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BORIS KOSSOY

Realidades e Ficções
na Trama Fotogrâfica

Ateliê Editorial
Estética, Memória e Ideologia Fotográficas.

Desde seu surgimento e ao longo de sua trqetóría,


até os nossos dias, a fotografia tem sido aceita e utilizada
como provâ definitiva, "testemunho da verdade" do fato
ou dos fatos. Graças a sua naturezâ fisicoquímica - e hoje
eletrônica - de registrar aspectos (selecionados) do real, tal
como estes de fato se parecem, a fotografia ganhou eleva-
do status de credibilidade . Se, por um lado, ela tem valor
incontestável por proporcionar continuamente a todos, em
todo o mundo, fragmentos visuais que informam das
múltiplas atividades do homem e de sua ação sobre os
outros homens e sobre a Natureza, por outro, ela sempre
se prestou e sempre se prestará aos mais diferentes e inte-
resseiros usos dirigidos.

* Têxto adaptado da conferência "Estética, Memória e Ideologia Fotográfi-


cas: Exemplos de Desinformação Histórica no Brasil", apresentada pelo
Autor no Colóquio sobre a Investigação da Fotografia Latino-americana,
por ocasião do evento internacional FotoFest' 92 (Houston, Texas, mar-
ço de 1992) e, posteriormente publicada em Aceruo, Reuìsta do Arquiuo
Nacìonal, Rio de Janeiro, vol. 6, n.712, jan.ldez. 1993, pp. 13-24.
Boris Kossoy Realidades e Ficções na Trama Fotognífca

As diferentes ideologias, onde quer que atuem, sem- são decodificadas, posto que, não raro, se encontram
pre tiveram na imagem fotográfica um poderoso instru- além da própria imagem.
mento par:_ aveiculação das idéias e da conseqüente forma- O que foi colocado acima também é válido para a
ção e manipulação da opinião pública, particularmente, a própria história da fotografia, que, de sua parte, náo pode
partir do momento em que os avanços tecnológicos da in- mais prosseguir enclausurada em seus modelos clássicos e
dústria grâfi.ca possibilitaram a multiplicação massiva de sim, buscar elementos consistentes paraa compreensão de
imagens através dos meios de informação e divulgaçáo. seu objeto de estudo. É surpreendente a raridade de dis-
E tal manipulação tem sido possível justamente em cussões teóricas acersÌ de aspectos conceituais e metodo-
função da mencionada credibilidade que as imagens têm lógicos, bem como a possibilidade de novas abordagens de
junto à massa, para quem, seus conteúdos são aceitos e as- análise dos temas específicos nesta área1.
similados como a expressão da verdade. Comprova isso a Quaisquer que sejam os conteúdos das imagens de-
larga utilização da fotografia para a veiculação da propa- vemos considerá-las sempre como fontes históricas de
ganda política, dos preconceitos raciais e religiosos> entre abrangência multidisciplinar. Fontes de inform ação deci-
outros usos dirigidos. sivas para seu respectivo emprego nas diferentes vertentes
Pesquisadores dedicados aos diferentes gêneros de de investigaçáo histórica, além, obviamente, da própria
história, apesar de reconhecerem ultimamente na icono- história da fotografia. As imagens fotográficas, entretan-
grafia uma possibilidade interessante para reconstitui- to, não se esgotam em si mesmas, pelo contrário, elas são
^
ção histórica, por vezes se equivocam no emprego das âpenas o ponto de partida, a pista pâra tentarmos desven-
imagens fotogrâltcas em suas investigações. Provavel- dar o passado. Elas nos mostram um fragmento seleciona-
mente, por não alcançarem as peculiaridades estéticas do da aparência das coisas, das pessoas, dos fatos, tal como
desta forma de expressão, que difere na sua essência das foram (estéticaiideologicamente) congelados num dado
demais representaçóes gráficas e pictóricas. Equívocos momento de sua existência/ocorrência.
ocorrem pela desinformação conceitual quanto aos fun-
damentos que regem a expressão fotográfica, o que os
leva a estacionarem apenas no plano iconográfico, sem l. Tais aspectos essenciais, de amplitude multidisciplinar, ainda aguardam
perceberem a ambigüidade das informaçóes contidas nas por um debate abrangente que vise, inclusive, questionar os estreitos e
estéreis limites por onde tem trilhado a pesquisa nesta área do conhe-
representaçóes fotográficas. Resulta de tal desconheci-
cimento. O assunto íoi tratado mais amplamente por este Autor em .Fo-
mento, ou despreparo, o emprego das imagens do pas- tografa e Histórìa, São Paulo, Ática, 1989 (Série Princípios, n" 1/6).
sado apenas como "ilustraçóes" dos textos: o potencial Ver, em especial, o capítulo: "História da Fotografia: Metodologias da
do documento náo é explorado, suas informações não Abordagem".

