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Discricionariedade e justificação.

Reflexões sobre a visão juspositivista da


interpretação jurídica1

Dimitri Dimoulis
Mestre em direito público pela Universidade Paris-I Sorbonne. Doutor e pós-doutor em Direito
pela Universidade do Sarre (Alemanha). Professor da Escola de Direito de São Paulo da
Fundação Getulio Vargas (Direito-GV). Professor visitante da Universidade Panteion e da
Universidade Politécnica de Atenas. Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais
(IBEC). E-mail: <dimitri.dimoulis@fgv.br>.

Resumo: O presente artigo avalia a teoria da interpretação a partir da perspectiva juspositivista do Direito.
Para tanto, analisa-se, de início, se a corrente juspositivista, especialmente Hart e Kelsen, alinha-se com
o realismo jurídico estadunidense, concluindo que concordam com a premissa geral de que a aplicação
jurídica não é externamente controlável, seja utilizando conceitos como a “moldura” ou “textura aberta”. No
entanto, argumenta-se que o aplicador do direito está limitado pela teoria da interpretação, a qual não nega
que a atividade interpretativa é criativa, mas que entende que a densidade normativa das normas, aliada
ao dever de fundamentação, oferece um parâmetro de controle de limite da atividade judicial.
Palavras-chave: Positivismo jurídico. Teoria da interpretação. Discricionariedade judicial. Justificação.

Sumário: 1 O trauma realista – 2 O positivismo jurídico possui teoria normativa da interpretação (Kelsen e
Hart)? – 3 O pragmatismo jurídico-político como teoria de reconhecimento e limitação da discricionariedade
do aplicador mediante fundamentação – 4 Palavras conclusivas: castelos e (não) sonhos – Referências

1  O trauma realista
O debate justeórico moderno foi marcado por dois traumas que costumam ser
imputados aos autores do realismo jurídico estadunidense. Primeiro, a afirmação
de que não existem fatos verdadeiros e/ou empiricamente constatáveis, mas tão
somente afirmações do julgador sobre tais fatos (ceticismo cognitivo sobre os fatos).
Segundo, a afirmação de que não existem interpretações das normas vigentes que
sejam verdadeiras, certas, adequadas, boas etc., mas tão somente decisões do jul-
gador sobre o sentido da norma (ceticismo cognitivo sobre as normas).

1
Agradeço a interlocução do Professor José Carlos Francisco. Muitas análises desse texto baseiam-se em
anterior estudo sobre o positivismo jurídico: Dimoulis, 2006.

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Segundo uma afirmação de Carl Schmitt, “a força jurídica da decisão é algo


diferente do resultado de uma fundamentação”.2 E o teórico do direito e da lite-
ratura Stanley Fish completou do outro lado do oceano e do espectro político: “A
Constituição não pode ser esvaziada de seu sentido (meaning) porque ela não é um
repositório de sentido. O significado é sempre conferido à Constituição pelas forças
políticas e institucionais”.3
Se os suportes fáticos do direito e o sentido das normas não são objetivamen-
te constatáveis, mas vale aquilo que o juiz disser, se o réu matou e não matou ao
mesmo tempo e se o Código Penal pune e não pune sua conduta, então a “ciência
do direito” encontra-se no ponto zero da cognitividade. Limita-se ao papel de registra-
dor de quaisquer decisões judiciais, admitindo estruturalmente a imprevisibilidade, a
subjetividade e as mais gritantes contradições.
Essa visão teórica parece intolerável do ponto de vista tanto jurídico como po-
lítico, e são poucos os juristas que a defendem explicitamente.4 O problema é que
abundam, na prática forense, exemplos que corroboram essa visão e parecem tornar
ingênua qualquer posição otimista em relação à objetividade do conhecimento do
mundo pelos aparelhos de justiça. Na cidade de Brasília, a mesma pessoa foi conde-
nada pelo mesmo crime em primeira e segunda instâncias, duas vezes consecutivas.
Cada vez em penas diferentes. Quando um defensor público descobriu que havia
duas decisões transitadas em julgado que impunham penas diferentes ao mesmo
réu pelo mesmo fato, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para decidir qual pena
deveria ser aplicada. O que fazer? Como continuar falando em “aplicação” do direito
conforme regras fixas que levam a resultados previsíveis?5 Não seria melhor aceitar
a natureza meramente decisionista da prática jurídica?

