Você está na página 1de 18
" New York, Columbia University Press, 2003 * A abertura a0 outro como aio de ser da metodologia omparatista io & certa frea, como comprova o tex- 19 de Pierre Brunel e Yves Precis de Linérarure Comparée (Paris, PUR. 1988). Spivak redimensiona 4 questio dando-lhe uma ‘oldura mis abrangente, do onto de vista filosifica € politico Alteridade planetdria: a reinvengao da literatura comparada Rita Terezinna Schmidt Universidade Federal do Rio Grande do Sul Communication with the other can be transcendent only as a dangerous life, a fine risk 10 be run. Emmanuel Levinas, Otherwise than being, A literatura comparada esté morta. A literatura comparada ainda est por vir. E jogando com o paradoxo gerado na relagdo entre essas afirmagdes axiomiticas que Gayatri Spivak em seu Death of a Discipline’ desenvol- ve uma reflexdo retrospectiva e prospectiva da Literatura Comparada. Se, por um lado, Spivack interpela o(a) leitor(a) a ler seu livro como o tiltimo sopro de uma disciplina agonizante segundo os pardmetros de uma tradiga0 ccuja genealogia se construiu por afiliagdes intelectuais no eixo EuropalEs- tados Unidos e que fomentou o colonialismo de linguas nacionais de pertencimento europeu, por outro, projeta a preméncia de seu futuro como uma nova literatura comparada, comprometida com a humanizago do ensino via o treinamento da imaginagao em diregio a outridade.? Ao afir- ‘mar a capacidade heuristica pressuposta no comparatismo literirio, Spivak confere a esse um estatuto pedagégico, com vistas ao aprendizado ¢ a interpretago da lingua do outro, um posicionamento que deriva sua 114 Revista Bras ira de Literatura Compara, n. 7, 2005, pertinéncia da compreensio humanista do valor das linguas e da compe- téncia lingiistica e que se coloca claramente na contramdo da redugo dessa lingua a mero instrumento de trabalho na transformagdo do outro em objeto de conhecimento, pratica observada em virias disciplinas das Cién- cias Sociais ¢ Humanas. Apresentado inicialmente no prestigiado Ciclo de Conferéncias da Biblioteca René Welleck, promovido anualmente pelo Instituto de Teoria Critica da Universidade da California em maio de 2000, 0 contetido de Death of a Discipline cobre um espectro amplo de questdes, desde ques- tes gerais como o papel do ensino superior, a importincia central das Hu- manidades no mundo da contemporaneidade, a necessidade de se desen- volver competéncias lingiisticas¢ literdrias, inclusive sob o ponto de vista de uma pritica de tradugZo cultural’ que resiste ao apagamento e & apro- priagao pelos poderes dominantes, a questdes mais pontuais, tais como as transformagdes do comparatismo literério, sua evolugdo no contexto norte- americano e seu diferencial critico com relagdo aos estudos culturais € 1p6s-coloniais, os investimentos no conceito de fronteiras — territoriais, demogrificas e virtuais — no cenério globalizado e a necessidade de ques- tionar 0 culturalismo acritico presente na formulagio de coletividades sin- tomiticas produzidas no ambito dos produtores ¢ consumidores daqueles estudos. Evidentemente que Spivak nao postula simplesmente uma refor- ma ou revitalizagao da Jrea nos termos que recorrem com fre contexto norte-americano desde os anos 60, que sao a interdisciplinaridade € a abertura da literatura comparada para objetos nio definidos convenci- onalmente como literdrios.* Reivindica sim, sua reconfiguragao, tendo em vista a potencialidade de um campo de conhecimento no qual o literério constitui 0 ponto de articulagao com a imaginacao e a invengao de uma coletividade humana ainda por vir, nao redutivel a coletividade hegeménica projetada pelos processos de globalizagao ¢ de seu sistema de trocas € para muito além da imaginada comunidade hibrida encenada no Ambito do intelectual migrante. Desse ponto de vista, Spivak desvia propositadamente dos debates em torno de conceitos operatérios ¢ procedimentos metodolégicos que assegurariam uma suposta identidade & literatura com- parada, tépica de longos debates e contendas no contexto brasileiro, para se ater ao que concebe como a misao intelectual da disciplina, alicergada ‘no principio da alteridade nao derivativa e imedutivel e na concepgao do trabalho da leitura e da imaginago como meio de instrugao e de iniciagaio » Sobre o concito de trada- glo cultural, ver sew “Translation as Culture", Parallax, vol. 6, 0. 