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Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fotogrrífca

Assim como as demais fontes de informação históri- gi cas mater íalizadas em tes temunhos fo to gráfi cos. Decifrar
cas, as fotografias não podem ser aceitas imediatamente a realidade interior das representaçóes fotográficas, seus sig-
como espelhos fiéis dos fatos. Assim como os demais do- nificados ocultos, suas tramas, realidades e ficções, as fina-
cumentos elas são plenas de ambigüidades, portadoras de lidades para as quais foram produzidas é a tarefa funda-
significados náo explícitos e de omissões pensadas, calcu- mental a ser empreendida.
ladas, que aguardam pela competente decifraçáo. Seu po-
tencial informativo poderá ser alcançado na medidâ em que
esses fragmentos forem contextualizados na trama históri-
ca em seus múltiplos desdobramenros (sociais, políticos,
econômicos, religiosos, artísticos, culturais enfim) que cir-
cunscreveu no tempo e no espaço o ato da tomada do
registro. Caso contrário, essas imagens permanecerão es-
tagnadas em seu silêncio: fragmentos desconectados da me-
mória, meras ilustraçóes "artísticas" do passado.
A fotografia tem uma realidade própria que não cor-
responde necessariamente à realidade que envolveu o as-
sunto, objeto do registro, no contexto da vida passada. Tia-
ta-se da realidade do documento, da represenração: uma
segunda realidade, construída, codificada, sedutora em sua
montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, ino-
cente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e es-
paço representado, pista decisiva para desvendarmos o
passado.
Contudo, a imagem fotogrâfica é fixa, congelada na
sua condição documental. Não raro nos defrontamos com
imagens que a história oficial, a imprensa, ou grupos in-
teressados se encarregaram de atribuir um determinado sig-
nificado com o propósito de criarem realidades e verda-
des. Cabe aos historiadores e especialistas no estudo das
imagens, atarefa de desmontagem de consrruções ideoló-

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A Imagem Fotogúrfrca: Sua Thama, Suas
Realidades

OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS INCORPORADOS A


IMAGEM EoTocRÁrrce

Retomo aqui, ainda que sucintamente, conceitos


anteriormente estudadost, denrre os quais a formulação
que busca identificar os componentes estruturais de uma
fotografia, isto é, seus elementos constitutiuos e stJas coor-
denadas de situaçã0. Tiatam-se dos componenres que a
tornam possível, isto é, materialmente existente no mun-
do: o assunto q:ue é objeto de registro, a tecnologia que

1. Minha preocupação com o desenvolvimento de questões teóricas que bus-


cassem uma compreensáo da fotografia sob uma perspectiva sociocultural
teve seu início em meados da década de 1970. Uma primeira publicação
deste Autor sobre o tema, onde tais questões ainda se achavam, entre-
tanto, num estágio embrionário, surgiu com A Fotografa como Fonte Hìs-
tórica: Introdução à Pesquisa e Interpretaçãl das Imagens do Passado, S-ao
Paulo, Secretaria da Indústria, Comércio, Ciência e tcnologia, 1980. O
trabalho teve prosseguimenro nos anos que se seguiram ampliando-se em
sua proposta; muitos dos conceitos iniciais foram aprofundados, outros
reformulados, dando origem ao livro Fotografa e História.
Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tlama Fotográfca

