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REVISTA DE PSICOLOGIA - ESPECIAL

EFEITOS
EFEITOS
ADVERSOS
DEPOIS DAS NEUROSES É CADA VEZ MAIS
DIFÍCIL SER NORMAL.

D
E UMA PERSPECTIVA POLÍTICA,
UM BOM PONTO DE PARTIDA
Foto Divulgação: Flickr: amountaineer

PARA SE PENSAR OS EFEITOS


DAS NEUROSES ESTÁ EM DAR-SE CONTA
DE QUE ELAS NÃO SÃO ENTIDADES
UNIVERSAIS, QUE SEMPRE EXISTIRAM E
DEVERÃO EXISTIR PARA SEMPRE. ELAS
TÊM HISTÓRIAS, COM SEUS COMEÇOS
E SEUS FINAIS. EMBORA PARA A
PSICANÁLISE ELAS SIGAM EXISTINDO, A
PSIQUIATRIA JÁ LHES DEU UM FIM.
O fim das neuroses foi acompanhado pela retoma-
da do interesse da psiquiatria por conteúdos estritamente
biológicos, que lhe ajudariam a se reaproximar da me-
dicina, da qual foi acusada de ter se afastado após sua
forte vinculação às teorias freudianas, em meados do
século XX. Esta psiquiatria biológica, que aparece ainda
no século XIX e atinge o seu apogeu nos anos 1990, se
importará mais com a regulação das trocas de dopamina,
serotonina e outros neurotransmissores no cérebro do

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que com aspectos familiares, sociais e psicológicos problemas relacionados à sensibilidade e à motri-
dos indivíduos, como fazia a psiquiatria dinâmica, cidade sem a presença de febre, inflamação, lesões
fortemente influenciada pela psicanálise. Com seu nos órgãos ou qualquer outra alteração morfológica
aporte biologicista, esta psiquiatria não restringirá visível. Eram, portanto, denominadas neuroses todas
sua atuação apenas ao campo das chamadas psi- as doenças às quais a medicina anatomopatológica
copatologias e a estenderá ao atendimento de pa- da época não conseguia atribuir nenhuma causa
cientes “normais”, que buscam o consultório para orgânica. Também foi no século XVIII que emergiu
“melhorar” o seu comportamento, para otimizar sua a psiquiatria. Como evidencia o filósofo Michel Fou-
saúde mental, inaugurando assim o que o psiquiatra cault (2002), a psiquiatria não nasceu primeiramen-
Peter Krammer (1994) chamou de era da farmacolo- te como uma especialidade da medicina, mas como
gia cosmética. uma prática ligada à proteção social, deixada sob o
Porém, neste percurso que vai da doença cuidado de médicos.
à saúde mental, as neuroses desempenharam um Introduzida na França pelo alienista Philippe
importante, porém ingrato papel. Foram elas que, Pinel, no século XIX, a noção de neurose foi am-
colateralmente, abriram as portas para que os psi- plamente difundida pelo neurologista Jean-Martin
quiatras saíssem do manicômio. Foram elas que per- Charcot no país e em toda Europa. Charcot definia
mitiram ao psiquiatra se instalar em consultórios, a neurose como um desequilíbrio psíquico que, ao
além dos muros do manicômio. Como recompensa contrário da psicose, não implicava em delírios, alu-
à colaboração prestada, as neuroses foram banidas cinações ou perda de contato com a realidade.
pela psiquiatria para o temido reino das verdades Alunos de Charcot, Pierre Janet e Sigmund
não científicas. Freud seguiram com o estudo das neuroses. Com o
primeiro, a neurose transformou-se em uma doença
da personalidade, marcada por conflitos psíquicos
COMEÇOS perturbadores da conduta social. Para Freud, a neu-
rose é um dos elementos da estrutura tripartite de
Uma história das neuroses teve início no sé- seu pensamento, ao lado da psicose e da perversão.
culo XVIII, quando o médico escocês Willian Cullen O termo foi empregado pelo criador da psicanálise
passou a designar por este termo um conjunto de para designar uma doença nervosa cujos sintomas

“Por meio da conceitualização das neuroses, Freud abriu um novo flanco para a atuação da psiquiatria. En-
quanto o seu contemporâneo, Emil Kraepelin cuidava da “psiquiatria pesada”, das psicoses e manicômios.”

