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Benedito Nunes' Excerto © Ultimo Deus” No escrito seminal de 1923, interpretacdes Fenomenoldgicas de Aristételes (Phanomenologische Interpreiationen zu Aristoteles), precedido de um “Qua- dro da Situagao Hermenéutica” (Anzeige der Hermeneutische Situation), € que enviado foi por Heidegger a Paul Natorp, de Marburg, como creden- cial de habilitagdo a vaga de professor entdo aberta nessa Universidade, 0 filésofo anteciparia as linhas mestras da Analitica de Ser ¢ Tempo, do panto de vista de uma hermenéutica da facticidade. “O objeto da pesquisa filo- s6fica é o ser-ai humano, na medida em que é interrogado em seu carater de ser”.> Nao se trata, acrescenta Heidegger, de uma orientacao artificiosa, aditada como que de fora ao que se interroga; a vida factica mesma, em sua “mobilidade fundamental” (Grundbewegtheit des faktischen Leben), ex- plicita-se nessa interrogacao, que define a verdadeira tarefa da Filosofia Se a interrogacao é hermenéutica, de feicdo interpretativa, a resposta, que a ela se der, deverd cingir-se a uma descricao fenomenolégica do que se explicita, ¢ nos limites de uma explicitacéo da prépria vida factica. Para a fenomenologia, o sentido, palavra que o texto de Heidegger silencia, mos- tra-se em si mesmo e por si mesmo na prépria situagéo examinada, sem. que se tenha de ir além da instancia fenoménica abordada. Ambas, feno- menologia ¢ hermentutica, confirmam o objeto da Filosofia, o Dasein hu- mano, ¢ sua tarefa de evitar que seja extrapolado o cardter de ser para outras esferas, como a antropolégica e a teoldgica, dentro das quais um sentido exterior Ihe seria aditado. Tal 6, a nosso ver, a raciocinio que torna compreensivel o entrosamen- to, nesse trabalho, em passagem de notivel forca retérica, marcada por Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Para (UFPA). 2 Conferencia proferida no Coldquio Heidegger, PUC-SP, 1995. Interpréiations phénoménologiques d'Aristote, p. 18. ‘0 que nos far pensar n°10, val.1, ounbro de L996 38 | Benedito Nunes uma cadeia de frases condicionais, adiante abreviadas, do postulado do atefsmo com o encargo por exceléncia da Filosofia de corcentrar-se na vida factica, entendida como o nosso préprio Dasein em seu af. Se a Filo- sofia nao é algo supérfluo, se visa a aprender a “vida factica” (faktische Leben), se toma sem hesitar sobre si a tarefa de elucida-la, isto é, “se a Filosofia ¢ fundamentalmente ateistica e compreende que o é”, (wenn die Philosophie grundsdtzlich atheistik ist und das verstehi),* entdo escolheu para seu objeto a vida factica pela vida fatica mesmo, onde teré que encontrar as “estruturas categoriais fundamentais”. Vé-se que a tiltima das trés frases —'se a Filosofia é fundamentalmente ateistica ¢ compreende que o ¢"— sintetiza o significado das anteriores, ou methor, a terceita frase da cadeia progressiva retraduz as que a precedem numa expressdo aumentativa, hi- perbélica. Porque a Filosofia € essencial, volta-se para vida factica, € por- que volta-se para esta, € atefstica, ¢ € ateistica porque ja a escolhe a fim de elucidé-la em si mesma e por si mesma. O fazer filosofia, que tem no atefs- mo a hipérbole de sua diretiva essencial, equivale a ja ter desfeito, quando comeca, a telagao de principio do sentido da existéncia humana ontologi- camente considerada com a existéncia de um ser a ela superior ou trans- cendente. Dois anos depois, em 1925, nos Prolegomena a Historia do Conceito de Tempo (Prolegomena zur Geschichte des Zeit Begriffs), ao defender a garantia prestada pela andlise descritiva da intencionalidade em seu a priori para livrar a Filosofia do profetismo e do didatismo moral, Heidegger recorre ao mesmo pressuposto: "A pesquisa filosofica ¢ e permanece atefstica...".7 De novo se entrosam atetsmo ¢ Filosofia, mas desta vez aquele nao 56 a expressio hiperbdlica desta, mas se confunde com a ousadia do pensa- mento, capaz de satisfazer-lhe a necessidade interna c inclinar a sua forga propria, “como dlisse um dos grandes, a “frohliche Wissenschaft", a Gaia ciéncia. O misto de arrogante desafio intelectual ¢ de corajcso sentimento liberatério, que bafeja o escrito convalescente de Nietzsche, perpassa na achega de Heidegger a sua primeira declaragio de divércio da investiga- cao filoséfica com a existéncia de Deus, em nota ao texto enviado a Na- torp: “Atéia (é a Filosofia), mas nao no sentido de uma teoria qualquer como o materialismo. Toda Filosofia que compreende o que é em si mes- 4 Idem, p, 27. 