seria capaz de chegar ao local do acidente. Por três vezes o
engenheiro-chefe desviara-se da rota, porque as comunicações pelo rádio foram
interrompidas. Além disso tivera que desviar-se constantemente de verdadeiras manadas
de dançarinos.
No momento Bactas encontrava-se a cerca de dois quilômetros e meio do lugar em
que estavam. Em condições normais o trecho seria percorrido em alguns segundos. Mas
com a tempestade o carro voador só avançava lentamente. Bactas informava os
acidentados constantemente sobre a situação do vôo.
Apesar da presença de inúmeros dançarinos, o potente transmissor comum da Lion
chegava até os veículos caídos. As notícias recebidas de Vertrigg poderiam ser tudo,
menos tranqüilizadoras. O círculo de dançarinos fechava-se cada vez mais estreitamente
em torno da nave. Vertrigg e os cientistas que tinham ficado a bordo receavam sérias
dificuldades, se a Lion não abandonasse sua atual posição.
Picot olhou para o dia que ia nascendo. Não acreditava que fosse clarear mais. A
atmosfera saturada de hidrogênio, nitrogênio, metano e enxofre estava fortemente
agitada.
O veículo de Tschato balançava cada vez mais violentamente sobre as esteiras. Os
homens haviam tentado em vão ligar os dois aparelhos mais fortemente um ao outro. Era
impossível trabalhar no meio de um furacão como este. Era difícil manter-se de pé depois
de sair do veículo.
Picot observava a fúria dos elementos. Pulsa era um planeta selvagem, no qual
nunca se formaria qualquer tipo de vida no sentido humano. Só por meio de sua técnica
podia o homem subsistir num mundo como este. Assim mesmo sua vida corria um risco
constante.
Bactas voltou a chamar. Já estava mais perto e acreditava que dali a pouco avistaria
o local do acidente. Picot sentiu-se apavorado ao pensar que teriam de transferir-se para o
veículo intacto. Diante do furacão, isso seria bastante difícil.
Finalmente o carro voador apareceu entre as nuvens. Era uma sombra escura que ia
descendo lentamente, enquanto era atirado de um lado para outro pelas violentas rajadas
de vento.
— Já os encontramos, comandante — disse Bactas em tom de alívio. — Tentarei
pousar o mais perto possível dos carros caídos.
— Cuidado, Bactas! — advertiu Tschato. — Preste atenção para não danificar seu
veículo durante o pouso.
Bactas tentou colocar o veículo no chão enquanto descrevia círculos cada vez mais
estreitos. Acabou pousando a trinta metros do local do pouso.
— Já pode vir com os outros, comandante — disse Bactas. — Clantworthy e eu já
preparamos tudo.
— A tempestade nos soprará para longe — profetizou Tschato. — Tente aproximar-
se usando a propulsão de esteiras.
Bactas confirmou o recebimento da ordem. Dali a instantes os náufragos vira o
veículo avançar que nem um animal pré-histórico. O carro aproximou-se mais depressa
do que esperavam. Bactas parou bem perto dos veículos caídos.
— Muito bem — disse Tschato em tom de elogio. — Vou sair e esticar um cabo de
aço entre os dois carros, para que os homens possam segurar-se.
Ninguém formulou qualquer objeção. Tschato era o homem mais robusto que se
encontrava a bordo da Lion. Picot também confiava na capacidade do comandante. Olhou
para cima, mas a eclusa do outro veículo estava numa posição tal que Picot não podia ver
o primeiro-tenente no momento em que este saía da carlinga. Só chegou a ver Tschato
dali a alguns minutos, quando o mesmo escorregava para baixo, com o corpo rente ao
revestimento externo do veículo blindado. Picot reconheceu o cabo de aço. Tschato
prendeu uma das extremidades do mesmo nas sapatas e o ia desenrolando metro após
metro. Ao mesmo tempo, o comandante o usava para encontrar apoio. Por alguns
segundos Tschato ficou pendurado na parte lateral do veículo de Picot como se fosse um
alpinista. A tempestade balançou seu corpo. Finalmente Tschato conseguiu descer. Mas só
ficou de pé por um instante. Logo foi derrubado pela fúria da tormenta. Teve bastante
habilidade para evitar que o cabo de aço se enrolasse em torno dele. Percorreu rastejando
os poucos metros que o separavam do carro voador que viera para resgatá-los. Picot
respirou aliviado quando o viu desaparecer no interior da eclusa. O cabo de aço estava
esticado rente ao solo. Placidia foi o seguinte a sair, seguido pelo Dr. Gaylord e os outros
cientistas. Segurando o cabo de aço com ambas as mãos, chegaram ao veículo de
salvamento.