2  O positivismo jurídico possui teoria normativa da


interpretação (Kelsen e Hart)?
O estudo da teoria da interpretação de Kelsen desmente a difundida opinião
de que o apresenta como adepto da aplicação automática das leis e como crítico da
subjetividade do juiz. O leitor de Kelsen em vão buscará análises sobre a interpreta-
ção jurídica em milhares de páginas publicadas pelo autor.6 Tudo se resume a dez

2
Schmitt, 1934, p. 42.
3
Fish, 1989, p. 139.
4
Sem aprofundar a questão genealógica, essas teses encontram-se expostas em Frank, 1936, p. 46-47; Frank,
1970, p. ix-x.
5
STF, Primeira Turma, Habeas Corpus n. 101.131, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento 25-10-2011.
6
Estudo da teoria kelseniana da interpretação em Schwaighofer, 1986; Luzzati, 1999, p. 335-363, 399-410;
Gometz, 2005, p. 55-102. Nos últimos anos multiplicam-se os escritos nacionais sobre a questão; Dimoulis,
2006, p. 209-231; Sgarbi, 2007, p. 89-103; Tavares/Osmo, 2008; Cademartori e Gomes, 2008 (com
pertinentes críticas a Kelsen); Cunha, 2008; Santos Neto, 2011; Mariano, 2011; Oliveira, 2011 (este último
texto com crítica a Kelsen a partir de premissas moralistas).

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páginas, de invejável clareza e simplicidade, na segunda edição da Teoria pura do


direito.7 Páginas que, na substância, retomam posicionamentos anteriores do autor.8
Para Kelsen, o intérprete exerce sua competência de concretizar a norma supe-
rior, devendo respeitar a “moldura” ou o “quadro” (Rahmen) criado por essa norma.9
A norma, via de regra, oferece ao aplicador um leque de alternativas decisórias, uma
“gama de sentidos”.10 Cabe ao aplicador determinar qual interpretação será efeti-
vamente adotada. As autoridades que criarão normas hierarquicamente inferiores
continuarão excluindo alternativas decisórias, até chegarmos à escolha de uma única
interpretação, no fim do processo de concretização do direito.
Essa construção envolve dois mandamentos interpretativos. Primeiro, a veda-
ção de a autoridade competente optar por uma solução situada fora da moldura, pois
em tal caso excederia sua competência: “Apenas aplicando o Direito de Nevada é que
o tribunal atua como tribunal de Nevada”.11 Isso indica a absoluta heteronomia que é
típica da submissão de todos ao rule of law, conforme a expressiva denominação do
Estado de direito em inglês.12 Todos se submetem a normas estabelecidas, de acor-
do com procedimentos legais, independentemente de desejos e vontades subjetivas.
Segundo, a plena liberdade do aplicador para optar por quaisquer alternati-
vas dentro da moldura quando a norma superior não indicou critérios para tanto.
Sabidamente, a situação normativa costuma ser complexa, incidindo no caso várias
normas e até mesmo orientações interpretativas legalmente previstas, por exemplo,
a regra in dubio pro reo. Em tais casos, o intérprete constrói a moldura levando em
consideração todos os dispositivos que limitam seu poder discricionário. Mas, via
de regra, permanecerá no final mais de uma alternativa. Justamente esse espaço é
considerado por Kelsen como espaço de liberdade decisória do aplicador.
Combinando esses dois mandamentos interpretativos, Kelsen oferece uma res-
posta mitigada ao problema da natureza dos atos de aplicação do direito. Afirma
que a aplicação do direito possui caráter cognitivo, na medida em que a autoridade
competente deve encontrar as alternativas situadas dentro da moldura do texto nor-
mativo. Mas sustenta, também, que a norma não pode ser aplicada sem o ato de
vontade da autoridade competente para escolher entre as alternativas. A menos que
aconteça o improvável e a norma se revele absolutamente concreta, permitindo uma