viabiliza tecnicamente o registro e o fotógrafo, o autor durante o processo em que é criada, seja após a sua mate-
quem, motivado por razões de ordem pessoal e/ou pro- rialrzaçáo, conforme o destino ou uso que a aguarda, a
fissional, a idealíza e elabora através de um complexo representação está envolvida por uma verdadeira trama.
processo cultural/estético/técnico, processo este que con- Para compreendê-la deveríamos desmontá-la em seus r/r-
figura a expressão fotográfica. Tal açáo ocorre num pre- mentls constitutiuos. É o que faremos no texto que se se-
ciso lugar, numa determinada época, isto é, toda e qual- gue, complementado pelo diagrama do Quadrol.
quer fotografia tem sua gênese num específico espaço e Na imagem fo to gráfi ca, encontram-se, indissociavel-
tempo, suas coordenadas de situaçã0. Como foi explicitado mente incorporados, componentes de ordem material que
através da formulação: sáo os recursos técnicos, ópticos, químicos ou eletrônicos,
indispensáveis para a materializaçáo da fotografia e, os de
Assunto/Fo tó grafo I Tecnolo gia = Foto grafia ordem imaterial, que são os mentais e os culturais. Estes
elementos constitutivos produto final últimos se sobrepõem hierarquicamente aos primeiros e,
Espaço e Têmpo com eles, se articulam na mente e nas açóes do fotógrafo
coordenadas de situação ao longo de um complexo prlcesso de criaçã0.
Seja em funçáo de um desejo individual de expres-
O espaço e o tempo implícito no documento foto- são de seu autor, seja de comissionamentos específicos que
gráfico subentendem sempre um contexto histórico espe- visam uma determinada aplicação (científrca, comercial,
cífico em seus desdobramentos sociais, econômicos, polí- cducacional, policial, jornalística etc.) existe sempre uma
ticos, culturais etc. A fotografia resulta de uma sucessão motiuação interior ou exterior, pessoal ou profissional, para
de fatos fotográficos que têm seu desenrolar no interior ',t criação de uma fotografia e aí reside a primeira opção
daquele contexto. Ela registra, por outro lado, um micro- clo fotógrafo, quando este seleciona o ãssunto em função de
aspecto do mesmo contexto. uma determínada fnalidade/ìntencionalidade. Esta motiva-
çíro influirá decisivamente na concepção e construção da
irnagem final.
o PROCESSO DE CRrAÇÁO DO FOTÓGRAFO O assunto, tal como se acha representado na imagem
íìrtográfica, resulta de uma sucessão de escolhas; é fruto de
O processo de criação do fotógrafo engloba a aven- u rÌr somatório de seleções de diferentes naturezas - ideali-

tura estética, cultural e técnica que irá originar a repre- zrrclas e conduzidas pelo fotógrafo - seleçóes essas que ocor-
sentação fotográfica, tornar material a imagem fugaz das rc:rrr mais ou menos concomitantemente e que interagem
coisas do mundo, torná-la, enfim um documento. Seja c'rrtre si, determinando o caráter da representaçáo. Tâis op-

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Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fotográfca

çóes sejam isoladamente, sejam no seu conjunto, obede- pârtes -, realizadas durante o processamento no labo-
cem à concepção e conformama construção da imagem. ratório com o objetivo de atenuarem ou dramatizarem
Poderíamos destacar as mais habituais que, em geral, a representação.
seconfundem com a própria prátrica, isto é, sáo etapas ine-
rentes ao fazer fotográfico: Em função do exposto cabem algumas consideraçóes
de ordem conceitual que se referem à materialização do-
a. seleção do próprio assunto; cumental da imagem fotográfica. A imagem é a própria
b. seleçáo de equipamentos (câmera, objetivas, filtros etc.) cristalização da cena na bidimensão da superfïcie fotossen-
e materiais fotossensíveis (natureza e tipo de filmes); sível. A imagem fotográfica contém em si o registro de um
r. seleção do "quadro", ou do enquadramento do assun- dado fragmento selecionado do real: o ítssunto (recorte es-
to, construção criativa esta denominada geralmente de pacial) congelado num determinado momento de sua
composição; trata-se da organização visual dos elemen- ocorrência (interrupção temporal). Em toda fotografia há
tos constantes do assunto no visor da câmera com o um recorte espacial e umâ interrupçã.0 temporal, fato que
propósito de se alcança5 segundo determinadas condi- ocorre no instante (ato) do registro. Decorre dai a relaçáo
ções de iluminação, um certo efeito plástico na imagem fagmentação/conge lamentz, vm dos alicerces sobre o qual
final; se ergue o sistema de representação fotogrâfrca:
d. seleçáo do momento; implica a decisão de pressionar o
obturador num determinado instante visando a obten- Fragmentaçáo: assunto selecionado do real (recorte espacial)
çáo de um resultado determinado/planejado; a experiên- Congelamento: paralisação da cena (interrupção temporal)
cia (apoiada na indicação do fotômetro) estabelecerá qual
a relação velocidade/abertura do diafragma a seÍ empre- A imagem fotográfica, segundo Dubois, é criada por
gada para que se logre a exposição correta do filme à inteiro, de um único golpe. lJm corte sobre o "fio da
luz que, naquele preciso instante, ilumina o assunto; duração e no continuum da extensão". "Têmporalmente a
r. seleção de materiais e produtos necessários para o imagem-ato fotográfico interrompe, detém, fixa, imobili-
processamento do filme negativo ou positivo além das za ... desprende da duração captando um só instante. Es-
demais operações do laboratório fotográfico incluindo- pacialmente, da mesma maneira, fraciona, elege, isola, ...
se cópias ou ampliaçóes; uma porção da extensão"2.
/ seleçáo de possibilidades destinadas a produzir deter-
minada "atmosfera" na imagem final; tratam-se das in- 2. Philippe Dubois, El Acto Fotográfco, de la Representación a la Recepción,
terferências diretas na imagem - ou em alguma de suas Barcelona, Buenos Aires, México, Paidós, 1986, p. 141.