5. Prolegomena zur Geschichte des Zeithegrifs, 8, p. 109 © Ultimo Deus ma deve necessariamente, enquanto modalidade facticial de explicitagao, saber, ¢ isso quando ela tem ainda algum pressentimento de Deus, que 0 desligamento pelo qual reconduz a vida a si propria, é, em termos religio- sos, uma maneira de manifestar-se contra Deus. Mas ¢ somente nisso que ela permanece leal perante Deus, quer dizer a altura da tmica possibilida- de que Ihe ¢ oferecida; atéia significard entéo: livre de toda preocupacio € da tentacio de simplesmente falar de religiosidade. Nao ¢ absurdo puro a idéia mesma de Filosofia da religido, se ela pée de lado a facticidade do homem?® A despeito da sutileza, a nota deixa claro que o inerente atefsmo da Filosofia nao deriva da simples negacdo da existéncia de Deus, levada a cabo por uma implicagio logica da impossibilidade de certificar-se ou de comprovar essa existéncia. Dupla atitude identifica esse ateismo: por um lado, em vez de nega-la, reconhece a possibilidade de que Deus exista, pois que o mantém como "pressentimento", com o que se afasta do agnos- ticismo, e, por outro lado, dele prescinde em proveito da explicitacao da vida factica. A negacdo de Deus é postergada na forma de um descompro- metimento que o retira de campo —aos olhos da religiio um ato reativo, contra Deus—, um anti-teismo —assumido pela Filosofia em sua capaci. dade de livre desempenho no trabalho de explicitac4o. Ora, como essa capacidade da Filosofia mobiliza o Dasein humane a mostrar-s¢ cm seu ser, ¢ assim confere com a sua conduta mais auténtica, semelhante ato reativo sera sempre uma resposta genuina ao “pressentimento”. Manter 0 “pressentimento” e prescindir daquilo para o qual acena, é a marca do ateismo leal, a altura do que recusa. Prescindir € nao fazer uso, nfo necessitar do que se julgava antes in- dispensavel. Assim, um sistema de explicagio do universo pode dispensar a existéncia de Deus, considerando-a em nome da economia clo pensa- mento uma causa desentrosaca da sucessio dos fendmenos naturais, sem aplicacao para os fins da razao tedrica. No presente caso, porém, o pres- cindir da existéncia de Deus significa aparté-la da cadeia do discurso filo- séfico, e, apartando-a, neutraliza-la, isto é, torna-la inefetiva para a inves- tigacao do ser humano enquanto Dasein —que ja é, a essa altura, uma investigacao da questdo do sentido do ser em geral— desautorizando, nessa eslera, a ingeréncia da religiosidade. “Atéia significa entdo aqui: li- 6 Intérpretations phénoménologiques d’Aristate, p. 53. 39 40 | Benedito Nunes herada de toda preocupagio e da tentagdo de simplesmente falar de reli- giosidade”. Na conferéncia de 1924, “O Conceito de Tempo", também um esboco do tratado de 1927, Heidegger dira que o filésofo nao cré, ¢ que € como incréu que ele pode, ao contrario do tedlogo, antepor o sentido do tempo a eternidade, e tentar compreender o tempo através do tempo. Conforme a nota de Interpretagdes Fenomenolégicas de Aristoteles, antes refetida, a re- ligiosidade, de que se libera, é a da fé crista, vedada ao filésofo. A vedagao de Deus equivale a pé-lo num paréntese fenomenol6gico, Mas essa sus- pensio parentética problematiza o “pressentimento” respectivo. Leal, o ateismo heideggeriano ¢ problematico —a epoche dentro da qual se colo- cou o noema dessa noesis pode durar indefinidamente. O "pressentimento” nao € fé ¢ a [é é incapaz de comprovar a existéncia a que adcre. Problema- tizando a fé, o ateismo de Heidegger libera no pensamento a ousadia filo- séfica para identificar a penetragdo radicular da idéia do Deus hebraico- cristéo na concepcdo do homem, até onde o discurso religioso a tansportou, e a coragem moral para erradicar essa derivacd antropoldgi- ca do princfpio teolégico nao