7
Kelsen, 2000, p. 387-397.
8
A visão kelseniana sobre a interpretação foi formulada em artigo publicado em 1934 (Kelsen, 1934). Seu
posicionamento foi reiterado na 1a edição da Teoria pura do direito (Kelsen 1994, p. 90-100). A 2a edição da
obra (Kelsen, 2000) modifica a forma de exposição, mantendo a substância e o laconismo. Em importante
estudo, inicialmente publicado em 1939, Hans Klinghoffer (1974) sistematiza a teoria kelseniana da
interpretação.
9
Kelsen, 2000, p. 390.
10
Cademartori e Gomes, 2008, p. 104.
11
Kelsen, 2000-a, p. 219.
12
Dimoulis, 2003, p. 128-131.

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única solução, o aplicador não pode adotar uma postura meramente cognitiva. Deve
realizar uma escolha, manifestando sua preferência.
A proposta kelseniana é de perfeita lógica e dificilmente pode ser contestada
por um juspositivista. É a tese da necessária discricionariedade na aplicação dentro
dos limites estabelecidos pela norma superior. Essa tese decorre, na formulação de
um aluno de Kelsen, do “igual valor jurídico que possuem as interpretações e também
os resultados da interpretação. Isso impede que uma interpretação – por mais que
seja a desejada – adquira primazia em relação a outra (...). Ora, a autorização de
condutas de igual valor jurídico significa sempre livre-arbítrio”.13
Kelsen afirma que as propostas hermenêuticas feitas por estudiosos do direito
possuem caráter cognitivo (“interpretação jurídico-científica”). São propostas sobre
aquilo que o direito diz, destituídas de elemento volitivo, já que os intérpretes “cien-
tíficos” não possuem o poder que permitiria impor uma interpretação na prática do
direito.14
Em seguida, Kelsen equipara a ausência de elemento volitivo nas interpreta-
ções dos estudiosos do direito com a impossibilidade de elaborar regras para guiar (e
fiscalizar) a interpretação volitiva feita (e imposta) pela autoridade competente. Nega-
se terminantemente a elaborar uma teoria prescritiva (normativa) da interpretação,
considerando-a não científica e, consequentemente, incompatível com a pureza por
ele pretendida.15
Isso é problemático do ponto de vista da lógica. Constatar que alguém tem o
domínio absoluto de uma situação e o observador não pode influenciar o curso dos
acontecimentos não significa que o observador não possa avaliar o ocorrido. Não
podemos ressuscitar os mortos, mas podemos diferenciar entre suicídio e homicídio,
perseguindo o homicida. Quando se sabe que alguém violou uma prescrição norma-
tiva, abre-se caminho para a aplicação de sanções, além da possibilidade de fisca-
lização e afastamento da decisão injustificada. Isso é ignorado por Kelsen quando
afirma que “da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar
(...) se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a
norma a aplicar representa”,16 e conclui que, se a autoridade possui a competência
de decidir de forma definitiva, sua decisão vale independentemente do respeito às
normas vigentes, isto é, independentemente do respeito à “moldura”.17
Além disso, Kelsen nega-se a estabelecer regras sobre as formas de interpreta-
ção.18 Essa opção inutiliza sua “teoria da interpretação”. A metáfora da moldura perde

13
Klinghoffer, 1974, p. 161 e 162.
14
Kelsen, 2000, p. 388, 395.
15
Cf. Luzzati, 1999, p. 341.
16
Kelsen, 2000, p. 395
17
Kelsen, 2000-a, p. 224.
18
Cf. a crítica em Tavares, 2006, p. 73-74.

