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Apresentação
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Flora Rodrigues Gonçalves, doutoranda em antropologia social pelo PPGAS- UFMG (Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais). Agradeço a CAPES, agência
de fomento da minha bolsa de pesquisa.
Propriedade Intelectual na era do compartilhamento
“Aaron teve uma combinação imbatível de visão política, habilidade técnica e inteligência sobre as pessoas e
os problemas. Eu acho que ele poderia ter revolucionado a política americana (e mundial). Seu legado ainda
pode fazê-lo.”3
2
SOPA foi um projeto de lei que autorizaria o Departamento de Justiça dos EUA e os detentores de direitos
autorais a obter ordens judiciais contra sites que estivesses supostamente infringindo os direitos autorais. Para
Aaron, esse projeto era uma ameaça potencial aos programas livres.
3
Doctorow, Cory (January 12, 2013), "RIP, Aaron Swartz".
Disponível em : http://boingboing.net/2013/01/12/rip-aaron-swartz.html Acesso em 23/05/2016
É sobre esse legado, acionado por Cory Doctorow, que esse artigo versa. É sobretudo
sobre as controvérsias que se multiplicam sobre as formas atuais de contestação sobre a
propriedade intelectual, que assumem, aqui, os debates em torno das licenças de uso e suas
atualizações. Tentaremos cartografar as multiplicidades que agem a partir dos porta-vozes
em relação, tendo em vista uma vez que, ao acompanhar quem fala e quem age dentro do
mapeamento das associações, o que encontramos são sempre multiplicidades, “mesmo que
seja na pessoa que fala ou age.”(Deleuze, Foucault 1979)
Bruno Latour (2012) já chama atenção sobre como as relações entre um grupo e outro
são constituídas por laços incertos e frágeis: não existem grupos, mas apenas formação de
grupos. Quando propomos cartografar as multiplicidades que agem a partir dos porta-vozes
em relação, estamos acionando um repertório que não estabiliza o “social” de antemão, mas
que espera cartografar as formações de grupos em sua prática.
Nesse sentido, os porta-vozes (aqueles que falam pela existência do grupo), serão
sempre presentes. Eles fornecem relatos sobre suas ações, sobre os anti-grupos e suas
disputas. A análise da teoria do ator-rede (ANT) nos sugere que os atores estão sempre
negociando suas relações uns com os outros.
E, partindo do pressuposto que a antropologia tem como objeto as “relações sociais”,
tal como cunhado por Alfred Gell (2005), a nossa proposta é, nesse sentido, compreender
algumas práticas de atuação – ou seja, as relações sociais - que surgem dentro do debate
sobre autoria na contemporaneidade. Mas, o que vem a ser autoria? Como as licenças livres
nos obrigam a pensar nos tensionamentos sobre autor e seu aparato legal vigente? Vamos
começar, então, a traçar nosso mapa.
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Sabemos da herança gramsciana do termo “hegemonia”, enquanto domínio de uma classe social sobre outras.
Aqui, tal termo é usado no sentido de relação de influência e de poder sob determinado aspecto. Quando nos
referimos que “tal noção é hegemônica”, estamos querendo dizer que tal noção é predominante, preeminente
e aceita como padrão por grande parte da sociedade.
Mas o que vem a ser o copyright?
Acompanhando o debate sobre as licenças “livres”, percebemos que o copyright é
um termo acionado com bastante frequência. De maneira geral, ele é tido como sinônimo de
alguma obra protegida pela lei de direitos autorias, mas que no jargão comum é referida
apenas como “aquilo é copyright”, em contraposição a outros tipos de licenças ou apenas
para categorizar tal material como o padrão “tradicional” de licenciamento. No Brasil, a lei
que determina os pressupostos do Direito Autoral é a lei no 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Essa lei considera que qualquer reprodução, transmissão e execução de obras intelectuais,
científicas ou artísticas são protegidas por diferentes naturezas legais que garantem ao
criador da obra restringir seu uso segundo circunstâncias determinadas ou receber
pagamento de direitos para seu detentor.
Embora a discussão sobre a autoria e sua posterior legislação seja algo muito antigo,
o direito autoral remonta à Inglaterra do sec. XVII, como um direito concedido a livreiros,
com o objetivo de centralizar as obras de literatura e controlar a circulação de escritos críticos
à monarquia. Os editores de livros (donos das máquinas de imprensa, que funcionavam
mediante obtenção de concessão), eram os únicos permitidos a comercializar a cultura
escrita. Essa visão fez surgir a postura inglesa de proteção autoral, que deu origem à
legislação do copyright.
