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Dimitri Dimoulis
Mestre em direito público pela Universidade Paris-I Sorbonne. Doutor e pós-doutor em Direito
pela Universidade do Sarre (Alemanha). Professor da Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas (Direito-GV). Professor visitante da Universidade Panteion e da
Universidade Politécnica de Atenas. Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais
(IBEC). E-mail: <dimitri.dimoulis@fgv.br>.
Resumo: O presente artigo avalia a teoria da interpretação a partir da perspectiva juspositivista do Direito.
Para tanto, analisa-se, de início, se a corrente juspositivista, especialmente Hart e Kelsen, alinha-se com
o realismo jurídico estadunidense, concluindo que concordam com a premissa geral de que a aplicação
jurídica não é externamente controlável, seja utilizando conceitos como a “moldura” ou “textura aberta”. No
entanto, argumenta-se que o aplicador do direito está limitado pela teoria da interpretação, a qual não nega
que a atividade interpretativa é criativa, mas que entende que a densidade normativa das normas, aliada
ao dever de fundamentação, oferece um parâmetro de controle de limite da atividade judicial.
Palavras-chave: Positivismo jurídico. Teoria da interpretação. Discricionariedade judicial. Justificação.
Sumário: 1 O trauma realista – 2 O positivismo jurídico possui teoria normativa da interpretação (Kelsen e
Hart)? – 3 O pragmatismo jurídico-político como teoria de reconhecimento e limitação da discricionariedade
do aplicador mediante fundamentação – 4 Palavras conclusivas: castelos e (não) sonhos – Referências
1 O trauma realista
O debate justeórico moderno foi marcado por dois traumas que costumam ser
imputados aos autores do realismo jurídico estadunidense. Primeiro, a afirmação
de que não existem fatos verdadeiros e/ou empiricamente constatáveis, mas tão
somente afirmações do julgador sobre tais fatos (ceticismo cognitivo sobre os fatos).
Segundo, a afirmação de que não existem interpretações das normas vigentes que
sejam verdadeiras, certas, adequadas, boas etc., mas tão somente decisões do jul-
gador sobre o sentido da norma (ceticismo cognitivo sobre as normas).
1
Agradeço a interlocução do Professor José Carlos Francisco. Muitas análises desse texto baseiam-se em
anterior estudo sobre o positivismo jurídico: Dimoulis, 2006.
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Schmitt, 1934, p. 42.
3
Fish, 1989, p. 139.
4
Sem aprofundar a questão genealógica, essas teses encontram-se expostas em Frank, 1936, p. 46-47; Frank,
1970, p. ix-x.
5
STF, Primeira Turma, Habeas Corpus n. 101.131, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento 25-10-2011.
6
Estudo da teoria kelseniana da interpretação em Schwaighofer, 1986; Luzzati, 1999, p. 335-363, 399-410;
Gometz, 2005, p. 55-102. Nos últimos anos multiplicam-se os escritos nacionais sobre a questão; Dimoulis,
2006, p. 209-231; Sgarbi, 2007, p. 89-103; Tavares/Osmo, 2008; Cademartori e Gomes, 2008 (com
pertinentes críticas a Kelsen); Cunha, 2008; Santos Neto, 2011; Mariano, 2011; Oliveira, 2011 (este último
texto com crítica a Kelsen a partir de premissas moralistas).
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7
Kelsen, 2000, p. 387-397.
8
A visão kelseniana sobre a interpretação foi formulada em artigo publicado em 1934 (Kelsen, 1934). Seu
posicionamento foi reiterado na 1a edição da Teoria pura do direito (Kelsen 1994, p. 90-100). A 2a edição da
obra (Kelsen, 2000) modifica a forma de exposição, mantendo a substância e o laconismo. Em importante
estudo, inicialmente publicado em 1939, Hans Klinghoffer (1974) sistematiza a teoria kelseniana da
interpretação.
9
Kelsen, 2000, p. 390.
10
Cademartori e Gomes, 2008, p. 104.
11
Kelsen, 2000-a, p. 219.
12
Dimoulis, 2003, p. 128-131.
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única solução, o aplicador não pode adotar uma postura meramente cognitiva. Deve
realizar uma escolha, manifestando sua preferência.