— Agora é nossa vez — disse Picot.
A salvação era iminente, mas o imediato da Lion não sentiu nenhum alívio.
Imaginava que Pulsa estaria reservando outras surpresas para a tripulação do couraçado.
***
Não foi nada fácil colocar todos os homens num só veículo, mas Picot achou
preferível passar um terrível aperto por algum tempo a aguardar a morte por asfixia.
Nome Tschato encarregou-se da pilotagem, já que o engenheiro-chefe parecia ter-se
cansado bastante com o vôo da Lion até o local do acidente.
Picot ficou de pé entre dois cientistas, cuja expressão carrancuda impedia qualquer
conversa. Esforçou-se em vão para não tomar conhecimento dos balanços e solavancos
do carro voador, que se verificavam toda vez que uma rajada de vento o atirava para fora
da rota. No interior da carlinga todos ficaram em silêncio. Cada um estava absorto em
seus próprios pensamentos, que eram mais ou menos desagradáveis. O que Bactas lhes
contara a respeito dos dançarinos que se encontravam nas proximidades da Lion fizera
com que os astronautas compreendessem que ainda faltava muito para estarem em
segurança.
De qualquer maneira já era claro, isto naturalmente se o crepúsculo sombrio
pudesse ser considerado uma forma de claridade. Em certos lugares a visibilidade era de
alguns quilômetros, mas geralmente as nuvens cobriam tudo e não se enxergava nada a
mais de cem metros.
As mensagens do Capitão Vertrigg eram cada vez mais insistente. Ao que tudo
indicava, o oficial acreditava que a Lion estava ameaçada.
— Estão à procura de energia — disse o Dr. Gaylord em tom pensativo, depois de
ter falado com Vertrigg.
— Mas um dia devem parar de crescer — objetou um dos outros cientistas.
— Sem dúvida — concordou Gaylord. — Mas ao que parece ainda não chegaram
ao estágio final.
— Como será esse estágio? — perguntou Tschato em tom calmo.
— Nenhuma criatura humana sabe — respondeu Gaylord. — Pode ser praticamente
qualquer coisa, pois a hiperenergia é conversível de ponta a ponta.
O carro voador não teve a menor dificuldade em atravessar a atmosfera agitada.
Picot já estava acreditando que alcançariam a Lion sem problemas, mas de repente
Tschato reduziu a velocidade. Picot esticou o pescoço para olhar por cima dos outros e
ver o que havia do lado de fora. O veículo estava atravessando uma área em que a
visibilidade era relativamente boa.
Havia um dançarino à sua frente.
Quando viu a monstruosa criatura, Picot chegou a duvidar de suas faculdades
mentais. Aquele dançarino era maior que qualquer outro que ele vira em Pulsa. Era uma
montanha de pernas, que desaparecia em meio às nuvens impenetráveis. O dançarino
cobria uma área de alguns quilômetros quadrados.
De repente aquela forma de existência proveniente do suprahet começou a
movimentar-se. Picot mordeu o lábio para não gemer. O dançarino dobrou as pernas.
Aquela monstruosidade assumiu a posição de salto. Diante da extensão do dançarino,
toda a paisagem parecia modificar-se aos olhos daqueles homens.
— Que acha, doutor? — perguntou Tschato entre os dentes. — Será que este é o
estágio final?