A construção da figura do autor está ligada, então, inicialmente, à produção, e não ao
produtor. A legislação inglesa protegia apenas o editor, que comprava os direitos de
reprodução de algum manuscrito e depois o vendia. É somente após o sec. XVIII, na França,
que o discurso engajado nos aspectos autorais da obra ganha força, surgindo um tipo de
sistema que difere do copyright criado pelos ingleses. Esse sistema abria espaço para a
atividade criadora, na propriedade do autor, e não só na reprodução material da obra (Cássio,
2011). Foi a partir daí que houve a necessidade de uma legislação que atuasse a nível
internacional, surgindo, em 1886, a assinatura da Convenção de Berna. Essa Convenção
estabeleceu o reconhecimento dos direitos de autor entre nações soberanas, referente às
obras literárias, artísticas e de caráter científico; sendo incorporada aos poucos por alguns
países, como os Estados Unidos e a própria Inglaterra. É nesse momento que se concebe a
forma seminal do arcabouço conceitual no qual se desenvolveria o sistema de direito autoral
até os dias de hoje. Atualmente, são 165 países signatários da Convenção, inclusive o
Brasil5.
O ponto de partida da criação intelectual se apoia, desde a Convenção de Berna, no
direito de autor, que se beneficia de um duplo direito: moral e patrimonial. Isso significa que
a autoria é moral no sentido de ser obrigatória e indissociável do autor, ou seja, é a
“paternidade” da obra, enquanto o direito patrimonial está relacionado à retribuição
econômica que advém da obra em questão.
O direito autoral é um instrumento jurídico criado para resguardar o direito do autor,
do criador, sua reprodução e sua forma de distribuição. Nesse sentido, enquanto instituição
jurídica, o direito de autor é um direito à propriedade, em sua acepção mais comum do termo:
direito fundamental a ter a coisa própria. O termo copyright, enquanto símbolo de proteção
intelectual é um tipo de legislação de proteção de direitos autorais, enquanto o termo
propriedade intelectual6, designa um amplo conjunto de direitos privados e monopolistas,
que se define por duas dimensões: os direitos de propriedade industrial e o direito autoral.
Segundo a as antropólogas Ondina Fachel Leal e Rebeca H. Vergara de Sousa (2010):
“Em sua atual normatização de direitos e sentidos, propriedade intelectual é definida pela inclusão de duas
dimensões: os direitos de propriedade industrial, que dizem respeito as inovações (patentes, marcas e desenho
industrial) e às indicações geográficas; e o direito autoral, que inclui produção artística e literária”. (210:14).
5
É importante assinalar que muitos outros agentes surgiram após a Convenção de Berna, como a Organização
Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) e o regime TRIPS, um sistema internacional de propriedade
intelectual que surge a partir da fundação da Organização Mundial do Comércio. Porém, nesse artigo,
assinalamos apressadamente a presença desses agentes, por não terem sido acionados na controvérsia em
questão. Para o estudo que se pretende a longo prazo, esse recorte (aqui feito) não será mais necessário.
6
Sabemos que o termo “propriedade intelectual” é arregimentado em diversos contextos tal como caixa-preta,
no sentido latouriano do termo, ou seja, como um conceito sob o qual não paira nenhum tipo de controvérsia,
fechado e não problematizável. O que percebemos é que a idéia de “propriedade intelectual” se desloca
conforme os atores a acionam, e, certamente, a definição que usamos parte de um arcabouço teórico que leva
em consideração os debates dentro da teoria antropológica.
programa livre. Daí surgiu o software7 livre e seu primeiro tipo de licença: o copyleft, ou
melhor, General Public License (GPL), sob qual grande parte do software livre é publicado.
A GPL, mais conhecida como copyleft, se refere a uma forma de usar a legislação
de proteção dos direitos autorais com o objetivo de retirar as barreiras de utilização, difusão
e modificação de uma obra criativa devido à aplicação clássica das normas de propriedade
intelectual. Segundo o hacker anarquista Dmytri Kleiner (2012), as licenças copyleft
garantem a liberdade da propriedade intelectual e, apesar de ser uma licença que surgiu
sobretudo no âmbito do software livre, hoje ela se difundiu de tal maneira que seus
licenciamentos estão em trabalhos científicos e artísticos. Mas sobre o que se trata,
especificamente, o software livre?