aclarado. A atitude atefstica ¢ o prologo da “destruigdo” (Destruktion, Aufbau) da historia da ontologia que, na primei- ra fase, a temporalidade, culminancia da Analitica de Ser ¢ Tempo, permi- tiria iniciar, Outro esboco de Ser e Tempo, datando de 1923, —Ontologia (Herme- néutica da Facticidade), Ontologie (Hermeneutih der Faktizitdt)—, pratica a erradicagado que naquele se apresenta concluida, a partir da conceito mo- derno do homem como pessoa. Este remonta a determinacio teolégica, crista, da idéia do homem, cujo fio condutor ¢ a revelagio das Escrituras: © ser humano do Genesis, criado a imagem ¢ semelhanca de Deus, ¢ que na antropologia filoséfica incorpora o latino e tardio “animal rational um sedimento do preliminar significado grego, “animal detado de logos” (zoon logon echon).’ A antropologia tradicional resulta de uma teologizacéo do homem, que impede o acesso a compreensao factica de seu ser; do mesmo modo € por motivo inverso, o impedimento continua na “desteo- logizacao” da concepeao crista efetuada pela antropologia moderna, inte- riorizando a pessoa. A transcendéncia que ambas Ihe concedem tem, dira 1 Ontotogic (Hermencutik des Faktizitat), 5, “Der theologische Begriff und der Begriff animal catio~ nale”, p. 26. 10 n Q Ultimo Deus. Ser ¢ Tempo (10), “ratzes na dogmatica cristé da qual nao se pode dizer que alguma vez questionou o ser do homem como problema ontolégico” ® A erradicacao suspende a efetividade das pressuposicées teoldgicas, aplai- nando o caminho da Analitica. Neutralizada a vigéncia da revelagao (Of- jfenbarung) pelo ateismo leal ¢ problematico, 0 metaférico lumen naturale dos Escolasticos, que nao se delimita pelo oposto € superior lumen super- naturale, reverte 8 compreensao do Dasein em si mesmo e por si mesmo, que fenomenologicamente se concretiza. O Dasein ¢ iluminado “em si mesmo enquanto ser no mundo, ndo por obra de outro ente, mas de tal modo que ele proprio é a iluminagdo". Dai poder-se escrever que 0 Da- sein € a sua revelagdo ou abertura (Erschlossenheit). Mas Heidegger reconheceria na (é crista um modo eminente de abertura em correspondéncia com o saber teol6gico, existencialmente fundado, con- forme demonstra sua densa prelegao de 1927, Fenomenologia e Teologia A conceituagao da Teologia e suas relacdes com a Filosofia séo os te- mas centrais da conferéncia, Heidegger afasta-se da acepco tradicional, etimoldgica; em vez de ciéncia de Deus, que implica na precedéncia da fonte revelada, as Escrituras, de que provém todo conhecimento, a Teolo- gia € ai definida como a ciéncia da fe, e a {é definida como o elemento fundador, constitutivo, do cristianismo. Nao €, portanto, a Revelacdo que diretamente origina o cristianismo. Mas o que é a fé para poder funda-lo? A dificuldade para conceitué-la esté em que nao podemos enquadra-la na especilicacao do sentimento geral de crenca. Ela ja nasce crista. “Chris- diche nennen wir den Giauben"® (“A f@ chamamos de crista”). E porque é nativamente cristd, erige o cristianismo, que consiste num modo de exis- téncia exteriorizado pelo testemunho que presta da Revelagéo da quat procede, ¢ que ¢ aquilo em que se cté, o objeto da fé. Desse objeto, 0 Cristo crucificado, embora fato histérico registrado nas Escrituras, s6 se sabe quando nele se cré. E a crenca € compartilhada; estende-se a uma comunidade, que dela participando relaciona-se com o Crucificado atra- vés de uma nova existéncia por ele provida. “O sentido prdprio existencial da {¢ € portanto: crenga igual a renascer (Wiedergeburt)”.'' Um renascer equivalente ao comeco de uma outra vida hist6rica wazida pela revelacio Sein und Zeit, 10, p. 49. Adem, 28, p. 135 Phanomenologic und Theologie, p. 18, Idem, p. 19. a 42 | Benedito Nunes da morte ¢ da ressurreigao do Crucificado, cuja ocorréncia s6 pela f& acontece (geschiet) € sé pela f€ se desvela (enthaillt sich nur dem Glauben), permitindo, portanto, como disse Lutero, que fiquemos presos as coisas que nao vemos. A trilha fideista desse raciocinio, que levaria a eficacia da Revelagao, a autoridade sobrenatural das Escrituras, €, porém, deslocada numa diregio existencial. Todavia a é nao é