— Um momento, comandante — cochichou Gaylord. A tempestade balançava o
veículo, mas Tschato foi bastante hábil para mantê-lo no mesmo lugar, para que
pudessem observar o gigantesco dançarino.
— Deve ter milhares de pernas — disse um dos cientistas. A figura monstruosa
dispôs-se a saltar. Saltou para o céu numa velocidade alucinante e desapareceu além da
atmosfera.
O silêncio no interior da carlinga era tamanho que Picot ouvia a respiração dós
homens. Dali a pouco o Capitão Vertrigg chamou.
— Comandante — disse em tom nervoso. — Acabamos de registrar um forte abalo
estrutural. Novos blocos de neo-molkex devem ter descido em Pulsa, ou então aconteceu
outra coisa.
— Foi aquele dançarino — disse Gaylord. — Ele mesmo se arremessou para o
hiperespaço.
— Não é possível! — exclamou Dawson em tom de surpresa. — Como é que uma
criatura viva pode fazer uma coisa dessas?
— Uma criatura viva? — repetiu Gaylord. — Os dançarinos não são seres
orgânicos. Consistem em hiperenergia materializada. Seu espaço natural situa-se numa
dimensão superior. Foi de onde veio o suprahet, e é para onde voltam os dançarinos que
conseguem absorver quantidades suficientes de neo-molkex. Quem sabe se não estão à
espera disso há milhões de anos?
— Mas... o que acontece com eles quando atingem o hiperespaço? — perguntou
Picot.
— Acredito que se dissolvam em energia pura — disse Gaylord. — Mas não tenho
certeza. Existem inúmeras possibilidades. Provavelmente nunca seremos capazes de
desvendar o mistério do suprahet e de seus herdeiros.
Picot percebeu que nunca chegaria a compreender o que acabara de ver. Seria
preferível esquecer.
Durante o vôo observaram mais dois dançarinos que tinham alcançado um tamanho
suficiente e simplesmente desapareceram da superfície de Pulsa com um salto. Mas
estavam a uma distância tão grande que Tschato pôde prosseguir tranqüilamente no vôo.
Depois de algum tempo viram uma verdadeira manada de dançarinos.
— Pelo amor de Deus — disse o engenheiro-chefe Bactas. — Ali está a Lion. Não
se vê mais nada da mesma.
Tschato acenou com a cabeça. Não parecia muito impressionado. Chamou Vertrigg.
— Vemos os dançarinos que cercam a Lion — comunicou. — A nave propriamente
dita está totalmente encoberta pelos monstros. Tudo bem a bordo?
— Sim senhor — respondeu Vertrigg. — Alguns dançarinos tentaram entrar na
nave. O que acontecerá se atacarem em grupos maiores?
— Temos de encontrar um meio de entrar na Lion com o carro voador — disse
Tschato em tom pensativo.
— No momento não adianta tentar — disse Vertrigg. — De cima também é
impossível aproximar-se, pois vários dançarinos saltam constantemente de um lado da
nave para o outro. O senhor fatalmente colidiria com um deles. Tschato dirigiu-se a
Gaylord.
— O senhor vê alguma possibilidade de atrair os dançarinos para longe da Lion?
— Só se novos blocos de neo-molkex descessem do hiperespaço — respondeu
Gaylord. — É possível que uma liberação de energia normal nas proximidades do
couraçado seja suficiente. Mas o senhor sabe perfeitamente que não podemos gerar um
volume suficiente de energia para atrair os dançarinos.
Os homens que se encontravam no interior do veículo estavam cada vez mais
nervosos. Começaram a compreender que para eles não havia nenhuma possibilidade de
chegar a bordo da Lion. Picot teve de fazer um grande esforço para avançar até a poltrona
do piloto. Tschato levantou ligeiramente os olhos.
— Vertrigg deveria tentar decolar com a Lion — disse Picot. — Talvez consigamos
chegar a bordo quando a nave tiver saído da superfície.