O software livre é, em linhas gerais, um software que usa um tipo de licenciamento
que permite seu uso e modificação pelo usuário – o acesso aos códigos abertos, conceito
diametralmente oposto ao termo software proprietário. Um programa livre sempre permite
o uso, o estudo, a alteração e distribuição de seu código – itens considerados como as 4
liberdades fundamentais pela Organização Free Software Foundation - FSF e seu fundador,
Richard Stallman. Segundo Rafael Evangelista (2009):
“Para que um software seja livre (...) basta que a sua licença incorpore certos princípios, que foram
sistematizados por Richard Stallman, um dos pioneiros do movimento software livre e fundador da Free
Software Foundation. A lei de registro da propriedade de software, na maioria dos países, incluindo o Brasil,
estabelece que a expressão do programa, ou seja, as linhas de código que o constituem, é que deve ser objeto
de registro.” (2009:19 ver página)
7
Software é um programa de computador composto por uma sequência de instruções, que é interpretada e
executada por um processador ou por uma máquina virtual.
8
A idéia de “consenso geral”, certamente, é equivocada; e foi usada por falta de palavra melhor. Muitas pessoas
pirateiam coisas, a começar por programas de software. Ambivalentemente, o sistema operacional Windows,
por exemplo, só se consolidou enquanto padrão de utilização pela sua possiblidade técnica de pirateamento.
Ainda não sabemos em que medida as empresas estão focadas na lógica de comercializar mais a reprodução
do que a produção, propriamente dita. Agradeço tal observação à Patrick Arley.
apropriado ou compartilhado violem necessariamente os direitos legais de quem os criou.
Para eles:
“ (...) A reprodução é muito diferente das formas tradicionais de roubo, pois a propriedade original não é
tomada de seu proprietário; simplesmente passa a haver mais propriedade para alguém mais.” (2005:235)
9
Falamos em “grupos” mas sem pretender compô-lo como algo sistêmico, fechado ou incorporado pelo próprio
movimento enquanto “grupo”. Fazemos essa consideração levando em conta o artigo de Roy Wagner “Existem
grupos sociais nas terras altas da Nova Guiné”, em que ele discute como a noção de grupo parte da perspectiva
antropológica que se propõe a substituir a forma “coletiva” de seus nativos pelo seu próprio fazer. Não é nossa
intenção categorizar a noção de grupo. A palavra foi usada para fazer alusão aos grupelhos, no sentido de
Guattari, sempre uma multiplicidade singular, com uma experimentação social e seu devir.
10
Libertário (enquanto categoria nativa) no sentido anarquista do termo. De maneira geral, a tradição anarquista
defende a liberdade social em uma comunidade sem coerção e sem autoridade.
Licença de Arte Livre (licenças que concedem o direito de cópia e distribuição sem
necessitar da permissão explícita do autor).
“É um projeto que facilita o licenciamento de obras. Ele funciona como uma ferramenta que permite a
qualquer criador intelectual dizer o que pode ou não ser feito com a sua obra. Além disso, ele é um tipo de
licença que fundamenta a criação colaborativa. Por exemplo, a Wikipedia é licenciada em CC. Graças à
licença do Creative Commons, qualquer pessoa que contribui para ela, melhorando um artigo já existente,
não precisa pedir autorização, exatamente porque a autorização já foi concedida através da licença. Em outras
palavras, sem o Creative Commons ou alguma outra forma de licenciamento similar, seria impossível a
existência de um projeto como a Wikipedia”.
11
Segundo o antropólogo Luis Felipe R. Murillo, “É precisamente em espaços de interação on e offline que as
licenças são escrutinadas, modificações são propostas e novos sujeitos são informados, vindo a incorporar as
práticas e lógicas em jogo na interface entre as tecnologias livres, os seus agentes engajados e os direitos de PI
com seus especialistas”. Tecnologia, Política e Cultura na Comunidade Brasileira de Software Livre e de
Código Aberto. In: Do regime de propriedade intelectual: estudos antropológicos. Fachel, Ondina. Porto
Alegre: Tomo Editorial, 2010.
