Jaime Marcos
Lutenberg
A relação continente-conteúdo
A relação continente-conteúdo
tem, dentro da teoria de Bion, a
mesma relevância e transcendência que o conceito de repressão, dentro da
teoria de Freud. Constitui uma noção fundamental para uma prática psica-
nalítica diferente. Para Bion, os pensamentos estão em primeiro lugar, de-
pois o pensador que os pensa. A possibilidade de pensar os pensamentos é
uma variável que, entre outras, depende das qualidades da relação conti-
nente-conteúdo. É por isso que este é um elemento fundamental da psica-
nálise; faz a essência da figuração mental do universo que vai ser simboli-
zado mediante as respectivas transformações alfa.
A teoria de Bion permite-nos efetuar operações psicanalíticas que não
nos seriam possíveis se dependêssemos / no que tange às teorias / à luz das
teorias precedentes. Possibilita-nos ver uma “verdade” em sua dimensão
vincular antes invisível. Graças a essa visão, é mais importante ter em con-
ta se a mente do analisando é capaz de ser continente dos conteúdos que
dela emanam e a ela chegam como estímulos, do que se os mesmos são
conscientes ou inconscientes.
A teoria da repressão nos conduz pelo caminho técnico de tornar cons-
ciente o inconsciente. A teoria da relação continente-conteúdo permite-nos
reconhecer os pensamentos pensados como os ejetados da mente do pensa-
dor por meio da identificação projetiva maciça (psicoses, delírios hipocon-
dríacos, acting out, etc.). Através do respaldo técnico que podemos ofere-
cer a esses analisandos mais graves, é possível tornar inconsciente o ejetado
por meio dos elementos beta (transferência psicótica).
Uma alucinação pode ser a expressão da incapacidade da mente para
conter os conteúdos que está ejetando. Se aceitarmos a idéia de que, no
vínculo psicanalítico, sempre se acham presentes a transferência psicótica
e a não-psicótica que emergem das respectivas partes em que Bion divide a
personalidade humana, devemos estar permanentemente atentos à emer-
gência alternada e/ou simultânea de ambos os elementos. Essa é uma ver-
dade clínica comprovável por todo analista, em sua prática cotidiana, uma
vez que aceite a possibilidade teórica de que isso ocorra (transferência
psicótica). A linguagem articulada é um dos variados continentes poten-
ciais dos conteúdos, porém não o único.
Jaime Marcos Lutenberg
É possível, também, conceber a transferência psicótica em termos de
conteúdos sem continente. O essencial do conceito teórico “relação conti-
nente-conteúdo” é justamente ser uma “relação”, indicando que a mente
humana opera basicamente de forma VINCULAR, NÃO SINGULAR.
Para Bion, os pensamentos são sempre o produto de um vínculo. Apesar
de, durante a sessão, nos ocuparmos de uma mente individual, estamos
sempre analisando um vínculo. A figura do par continente-conteúdo colo-
ca em cena, dramatiza e representa algo muito específico: a incessante
metamorfose mental da figura de casal combinada dos pais que, no mundo
interno, se vão recompondo em cada estado mental, em cada instante do
viver cotidiano e, portanto, do viver de cada sessão.
O ser humano nasce prematuro e é alojado pela dupla de pais: existe
uma dimensão histórica desse aninhamento, uma dimensão biológica, an-
tropológica, cultural, lingüística, etc. e uma dimensão mental. A
especificidade dessa dimensão mental do nascimento humano no inte-
rior de um casal está conceituada pela teoria da relação continente-
conteúdo. A dinâmica da transferência permite a visualização do estado
dinâmico em que essa relação se encontra, em cada um dos momentos do
vínculo transferencial. Como seres humanos, vamos sendo, quer dizer, “so-
mos” um par dinâmico entre conteúdos e continentes.