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Borìs Kossoy Realìdades e Ficções na Trama Fotográfica

Na realidade a récnica permire ao fotógrafo articular A FOTOGRAFTA: DOCUMENTO/REPRESENTAÇÁO


a relação fagm entaç ão / c o nge laruento cultural e express iva-
mente - em seu processo de criação - no ato da tomada Em função do que foi colocado consideramos a fo-
da foto: no instante da gravação do registro, isto é, quan- tografia, antes de mais nada, como uma representação a par-
do se dá a materialização documental da imagem fotográ- tir do real. Entretanto, em função da materialidade do re-
fica no espeço e no rempo. gistro, no qual se tem gravado na superfïcie fotossensível
O fotógrafo, pois, em função de seu repenório pes- o vestígio/aparência de algo que se passou na realidade con-
soal e de seus filtros individuais e, apoiado nos recursos creta, em dado espaço e tempo, nós a tomamos, também,
oferecidos pela tecnologia, produz a imagem a partir de como um documento do real, uma fonte históricaa.
um assunto determinado. A interpretação final, entretan- O documento fotográfico, enrreranro, não pode ser
to, ainda sofrerá interferências ao longo do processamenro compreendido independentemente do processo de constru-
e elaboração final da imagem, seja no laboratório quími- ção da representaçã, em que se originou. Pelo diagrama do
co convencional, seja no eletrônico nas suas diversificadas Quadro 1 vemos como a materialização da imagem ocor-
formas. A imagem fotográfica é, enfim, uma representação re enquanto etapa final e produto do processo de criação
resultante do processo de crìação/construção do fotógrafo. elaborado pelo fotógrafo. Temos na imagem fotográfica um
As possibilidades de o fotógrafo interferir na imagem documento criado, construído, razáo por que a rclaçáo do-
- e portanto na configuração própria do assunto no con- cumento/representação é indissociável.
texto da realidade - existem desde a invenção da fotogra- Nessa linha pode-se perceber em que medida o re-
fia. Dramatizando ou valorizando esteticamente os cená- gistro ou o testemunho fotográfico obtido esrá definitiva-
rios, deformando a aparência de seus retratados, alterando mente amalgamado ao processo de criação que lhe deu ori-
o realismo físico da natvïeza e das coisas, omitindo ou in- gem: registro/criação ou testemunho/criação. Um binômio
troduzindo detalhes, o fotógrafo sempre manipulou seus indiuisíuel, constatação essa que já foí tratada em outro
temas de alguma forma (...) Entre o assunro e sua imagem lugar5.
materializada ocorreu uma sucessão de interferências ao
nível da expressão que alteraram a informação primeira3.
4. Trata-se de uma fonte primordial na medida em que "contém uma in-
formação de testemunha direta dos fatos ... [...] forma-se no momenro
exato da produção do fato ou ato", cf. José Honório Rodrigues, I Per-
quisa Histórica no Brasil, 3. ed,, Sao Paulo, Companhia Editora Nacio-
3. Este tema é discutido em detalhe em Fotografa e História, op.cit., pp.7l naÌ/INL,1978, p.142.
e ss. 5. Fotografa e História, pp.33 e 85

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Quadro I Realidades e Ficções na Thama Fotográfica

o PROCESSO DE CRIAÇÁO DO FOTOGRAFO


É dia.tte de td. ambigüidade fundamental qúe nos si-
PROCESSO DE CONSTRUÇÁO DA REPRESENTACÁO
tuamos quando analisamos as fontes fotográficas, tanto as
produzidas no passado como as contemporâneas.