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seu sentido se afirmarmos que pode ser traçada livremente (autorreferencialmente)


pela autoridade competente e que, além disso, a doutrina não possui métodos de
interpretação que deve propor aos aplicadores para diferenciar entre interpretações
corretas e incorretas. Na falta de métodos de interpretação, a atividade interpretativa
se transforma em puro ato de vontade.
O outro grande positivista do século XX, Herbert Hart, refere-se ao problema da
interpretação apresentando uma visão não muito diferente. Hart adota a teoria da
textura aberta do direito e não se refere a métodos de interpretação, concedendo
liberdade potencialmente ilimitada ao aplicador. Hart não indica mediante quais mé-
todos, objetivamente controláveis, pode ser constatado o significado da norma nos
“casos fáceis” (clear cases ou easy cases), nem explica qual é o critério para distin-
guir entre casos fáceis e casos difíceis. Reconhece a liberdade do juiz para resolver
casos situados na “penumbra” da formulação da norma, sem indicar sua visão sobre
a interpretação jurídica nos casos fáceis ou claros.19
Em razão do silêncio sobre métodos de interpretação, tanto Kelsen como Hart
equiparam a aplicação correta e incorreta das normas, já que não indicam como e por
que pode ser censurado quem desrespeita a moldura ou resolve equivocadamente
casos fáceis. Concluindo, tacitamente, que não há norma vinculando efetivamente o
aplicador, os dois maiores positivistas confundem, nesse ponto, o ser e o dever ser
na aplicação do direito, o que significa sua adesão, de fato, ao realismo jurídico.20
Mas o fato de ambos aceitarem as afirmações dos realistas apresentadas no
início deste trabalho não retira a força da tese positivista da discricionariedade do
aplicador, que pode ser maior ou menor dependendo da densidade da norma supe-
rior. Analisaremos em seguida os contornos dessa discricionariedade.

3  O pragmatismo jurídico-político como teoria de


reconhecimento e limitação da discricionariedade do
aplicador mediante fundamentação
O intérprete nunca pode se desvincular da pretensão normativo-impositiva que
exprimem os dispositivos vigentes. Da mesma maneira, o teórico do direito deve
analisar a validade e a interpretação do direito com base na pretensão normativo-­
impositiva das normas, indicando o que deve fazer o aplicador e não somente anali-
sando aquilo que ele efetivamente faz.21

19
Hart, 1961.
20
Cf. as referências bibliográficas em Luzzati, 1999, p. 250-251; Chamon Junior, 2006, p. 44; Tavares/Osmo,
2008.
21
MacCormick, 1989, p. 112.

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A preocupação central da teoria da interpretação se exprime na pergunta:


Quando e por que o intérprete deve (ou não deve) decidir de certa forma? Buscar os
elementos normativos que vinculam o aplicador e indicar os métodos que permitem
encontrar esses elementos é um trabalho de grande utilidade. Tal como o professor
de direito tributário ensina as obrigações tributárias, mesmo que todos saibam que a
sonegação fiscal é um fenômeno constante e que nenhuma lei (e muito menos uma
aula de direito tributário) poderá evitar a sonegação, a teoria normativa da interpreta-
ção produz seus efeitos mesmo sendo desrespeitada por determinados aplicadores.22
A visão juspositivista sobre a interpretação deve se basear em uma teoria in-
terna. Os únicos critérios para aferir a verdade de uma proposta interpretativa são
as disposições em vigor, isto é, os elementos normativos criados pelas autoridades
competentes. Todas as normas válidas e somente essas são fontes que permitem
avaliar as propostas dos intérpretes.
Suponhamos que o intérprete afirme:
“Nas condições X, a conduta C é proibida (permitida, obrigatória) para o desti-
natário D”.
Essa afirmação é correta como interpretação jurídica se e somente se existem
dispositivos juridicamente válidos prevendo:
“Nas condições X, a conduta C é proibida (permitida, obrigatória) para o desti-
natário D”.
Isso significa que a proposição enunciada pelo aplicador pode ser avaliada como
verdadeira ou falsa dependendo de sua correspondência com normas que possuem
validade no âmbito do ordenamento jurídico.23
Essa é a convenção da verdade, que rege a interpretação do direito.24 A conven-
ção se baseia na teoria filosófica que define a verdade como correspondência entre
fatos reais e afirmações do observador. Essa teoria sofreu múltiplas críticas (tal como
ocorreu com todas as demais teorias da verdade), mas nos parece a mais indicada
no âmbito da interpretação jurídica.25
A versão pragmatista do positivismo considera que, entre os fatores que in-
fluenciam a interpretação, só é juridicamente decisivo o material normativo que regu-
lamenta a forma de averiguação e avaliação de fatos sociais. A interpretação jurídica
atribui sentido a um dispositivo jurídico mediante a formulação de propostas que
correspondem ao sentido desse dispositivo.
Essa perspectiva juspositivista rejeita os métodos teleológicos que adulteram
os conteúdos normativos fazendo referência a uma suposta e oculta vontade do