De acordo com esses modelos, tanto o continente como o conteúdo
podem ser fragmentados (Bion, 1959; Attacks on linking, ou “Ataque ao
vincular”). Essa hipótese teórica tem múltiplas implicações clínicas, se le-
varmos em conta a concepção de Bion a respeito da propriedade mental de
atacar a capacidade vinculadora do casal de pais internos. Esse autor postu-
la, no mencionado artigo que, quando os ciúmes e a inveja primitiva (nos
termos de Klein) aparecem, colorindo a experiência de frustração, se des-
trói a possibilidade de pensá-la com pensamentos, pois a alucinação que
surge da transformação psicótica ocupa esse lugar.
Existe uma enorme gama de formas clínicas que a figura teórica “ata-
ques ao continente” nos possibilita tipificar. Assim, orienta-nos para uma
sutileza clínica, no meu entender ausente em outras teorias. Quando um
analisando se desvincula da linguagem ou desarticula suas normas implíci-
tas no nível semântico (mas que também abrange o nível pragmático e
sintático), não só ataca sua própria mente, mas também a função
vinculadora que a linguagem tem na relação psicanalítica total. Não menci-
onando quando os distintos acting out destinados a romper a continuidade
do vínculo analítico aparecem na dinâmica da transferência, mostrando
esse ataque ao vincular.
A criatividade negativa
Os conteúdos também podem ser atacados em uma vasta gama de pos-
sibilidades criativas, caso em que se constroem figuras próprias do que
denominei CRIATIVIDADE NEGATIVA.
Existe uma criatividade negativa que, segundo comprovei em mi-
nha experiência, sempre entra em ação para completar a negação
psicótica da frustração. Graças à sua visualização, pude reconduzir dife-
rentes variáveis dos acting out destrutivos pelo caminho da recomposição
mental. A criatividade negativa contém muitos elementos a serem conser-
vados, já que, graças a eles, podemos configurar a criatividade positiva,
base técnica para a “cura” dos pacientes gravemente perturbados. As estru-
turas da criatividade negativa e da criatividade positiva são muito seme-
lhantes. A primeira opera com base no ódio, na inveja, nos ciúmes e na
rivalidade. A segunda alimenta-se de eros e de todos aqueles elementos
que Freud definiu como transferência positiva sublimada. A criatividade
negativa reforça a negação psicótica, no modo estrutural em que, se-
gundo Freud, a contracarga reforça a repressão neurótica no pré-cons-
ciente.
A Orfandade Mental
Quando associam livremente a respeito de sua orfandade, os
analisandos se referem, geralmente, aos fatos históricos que recordam, a
supostos acontecimentos factuais próprios da relação com seus pais e com
o mundo externo em geral. Simultaneamente, na sincronia da transferên-
Jaime Marcos Lutenberg
cia, nós, como analistas, podemos assistir, ao vivo e diretamente, à ativa e
atual destruição das funções mentais que levam à incapacidade de pensar
os pensamentos. Quando isso ocorre, a mente fica órfã para um pensamen-
to elaborativo potencial por-vir.
Assistimos, assim, à encenação de uma orfandade viva que adquire
mobilidade a cada momento em que o analisando se dispõe a pensar a frus-
tração. Isso nos pode dar uma noção cabal do desastre mental em que ele se
encontra permanentemente submerso. É justamente a transferência, e a
contratransferência correspondente a tal orfandade, que vai nos mostrar o
caminho operativo para resolver “aqui e agora, comigo” seus efeitos men-
tais tão complexos. NÃO SE TRATA DE TORNAR CONSCIENTE O
INCONSCIENTE, MAS DE EDITAR ALGO INÉDITO.
A capacidade de destruir a função continente não pode ser interpre-
tada em termos de falta de palavras, mais além da teoria que se utilize. Só
quando temos testemunhos atualizados da falha do continente é que nos
encontramos diante da encenação, da demonstração transferencial, da
“criatividade” empregada para reconstruir a “orfandade mental”, isto é, em
despojar a mente de sua capacidade de efetuar transformações alfa. A ses-
são nos dá a oportunidade de tomar contato com o vivo de uma mente e,
como sabemos, toda substância viva simultaneamente se constrói e é
destruída (Freud, 1920). O problema surge quando nós e os elementos com
que contribuímos ao analisando (enquadre) são destruídos.