DUALIDADE ONTOLÓGICA DOS CONTEUDOS


FOTOGRÁFICOS

A imagem fotográfr,ca fornece provas, indícios, fun-


ciona sempre como documento iconográfico acerca de uma
dada realidade. Tiata-se de um resremunho que conrém
evidências sobre algo. Retomando criticamente os concei-
tos de índice e ícone em relaçáo à fotografia, remos:

/. índice: prova, constâtação documental que o objeto, o


dssunto representado, tangível ou intangível, de fato
existiu/ocorreu; qualquer que seja o conteúdo de uma
fotografia nele teremos sempre o rastro indicial (mar-
ca luminosa deixada pelo referente na chapa fotográ-
fica) mesmo que esse referente tenha sido artifcialmente
produzido;
2. ícone: comprovaçáo documental da aparência do assunto
concepção (inuenção) e e da semelhança que o mesmo tem com a imagem fixa-
construção (cubural/atétìcaltécnìca) da ìmagem
[opções e ações conduzidas pelo l]o't-ócÌÌArìo:
da na chapa; isto em funçáo da característica peculiar
\ /,
\ --'-.o-pi.xo do registro fotográfico cusa tecnologia possibilita a ob-
\
\_
luurPrçÀw ie rçrçlucsl
articulado uç seleçoes]
/ , -
tençáo de um produto iconográfico com elevado grau
r---L----l de semelhança com o referente que lhe deu origem.
I materialização doro-ental I
u, tlsl,ÁÇO e no'fF,MPO Entretanto o índice e o ícone são inerentes ao regis-
IMAGEM FOlOCRÁTICA tro fotográfico e, como tal, não podem ser compreendi-
AssUN'l'o regìttrado
(repraentação)

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Borìs Kossoy Realidades e Ficções na Trarna Fotográfca

dos isoladamente, isto é, desvinculados do processo de cria- documental elaborado cultural, técnica e esteticarnente,
ção do fotógrafo (quando se deu a construção da repre- portanto ideologicam ente: regisno/uiaçã0. ïara-se, como
sentação). Vimos que é o fotógrafo quem, a partir do vimos, de um binômio indiuisíuelamalgamado na imagem
mundo visível, elabora expressivamente o testemunho, o fotográfica: dualidade ontológica que convive perenemenre
documento. Assim, a indicialidade iconográfica que dá nos conteúdos fotográficos.
corpo à evidência e conforma o registro fotográfico náo
independe do ato criativo conduzido pelo fotógrafo du-
rante a produção da representaçáo, ao contrário, é a sua
Quadro 2
concretização codificada. O índice iconográfico compro-
va a ocorrência/aparência do referenre que o fotógrafo pre- IMAGEM FOTOGRÁFICA
tendeu perpetuar. oocur"r ENro/REPRESENTAÇÁO
Isto é tanto mais verdadeiro na medida em que mais
nos acercamos do amplo espectro de imagens produzidas
(criadas) pelos profissionais da fotografia. É obvio que não
deixamos de considerar nesse percurso teórico as surpresas
que advêm da paralisaçáo forcgráfrca da açáo, do gesto e
que não podem ser previstas nem controladas precisamen-
te; mas que podem, no entanto, ser exploradas criativamen-
te, abrindo espaço paÍa noyas manipulaçóes estéticas/ideo-
lógicas. Um campo ftrtil que sempre se ofereceu (ou mais REPRESENTAçÁO DOCUMENTO

exatamente, a partir do progresso da tecnologia fotográfica [a partir do real] [do real]


que viabilizou industrialmente o surgimento de materiais
sensíveis cada vez mais rápidos e melhores sistemas ópticos),
em função da relação fagmentação/congelamento, condiçáo
fundante da fotografia que inaugurou uma nova visualida-
de, uma nova forma de entendimento do mundo. fProcesso del lmaterìalização documentall
cRr,{ÇÁo/coNsrRUÇÁo REGISTRO
Apesar de sua vinculação documental com o referen-
[elaborado pelo fotógrafo] [obtido através de
te, o testemunho que se vê gravado na fotografia se acha um sistema de
fundido ao processo de criação do fotógrafo. O dado do real, representação visual]
registrado fotograficamente, corresponde a um produto

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Borìs Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fotográfca