Em 2009, João Carlos Muller, consultor jurídico da ABPD, deu uma entrevista
emblemática sobre Creative Commons e redes P2P, em favor da lei de direitos autorais. João
Carlos Muller falava em nome de vários outros atores que não concordam com diversos
pontos defendidos pelas licenças livres, como sua forma de distribuição e suas propostas de
revisão das leis de direitos autorais. Em certo momento da entrevista, Muller diz o seguinte:
“Uma crítica que eu faço: o Ronaldo Lemos (responsável pelo Creative Commons no Brasil) é meu cordial
adversário há alguns anos. Muito jovem, brilhante, mas ele distorce muitas coisas. Ele pede em algum
momento, com alguma razão, o retorno da lei anterior à de 1998. Vamos lá. Ok, ninguém é contra. Entretanto,
de 1973 para cá apareceu uma coisa chamada P2P (peer-to-peer ou ponto-a-ponto). Isso é uma desgraça para
o direito de autor. E a lei atual prevê que você não pode colocar em rede, que é um ato de distribuição sem
autorização do autor, nenhuma obra de uma produção protegida”.
Sobre o quê, exatamente, Muller está se referindo ao dizer que a P2P veio para
perturbar os direitos autorais sobre obras protegidas?
A P2P, de uma maneira geral, é uma rede de computadores que compartilha arquivos
pela internet, sem a necessidade de um servidor geral. Isso significa que são os próprios
usuários que fazem download e compartilham arquivos a partir de suas próprias máquinas.
Esse tipo de tecnologia veio à tona em 1999, com o caso Napster, que era um programa de
compartilhamento de músicas em formato MP3. Acionando a rede P2P, o Napster permitia
“que os usuários fizessem o download de um determinado arquivo diretamente do
computador de um ou mais usuários de maneira descentralizada, uma vez que cada
computador conectado à sua rede desempenhava tanto as funções de servidor quanto as de
cliente.”12
Certamente, o Napster foi o primeiro alvo na luta entre as indústrias fonográficas e
as redes de compartilhamento, sob a alcunha de serem uma grande ameaça ao sistema de
remuneração da lei de direitos autorais. Quando Muller se refere ao P2P de forma tão
negativa, ele possivelmente está fazendo alusão à forma descentralizada na qual tal sistema
opera, visto que dessa forma, o controle sobre qualquer tipo de obra é quase impossível.
Continuar com o P2P é, segundo ele, legitimar a pirataria. E ainda aponta mais um dado: a
adesão às licenças híbridas do tipo CC é baixa, demonstrando como esse tipo de
flexibilização à lei de direitos autorais não é, de fato, compartilhada por artistas e ativistas
12
Disponível no wikipédia, verbete Napster. Acesso em 20/04/2016. https://pt.wikipedia.org/wiki/Napster
no Brasil, além da CC ser patrocinada por provedores como a FGV (Fundação Getúlio
Vargas), por exemplo.
Ronaldo Lemos, por sua vez, sempre evidenciou a importância da P2P para o
compartilhamento de arquivos e em resposta à Muller, rebateu a provocação sobre a adesão
da seguinte maneira:
“ (Sobre as doações privadas) Isso é totalmente falso, uma calúnia. As doações descentralizadas são a fonte
mais importante de financiamento do CC (...).”
“A adesão é crescente. Os últimos números mostram mais de 150 milhões de obras licenciadas no mundo.
Além disso, o disco que mais vendeu nos EUA em 2008, em formato digital, foi o “Ghosts I-IV”, do Nine Inch
Nails, licenciado em Creative Commons. Não somos nós que estamos de má-fé. É preciso lembrar que a ABPD
e as gravadoras têm, em seus catálogos, menos de 90 artistas. Eles não têm legitimidade para falar em nome
dos artistas brasileiros.”13
Se partirmos para outro porta-voz importante sobre tipos de licenças de uso dentro
da indústria fonográfica, além da ABPD, chegaremos ao ECAD. O ECAD (Escritório de
Arrecadação Central) é um órgão privado, fundado em 1976 para arrecadar os direitos
autorais de cada música tocada em execução pública no Brasil, seja ela nacional ou
estrangeira. O ECAD, enquanto tal, não reconhece as licenças CC, sendo um defensor das
leis de direitos autorais.