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simbolizam um conflito psíquico recalcado, de ori- “O DSM surgiu para a APA contrapor-se à Or-
gem infantil, por isso intimamente relacionada à ganização Mundial de Saúde (OMS) que havia
história do indivíduo e sua forma pessoal de lidar lançado em 1948 a sexta revisão da sua Classifi-
com os seus problemas (ROUDINESCO, 1998). cação Internacional de Doenças (CID), a primeira
Por meio da conceitualização das neuroses, a incorporar doenças mentais.”
Freud abriu um novo flanco para a atuação da
psiquiatria. Enquanto o seu contemporâneo, Emil
Kraepelin cuidava da “psiquiatria pesada”, das
psicoses e manicômios, das doenças mentais que
deixavam observáveis marcas sobre o corpo na
forma de lesões e outras alterações morfológicas
nos órgãos; Freud atuou na “psiquiatria leve” das
neuroses e consultórios, as “doenças dos nervos”
que não deixavam registros orgânicos e permitiram
a instalação de lucrativas clínicas privadas para o
tratamento mental.
Ao misturar prática asilar com filantropia,
a psiquiatria queria mesmo fazer do mundo um
grande hospício. O confinamento de pessoas em
manicômios tornou-se cada vez mais recorrente
até meados do século XX, quando a invenção dos
psicofármacos, a lobotomia e a psicanálise colabo-
raram para esvaziar as instituições manicomiais
(PIGNARRE, 2007). Este dado pode ser confirmado

Foto Divulgação: Flickr: seyed mostafa zamani


por registros de países como os Estados Unidos e a
França. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 1860,
havia 8,5 mil internados em manicômios. Quase um
século depois, esse total chegou a 560 mil internos
(SHORTER, 2001).
Em um primeiro momento, as chamadas doen-
ças dos nervos funcionaram como uma resistência
à psiquiatria praticada em manicômios. No século
XIX, as famílias com mais posses preferiam, no lu-
gar de confinar seus entes em hospícios, tratá-los
nas muitas estâncias hidrotermais para “doenças de
nervos”, que haviam sido inauguradas na Europa.
Não era apenas uma questão humanitária, pois ter
uma pessoa com doença mental no círculo próximo
era um estigma que recaía sobre toda a família, já e antipsiquiátricos de meados do século XX. Traçar
que à época os problemas mentais eram tratados uma história das neuroses ainda permite recuperar
como degenerações hereditárias. o momento em que houve o deslocamento da Europa
para os Estados Unidos como o principal centro pro-
DSM, CID E ATUALIDADE dutor de saberes sobre o mental. Em relação a esta
mudança, que implicou em mais do que uma altera-
Não demoraria para que as neuroses delimi- ção de continentes, o psiquiatra e historiador da dis-
tassem um espaço próprio entre os saberes e prá- ciplina Henri Ellenberger costumava dizer: “Na Eu-
ticas psiquiátricos, marcado pela sua introdução ropa, as pessoas vão ao psiquiatra por causa de um
no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtor- sintoma, na América por causa de um problema”.
nos Mentais (Diagnostic and Statistical Manual of O DSM surgiu para a APA contrapor-se à Orga-
Mental Disorders, DSM na sigla em inglês), publi- nização Mundial de Saúde (OMS) que havia lançado
cado pela American Psychiatric Association (APA). em 1948 a sexta revisão da sua Classificação Inter-
Retomar uma história das neuroses é recontar nacional de Doenças (CID), a primeira a incorporar
o apogeu e o declínio da psicanálise como principal doenças mentais. A APA não queria deixar a OMS ser
articuladora de um tipo de psiquiatria que ligava a única referência sobre classificação de doenças
os problemas mentais a experiências vividas e, no mentais.
limite, não via problemas em abandonar a prática Sua primeira edição, de 1952, trazia uma ligeira
asilar de controle social, como ficou evidente em referência à psicanálise com a utilização de termos
iniciativas ligadas aos movimentos antimanicomiais como “neurose”, “mecanismo de defesa” e “conflito