22
Ou seja: poderá produzir esses efeitos se um dia houver razoável consenso doutrinário sobre o conteúdo e a
objetividade da teoria da interpretação.
23
Kelsen, 2000, p. 20-21.
24
Dimoulis, 1999, p. 20-21.
25
Sobre a verdade como correspondência em âmbito jurídico, cf. Pintore, 1996, p. 128-135.

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legislador (teleologia subjetiva) ou a necessidades de modificação da norma em de-


trimento de seu conteúdo (teleologia objetiva).
A interpretação deve partir do método gramatical, constatando o significado dos
termos utilizados pelas fontes do direito autorizadas, e terminar com o emprego do
método sistemático, contextualizando o dispositivo interpretado, no intuito de garantir
a harmonia normativa no âmbito do ordenamento jurídico. A interpretação sistemática
avalia criticamente as respostas dadas pela jurisprudência e pela doutrina em relação
ao problema.
O resultado da interpretação deve estar acompanhado de justificativa em duas
direções. Primeiro, em relação aos métodos escolhidos; segundo, em relação à pro-
posta interpretativa adotada in concreto. Em seguida, deve ser realizada uma dis-
cussão crítica entre intérpretes, oficiais e não, que compartilhem a finalidade da
interpretação objetiva. O debate permitirá confirmar ou corrigir a proposta interpreta-
tiva com base em argumentos objetivos.26
Discute-se se é possível afirmar que, mesmo em casos complexos ou difíceis
(hard cases), existe uma única resposta certa (one right answer) que o intérprete deve
propor e o aplicador adotar.27 Para que o resultado da interpretação seja considerado
o único certo, deve atender a dois requisitos: ser correto de acordo com critérios de
mérito (moral ou político) e possuir concretude, não deixando ao aplicador margem
de escolha. Essa posição é defendida principalmente por adversários do positivismo
que recorrem a métodos de interpretação teleológicos e apelam a valores morais
reputados capazes de oferecer a única resposta certa.28
Isso se confirmou na controvérsia entre Dworkin e MacCormick sobre a forma
de interpretar o aviso que proíbe a entrada de veículos em um parque. MacCormick
sustentou, defendendo a visão juspositivista, que sempre haverá casos de dúvida e
de indecisão, por exemplo, em relação a veículos não motorizados, automóveis que
farão parte de uma exposição dentro do parque etc. Para MacCormick, a decisão
sobre esses casos não decorre da norma, exigindo uma tomada de posição volitiva
do aplicador.29
Dworkin, por sua vez, sustentou que tais controvérsias são devidas a diver-
gências políticas dos intérpretes sobre a definição do ordenamento jurídico e não à
indeterminação do próprio ordenamento jurídico, que, segundo o autor, sempre per-
mite indicar o que é proibido ou permitido em cada caso concreto, mesmo quando as
normas legais são abstratas, obscuras ou desajustadas a imperativos da moralidade
política de uma comunidade.30

26
Larenz, 1975, p. 335.
27
Sobre as teorias da “resposta certa”, cf. Bix, 1995, p. 76-132; Aarnio, 1997, p. 217-234.
28
Dworkin, 2000, p. 175-216.
29
MacCormick, 1989-a.
30
Dworkin, 1989.