meramente alguma coisa que testemunhe que a ocorrénc da Revelagao acontece, tal como um tipa de conhecimento madificado; mas a fé € uma apropriagéo da Revelagao, que constitui, juntamente com esta, a ocorréncia crista, isto ¢, 0 modo de existéncia que determina, em sua cristia- nidade, o Dasein factico como um especifico destinamento histérico (Ge- schicklichkeit)"”? Dessa forma, a crenca no Crucificado se faz histérica, abrindo a com- preensao do revelado; o revelado, sob tal luz, 0 ser cristéo ou do cristia- nismo, € 0 prévio dominio do ente descoberto que possibilita uma ciéncia da [é, a Teologia. Nesse sentido, a palavra “ciéncia” esté sendo empregada no contexto ontolégico da Analitica; conota um sistema proposicional verdadeiro, cor- respondente a um dominio entitativo ja descoberto pela antecipada com- preensao do ser que se articula no discurso interpretative atemdtico, que nos da a ver tal ¢ qual coisa como “isso” ou “aquilo”, segundo a preocupa- cdo da vida cotidiana. A proposicao tematiza: ela faz ver o ente na forma da predicacdo, do “como” apofantico de uma propriedade ou atributo, ¢ que ¢ verdadleira na medida em que o mostra, ¢ por isso suscettvel de um. processo de verificacao. “Ser uma proposicdo verdadeira significa que ela descobre o ente em si mesmo. Ela mostra, faz ver o ente em seu estado de descoberto”.'? Mas a proposicao deriva do compreender ¢ de sua abertu- ra, sem a quat nao haveria estado de descoberto por via da atitude teérica, mudanga da conduta de envolvimento do Dasein quando este se detém ou pée-se diante das coisas, abstrafdas do mundo circundante. A propasicao tedrica é verdadeira, mas ndo originaria; quer dizer que ela tem origem extra-teérica. A cigncia, concrecao do conhecimento tedrico. origina-se da 12 Idem, pp. 19-20. 13. Sein und Zeit, p. 218, O Ultimo Deus | 43 “forma de ser” de quem a faz, que é onde ela se funda. Ao comegar 0 seu trabalho, a fundacao do ser ja ocorreu; por isso, a Teologia, como ciéncia, pode organizar as suas proposigdes em torno do que Ihe foi dado, o ente descoberto, proposto, plantado —positus em latim, A Teologia € ciéncia da fe, mas foi a {€ que plantando o cristianismo criou 0 positum, © dado com ‘© qual trabalha ¢ do qual recebe a qualificacdo de positiva. Logo, a f¢, geradora do cristianismo como apropriacao da Revelacio num modo de existéncia hist6rica, também gera a Teologia, que ¢ concomitante ao cris- tianismo do qual participa, garantindo-lhe a subsisténcia pelo conheci- mento sistemético e pela pratica homilética que repete o seu advento na alma dos crentes. A positividade torna a Teologia suficiente como ciéneia, a partir porém de um fundamento nao cientifico, E sob essa angulacao do conceito de Teologia que Heidegger aborda, ainda no contexte da Analiti- ca, o segundo tema da conferéncia —as relagées com a Filosofia. Admitir a positividade da ciéncia teolégica (die Positivitat der Teolagte) significa vincula-la ao plano éntico, fundando, portanto, o seu objeto no ente previamente descoberio e compreendido na [é, 0 qual, por sua vez, traz na sua retaguarda o plano ontolégico de fundo da conduta do Dasein, como ser-no mundo, temporal ¢ historico, que a possibilita. Consequente- mente, as relagdes entre Teologia e Filosofia dependem da diferenca, ja estabelecida pela Analitica entre o conhecimento das ciéncias, tematizan- do dominios entitativos j4 descobertos, e o compreensivo, hermenéutico, clo Dasvin, claborado pela Ontologia, no qual o descobrimento tem as suas condigdes de possibilidade. “Todos os conceitos teolégicos contém neces- sariamente a compreensio do ser (Seinsverstandnis) que constitui o Dasein humano na medida cm que cxistc”.'* Essa compreensio, escala da verda- de originaria, que possibilitou a decisdo da fé, e que subjaz a novagao his- torica do cristianismo, é pré-crista, recaindo sob a competéncia ontolégica da Filosofia. Assim, conceitos teolégicos, atinentes a fé, podem ser escla- recidos a luz de componentes da estrutura factico-existencial do Dasein: 0 pecado, por exemplo, apela para a culpa, conceito nao batizado da Onto- logia, em que se funda. Da-se, portanto, uma interferéncia da Filosofia na Teologia, que Heidegger chama de corretiva, e que a propria Teologia, em sua natureza ontica de ciéncia requer, embora sendo independente da pri- meira, Pois nao se formou ela tao s6 pelo vigor historico, inaugural, da {€? 