— Nas condições atuais a manobra parece impossível — disse Tschato. —
Acontece que estamos numa situação desesperadora.
Falou com Vertrigg sobre a sugestão que Picot acabara de formular.
— Como posso tirar a Lion daqui? — perguntou Vertrigg. — Seria muito perigoso
ativar os campos antigravitacionais, pois os cientistas receiam que eventualmente os
dançarinos também possam saciar-se com esta forma de energia. Só restaria o propulsor
comum. O senhor sabe o que isso significa num planeta gigante como Pulsa, com sua
enorme gravitação. Teríamos de decolar com o máximo de aceleração e não haveria
tempo para recolher seu veículo.
— É verdade — disse Tschato. —- Mas de qualquer forma precisamos tentar. Se
ficarmos inativos, perderemos a Lion. Na pior das hipóteses, a decolagem da nave
acarretará a perda de um carro voador.
— O senhor sempre costuma pronunciar com tanta facilidade a sentença de morte
de um grupo de homens? — interveio Gaylord em tom contrariado.
— Sim, desde que eu pertença ao grupo — respondeu Tschato.
Gaylord compreendeu a indireta e ficou vermelho de raiva.
— O senhor se esquece de que sou o representante dos cientistas — disse. — Exijo
que o senhor nos ouça. Não concordamos com este plano maluco. Por enquanto não
existe nenhum risco iminente. Sugiro que esperemos até que os dançarinos se retirem.
— E se não se retirarem?
— Então ainda haverá tempo para ações temerárias, — disse Gaylord em tom
exaltado.
O rosto de Tschato não revelou nenhuma emoção. A essa altura Picot já se
arrependia de ter manifestado suas idéias, pois já agora as mesmas lhe pareciam
inviáveis. Mas era impossível opor-se a seu próprio plano.
— Vamos pôr o assunto em votação — decidiu Tschato.
O resultado da votação foi o seguinte: uma maioria de um voto a favor do plano de
Picot. O comandante chamou a Lion.
— Tudo bem, capitão — disse, dirigindo-se a Vertrigg. — Já pode decolar.
— Com os propulsores comuns?
— Sim, capitão.
Por um instante reinou um silêncio completo, mas a voz de Vertrigg logo voltou a
sair do alto-falante.
— Acabamos de registrar um grupo de projéteis, comandante — informou Vertrigg
em tom exaltado. — Deslocam-se a velocidade inferior à da luz, motivo por que
conseguimos detectá-los com a aparelhagem normal.
— Projéteis? — perguntou Tschato. — Tem certeza, capitão?
Picot perguntou-se se isso não seria um estratagema usado por Vertrigg para retardar
a decolagem da Lion. Quem poderia atirar projéteis contra o sistema de Whilor?
— Absoluta, senhor — respondeu Vertrigg. — Trata-se de foguetes alongados com
propulsores de impulsos capaz de um deslocamento à velocidade da luz. Foi o que
pudemos constatar. Todos seguem em direção a Pulsa.
— Talvez sejam naves dos blues que nos descobriram — conjeturou Tschato. — O
que acha, Dan?
— Não sei — confessou Picot. — Para mim a origem destes foguetes é um mistério.
No mesmo instante o plano que previa a decolagem da Lion foi esquecido. O
aparecimento dos objetos voadores não identificados provocou discussões violentas a
bordo da Lion e no interior do carro voador.
As discussões só cessaram quando o primeiro foguete atingiu o solo numa distância
de cem quilômetros, criando um inferno atômico num círculo de vinte quilômetros. Mas
isso não explicava a origem dos projéteis.
Mas já não havia a menor dúvida sobre sua finalidade. Os foguetes tinham sido
disparados para destruir a Lion.
8

A terceira explosão ocorreu tão perto da Lion que pôde ser observada do interior do
carro voador. O quarto foguete, ou quando menos o quinto atingiria a nave. O curso dos
acontecimentos parecia inevitável, a tal ponto que Picot nem chegou a sentir-se
apavorado. Para ele a Lion já não existia.