AS REALIDADES DA FOTOGRAFIA é gerada (seria o momento em que o referenre reflete a luz


que nele incide sobre a chapa sensível e a imagem é gra-
Pretende-se, aqui, retomar os conceito s de primeira vada; é o indice fotográfico, provocado por conexáo física,
e segunda realidades, de realidadz exterizr e de realidade ìn- como assinalou Pierce). Findo o aro a imagem obtida já se
terior, noções essas que desde há muito vimos utilizando integra numa outra realidade, a segunda realidade.
e que integram os fundamenros esréricos que propomos A segunda realidade é a realidade do assunto represen-
para a compreensão interna do documento/representaçáo tado, contido nos limites bidimensionais da imagem foto-
fotográfica. A utilizaçáo de tais conceitos será recorrenre gráfica, não importando qual seja o suporte no qual esta
ao longo dos textos que se seguirão. imagem se encontre gravada. O assunto representado é, pois,
A, primeira realidade é o próprio passado. A primeira este fato definitivo que ocorre na dimensão da imagem fo-
realidade é a realidade do assunto em si na dirnensão da tográfica, imutável documento visual da aparência do as-
uida passada; diz respeito, à história parücukr do assunto sunto selecionado no espdço e no ternpo (durante sua primeira
independentemenre da representação posto que anterior e realidade).
posterior a ela, como, também, ao contexto deste assunto A segunda realidade é, a partir do conceito acima, a
no mornento do ato do registro. É também a realidade das realidade fotográfica do documento, referência sempre pre-
ações e técnicas levadas a efeito pelo fotógrafo diante do sente de um passado inacessível. Toda e qualquer fotogra-
tema - fatos estes que ocorrem ao longo do seu processo fia que vemos, seja o artefato fotográfico original obtido
de criação - e que culminam com a gravaçáo da aparência na época em que foi produzido, seja a imagem dele
do assunto sobre um suporte fotossensível e o devido reproduzida sobre outro suporte ou meio (fotográfico,
processamento da imagem, em determi nado espaço e tern- impresso sob diferentes formas, eletrônico etc.), será sem-
po. S-ao estes, fatos fotográficos diretamente conecrados ao pre umâ segunda realidade.
real. O assunto rEresentado configura. o conteúdo explícito
Toda e qualquer imagem fotográfica conrém em si, da imagem fotográfica: a face aparente e externa de uma
oculta e internamente, ume história: é a sua realidade in- micro-história do passado, cristalizada expressivamente. É
terior, abrangente e complexa, invisível fotograficamente esse aspecto visível a realidade exterior da imagem, torna-
e inacessível fisicamente e que se confunde com a primei- da documento. É esta a sva nãtur€za, comum a todas as
ra realidade em que se originou: imagens fotográficas e que se consrirui em sua segunda
A imagem fotográfica é, por um único momenro, realidade.
parte da primeira realidade: o instante de curtíssima dura- A fotografia implica uma transposição de realidades:
ção em que se dá o ato do registro; o instanre, pois, em que é a transposição da realidade visual do assunto selecionado,

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Boris Kossoy Realidadcs e Ficções na Trama Fotográfca

no contexto da vida (primeira realidade), para a realidade Quadro 3


da representação (imagem fotográfi ca: segunda realidade);

mw
REALIDADE EXTERIOR
trata-se pois, também, de uma rransposição de dimensões.
E REALIDADE INTERIOR DAS IMAGENS
A realidade da fotografia não corresponde (necessa-
riamente) a verdade histórica, apenas ao registro expres-
sivo da aparência ... A realidade da fotografia reside nas
múltiplas interpretações, nas diferentes "leituras" que
cada receptor dela faz num dado momenro; rratamos
pois, de uma expressão peculiar que suscita inúmeras in-
terpretações. "
São múltiplas, pois, as realidades da fotografia. (O
fotográfical I t
ESPÂÇO eTEMPO
Quadro 3 nos auxilia a "visualisarmos" esse conjunto de
I
abstrações, particularmente quando remos diante dos olhos
2" realìdade l* l" realìdade
alguma fotografia que nos interessa analisar.) Veremos, a
It
seguir, como a imagem fotográfica dá margem e um pro-
cesso de criação de realidada.
I
+
It +lÌEAI.IDADF. INTEÌÌIoR
- -
,::ï,.;.Ï:1., falém do documento]
o oculto
o aParente

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Mecanismos Internos da Produção e da
Recepção das Imagens: Processos de
Construção de Realidadesx

Investigações teóricas que temos desenvolvido e di-


vulgado em diferentes oportunidades têm sido centradas
na detecção e explicitação das múltiplas realidades que se
acham fluidas na representação fotogrâfica elou que dela
emanam, com o objetivo de trazer alguma \uz para a com-
preensão dos mecanismos internos que regem a produção
e a recepção das imagens.
Thatam-se de mecanismos mentais identificados por
dois processos que poderiam ser sinteticamente resumidos
nas constatações abaixo:

- isto é, a produ-
processo de construção da representaçãz,
ção da obra fotográfica propriamente dita, por parte do
fotógrafo;

* As idéias centrais deste texto foram extraídas da conferência'A Realida-


de Fotográfica na Construção do Imaginário" proferida em 6 de julho de
1993 em Porto Alegre, no contexto do evento Encontros com a Imagem,
promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre e Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul.
Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fotográfca

- Processo de construção da interpretaçã0, isto é, a recepção criador. A representaçáo fotográfica é uma recriação do
da obra fotográfica por parte dos diferentes receptores; mundo ffsico ou imaginado, tangível ou intangível; o as-
suas diferentes leituras em precisos momentos da história. sunto registrado é produto de um elaborado processo de
criação por parte de seu autor.
São esses os processos que encerram, em sua abran- Vimos que o fotógrafo constrói o signo, a represen-
gência, possivelmente, os m€andros da experiência fotogrâ- tação. Nessa construção uma nova realidade é criada.
fica; na tentativa de desmontagem de tais processos visa- Longe de lançarmos dúvidas quanto à existência/ocorrên-
mos contribuir para os fundamentos da estética particular cia do assunto representado, ou mesmo de sua respectiva
da fotografia. Além disso, é a partir desta desmontagem, aparência, devemos considerar que, do objeto à sua repre-
que se pode percebe! em que medida a fotografia, seja em sentaçáo, existe sempre uma transposição de dimensóes r
sua produção, seja em sua recepçáo, sempre dá margem a de realidadel O assunto uma vez representado na imagem
um processo de construção de realidades (Quadro 4). é um nouo real: interpretado e idealizado, em outras pala-
vras, ideologizado. É. Ab"io que estamos diante d. ,r-" torr"
realidade, a da imagem fotográfica, que há muito chamei
A PRODUÇÁO DA IMAGEM de segunda realidade.
Esta diz respeito à realidade fragmentári a do assunto,
A produção da obra fotográfica diz respeito ao con- ao mesmo tempo em que é a realidade da representação
junto dos mecanismos internos do processo de construção enquanto tal. É este elo material de ligação ao passado que
da representaçã0, concebido conforme uma certa intenção, tomamos como referência, como documento de um dado
construído e materializado cultural, estética/ideológica e tema na dimensão da vida, isto é, em sua primeira reali-
tecnicamente, de acordo com a visão particular de mun- dade. E justamente a realidade da representação (veículo
do do fotógrafo. da memória) que será apreciada, guardada ou destruída
Apesar de toda a credibilidade que se atribui à foto- fisicamente, interpretada enfim. A primeira realidade, a do
grafia enquanto "documento fiel" dos fatos, rastro fisico- fato passado em sua ocorrência espacial e temporal, vê-se
químico direto do real etc., devemos admitir que a obra assim, "substituída', tornada signo expressivo, "signo da
fotográfica resulta de um somatório de construções, de presença imaginária de uma ausência definitiva', como for-
montagens. A fotografia se conecta fisicamente ao seu re- mulou Fritz Kemper.
ferente, - e esta é uma condiçáo inerente ao sistema de
representação fotográfica - porém, através de um filtro cul- l. ApudJeanKein, La photographie et l'homrne, sociologie et psycologie de la
tural, estético e técnico, articulado no imaginário de seu photographie, Paris, Casterman, 197L, p. 127.

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Boris Kossoy Realidades e Ficções na TVama Fotográfca