14 Phanomenologie und Theolegie, p. 29. 44 | Benedito Nunes No que toca a parceira filosdfica, o corretivo de que € capaz nao define um compromisso essencial seu com a ciéncia da [é; a interferéncia sobre a outra The presta servico dentro do atendimento geral 4 fundamentacio das Ciéncias que a Filosofia cumpre por dever de offcio, Ela também nao pode ignorar que a [é repudia o pensamento voltado para o factico da existencia e que é, por isso, sua inimiga mortal (Todfeind). O relacioramento entre ambas mantém-se dentro do regime de oposigdo que as separa, cada qual, Teologia e Filosofia, auto-suficientes ¢ historicamente impermedveis, A fungao corretiva desta sobre aquela nio significa traspasse, mediagao mu- tua; seria 0 mesmo que admitir que a primeira se desbatizasse e a segunda se fizesse crista. “De acordo com isso nao ha algo como uma filosofia cris- ta; tal seria um puro “ferro de madeira" (ein *halzernes Eisen’),'° expresso que Heidegger repetiria em Introducdo & Metafisica (1935). (“Uma “filoso- fia crista” € um ferro de madeira e.uma incompreensio”.) Conforme vimos, a Filosofia atém-se a camada ontoldgica da fé, e as- sim aos elementos estruturais da conduta do Dasein que a possibilitam. Do que resulta que a hermenéutica fenomenoldgica vai ao fundo da Teolo- gia. E nao estaria também acima, a cavaleiro dela, porque apta a concei- tué-la como ciéncia da [€? Ao mesmo tempo, 0 filésofo, que nao pode ser um crente, que nao deve praticar o salto da {é, coloca-se ao nivel dela ao efetuar a sua genese como uma apropriacao da Revelacio através da forma da existéncia humana que responde por essa apropriacio, ¢ de onde vern a forca de transfiguracao histérica numa vida crista. E ainda o filésofo que legitima o tedlogo, justificando a fé. E justificando-a, tera reconhecido as Escrituras, pelo menos uma parte delas, os Evangelhos, posto que € neo- testamentaria a Teologia justilicada, e reconhecendo-as, tei identificado nelas a experiéncia da vida crista ou o cristianismo que a precedeu. Expe- rigncia religiosa ou existencial? A interrogagdo procede, visto que o universal “religido” esta fora da anterior andlise heideggeriana, que toma distancia, desde al, dos fatores culturais e da Historia da Religiio. E existencial pelos motivos ja expostos, mas poderia ser religiosa, tanto incorporou o filésofo 0 Stimmung do cris- tianismo, ao recompor, em sua fenomenologia da [é crista, a disposic¢do aletiva que aproxima o crente de seu Deus. E, no entanto, essa aproxima- Gao é o contraste de fundo, o repoussoir do atefsmo leal ¢ problematico de 15 Idem, p. 32 © Ultimo Deus | 45 Heidegger. Por certo que na fé aparece ou se manifesta, no sentido feno- menolégico da palavra, o adhaerere Deo que a constitui. Mas essa relacdo com Deus, intencionalmente confirmada, atesta, do ponto de vista da On- tologia fundamental, que desce ao estrato pré-cristao, factico, da com- preensao da [é de que se abriu o positum da Teologia, a transcendéncia do Dasein como ser-no-mundo, € ndo a existéncia de um ente infinito que o transcende. Em cada um dos pontos extremos da mesma transcendéncia —morte, conscigncia moral e tempo— manilesta-se a finitude do ser hu- mano, que adere a si mesmo € 20 mundo, sem passagem para o infinito. Nao é apenas o desvinculamento com qualquer preocupagéo de uma outra vida e, portanto, com a aspiragdo da imortalidade, o que avulta na concepgao da morte firmada em Sein und Zeit. A morte, que totaliza o Da- sein como a possibilidade que ele € desde o “momento em que existe”, ¢ que sempre Ihe falta para completar-se, revela 0 ndo ser dominante origi nariamente em seu prdprio ser. Dizendo isso de outro modo: ele existe finitamente, ¢ porque assim existe, premido pela possibilidade de nao-ser que o espreita na morte, pode apropriar-se de si mesmo e transcender-se para o mundo. Se a voz da consciéncia (Ruf des Gewissen), chamamento para