Mas de repente aconteceu uma coisa que ninguém esperava. A manada de
dançarinos afastou-se da Lion. Os monstros dividiram-se em grupos menores e foram
saltando em direção aos focos das explosões.
— São atraídos pela energia! — exclamou Gaylord. — Cuidado, comandante! Terão
de passar por nós.
Tschato já reconhecera o perigo. Saiu em disparada com o veículo. Os dançarinos
formavam um quadro irreal. Os corpos, formados quase exclusivamente pelas pernas,
erguiam-se da superfície e pareciam levitar através das nuvens de gases. Ao pousarem,
suas pernas já estavam dobradas para o próximo salto. Os dançarinos espalharam-se em
leque, pois precisavam de muito espaço para saltar juntos em direção às nuvens atômicas.
Quando o veículo ficou fora do alcance dos monstros, Dan Picot respirou aliviado.
A Lion estava só e abandonada, com exceção de alguns dançarinos menores, que não
conseguiam avançar tão depressa.
Tschato seguiu em direção ao couraçado. Picot esperava ver a qualquer momento o
lampejo de uma explosão nas imediações. Agora que os dançarinos se tinham afastado,
outro perigo os ameaçava. Será que a Lion realmente se tinham afastado, outro perigo os
ameaçava. Será que a Lion realmente vinham de outro lugar? Picot começou a transpirar
no interior de seu traje protetor. Levaram uma infinidade para chegar à Lion.
Parecia que os foguetes atômicos não afetavam os dançarinos. Mas as energias
nucleares não seriam capazes de saciar sua fome de hiperenergia. Devia haver milhões
dessas criaturas que não haviam conseguido quantidades suficientes de neo-molkex para
atingir o estágio do hipersalto. Estavam condenados a permanecer em Pulsa para todo o
sempre, pois era bastante improvável que voltassem a aparecer blocos de neo-molkex nas
proximidades do sistema de Whilor.
Houve a quarta explosão.
O foguete detonou a menos de vinte quilômetros da Lion. Os ocupantes do veículo
blindado de esteira tiveram sorte, pois a bomba atingiu o solo do lado oposto da nave. O
crepúsculo cinzento foi mergulhado numa luz amarelo-pálida, que parecia estender-se de
horizonte a horizonte. Em cima da Lion as nuvens assumiram uma coloração vermelho-
fogo.
— Cuidado, capitão! — gritou Tschato para dentro do microfone.
A eclusa do hangar da Lion abriu-se. Picot viu a nave aumentar de tamanho.
Finalmente o veículo de esteira passou por baixo do envoltório da nave e desapareceu no
interior do hangar. No mesmo instante os propulsores comuns da Lion começaram a
funcionar à potência máxima.
Os homens saíram do veículo o mais depressa que puderam. Técnicos,
aproximaram-se para ajudá-los. Assim que Tschato, Picot e Gaylord tiraram os trajes
protetores, saíram correndo juntos para a sala de comando.
A nave parecia vibrar. Os propulsores lutavam com a gravitação do planeta. Só
lentamente a Lion foi-se desprendendo da superfície do planeta de metano.
Quando Picot entrou na sala de comando juntamente com os dois companheiros, as
telas ofereciam um cenário fantástico. Milhares de dançarinos saltitavam e dançavam
embaixo da nave, em meio às nuvens levantadas pelas explosões atômicas. Ao que
parecia, queriam aproveitar desesperadamente o último suprimento de energia. Somente
seguiam o instinto, o impulso natural que já conduzira o suprahet, que devastara a
Galáxia há milhões de anos.
A Lion foi subindo, até atingir as camadas superiores da atmosfera de Pulsa. A luta
entre os propulsores e a gravitação era cada vez mais violenta. O gigante planetário
parecia querer recuperar pela força a vítima que já acreditara seguramente em seu poder.
Tschato voltou a assumir o comando. As últimas reservas de energia da Lion foram
conduzidas para os propulsores comuns. As explosões pararam. Ao que parecia, não
havia mais foguetes se aproximando de Pulsa. A Lion também não foi atacada. As
estranhas pulsações do planeta pararam. Os dançarinos tinham destruído essa
característica do neo-molkex.