Em 2012, em caráter inaugural, o blog de designer gráfico Caligrafitti e o blog
pessoal da web designer e analista Mariana Frioli receberam uma cobrança do ECAD no
valor de R$ 352, 59 por mês. A taxa mensal era referente à retransmissão de vídeos do
YouTube e do Vimeo, e o ECAD foi categórico ao justificar a medida, ponderando que “o
uso de músicas em blogs se trata de uma nova execução pública”14.
O valor, considerado alto para blogs sem fins comerciais, gerou repercussão nacional,
que culminou na época com a proposta pelos movimentos da própria classe artística de
supervisão estatal para o órgão de arrecadação. Outra medida que foi colocada em pauta foi
a reforma da lei de direitos autorais, contemplando as licenças flexíveis como a CC. Em
reportagem do jornal de circulação nacional Estadão, no dia 7 de março de 2012:
13
Disponível em: https://cibermundi.wordpress.com/2009/01/14/ronaldo-lemos-refuta-acusacoes-de-joao-
carlos-muller/ Acesso em 20/04/2015
14
Disponível em: http://gizmodo.uol.com.br/o-que-e-o-ecad-e-por-que-ele-esta-cobrando-direito-autoral-de-
blogs/ Acesso em 03/06/2016
“Duas propostas que circulam pela reforma da lei de direitos autorais preveem supervisão estatal
(provavelmente do Ministério da Cultura) para o órgão de arrecadação. O Ecad encabeça a lista dos
contrários à qualquer tipo de reforma da lei, e diz que medidas de flexibilização como o Creative Commons
(licença que permite aos artistas compartilharem suas obras) são ‘pressões internacionais’ que ameaçam a
‘cultura brasileira’.”15
Legalmente, a CC não é uma licença que o ECAD é obrigado a considerar. Mas não
é só isso. O que observamos, desde 2009, quando o debate sobre as licenças CC começou a
efervescer, é que a discussão não ficou polarizada apenas entre os que eram a favor das
licenças Creative Commons e os que eram a favor da Lei de Direitos Autorais.
Verão de 1994, por toda a Europa um pseudônimo muito curioso assina diversos tipos
de ataques ao que eles chamam de “indústria cultural”. Luther Blissett é o nome batizado e
adotado de maneira informal por centenas de ativistas e artistas, assinando desde algumas
músicas compartilhadas, vídeos satânicos e até um famoso roubo de um ônibus em Roma,
que, dizem, foi apenas uma maneira do Governo para prender quatro passageiros que
circulavam sem passagem e insistiam em declarar seus nomes como Luther Blissett. Entre
1994 e 1999, o projeto Luther Blissett conseguiu, de forma eficiente, tornar-se um fenômeno
popular e difundir o que eles chamavam de Robin Wood da era da informação. Seu retrato
oficial é feito pelos artistas Andrea Alberti e Edi Blanco, em uma bricolagem reunindo velhas
fotos da década de 30/40 de três tios-avôs e uma tia-avó de um dos membros do coletivo,
apelidado de Wu Ming 1.
15
http://blogs.estadao.com.br/tatiana-dias/p-ecad/
Luther Blisset
Seu fim, em 1999, é marcado com um suicídio simbólico chamado Seppuku (em
alusão ao suicídio ritual dos samurais), mas seu nome, enquanto ferramenta de contestação
política, ainda é usado. Em janeiro de 2000, alguns desses ativistas italianos se reúnem e
fundam um novo coletivo, chamado Wu Ming. O Wu Ming está concentrado, sobretudo, em
um projeto copyleft de literatura e narrativa, mas que, segundo eles, “não é menos radical
do que (o projeto) anterior”.
Wu Ming, expressão chinesa que significa “sem nome”. O coletivo é composto de 5
“wu mings”, que se auto intitulam como Wu Ming 1, Wu Ming 2, Wu Ming 3, Wu Ming 4 e
Wu Ming 5.
Dentre seus livros publicados, estão Q, o caçador de Hereges (originalmente
assinado por Luther Blisset), 54 (traduzido para inglês, português, holandês e espanhol), o
compilado de artigos e manifestos intitulado The Revoltion has no face, Manituana e
Previsioni del Tempo.
