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O Estudo no contexto pianístico

Índice
Introdução

O Estudo, enquanto género significativo no que toca ao repertório de piano, assume, no


enquadramento deste preciso intrumento, um estatuto ímpar, comparativamente ao que se
verifica no cenário de outros intrumentos. Este género solístico, em termos pianísticos,
frequentemente ultrapassa a dimensão meramente pedagógica que se verifica noutros
instrumentos, servindo mesmo de repertório protagonista de recitais e concertos. Embora os
estudos representativos do repertório do piano não sejam, de forma tão explícita quanto
noutros instrumentos, destinados a uma problemática de técnica, não se alheiam de todo de
um propósito formativo, verificando-se uma maior articulação entre identidade do material
musical e valências para as qualidades do intérprete. Mas que peculariedades houve no
percurso de desenvolvimento deste género no piano que o diferenciaram tão evidentemente
do estudo noutros intrumentos?
Este trabalho, realizado no âmbito da disciplina de História da Cultura e das Artes, propõe-se
precisamente a formular uma tentativa de resposta à questão supracolocada, ao ilustrar uma
cronologia dos principais compositores de estudos e os respetivos contributos.
Estudo: à procura de uma definição; Origens

Estudo, traduzido do termo francês étude, pode ser definido como uma pequena peça
intrumental direcionada para a prática de uma determinada vertente técnica, com o intuito de
a abordar segundo um prisma que seja igualmente consistente do ponto de vista musical,
aproximando-se do prelúdio no que diz respeito ao estudo enquanto exercício composicional1.
Contrariamente ao exercício, exige-se não só da vertente técnica como da sensibilidade
interpretativa.
Sendo somente estabelecido em 1799, onde se menciona pela primeira vez a o termo estudo
enquanto género, figurando em Etude de Clavecin ou Choix de passages difficiles doigtés, tirés
des auters les plus célébres (Estudo de cravo ou escolha de passagens de dedilhação difícil,
tirados dos autores mais famosos), designava-se inicialmente de estudo tanto obras individuais
como coletâneas, mas também era atribuido como subtítulo de outras obras.2
Verifica-se, contudo, uma ambiguidade em termos da distinção deste género e de outros como
o exercício que os dicionários e as enciclopédias da época não clarificaram. De acordo com
Thomas Busby, o estudo é ‘’(…) um termo aplicado pelos mestres modernos (…) a (…) exercícios
(…)’’, definindo exercício como ‘’(…) qualquer composição direcionada a melhorar a voz, os
dedos do jovem praticante (…)’’3. Também J.F.Danneley, em Uma Enciclopédia ou Dicionário da
Música, e Castil-Blaze, em Dicionnaire de Musique Moderne, não expõem de forma clara esta
diferença, estabelecendo-os quase como designações para um mesmo termo, sendo que Castil-
Blaze afirma que o estudo se distingue por ser puramente instrumental (e não vocal).4 J.E.Häuser
define estudo como ‘’(…) peças de prática (…) especificamente, aquelas que visam uma
aprendizagem adequada da dedilhação, melismas e ornamentações, etc.’’ e exercício como ‘’
(…) peças de prática através das quais se pode alcançar um maior nível de destreza e de
execução’’5. Gustav Schilling simplificou a problemática desta diferenciação, escrevendo
mesmo ‘’Exercício, o mesmo que Estudo’’, sendo ‘’somente peças preparatórias para melhorias
técnicas que, de certa forma, são uma tabela de pronunciação da linguagem da arte musical
pura’’6.
Face a estas divergências na terminologia, Karl Borromäus von Miltitz escreveu, no ano de
1841, o artigo Exercice und Etude (Exercício e estudo), no qual escreve: ‘’Exercícios para os dedos
sem espírito são verdadeiros exercícios, exercícios para os dedos feitos com inspiração são
Estudos’’. Os estudos de Cramer são considerados por von Miltitz como um modelo para este
género, chegando mesmo a afirmar que a publicação de exercícios desinspirados era inútil, visto
que cabia a cada professor, no contexto de cada aluno, inventar exercícios que se adequassem
ao problema em questão. Von Militz referiu as drásticas mudanças ocorridas na conceção do
exercício entre os anos de 1800 e 1840, pois, com Cramer, dizia respeito a uma peça individual
e identitária, sendo que, por volta de 1840, se tinha degenerado numa ‘’broca de dedos’’ sem
imaginação que se materializava numa sucessão de padrões. Alude-se também, neste trabalho,
ao facto de o estudo já não significar uma obra total, mas sim peças individuais.7
O estudo deixou igualmente marcas noutros géneros pianísticos, nomeadamente as Variações,
as quais se desenvolvem a partir de um tema que é apresentado de forma exaustiva, a Tocatta,
que explora até ao limite os problemas do piano no que diz respeito ao toque, como acordes e
saltos, e o Prelúdio, que se aproxima do Estudo pela sua natureza tendencialmente
monotemática.
O Estudo em Chopin