2000, 13°24 “Na visto de Spivack, essa ‘questo nlo fi devidamen- te examinada pelo relatrio Bembeimer, tal como & cha ‘ada a coletines edit por (Charles Bernheimer int lads Comparative Litera ture in the Age of Multi- ceularatin (Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1995), » Cabe refrir ao texto cis sco de Henry H. H. Remak, Publicado em 1961, "Com parative Literature: is defi- nition end function”, In Comperative Lierature method and function (Southern Illinois Press, 1961), * Refirosme a0 seu Enire nos: ensaios sobre a ‘alteridade (Petopolis, Vor 255, 1997) € a0 Bicae inf ito: dilogos com Philippe Nemo (Lisboa, Baigdes 70, 1988), Alteridade planetiria: a reinvengio da literatura compatada 115 0 performative das culturas. A partir desses fundamentos, a literatura comparada pode efetivar a travessia ndo somente da fronteira resistente norte/sul que divide o planeta em dois hemisférios e dois mundos, mas tam- bém de outras fronteiras ~ raciais, de classe e de género ~ de modo a intervir nos modos de produga0 ¢ circulagio de imaginatios locais/ globais que impossibilitam aos povos periféricos/sujeitos subaltemos (incluindo os assim constituidos como margens no proprio centro — as mulheres, por exemplo) as condigdes de acesso a universalidade ¢ aos direitos humanos, Seria essa tarefa uma impossibilidade? Impossivel, mas necessétia, ai mes- mo reside o posicionamento de Spivak 20 propor uma mudanga epistémica radical a ser imaginada por um comparatismo responsével. Nos termos em que essa mudanga € reivindicada, identifica-se a forte influéncia do filésofo Emmanuel Levinas, para quem a ética de uma responsabilidade performativa reside num movimento mais fundamental do que a liberdade, pois remete & relagdo como exterior infinito que &0 outro, uma exterioridade impossivel de ser integrada a0 mesmo. Essa responsabilidade ¢ retomiada via Derrida, na referéncia ao seu Politics of friendship (...)/ am not advocating the politicization of the discipline. I am advocating a depoliticization of the politics of hostility toward a politics of friendship to come, and thinking of the role of Comparative Literature in such a responsible effort'(p.13). Dificil sendo impossivel dar conta, com a justiga devida, da comple- xidade das questdes ¢, particularmente, da forma come sdo encaminhadas em Death of a Discipline, nos limites desse texto, Primeiro porque a legibilidade do discurso critico de Spivak nao é dada, mas implica um pro- cesso de adugao e de reconhecimento de estratégias retéricas através das quais 0 estilo processa diferentes afiliagdes tedricas, costura varios lugares enunciativos e se desloca por entre diversas disciplinas a partir de um ponto de observacao especifico que é rigorosamente dialégico e desconstrutivo. Suas referéncias so, nfo raro, marcadas pela opacidade pés-estruturalis- ta, e seus argumentos desprovidos do carder descritivo/explicative associa- doa verificabilidade, o que provoca lacunas ou vazios cujo efeito éo de um pensamento que se movimenta aos saltos e que, por isso mesmo, exige um exercicio de abstragio metacritica e de comparagao interpretativa de parte do(a) leitor(a). E em segundo iugar, porque nao tenho a pretensdo (ou ve~ lade) € nem esse € 0 objetivo, aqui, de retomar o leque de questées abordadas por Spivak e discuti-lo exaustivamente, do ponto de vista tedri- 116 Revista Brasileta de Literatura Compara, n.7, 