A função continente de um analista evidencia-se no vínculo transfe-
rencial, através da capacidade que o analista tem de reconstruir-se depois
dos ataques que um analisando pode efetuar à sua “capacidade vinculado-
ra”. A fim de poder realizar essa operação em seu próprio interior, necessi-
ta de uma profunda convicção no que concerne às verdades psicanalíticas.
Através das vinculações cogitativas que ele estabeleça com tais verdades,
pode alcançar um insight do significado dos “ataques”, dos quais sua men-
te está em branco, por parte do analisando. Entretanto, seus insights devem
ficar reservados à sua intimidade, até o momento oportuno. Enquanto isso,
podemos supor que ocorra, em seu interior, uma metamorfose de conteú-
dos dentro de um continente.
A Edição
Quando nos encontramos com um analisando que porta uma orfanda-
de mental para pensar a frustração, estamos diante de uma renúncia da
função “continente” da mente; para dar-lhe a conhecer previamente os con-
teúdos de seu insight, necessita-se restaurar a função continente do anali-
sando. A base dessa restauração reside na capacidade do analista para inau-
gurar ou fundar funções mentais ausentes: editá-las. Não me escapam as
complexas modificações técnicas implícitas nessas reflexões. Espero po-
der discuti-las.
Vivi e vivo, como psicanalista praticante, a maravilha e o assombro
que se produz quando existe uma transformação de um psicótico ou um
borderline muito grave em uma pessoa que pode pensar a frustração. A
partir dali, muitas outras situações são cogitáveis. A chave consiste em
valorizar cada um dos ínfimos sucessos mentais do analisando durante o
próprio fluxo do intercâmbio psicanalítico.
Quando digo isso, tenho presente o caso de um analisando que passa-
va a vida perdendo tempo sem se dar conta. Por meio de múltiplos rituais
tentava amenizar uma tendência aos transbordamentos psicóticos que limi-
tavam a cotidianeidade de sua vida. Essa pessoa não podia trabalhar, nem
estudar, nem se vincular a alguém. Ao introduzir uma dinâmica lúdica em
nosso diálogo, conseguimos pequenas mobilizações. Recordo um dia em
que, ao entrar na sessão, ele não me estendeu sua mão. Fiquei com a mão
estendida, representando o fato de que, se ele não me desse a mão, era
como se não tivesse entrado. Estava dramatizando seu pensamento
psicótico. Ele já havia passado o hall de entrada e se dirigiu ao consultório.
Fiquei esperando, à porta, que ele me estendesse sua mão, pois se não o
fizesse não teria passado. Esse era o subentendido lúdico.
Voltou para mim e disse: “Vamos, vamos, não me faça perder tempo”.
Fitou-me e, nesse olhar, estava subentendido o nosso diálogo a respeito do
Jaime Marcos Lutenberg
que ele considerava perder tempo... Fez silêncio e me disse: “Veja que dis-
so eu conheço um montão”. Essa observação pareceu-me genial. Estava
simbolizando verbalmente sua criatividade negativa e sua evitação ao “vi-
ver”. Eu me havia tornado, por um instante, depositário de sua imobilida-
de, do desprezo e da negação da existência (nesses elementos existiam
facetas da alucinação negativa, descritas por Green). O consultório e o en-
quadre psicanalítico eram também os continentes de conteúdos invisíveis.
Ao me transformar no continente “destruído”, ele se transformava na
palavra que o pensa. São instantes fugazes de verdade vincular que se cons-
tituem no núcleo mental da possibilidade de pensar os pensamentos. Fiquei
parado pelo efeito “mágico” do seu rechaço. Mostrei minha paralisia, meu
impedimento para me dirigir ao lugar habitual de meu trabalho, o consultó-
rio psicanalítico; ele me falava do meu “perder tempo”. Eu continha em
minha mente a insuportável vivência de perder o tempo.