A proposta kelseniana é de perfeita lógica e dificilmente pode ser contestada
por um juspositivista. É a tese da necessária discricionariedade na aplicação dentro
dos limites estabelecidos pela norma superior. Essa tese decorre, na formulação de
um aluno de Kelsen, do “igual valor jurídico que possuem as interpretações e também
os resultados da interpretação. Isso impede que uma interpretação – por mais que
seja a desejada – adquira primazia em relação a outra (...). Ora, a autorização de
condutas de igual valor jurídico significa sempre livre-arbítrio”.13
Kelsen afirma que as propostas hermenêuticas feitas por estudiosos do direito
possuem caráter cognitivo (“interpretação jurídico-científica”). São propostas sobre
aquilo que o direito diz, destituídas de elemento volitivo, já que os intérpretes “cien-
tíficos” não possuem o poder que permitiria impor uma interpretação na prática do
direito.14
Em seguida, Kelsen equipara a ausência de elemento volitivo nas interpreta-
ções dos estudiosos do direito com a impossibilidade de elaborar regras para guiar (e
fiscalizar) a interpretação volitiva feita (e imposta) pela autoridade competente. Nega-
se terminantemente a elaborar uma teoria prescritiva (normativa) da interpretação,
considerando-a não científica e, consequentemente, incompatível com a pureza por
ele pretendida.15
Isso é problemático do ponto de vista da lógica. Constatar que alguém tem o
domínio absoluto de uma situação e o observador não pode influenciar o curso dos
acontecimentos não significa que o observador não possa avaliar o ocorrido. Não
podemos ressuscitar os mortos, mas podemos diferenciar entre suicídio e homicídio,
perseguindo o homicida. Quando se sabe que alguém violou uma prescrição norma-
tiva, abre-se caminho para a aplicação de sanções, além da possibilidade de fisca-
lização e afastamento da decisão injustificada. Isso é ignorado por Kelsen quando
afirma que “da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar
(...) se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a
norma a aplicar representa”,16 e conclui que, se a autoridade possui a competência
de decidir de forma definitiva, sua decisão vale independentemente do respeito às
normas vigentes, isto é, independentemente do respeito à “moldura”.17
Além disso, Kelsen nega-se a estabelecer regras sobre as formas de interpreta-
ção.18 Essa opção inutiliza sua “teoria da interpretação”. A metáfora da moldura perde
13
Klinghoffer, 1974, p. 161 e 162.
14
Kelsen, 2000, p. 388, 395.
15
Cf. Luzzati, 1999, p. 341.
16
Kelsen, 2000, p. 395
17
Kelsen, 2000-a, p. 224.
18
Cf. a crítica em Tavares, 2006, p. 73-74.
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19
Hart, 1961.
20
Cf. as referências bibliográficas em Luzzati, 1999, p. 250-251; Chamon Junior, 2006, p. 44; Tavares/Osmo,
2008.
21
MacCormick, 1989, p. 112.
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Ou seja: poderá produzir esses efeitos se um dia houver razoável consenso doutrinário sobre o conteúdo e a
objetividade da teoria da interpretação.
23
Kelsen, 2000, p. 20-21.
24
Dimoulis, 1999, p. 20-21.
25
Sobre a verdade como correspondência em âmbito jurídico, cf. Pintore, 1996, p. 128-135.
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26
Larenz, 1975, p. 335.
27
Sobre as teorias da “resposta certa”, cf. Bix, 1995, p. 76-132; Aarnio, 1997, p. 217-234.
28
Dworkin, 2000, p. 175-216.
29
MacCormick, 1989-a.
30
Dworkin, 1989.
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31
Dworkin, 2000, p. 213.
32
Dworkin, 1999, p. 314.
33
Dworkin, 1999, p. 421.
34
Streck, 2006, p. 166 e 9.
35
Kelsen, 2000, p. 390-397.
36
Villa, 2004, p. 208.
37
Chiassoni, 2005, p. 323-324; cf. Moreso e Vilajosana, 2004, p. 159.
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38
Viola e Zaccaria, 2003, p. 7.
39
Kelsen, 1979, p. 2.
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