2008 co-critico e metodolégico. Interessa, tio somente, pontuar alguns momen- tos de seu texto, sublinhando aspectos relevantes, seja em termos de refle- ‘xdes com relagio a0 contexto norte-americano, sobre o qual tem circulado, entre nds, nogdes generalistas ou parciais e que, por essa raz, sfo refle- x6es que contribuem tanto para o nosso conhecimento desse outro quanto para as discusses e avaliagdes sobre o que é efetivamente inovador no ‘modo comparatista brasileiro, seja para tecer consideragdes sobre o ponto substantivo de sua proposta sobre 0 papel do novo comparatismo a luz da pritica critica que constitu o terceiro ¢ tiltimo capitulo de Death of a dis- cipline. Como desdobramento ~ ou efeito transferencial da minha leitura da proposta de Spivak ~ tratarei de romance de Azar Nafisi, Lendo Lolita em Teer: uma meméria nos livros, publicado nos Estados Unidos, em 2003. Por entender que a referida narrativa articula uma curiosa cumplici dade com 0 texto de Spivak, tento mostrar como nogdes norteadoras de sua proposta como a imaginagio, 0 outro, o género, a identidade e a coleti- vvidade so trabalhadas de forma a constelar uma figura aporética em tomo dda qual a textualidade engendra suas (im)possibiliddes. Quem se declina como ‘humano’ do ‘humanismo’? A consiatagio de que a literatura comparada busca obsessivamente uma renovagaio desde os anos 80, tendo que competir, nesse periodo, com a forte insttucionalizagaio dos estudos culturais, étnicos e pés-coloniais, sem dizer dos influentes estudos de drea, estabelecidos apés o fim da II Guerra como forma de assegurar 0 poder norte-americano durante a guerra fra, ica do que observa serem as leva Spivak a desenvolver uma leitura pol distingdes das priticas desses estudos, num quadro institucional marcado por confluéncias histéricas de forcas produtivas © poderes hegeménicos ue sustentaram velhos imperialismos e hoje viabilizam 0 novo império.? ‘Assim, lembra a “origem” do comparatismo norte-americano, com a che- gada de intelectuais em fuga de regimes totalitirios europeus, tais como Erich Auerbach, Leo Spitzer, René Welleck, Renato Poggioli ¢ Cliudio Guillén, para afirmar 0 quanto 0 seu desenvolvimento foi condicionado pela sombra de uma hospitalidade inter-europeia, ou, nas palavras de Mary Louise Pratt.de como se tomou o brago continentalista do estudo literdrio no ugar chamado Ocidente,’ o que responderia ao questionamento de Earl Miner 0 termo impéri, tal come uilizado por Spivak, 30 dz fespeito exclusivamente a constituigio é hegemonia politica e eeondmiea de uma ago sobre as demaise, mui te menos, i relagio governo estado e ocupagao, numa tla ‘0 desdobrada em cos © po bres, ccidente « orient, mas 8 ue sistema hierarquicamente tsteuturado do capitalisme lotal * Em “Comparative literature asa cultural practice Profession 86, Modern Lan ievage Astocation of Amr 3. 1986, ” Conforme seu Comparative poetics: an intereultural essay ‘on theories of literature (New Sersey, Princeton University Press): Cumpre assialar oat aque se vata de um texto maea- ‘ho pela passagem de fronteras Tingulstieas, iss, cas histrics, cutie Fos tad 2ido para © portugues como Postica comparada (Trad. de Angela Gasparin. Brasilia, Bi tora UND, 1996), Ver, masse senda, 0 texto de ‘Humphrey Tonkin, “Specular humanism the role of foreign Languages in general edcation’ Profession 86 PMILA., 0 ex to de Mary Louise Prat, Presidential Address 2008: Languages, betes, waves, and webs engaging the presen. PLA, 200 Conforme Prat, hit um movie no Congres. So Novte-Antericano para as- Sar 0 Foreign Language for National Setrity Act, qb de- Tia quis a inguas de ler se para seguranga nacional © exereria viglincia sobre 0 sino de lingua esangeira no as " Vista como subjtivsta € reducionaista, ess pola con ela as diferengas, apisionan- das num essencialismo que, fgiemement, bseurece mais

Você também pode gostar