essa apropriacio, parece-nos a voz de uma poténcia estranha, a por- nos sempre em débito numa acusacdo de culpa, ¢ porque o Dasein, en- quanto finito, concretizando certas possibilidades e furtando-se a outras, est sempre em déficit consigo mesmo e com os outros. A culpa, a priori de erros e omissées, integra a condigao de um ser que carrega o néo-ser, pelo qual responde. Pelas duas situagdes extremas, a morte, bloqueada ao anseio de imortalidade, pois levando-nos a um fim que jé somos, e a cons- ciéncia moral, bloqueada ao anseio de um definitivo ¢ supremo Bem, pois nos levando a cada momento ao que nao podemos ser, nosso Dasein se subtrai ao infinito. A temporalidade, tinica safda dele, advindo a si para retornar a si em meio a coisas que se presentificam, antepoe-se a eternida- de, descendente inauténtica ¢ encobridora desse tempo finito, fincado no factico existir. O cuidado, que o identifica, ¢ por meio do qual 0 Dasein exisie para além de si enquanto ai, no mundo, assegura a sua transcen- déncia vertiginosa ou liberdade. Nele no encontra lugar o “pressentimen- to” de Deus, como tnica possibilidade dada ao [ilésofo, e de que ele nao pode fazer uso, esse pressentimento paira, sem lugar definido, na estrutu- ra do Dasein, no entanto informada ¢ conformada A questao do set. Sd depois de clesenvolvida essa questéo, com a latitude que tomou como questio do sentido do ser, sob a cautela liberatéria do ateismo, in- 46 | Benedito Nunes dependentemente, portanto, da intromissio clo pressuposto tealdgico ¢ de seus derivados, € que podera pr-se a questao da existéncia de Deus. “In- terpretando ontologicamente o Dasein como ser-no-mundo”, diz Heideg- ger em nota ao texto de Vom Wesen Des Grundes, “nao se decide ainda nada, nem num sentido positivo nem num sentido negativo, sobre a pos- sibilidade de uma relagao com Deus. Ou antes, pelo esclarecimento da uranscendéncia atinge-se, antes de tudo, uma nogao suficiente do Dasein, considerada a qual se pode colocar a questo de saber como fica a relacio do Dasein com Deus” (Gottesverhatinis).'® Repare-se que a questao a propor nao ¢, como na formulacao tradicio- nal, a existéncia de Deus, mas a relagio do Dasein com Deus. Trata-se de saber 0 que, depois do esclarecimento ontoldgico, significa algo como Deus, que existe na vida do homem, seja polarizando a religiao, objeto de fe e culto, seja simples idéia, pressentimento ou alvo de negacao. De qual- quer forma, a expressio utilizada —relagio do Dasein com Neus— sugere que a questo af implicada sé pode resolver-se, partindo da transcendén- cia daquele por um movimento compreensive do Dasein erm seu préprio ser. No entanto, mesmo assim, o fato de que ela seja posterior a do ser, € que sé em funcdo desta possa propor-se, transfere-2 um plano secundario juntamente com a Teologia, e reafirma a prioridade da outra, que consagra a superioridade da Filosofia. Esta ¢ uma “possibilidade decis:va" do Dasein humano, mobilizada pelo ser e nao por Deus A questao de Deus é, pois, diferente da relativa ao ser, embora se tornem, no decorrer da pratica meditante que caracteriza a reviravolta (Kehre), tao proximas, como proximas se tornam, sem confundir-se, nessa mesma tenta- tiva de contornar a dominancia histérica do ente, Poesia e Filosofia. Ser é um terme ateolégico, esclareceria Heidegger em conversa com Landgrebe ¢ ou- tos (dezembro, 1953),"” e nao uma reflexa transferéncia da divindade, o que faria do filésofo um tedlogo disfarcado, Mas na segunda fase, em que o pen- samento do ser alteia-se em solitéria confianga, A contra-corrente da Hist6ria do ser como Historia da Metalisica, a concepgdo da auto-suficiéncia e da im- permeabiliciade historica da Teologia neotestamentaria e da Filosofia, inde- pendentes uma da outra, nao € mais sustentavel. Independentemente da [é, 16 "Vom Wesen des Grundes”, em Wegmarken, p. 55, . 56. 17 Conversation with Martin Heidegger recorded by Hermann Noack (Appenslix), em The Piety of Thinking, p. 64. 