A luta entre os propulsores e a gravitação permaneceu indecisa por alguns minutos.
Mas a nave acabou vencendo.
A força de atração do planeta era cada vez mais fraca e a Lion saiu pelo espaço.
***
Os rastreadores da Lion que ainda funcionavam estavam dirigidos para o espaço,
mas não havia nada que indicasse a presença de naves estranhas. A origem das bombas-
foguetes continuava envolta em mistério. Certamente o inimigo que as tinha disparado
pretendia destruir a Lion.
— Por que — perguntou-se Picot, — não os perseguiram?
Qualquer atacante deveria ter percebido que os hiperpropulsores da Lion não
estavam em condições de funcionamento. Teria sido por puro acaso que os projéteis
atingiram a superfície nas proximidades da Lion? Logicamente o alvo dos foguetes não
poderia ter sido outro que não o couraçado. Por enquanto a pergunta sobre a origem dos
foguetes permanecia sem resposta, muito embora Tschato tivesse manifestado a opinião
de que as naves desconhecidas pertenciam aos blues, que se tinham retirado
imediatamente.
A Lion foi saindo devagar do sistema de Whilor.
Picot olhou para as telas e viu que os planetas que apareciam nas mesmas pareciam
cada vez menores.
Tschato espreguiçou-se na poltrona de comando. Parecia muito satisfeito. Na
opinião de Picot, não havia motivo para isso. A Lion encontrava-se bem longe do setor
espacial em que estava em casa, e isso com um sistema de propulsão linear destruído e
sem a menor possibilidade de enviar um pedido de socorro, já que não havia condições de
reparar o hipercomunicador.
— E agora, comandante? — perguntou Picot.
Estava decidido a descobrir os planos do Primeiro-Tenente, se é que estes existiam.
— Só nos resta esperar que o Capitão Heintman chegue ao destino e um
destacamento da frota apareça por aqui — disse Tschato. — Não conseguiremos sair
daqui com nossos próprios recursos.
A confissão do comandante não soava como uma capitulação. Sem dúvida poderia
haver razões para acreditar que Heintman conseguisse desincumbir-se de sua tarefa, mas
para Picot o otimismo de Tschato era prematuro.
— Não acha que é perigoso permanecermos no sistema de Whilor? — perguntou
Picot. — O inimigo desconhecido pode voltar a atacar a qualquer momento.
— Vamos aguardar o destacamento da frota a uns três anos-luz do sistema —
anunciou Tschato. — Estaremos suficientemente longe para ficar garantidos contra
eventuais surpresas, mas também bastante perto para perceber a chegada das naves.
O intercomunicador deu um estalo. Dali a pouco ouviram a voz do Dr. Gaylord, que
estava chamando do laboratório que ficava a disposição dos cientistas.
— O senhor tem um pouco de tempo, comandante? — perguntou Gaylord.
— Naturalmente — disse Tschato. — De que se trata, doutor?
— Faça o favor de vir ao laboratório — respondeu Gaylord, fazendo um pouco de
segredo. — Gostaria de mostrar-lhe uma coisa.
— Tomara que não pretenda fazer explodir a Lion — disse Tschato em tom
sarcástico.
Gaylord deu uma risadinha quase imperceptível.
— Por pouco isso não acontece.
Picot teve a atenção despertada. Será que Gaylord e seus auxiliares estavam
realizando experiências perigosas? Fazia votos de poder acompanhar Tschato para o
laboratório, mas este levantou-se e disse:
— Assuma, Dan.
Picot pigarreou. Sentia-se infeliz. Olhou para Vertrigg, que conversava com
Dawson.
— Talvez seria preferível que eu o acompanhasse, comandante. Vertrigg pode
assumir o comando.
— Dan — disse Tschato de dedo em riste. — Até poderia ser levado a acreditar que
está preocupado com minha segurança. Será que receia um ataque de Gaylord?