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Na visão de Dworkin, se o texto normativo autoriza duas ou mais respostas


interpretativas, devemos escolher aquela que se baseia na melhor “teoria política
ou moral”,31 isto é, na teoria que pode ser considerada a melhor “do ponto de vista
da moral política como um todo”.32 Assim sendo, o moralismo atribui ao intérprete
o ônus (e o direito) de “fechar” o espaço da interpretação, indicando a melhor al-
ternativa do ponto de vista moral.33 Como foi escrito por um adepto do moralismo,
“nenhum intérprete (juiz, promotor de justiça, advogado etc.) está autorizado a fazer
interpretações discricionárias”, fulminando o juspositivismo pelo fato de aceitar a
“arbitrariedade interpretativa”.34
Ora, constatamos que, para os juspositivistas, quando o legislador cria um re-
gulamento abstrato que não permite encontrar uma solução concreta para o caso
analisado ou quando estamos diante de incertezas interpretativas causadas por uma
série de fatores de imperfeição técnica, o aplicador possui autorização legislativa
para o exercício de poder discricionário. O livre-arbítrio dado pelo legislador não signifi-
ca interpretação arbitrária, por mais que a visão moralista procure identificar as duas
situações, exercendo pressão moral sobre os aplicadores com a invocação de ideais
abstratos tais como “democracia”, “igualdade”, “interpretação constitucionalmente
adequada” etc.
O texto das normas jurídicas deve ser visto como filtro, cuja textura é mais ou
menos densa, aberta, abstrata. O grau de porosidade do texto normativo é indicado
pelo número e pela diversidade semântica das alternativas de interpretação que esse
texto autoriza, isto é, das alternativas que podem passar pela “peneira” do próprio
texto. A regra da densidade normativa é: Quanto maior for o número de interpretações
divergentes que podem ser sustentadas em relação a determinado texto normativo,
menor será sua densidade normativa (e vice-versa).
A distinção entre espaço de interpretação (cognitiva) e espaço de concretização
(volitiva) constitui uma importante autolimitação dos intérpretes, que devem se ater
ao texto, estabelecendo o limite a partir do qual a interpretação não é possível.35
Tal distinção permite identificar e rejeitar duas posições extremas que encontra-
mos no debate sobre a interpretação.
Por um lado, o pan-interpretativismo, que afirma ser possível resolver qualquer
problema de aplicação do direito mediante interpretação. Essa visão se exprime por
juspositivistas que adotam a tese do formalismo interpretativo36 ou cognitivismo inter-
pretativo.37 Seu objetivo é extrair do texto a única vontade do legislador, minimizando

31
Dworkin, 2000, p. 213.
32
Dworkin, 1999, p. 314.
33
Dworkin, 1999, p. 421.
34
Streck, 2006, p. 166 e 9.
35
Kelsen, 2000, p. 390-397.
36
Villa, 2004, p. 208.
37
Chiassoni, 2005, p. 323-324; cf. Moreso e Vilajosana, 2004, p. 159.

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o papel ativo-volitivo do aplicador. O mesmo caminho é seguido, como constatamos,