Os livros do coletivo, são lançados por selos editoriais – sob o nome “autoral” de Wu
Ming, disponibilizado para cópia, distribuição e compartilhamento pela licença Creative
Commons, sob a atribuição não comercial, onde está autorizada a reprodução, difusão,
exposição ao público e representação, desde que seja sem fins comerciais.
Seus integrantes (em especial o Wu Ming 1, que veio ao Brasil em 2005 lançar o
romance 54), defensores ferrenhos do ideário copyleft, frequentemente são interpelados
sobre como sobreviver da venda dos livros sem ter a obra protegida pelo copyright. Segundo
eles:
“Os livros do coletivo Wu Ming são publicados com os seguintes dizeres: 'É permitida a
reprodução, parcial ou total, da obra e a sua difusão por via telemática para uso pessoal dos
leitores, desde que não com finalidade comercial'. Na base está o conceito de 'copyleft' (...)
Voltando à pergunta inicial: mas não perdemos dinheiro com isso? A resposta é um seco
não. Cada vez mais experiências editoriais demostram que a lógica 'cópia pirateada = cópia
não vendida' de lógico não tem mesmo nada. De outro modo não se compreenderia como
pôde o nosso romance Q, disponível grátis há mais de três anos, ter chegado à duodécima
edição e superado duzentas mil cópias vendidas”.
In. O Copyleft explicado às crianças – Wu Ming 1.
“A proposta do licenciamento do Creative Commons, no entanto, é clara: o CC existe para ajudar “você”, o
produtor, a manter o controle sobre o “seu” trabalho. Você está convidado a escolher entre uma série de
restrições que você deseja aplicar ao “seu” trabalho, tal como a proibição de copiar, a de realizar trabalhos
derivados, ou proibindo o uso comercial. Supõe-se que, como tudo que associa a ideia de autor a de produtor,
aquilo que você faz é sua propriedade. O direito de consumir não é mencionado, tampouco a distinção entre
produtores e consumidores de cultura posta em disputa. A missão das licenças do Creative Commons é permitir
aos produtores a “liberdade" para escolherem o nível de restrições que deve assumir a publicação de seu
trabalho, o que contradiz as condições reais de qualquer base comum de produção.16
Mas não é apenas no meio acadêmico que as licenças Creative Commons começam
a serem questionadas. E não só elas. A própria licença GNU, que foi a fonte de inspiração
para a própria CC, também tem recebido críticas como uma opção inviável para se licenciar
seus trabalhos. Segundo Cramer (2012), as licenças CC são fragmentadas e não definem um
padrão razoável de liberdades e direitos aos usuários.
Ao acompanhar o debate, surgiram outros tipos de licenças, diferente daquelas aqui
já cartografadas. Segundo seus porta-vozes, essas novas licenças surgiram do copyleft – e
sua grande base continua sendo as premissas defendida por ele – mas avançam ao pensar
não só em termos de distribuição, modificação e reprodução, mas nos termos do próprio
usuário; além de serem licenças, que, segundo seus porta-vozes, é permanentemente
16
Apresentação RAM 2012 Thiago O. S. Noavaes Anonimozegratuitos: a noção de pessoa na internet.
engajada politicamente na luta contra a propriedade intelectual. Veremos então sobre o que
versam essas licenças outras.
Mapa 2
Nesse mapa, acompanhamos, a partir de um ponto de vista em comum - compartilhado por ambos atores - o
desenrolar da controvérsia no caso Napster. O que vemos no lado esquerdo é a sequência de eventos que
ocorreram e que ocasionaram seu fechamento e o processo penal para seus criadores e usuários. No lado
direito, vemos como funcionou o Napster antes dele ser criminalizado: descentralizado e em rede.
17
“Se entendermos por “cultura” aquilo que permite que o homem não somente se adapte ao seu ambiente,
mas também o “que permite adaptar o ambiente a necessidades e projetos do homem”, então Cultura Livre é
uma adaptação e este novo dado natural, que é não material, mas que também permite a transformação do dado
natural por ferramentas digirais” Moreau (2012).
2013. O coletivo Cultura Libre18, também espanhol, questionou o uso da foto, alegando que
a prática facilitaria a apropriação do trabalho alheio sem remuneração, uma vez que, segundo
eles, o periódico El País teria condições financeiras para remunerar o fotógrafo, além do fato
de que na publicação não foi comunicada que a foto estava licenciada sob tal atribuição – o
que é obrigação no caso das CC. Dessa forma, esse coletivo estava problematizando o uso
de licenças livres por grandes empresas, acusando-as de um “saque do comum” em benefício
próprio. A solução seria, então, utilizar uma licença que conseguisse ter diferentes regras
para diferentes classes. Essa licença seria o copyfarleft.