Picot ficou contrariado. Será que tinha de agüentar o sarcasmo do leão? Mas quando
Tschato pediu que o capitão se aproximasse, suas feições tornaram-se menos sombrias.
Vertrigg assumiu a tarefa que Tschato tinha atribuído a Picot. Depois disso o comandante
pediu a seu imediato que o acompanhasse, dando-lhe uma pancadinha no ombro que por
pouco não derruba Picot.
***
Gaylord segurou o recipiente transparente à frente da lâmpada, fazendo com que o
líquido marrom adquirisse um brilho peculiar. Sacudiu a substância, movimentando o
recipiente entre os dedos.
Finalmente olhou para os dois astronautas.
— Sabe o que é isso, comandante?
— Não — respondeu Tschato.
— Café — disse Picot, numa tentativa desajeitada de despertar o senso de humor de
Gaylord.
Mas o pesquisador de estruturas limitou-se a fitá-lo com uma expressão zangada.
Picot esticou o corpo num gesto de teimosia, mas nem por isso chegou aos ombros de
Tschato.
— É neo-molkex — disse Gaylord. — O senhor deve estar lembrado de que
consegui recolher cerca de quinhentos gramas da substância em Pulsa.
Tschato levantou o braço.
— Nesse caso não se trata de neo-molkex em estado puro. É uma massa gelatinosa,
um resíduo do neo-molkex que ficou para trás depois que os dançarinos se tinham
saciado com a substância.
— É exatamente isso, comandante — confirmou Gaylord.
— Mas esta substância não deixa por menos. Sinto-me inclinado a afirmar que é
muito mais perigosa que o molkex e o neo-molkex.
Gaylord pegou uma caixa de comando retangular, que se encontrava do outro lado
da mesa.
— Iniciamos as experiências logo que chegamos a bordo — disse, apontando para a
caixa. — Este é o único aparelho capaz de gerar impulsos energéticos que continua em
condições de funcionamento no interior desta nave.
Tschato apoiou os braços sobre a mesa.
— Como é possível uma coisa dessas? — perguntou.
Picot olhou para um ponto situado além dele. Gaylord parecia sentir-se mais seguro
no laboratório que num ambiente normal. Sorriu para os oficiais.
— Não é de admirar que tenhamos conseguido — disse. — Pode dizer que foi por
acaso, mas talvez tenha sido por precaução que trouxemos para bordo as diversas peças
do aparelho. Alguns colegas meus receavam que não pudéssemos usar os aparelhos da
Lion. Voltou a sorrir. — O senhor há de compreender, é a velha desconfiança do cientista
para com homens como o senhor. Dessa forma a única coisa que tivemos de fazer para
obter impulsos hiperenergéticos foi montar o aparelho. Mas não se iluda. A energia
produzida por este aparelho não pode ser utilizada no hipercomunicador ou nos outros
aparelhos que ainda estão em condições de funcionamento.
O Dr. Gaylord ligou o aparelho e mudou a posição de algumas chaves.
— Esta substância — disse, apontando para o recipiente — é altamente explosiva,
mas somente quando é detonada por correntes hiperenergéticas. Isto se explica pelo
simples fato de que o molkex praticamente não passa de hipernergia materializada.
Fez algumas ligações entre o aparelho e uma série de recipientes negros, que tinham
o aspecto de enormes porta-ovos. Derramou pequena quantidade de líquido no primeiro
recipiente. Manipulou alguns comandos e fez com que em cada um dos porta-ovos
aparecesse uma quantidade uniforme do líquido. Encheu três ao todo.
— O primeiro corpo será submetido à energia comum, e o segundo à hiperenergia
— disse.
— E o terceiro? — perguntou Tschato.
— É por assim dizer um catalisador — disse Gaylord. — Possibilita a atuação da
energia de quinta dimensão em seu ambiente próprio.
— Preste Atenção! — disse, recuando um pouco.