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neurótico”. Nessa época, a psiquiatria estaduniden- possui no mínimo 15 novos diagnósticos, além dos
se era orientada pelo pensamento biopsicossocial de que se encontravam na edição anterior.
Adolf Meyer, que compreendia a doença mental como Boa parte das novas categorias diagnósticas
um tipo de reação do ser humano ao meio ambiente. incluídas ao longo das edições do DSM é de transtor-
A publicação do DSM II, em 1968, sinalizou jus- nos ligados aos mais comuns sentimentos, emoções,
tamente o aumento da influência da psicanálise nos hábitos e comportamentos. Este movimento configu-
Estados Unidos. O manual da APA passou então a
ra um crescente processo de “psiquiatrização” do
privilegiar a psicanálise freudiana, contendo uma
cotidiano, ou seja, a psiquiatria passou a incluir en-
presença maior da nomenclatura de origem psica-
nalítica e uma forte ênfase nos aspectos da perso- tre as suas classificações questões que anteriormen-
nalidade individual para a compreensão do sofri- te não pertenciam ao campo psiquiátrico. Foi assim
mento psíquico. Desta forma, se no DSM I constava que os medos passaram a ser diagnosticados como
a “psiconeurose” denominada “Reação Depressiva”, transtornos fóbicos; as tristezas, como depressões;
no DSM II esta categoria passou a ser chamada de
“Neurose Depressiva”, dentro da seção “Neuroses”.
A segunda edição do DSM foi alvo de diver-
sas críticas. Internamente à psiquiatria e à medi-
cina, o manual da APA foi acusado de não oferecer
categorias válidas e confiáveis para o diagnóstico
clínico, uma direta ofensiva contra a hegemonia do
pensamento psicanalítico na psiquiatria. Em relação

Foto Divulgação: Flickr: Marc_Smith


à sociedade, a psiquiatria era acusada de praticar
verdadeiros sequestros e excluir os doentes mentais
por confiná-los em instituições nas quais sofriam
torturas e outras formas de violência.
A elaboração do DSM III, lançado em 1980, veio
responder a estas críticas internas e externas. En-
tregue aos cuidados de psiquiatras biológicos, a APA
procurou enfatizar que havia produzido um manual
de diagnóstico “científico” e “ateórico”, embasado em
“provas e investigações”, que não organizava mais
as doenças mentais segundo suas etiologias, como
faziam até então as edições do manual, mas pelos
sintomas observáveis na clínica.
Nesta busca da psiquiatria por objetividade,
imparcialidade e cientificidade, todos os problemas
mentais do DSM passaram a ser denominados trans-
tornos (disorder, em inglês). A equipe responsável
pela nova edição queria varrer as neuroses do ma-
nual. Todavia, uma negociação entre os psiquiatras
biológicos e aqueles que defendiam a teoria psicana-
lítica chegou a uma solução: os transtornos que na
edição anterior eram apresentados como neuroses,
agora no DSM III viriam com o seu antigo nome de
neurose entre parêntese após a nova nomenclatura.
Na publicação, por exemplo, o chamado “Dysthymic
disorder” (“distimia”, em português) veio sucedido
por seu antigo nome entre parênteses “or Depres-
sive neurosis” (“ou neurose depressiva”, em portu-
guês). No DSM IV, o termo e qualquer referência às
neuroses foram completamente abolidos do manual.
Nos últimos 62 anos, a cada revisão ou nova
edição do manual da APA, pode-se observar uma
progressiva ampliação do número de categorias
diagnósticas. O DSM I começou com 106 categorias “Nesta busca da psiquiatria por objetividade,
e o DSM II trouxe 182. No DSM III, elas totalizavam imparcialidade e cientificidade, todos os problemas
256. A quarta edição do DSM era composta por 297 mentais do DSM passaram a ser denominados
categorias diagnósticas. O DSM 5, lançado em 2013, transtornos (disorder, em inglês).”