Segundo o blog 20 minutos19:
“Para que el copyleft tenga algún potencial revolucionario debe ser Copyfarleft. Debe insistir en que los
trabajadores sean dueños de los medios de producción. Una licencia copyfarleft debe hacer posible que los
productores compartan libremente y que conserven el valor del producto de su trabajo. En otras palabras,
los trabajadores deben poder hacer dinero al aplicar su propio trabajo a la propiedad mutual, pero debe ser
imposible que los dueños de propiedad privada hagan dinero al utilizar trabajo asalariado. Así, bajo una
licencia copyfarleft, una imprenta cooperativa propiedad de los trabajadores debe poder reproducir,
distribuir y modificar el stock común como quiera, pero una compañía editorial privada no podría tener libre
acceso”.
Porém, apesar do embate em torno das licenças livres que diferem das distribuições
creative commons e das licenças copyright (ou protegidas pela lei de direitos autorais) serem
uma realidade, os porta-vozes de licenças como o copyfarleft ou a licença de arte livre ainda
não arregimentaram recursos suficientes para serem contemplados nos debates maiores,
longe dos fóruns restritos do mundo virtual. No Brasil, não encontramos nenhuma outra obra
licenciada nos termos da Licença de Arte Livre, e nenhuma prática referente às atribuições
copyfarleft. O que encontramos, ao procurarmos obras registradas sobre licenças “livres”,
são sempre atribuições ou copyleft, ou creative commons. O debate, ao que parece, está
apenas começando.
18
Segundo o próprio Coletivo Libre: “Somos una nueva idea, un ambicioso proyecto que aspirar a servir de
herramienta y estimulo para todos aquellos creadores que trabajan bajo nuevos códigos y que desean
controlar al máximo la forma y el modo en que difunden su obra. Promovemos el uso de licencias libres, pero
primero debemos crear todo un tejido que apoye a este pujante sector: necesitamos encontrarnos y hablar,
gestionar eficazmente, reclamar cuando nuestros derechos se vulneren y, sobre todo, servir de contrapeso a
una industria acostumbrada a utilizar un lenguaje que ya no nos gusta. Somos una simple Asociación, pero
también una nueva y fresca banda sonora, la última palabra. Esto se mueve.”
19
Disponível em: (http://blogs.20minutos.es/codigo-abierto/2013/02/07/copyfarleft-mas-alla-del-copyleft/
Acesso em: 22/05/2016
Algumas considerações
20
A noção de autoria contemplada neste artigo não visa expor o debate relacional entre autoridade etnográfica
e autoridade nativa. Aqui, a noção de autoria vem suprir um debate que nos leva à questão do indivíduo
enquanto autor, suas implicações em termos de propriedade intelectual e as novas configurações da própria
noção de autor dentro da modernidade.
princípios de reciprocidade de troca (a licença foi pensada pelo Coletivo Atitude, a partir de
trocas de emails e discussões em fórum específico).
Como podemos notar, a noção de direito autoral e propriedade intelectual, que
tiveram um longo processo de desenvolvimento histórico começaram, então, a serem
questionadas. Porém, a discussão sobre autoria e seus pressupostos não apresenta um ponto
de vista unificado. A categoria de propriedade intelectual, por exemplo, que tem “raízes em
patentes, marcas e copyrights, pensadas a partir do indivíduo criador” (Ramdomski, 2012),
recentemente entrou em colapso diante novas formas de apropriação intelectual feitas por
movimentos tecnológicos, artísticos e culturais, sobretudo sob o mote da colaboratividade.
Tais movimentos procuram, através de compartilhamentos, troca e circulação de livros e
softwares, debater os deslocamentos da autoria na atualidade.
A noção de autor aqui, como ser individualizado e possuidor de direitos, agora
assume o papel da autoria múltipla, ou do coletivo enquanto autor, ou ainda da ausência
autoral, como vimos com o coletivo Wu Ming: tanto o trabalho intelectual artístico quanto
as formas de criação passam por um processo que não possui um autor. O autor são muitos
e são vários.
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