Dali a alguns segundos o terceiro recipiente parecia flutuar no ar. Levantou-se da
mesa e evaporou-se. Uma nuvem de fumaça era o único sinal de sua existência.
Picot soltou um espirro quando o cheiro de queimado entrou em seu nariz. Não
ficou muito impressionado com a apresentação.
Gaylord mostrou o primeiro recipiente a Tschato. Ainda continha a substância que
tinha sido colocada no mesmo. Mas a substância contida no segundo recipiente tinha
desaparecido.
— Esta substância pode transformar-se numa arma de enorme poder destrutivo —
disse Gaylord. — O que os senhores acabam de ver pode ser o precursor de uma bomba
de gravitação que utiliza as energias da quinta dimensão.
Picot surpreendeu-se brincando nervosamente com a gola de seu uniforme. Quase
chegou a ter medo daquele laboratório. Quem ouvisse Gaylord seria capaz de acreditar
que o mesmo tinha descoberto a arma final.
Gaylord fez uma exposição prolongada aos dois astronautas sobre as possibilidades
de desenvolvimento da nova arma. Finalmente a necessidade que Tschato sentia por
explicações científicas parecia ter sido satisfeita, pois o mesmo saiu do laboratório,
fazendo sinal para que Picot o acompanhasse.
Uma vez no corredor, Picot ficou parado.
— Ainda bem que Gaylord só possui quinhentos gramas dessa substância — disse.
— Só assim não pode provocar nenhum desastre.
***
A Lion chegou sã e salva ao setor espacial que Tschato escolhera como área de
espera. Não tinham descoberto nenhum sinal dos misteriosos atacantes que tinham
disparado foguetes contra Pulsa. Não se falava mais no incidente, mas Picot sentiu que a
tripulação estava bastante nervosa.
A única sensação acontecida nestas horas foi uma salada de frutas criada por
Mulligan, oficial de intendência. Era bem verdade que a mesma só mereceu a admiração
unânime da tripulação enquanto esta não descobriu que a iguaria provocava cólicas de
estômago.
Picot, que recusara a salada de frutas, com medo de seu estômago supersensível,
voltou à sala de comando depois de ter dormido algumas horas, para substituir o
comandante Tschato.
— Tudo bem, Dan — disse Tschato a título de cumprimento. — Parece que aqui
poderemos aguardar calmamente a chegada das naves solicitadas por Heintman para
ajudar-nos.
Quando Picot manifestou suas dúvidas, Tschato bocejou.
— Pare de lamentar-se, Dan — disse. — Um pouco de modéstia não lhe faria mal.
Afinal, ainda estamos vivos.
Picot lembrou-se de Duprene, de Allijs e de Cashton. Lembrou-se dos mortos do
setor de Simban. A Lion sempre tivera de pagar um preço muito elevado.
Picot acomodou-se na poltrona de comando. Sua figura pequena quase afundou na
mesma. Pensou que Tschato já tivesse saído, em silêncio e como um felino, como
costumava fazer. Mas depois de algum tempo voltou a ouvir a voz do comandante.
— Sempre estamos caçando alguma coisa, Dan — disse Tschato. — Tal qual os
dançarinos. Alguns conseguem chegar a um estágio em que podem saltar para algum
lugar, mas a maioria fica para trás, lutando em vão.
Picot movimentou-se nervosamente na poltrona. Não gostava de ouvir Tschato falar
dessa maneira. Isso não combinava com o comandante.
— O que quer dizer com saltar para algum lugar, comandante? — perguntou.
— Talvez seja um salto para a vida privada, que os astronautas nunca conhecerão,
Dan.
Picot olhou para a tela panorâmica, que mostrava milhões de sóis. Compreendeu
que as ligações que o prendiam a este espaço eram muito mais estreitas que as que
mantinha com a sociedade privada humana. De repente teve certeza que teria muita
dificuldade em voltar para esta sociedade. Também não deixava de ser um preço que
tinha de pagar — um preço todo especial.
***
**
*

O Ultimo Baluarte, título do próximo volume desta série.

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