Sabia que, para esse analisando, perder tempo era uma forma de des-
conhecer o estado de luto. Os pacientes mais graves muitas vezes emergem
de um mundo autista e simbiótico com um quadro psicótico. O mundo
autista move-se em duas dimensões (bidimensionalidade), nos termos em
que Meltzer (1979) explicou, quando definiu a identificação adesiva. Para
conceber a função continente, é necessária a inauguração da terceira di-
mensão. O tempo corresponde à quarta dimensão.
Um ano antes, havia estado “analisando” com esse paciente um fato
particular: parecia-lhe impossível usar os seus bolsos. Para ele, todos os
objetos pareciam contaminantes. Vinha ao consultório com sacolas de di-
ferentes tamanhos, nas quais colocava múltiplos objetos. Com extrema pre-
caução e minúcia, fui observando as variáveis distintas que se produziam,
no que se refere a esse fato pontual: o uso dos seus bolsos.
Para mim, revelava-se altamente significativo, como um elemento
próprio do intercâmbio transferencial, que ele me pudesse falar do seu im-
pedimento. Entendia que ele havia valorizado o fato de que eu, em geral, o
escutasse, sem lhe dizer nada durante os primeiros 30 minutos da sessão,
durante os quais ele evacuava conteúdos mentais sem sentido. Suas emis-
sões eram desorganizadas e ininteligíveis, expressando uma complexa con-
fusão psicótica. Complementando essa evacuação, emitia uma salva de
flatos que, segundo ele, surgiam de forma descontrolada e irrefreável.
É muito diferente considerar exclusivamente que, de um interior, saia
“algo” para ser ejetado ou evacuado, do que ter em conta que, através de
suas evacuações, o analisando está testando a função continente da minha
mente. Eu recebia suas palavras e suas ações, tentando estruturar uma in-
terpretação que, em geral, incluía observações de muitas sessões.
Indo um pouco mais longe no tempo, desejo esclarecer que, na reali-
dade, desde o início do tratamento ele já havia posto à prova minha função
continente, vomitando no consultório e eliminando flatos, sem falar. Quan-
do vomitava, limitava-me a colocar um balde ao seu lado e depois continu-
ávamos com a sessão. É por isso que, para mim, o uso dos seus bolsos
adquiria uma dimensão muito particular, no que diz respeito à terceira di-
mensão concebível pela mente e a concepção de um espaço mental que
aloja conteúdos. Usar os bolsos implica uma noção tridimensional de volu-
me. A tridimensionalidade coloca-o como alojador de conteúdos e me in-
clui, em sua fantasia inconsciente, como continente.
Espero que esta breve vinheta esclareça um pouco melhor minha vi-
são de relação continente-conteúdo e a noção de verdade vincular que daí
emerge. O vértice conceptual (teórico) de Bion me permite observar fenô-
menos que, de outra maneira, passariam absolutamente despercebidos den-
tro do fluxo do universo de signos que emanam da transferência psicótica.
Que eu tenha detectado, através do uso singular dos seus bolsos, a restaura-
ção da função continente de sua mente não quer dizer que o trabalho analí-
tico atraiu para sua “consciência” uma capacidade com a qual não contava,
pois a mesma se achava interdita pela repressão e por isso era inconsciente
para ele. Trata-se de uma visão técnica diferente, mas inclui a anterior.
Quando a mente efetua transformações alfa, é possível ao indivíduo
diferenciar o estado mental consciente do inconsciente. Quando conheci
esse paciente, parecia-lhe impossível ler ou escrever, porque havia perdido
o simbolismo das palavras. Juntamente com o uso dos bolsos, começou a
Jaime Marcos Lutenberg
ler jornais – coisa que há mais de seis anos não podia fazer. Sua mente
transformou-se, à medida que ele foi recuperando sua capacidade de fazer-
se continente de suas emoções.