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Foto Divulgação: Flickr: Jack Mallon

“Hoje, todos podem ser alvo de diferentes intervenções, não apenas os “anormais”. Se, antes, o governo
da psiquiatria estava restrito aos doentes mentais confinados em manicômios, agora são os normais que
procuram os cuidados psi para muitas vezes resolver problemas de adaptação a condições de vida.”

as angústias e dificuldades de enfrentar desafios que, até certo ponto, se mostram eficazes para ad-
em transtornos de ansiedade; os comportamentos ministrar o comportamento e as emoções humanas,
excessivos e repetitivos em transtorno obsessi- via controle dos fluxos de neurotransmissores ce-
vo compulsivo ou transtornos do impulso; o baixo rebrais. Desta forma, ganha força uma utopia bio-
rendimento escolar de crianças em transtorno de logizante do humano, segundo a qual tudo pode
déficit de atenção. A lista é grande, mesmo sem ser ser controlado, regulado e melhorado por meio
relembrada a grande quantidade de transtornos que de medicamentos ou mesmo de terapias, como as
aguardam para entrar oficialmente no DSM como, congnitivo-comportamentais.
por exemplo, as chamadas “dependências comporta-
Estas transformações na psiquiatria mostram
mentais”, as quais incluem as compras compulsivas,
que o “normal” tornou-se mais uma população a
os adictos por exercícios ou por Internet. Este últi-
ser psiquiatrizada, ou seja, governado por saberes
mo, por sinal, já conta com uma proposta de critério
diagnóstico publicada no DSM 5, mas que ainda pre- e práticas da psiquiatria. Acabou a distinção entre
cisa de mais estudos para ser validada. “anormal” e “normal”. Hoje, todos podem ser alvo de
diferentes intervenções, não apenas os “anormais”.
Se, antes, o governo da psiquiatria estava restrito
MAIS DO QUE “NORMAL”
aos doentes mentais confinados em manicômios,
agora são os normais que procuram os cuidados psi
O mais interessante a ser observado neste
para muitas vezes resolver problemas de adaptação
movimento de psiquiatrização do cotidiano, inicia-
a condições de vida que são extremamente competi-
do com o advento das neuroses e expandido com
tivas, estressantes e extenuantes. Mesmo exaustos, os
a psiquiatria biológica, é que agora com o seu dis-
curso pautado no “cerebral”, a psiquiatria tem sido “normais” não se cansam de atender às contempo-
capaz de atrair cada vez mais indivíduos que bus- râneas demandas do neoliberalismo que investe na
cam otimizar seus desempenhos, aprimorar suas produção de subjetividades que buscam incessantes
performances e conquistar mais qualidade de vida, aperfeiçoamentos e melhorias. Graças às neuroses e
expressões que se tornaram verdadeiros mantras à psicanálise, não estamos mais confinados. Porém,
na era da saúde mental. nunca deu tanto trabalho ser normal.
Um ingrediente imprescindível para a maior
presença da psiquiatria biológica no que há de mais * Leandro Siqueira é doutorando no Programa de Estudos Pós-
cotidiano foi o grande desenvolvimento da psico- Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, e formado em Ciências
farmacologia ao longo do século passado. Além de Sociais, pela USP, e em Comunicação Social, pela PUC-SP. É
tornar o psiquiatra um médico “de verdade” (da- pesquisador no Núcleo de Sociabilidade Libertária (www.nu-sol.
quele que define um diagnóstico e prescreve um org) e no Projeto Temático Fapesp Ecopolítica (http://www.pucsp.
medicamento), a psicofarmacologia ofereceu drogas br/ecopolitica).

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