Só com os Estudos compostos por Fryderik Chopin (1810-1849) é que este género se
estabeleceu como uma obra de arte complexa em termos do material musical, conjugando de
forma integrada e equilibada esta sofisticação com a componente técnica8, os quais abordam
aspetos técnicos específicos, como oitavas, terceiras, velocidade da mão esquerda, numa
linguagem e estruturação harmónica inovadora, implicando uma condução melódica complexa
e integrando estrutuas rítmicas irregulares, aspetos estes que os diferenciaram dos produzidos
até então.
Chopin escreveu três opus de estudos: Doze Grandes Estudos, Op.10 (1828), Doze Novos
Estudos para Pianoforte, Op.25 (1833), e os 3 Novos Estudos, compostos para o método de
Moschelles. Chopin introduz a ideia de estudo não só como peça benéfica para a técnica, como
também uma maneira de ultrapassar as pecularidades de um determinado estilo composicional,
isto é, uma obra numa certa tonalidade de índole introdutória para outras obras do mesmo
compositor9.
As inovações imprimidas na vertente da harmonia no Estudo por Chopin passam
fundamentalmente pelo uso de sonoridades inesperadas, concebidas através de cadencias
retardadas, modulações para tonalidades distantes; o recurso a dissonâncias não preparadas
nem resolvidas. Em termos das inovações no domínio técnico, destacam-se o uso de terceiras e
sextas consecutivas, o alargamento da mão por arpeggios e acordes quebrados, o uso de temas
que abrangem, por vezes, três e quatro oitavas, destacando-se também a variação de caratér
improvisativo dos temas apresentados.10
Apresentam-se em seguida alguns excertos de estudos com vista a iustrar algumas destas
inovações.

O estudo apresentado a cima, o n.º 3 do Op. 10, apelidado ‘’Tristesse’’ , é uma obra de caráter
polifónico, apresentando uma linha melódica em legato. Foca-se primordialmente na condução
da linha melódica numa textura polifónica densa (de quatro vozes), trabalhando a capacidade
de fraseado, principalmente dos terceiro, quarto e quinto dedos da mão direita. Este estudo
implica igualmente uma notável capacidade de controle dos estratos intermédios, cuja
intensidade deve estar abaixo da linha melódica mais aguda.
Este excerto do mesmo estudo, que ilustra uma sucessão de sextas/sétimas diminutas numa
intensidade de forte, é demonstrativo da riqueza de acontecimentos musicais que é
paradigmática dos Estudos de Chopin, devido ao contraste com a simplicidade e sublimidade da
linha melódica inicial, como também revela , por extensão, um sentido de sonoridade
inesperada que é reiterado pelas sonoridades diminutas, que transformam sequencialmente a
tonalidade segundo uma lógica cromática.
Segue-se outro exemplo:

O n.º11 do Op.25, encarna o vetor da sonoridade inesperada referido anteriormente, como é


possível observar logo no primeiro sistema: o tema é apresentado inicialmente numa
sonoridade de piano tenuto, repetindo-se esta apresentação sob a forma de choral na mesma
intensidade; sendo que, logo no quinto compasso, é apresentado o tema em variação, estando
no modo menor, verificando-se um abrupto acréscimo da velocidade e a introdução de uma
sonoridade explosiva de forte.

O nono e o décimo compasso, por sua vez, evidenciam o recuso à variação do tema
apresentado na mão esquerda, o qual, por sua vez, já incorpora mudanças rítmicas face ao tema
apresentado inicialmente. Realça-se igualmente a irregularidade rítmica do tema da mão direita
face à métrica da célula da sextina e relativamente à do próprio compasso. Contudo, a
problemática neste segmento centra-se na passagem do polegar na ligação entre registos, a qual
é abordada com sensibilidade composicional, como é possível inferir através da riqueza
polifónica enunciada.
Com efeito, os Estudos de Chopin configuram um ponto de viragem relevante na maneira de
conceber o Estudo.
O Estudo em Liszt

Liszt dedicou-se igualmente à composição deste género, escrevendo os estudos Paganini,


Transcendentes, e Estudos de Concerto. Em todos estes grupo a técnica pianística é levada ao
limite, introduzindo-se um grande virtuosismo com o intuito de não só explorar as capacidades
do intérprete, como também de testar as capacidades sonoras que era possível com a invenção
da chapa singular de ferro fundido11.
Os Estudos Transcendentes constituem um exemplo de música programática, ao possuirem
títulos que aludem a contextos extra-musicais, como Mazeppa (que alude ao poema de Lord
Byron) e Wilde Jagd (Caça Selvagem). Sendo obras desafiantes, colocam o efeito produzido pelo
virtuosismo em primeiro plano. Por sua vez, os Estudos Paganini são uma reinterpretação dos
Caprichos de Paganini, aproveitando os seus temas e desenvolvendo-os com o virtuosismo e a
monumentalidade técnica característica de Liszt.
3 Estudos de Concerto sugerem pela primeira vez o Estudo como obra de concerto,
ultrapassando a sua condição de peça tecnicista. Também são designados por Caprichos
Poéticos. Os últimos dois estudos de Liszt (2 Estudos de Concerto: Gnomenreigen e
Waldesrauschen), assumem mais claramente o seu estatuto de peça de concerto, ao misturarem
demasiados elementos técnicos para serem considerados estudos.12
Este virtuosismo pode ser verificado nos seguintes excertos:

Figura 1: Waldesrauschen

Figura 2: Estudo ''La Campanella''

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