pelos autores moralistas, que realizam avaliações morais comparativas para escolher
e melhor interpretação.
Por outro lado, nossa abordagem se diferencia da visão pessimista ou niilista,
que nega a possibilidade da interpretação cognitiva, considerando que o aplicador
sempre desempenha um papel criativo mediante atos de vontade, sendo impossível
a interpretação cognitiva. Essa é posição do realismo jurídico, indicada no início do
texto (ceticismo interpretativo).
Parece-nos acertada a posição intermediária do interpretativismo moderado.
Quanto menor for a densidade normativa, maior é o espaço dado à concretização
volitiva. Traçando o limite da interpretação cognitiva de uma norma, a doutrina desem-
penha um papel fiscalizador em relação às pessoas ou autoridades competentes,
identificando a moldura dentro da qual a concretização pode ocorrer sem distorcer a
vontade expressa no texto normativo.
Surgindo dúvida interpretativa sobre a solução que deve ser adotada no âmbito
de concretização do direito (preenchimento de lacunas, aplicação em caso concreto
etc.), cabe ao aplicador decidir livremente.
Mas isso vale com a ressalva do dever de fundamentação. Podendo, por exem-
plo, o aplicador optar legalmente tanto pela condenação em pena privativa de liberda-
de como pela aplicação de pena de multa, continua possuindo o dever constitucional
de justificar a decisão, não sendo suficiente afirmar: “assim quis”. Ele deve explicitar
as razões pelas quais optou por certa interpretação. Aqui adquirem relevância os
precedentes judiciais e o trabalho doutrinário, como formas de estabilização das deci-
sões, garantindo, até certo ponto, previsibilidade e uniformidade decisória. Não cabe
ao teórico do direito dizer ao aplicador como deve fundamentar sua decisão, mas é
preciso alertá-lo de que deve sempre oferecer uma fundamentação substancial.

4  Palavras conclusivas: castelos e (não) sonhos


Foi dito, por autores antipositivistas e com claro intuito de crítica ao positivis-
mo: “o direito é, ao final das contas, uma prática e não um castelo de normas ou
conceitos”.38 Parece-nos que essa afirmação pode ser aceita mesmo do ponto de
vista positivista. Basta lembrar a célebre afirmação kelseniana de que “a norma é o
significado de uma vontade, de um ato de vontade”.39 Do ponto de vista prático, o
direito que interessa aos cidadãos, o direito que se aplica e afeta as nossas vidas,
é um conjunto de práticas decisórias, isto é, de decisões discricionárias de seus
aplicadores finais, em particular dos magistrados. Pouco interessa ao aposentado

38
Viola e Zaccaria, 2003, p. 7.
39
Kelsen, 1979, p. 2.

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se a Constituição lhe assegura, abstratamente, certo benefício previdenciário. Aquilo


que “conta” para ele é a decisão dos órgãos previdenciários e, em última instância,
do Judiciário.
A essa óbvia constatação o juspositivismo acrescenta uma observação. As deci-
sões dos órgãos de aplicação só podem ser juridicamente aceitas se for comprovado
que decorrem de normas superiores. Esse é o critério do caráter (juridicamente) cor-
reto de certa interpretação. As interpretações devem respeitar, de maneira rigorosa,
os mandamentos e procedimentos do “castelo” de normas que foi criado pelos legis-
ladores e pelos conceitos elaborados em séculos de reflexão doutrinária, transmitida
pelo ensino universitário. Por essa razão, normas e conceitos não devem ser prete-
ridos em nome do sonho (Herbert Hart diria: do nobre sonho e/ou do pesadelo40) do
magistrado que invoca o justo porque deseja se tornar legislador.

São Paulo, outubro de 2014.

Discretion and justification. Reflexions on the juspositivist perspective of interpretation


Abstract: The present article evaluates the theory of interpretation from the juspositivist perspective of
Law. In order to do so, it analyzes if juspositivists, especially Hart and Kelsen, align with American realism,
concluding that they agree with the general premise that juridical application is not externally controllable,
be it by utilizing concepts such as the “frame” or “open texture”. However, it argues that the operator of Law
is limited by the theory of interpretation, which doesn’t negate that interpretation is eminently creative, but
understands that normative density, allied with the necessity of motivation, offers a parameter of control
and limit to judicial activity.

Keywords: Positivism. Theory of Interpretation. Judicial Discretion. Justification.

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DIMOULIS, Dimitri. Discricionariedade e justificação. Reflexões sobre a visão


juspositivista da interpretação jurídica. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais
– RBEC, Belo Horizonte, ano 9, n. 31, p. 855-866, jan./abr. 2015.

Recebido em: 13.04.2015


Aprovado em: 01.05.2015

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