1B ry O Ultimo Deus | 47 Deus ja esta dentro da Filosofia, e mesno os fildsofos que adotaram o ateismo formal doutrindrio, lidam com a presenga subrepticia dele onde quer que pulse 0 coracao das ontologias tradicionais, na matéria ou no espirito. Entéo ser conotaria 0 teolégico, ¢ Deus conotaria o ser em sua arche ow principio, mas como ente supremo, to timiotaton on, A Filosofia, disse-nos a conferéncia de 1927 anteriormente abordada, ndo precisa da Teologia, ¢ esta, pela propria fé que a sustenta, repele a Filosofia. Agora, porém, estio ambas coligadas pelo mesmo pensamento do ente, permeaveis ambas a Histdria do ser que as en- globa. No conhecido escrito de 1936, Uberwindung der Metaphysik (Superacao da Metafisica), do momento agudo da Kehre, do mesmo ano de Holderlin und das Wesen der Dichtung (Hélderlin e a essencia da Poesia), Die Ursprung der Kunstwerk (A Origem da Obra de Arte) e Schellings Abhandlung (O Trata- do de Schelling), Ie-se que a metalisica, "sob todas as suas formas e em to- das as etapas de sua histéria, ¢ uma unica fatalidade (Verhangnis), mas tal- vez, também, a fatalidade necessaria do Ocidente ¢ a condigdo de sua dominagao extensiva sobre a terra inteira”.’® Do decisivo instante em que © primeira filésofo grego perguntou-se o que € 0 ente, premido pelo thau- mazein que o identificou como filésofo, instala-se a fatalidade, perduravel forga do comeco (Marcht der Anfang), entre breves lampejos, tal a physis pré-socratica, do discernimento da diferenga, nado pensacla metafisicamen- te, que separa o ser do ente, na abertura daquele, sem a qual nao se pode- ria ao menos dizer que “isto ¢ aquilo”. A Metafisica omite, esquece a dife- renga quando fala constantemente de um e de outro. “Ela visa o ente em sua totalidade e fala do ser. Ela nomeia o ser e visa o ente enquanto ente”. Paradoxo da propria Historia do ser: se a Metafisica esquece, ¢ porque o ser se retrai, porque se encobre ao desencobrir-se, sendo, de cada vez, sob nomes historicamente diversos, o mesmo ¢ o diferemte. Interpretado seja de que maneira for, como espfrito no sentido do espiritua- lismo, como materia ¢ forca no sentido do materialismo, como vir-a-ser € vida, como represeniacao, como substancia, como vontade, como sujeito, como energeia, como Eterno Retorno do mesmo, sempre o ente enquanto ente aparece a luz do ser.!” “Uberwindung der Metaphysit”, em Votrage und Aufsttze, VIII, p. 69. ‘inleitung 2u ‘Was ist Metaphystk'?”, em Wegmarhen, p. 195. 48 | enedito Nunes Outro aspecto inerente A Histéria do ser, que substitui a preliminar ques- tao do sentido, em Sein und Zeit, pela da verdade da esséncia ou da essén- cia da verdade, é a estrutura entitativa pela qual o pensamento metafisico exerce a sua fatal dominancia. O ente enquanto tal ou € a espraiada gene- ralidade do que existe ou 0 que existe de mais alto. Nao se concebe um sem o outro. O mais alto, porém, timiotatos on, € a causa do mais baixo, € come tal 0 Theos, objeto superior do estudo da ciéncia das primeiras cau- sas, que Aristételes designou expressamente como Teologia. O que depois se chamou de Metafisica une os dois niveis do ente numa s6 estrutura entitativa de pensamento, ontoteoldgica. Por isso a Metafisica € uma € ou- tra, teolégica e ontolégica, mas se respeitarmos, com Aristé:eles, a hierar- quia das causas, 0 objeto mais alto lhe determina a identidade, como tam- bém a identidade de toda Filosofia. Heidegger poderia escrever em seu Schelling: Toda Filosofia ¢ Teologta no sentido originario c essencial de que a apreensao conceitual (logas) do ente em sta totalidade pde a questdo do fundamento do ser, fundamento que tem por nome Theos Deus. Mesmo a filosofia de Nietzsche, por exemplo, em que se enuncia esta tese essencial: Deus morreu, &, precisamente, e em virtude dessa tese, teolégica.”” Na tradicto escolastica, a Filosofia chamou-se de Teologia natural, subsi- didtia As verdades da genuina Teologia da Revelagio, que vimos antes sim- plesmente como Teologia grega tardia, com antecedentes que remontam a Xendfanes, ja deixando para trés a primeva Teologia, a “das narrativas mi- ticas ou potticas sobre os deuses, sem referéncia a artigos de fé ou a dou- trinas de uma Igreja”.*” Tertamos, entdo, trés Teologias: a néo-testamenta- tia do Deus encarnado, a natural do Theos, ente supremo representado como causa, ¢ a dos deuses, de subsisténcia narrativa mitica ou pottica. Tal como na primeira fase, a questaéo do ser entra em cenfronto com 0 teolégico nessas trés dimensdes apontadas. Nao se trata de ditimir um conflito de competéncia entre elas do ponto de vista do divino (theion e nado Theos} —termo no qual os gregos juntaram os atributos do que é su- perior, imaterial, imortal, eterno— de que sao depositarias a natural, filo- 20. Schelling, pp. 94-95 21 Mdentitar und Differenz, p. 44. 0 Ultimo Deus séfica, de “sentido tardio como a do pensamento representativo sobre Deus”. a crista, definida pela {é numa relagio com 0 Cristo, soteros & kyros, Salvador ¢ Senhor, as duas monoteistas, em oposigdo aa politefsmo pagio da tetceira. Vai-se da primeira a segunda indo de Dios a Dios, para lembyarmos a expressio de Unamuno, do deus abstrato dos filésofos ao deus vivo, padecente, cuja promessa de imortalidade consola os homens. E 9 “tltimo estaria mais préximo dos deuses do que do deus filosdfico. Pois ndo é diante deles que o “homem pode dangar e cantar"? "Nao se” pode”, diz Heidegger, “diante da Causa sui —o nome que convém dar a Deus na Filosofia— nem cair de joelhos cheio de temor, nem tocar instru- mentos, cantar e dancar”.”? Certamente que a cristae a mitoldgica sio mais humanas. Tuclo esta, porém, em saber se nelas o deus move o pensa- mento numa direcdo favoravel ou desfavoravel ao desvelamento do ser. Por tudo quanto até agora vimos, j4 se pode afirmar que a Teologia natural, na acep¢do lata que estamos utilizando, prende o pensamento ao ente supremo, ao que é mais ente do que todos os entes. E que foi af que se consertou a conjun¢ao metafisica do teolégico ao ontoldgico. Em prin- cipio, a Ciéncia da Fé seria avessa ao segundo, que, como Filosofia, Deus, de acordo com Sao Paulo (1 Cor., 1, 20), inquinou de loucura. Por outro Jado, o pensamento voltado para o ser nao pode reconhecer-se no Deus da *revelagao”, "O pensar nada conhece de um “Deus revelado" ¢ nfo pode reconhecer na proclamagao crista qualquer “destinamento histérico do ser", consiste em afitmativas sobre um ente (Deus como criador ¢ senhor do mundo). Deste modo, a loucura de que fala Sao Paulo pode considerar-se rectproca para a fé ¢ para o pensamento”.* Estamos longe da “positividade” da Ciéneia da fé, O seu positum é arreba- ado pela remota injuncao do ente € de suas metamorfoses na Filosofia grega, de Platdo a Aristoteles, isto é, pela metafisica grega, que era teolégi ca, e que configurou a Histéria do ser ¢ sua fatalidade, Considerando-se esse processo, que nao nos cabe examinar, é legitimo dizer-se, como o faz 22. Idem, p. 44 23. Idem, p. 64. 24 “Conversations with Martin Heidegger”, op. ci p68, 49 50 | Benedito Nunes Heidegger, que “a Teologia crista se apodera da Filosofia grega” e pée-na a seu servico, ou, em resumidas contas, que cla é “a cristianizacio de uma teologia extra-crista”,’> em que o Deus, pai, criador e senhor dos homens, toma-se Summum Ens, Ato puro, fonte do Bem ¢ do verdadeiro e da sobe- rana justica. Depois de ter morrido na cruz em segunda pessoa, ele € 0 Deus que morreu assassinado pelos homens, na proclamagao de Zaratus- tra para o nosso tempo. Referéncias Bibliogréficas Heidegger, Martin, Interprétations phénomenologiques d’Aristote, Trans-Europ Repress, Mauvezin, 1992, Prolegomena eur Geschichte des Zeitbegriffs, Vittorio Klosterman, Frankfurt am Main, 1988, Ontologic (Hermeneutih der Faktizitdt), Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1988. Sein und Zeit, Acht unveranderte Auflage, Max Niemeyer, Tubingen, 1957. Phanomenotogie und Theologie, 1970, Wegmarken, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1967. Vortrage und Aufsatze, Teil 1, Neske, 1967, Schelling, Le Traité de 1809 sur essence de la liberté humaine, Gallimard, 1977. Holaweg, Vittorio Klosterman, Frankfurt am Main, 1972. Idemtitat und Differenz, Neske, 1976. James G. Hart and John Maraldo, The Piety of Thinking, Indiana Press, Bloomimgton and London, 1976, jorio Klostermann, Frankfurt am Main, 25 Schelling, p.95.

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