A RECEPÇÁO DA IMAGEM duto ou serviço; ou a formar conceitos ou reafirma r pré-


conceitos que temos sobre determinado assunro; outras
A recepção da imagem subentende os mecanismos despertam fantasias e desejos.
internos do processo de consnução da interpretação, proces- Por definiçáo, as imagens visuais sempre propiciam
so esse que se funda na evidência fotográfica e que é ela- diferentes leituras para os diferentes receprores que as
borado no imaginário dos rec€prores, em conformidade apreciam ou que dela se utilizam enquanro objetos de es-
com seus repertórios pessoais culturais, seus conhecimen- tudo. Por tal razáo elas se presram a adaptações e inrer-
tos, suas concepções ideológicas/esréricas, suas convicções pretações "convenientes" por parte desses mesmos recep-
morais, éticas, religiosas, seus interesses econômicos, pro- tores, sejam os que desconhecem o momento histórico
fissionais, seus mitos. retratado na imagem, sejam aqueles engajados a determi-
As imagens fotográficas, por sua naü),rezepolissêmica, nados modelos ideológicos, que buscam desvendar signi-
permitem sempre uma leitura plural, dependendo de quem ficados e "adequá-los" conforme seus valores individuais,
as apreciam. Esres, jâtrazem embutido no espírito, suas pró- seus comprometimentos, suas posturas aprioristicamente
prias imagens mentais preconcebidas acerca de determinados estabelecidas em relação a certos remas ou realidades, em
assuntos (os referentes). Estas imagens mentais funcionam função de suas imagens mentais.A imagem fotográfica, com
como filtros: ideológicos, culturais, morais, éticos etc. Tâis toda a sua carga de "realismo", não corresponde necessa-
filtros, todos nós os temos, sendo que para cada receptor, indi- riamente à verdade histórica, apenas ao registro (expressi-
vidualmente, os mencionados componentes interagem en- vo) da aparência... fonte, pois, de ambigüidades.
tre si, atuando com maior ou menor intensidade. A fotografia estabelece em nossa memória um arqui-
Sabemos que muito do que rege o comporramenro vo visual. de referência insubstituível para o conhecimento
de cada um diante das imagens - em rermos de percep- do mundo. Essas imagens, entretanro, uma vez assimiladas
ção, emoção, rejeição etc., quanto a um ou outro tema em nossas mentes, deixam de ser estáticas; tornam-se di-
(po,ro, raça, país...) esrá definitivamente vinculado ao seu
- nâmicas e fluidas e mesclam-se ao que somos, pensamos e
repertório cultural particular. Dependendo, porém, dos es- fazemos. Nosso imaginário reage diante das imagens visuais
tímulos que determinadas imagens fotográficas causam em de acordo com nossas concepções de vida, situação sócio-
nosso espírito nos veremos, quase sem perceber, interagin- econômica, ideologia, conceiros e pré-conceitos.
do com elas num processo de recriação de situações co- Não obstante todo o conhecimenro e experiência que
nhecidas ou jamais vivenciadas. temos acumulado ao longo de nossas vidas que injeta-
-
Algumas imagens nos levam a rememorar, outras a mos quando de nossa leitura das imagens - necessiramos
moldar nosso comportamento; ou a consumir algum pro- ainda recorrer à imaginaçáo. Por outro lado, somos seres

44 45
Boris Kossoy Realid.ades e Ficções na Tlama Fotográfca

carregados de emoção. E, felizmenre nossas emoções não cos e a realidade que se imagina: a primeira realidade (a
-
são programadas, nossas reações emocionais podem ser, em do fato passado), recuperado apenas de maneira fragmen-
funçáo dos estímulos externos, imprevisíveis. Ainda bem tária por referências (pleno de hiatos) ou pelas lembran-
que é assim, câso contrário seríamos robôs, replicantes. ças pessoais (emocionais). Há, pois, um conflito constan-
É por tudo isso que o conteúdo das imagens visuais te entre o visível e o invisível, entre o âparente e o oculto.
provoca em cada um de nós impactos diferentes; em fun- Há, enfim, urna tensão perpétua que se estabelece no espí-
ção disso, também, é impossível haver "inrerpretações-pa- rito do receptor quando diante da imagem fotográfica em
drão" sobre o que se vê registrado nas imagens. função de suas imagens mentais
A imagem forcgráfica é o relê que aciona nossa ima- A realidade passada é f.xa, imutriuel, irreuersíuel, se re-
ginação para dentro de um mundo representado (tangível fere à realidade do assunto no seu contexto espacial e tem-
ou intangível), fixo na sua condição documental, porém poral, assim como à da produção da representação. É .rt.
moldável de acordo com nossas imagens mentais, nossas o contexto da vida: primeira realidade. A fotografia, isto
fantasias e ambiçóes, nossos conhecimentos e ansiedades, é, o registro criativo daquele ãssunto, correspondeà segun-
nossas realidades e nossas ficçóes. A imagem fotográfica da realidade, a do documento. A realidade nele registrada
ultrapassa, nâ mente do receptor, o fato que representa. tarnbém é fxa e imutáuel, porém sujeita à muhiplas inter-
pretações.
Em ambas as etapas, seja na elaboração da imagem,
PROCESSOS DE CONSTRUÇÁO DE REALIDADES quando do momento de sua concepção/construção/mate-
rializaçáo por parte do fotógrafo diante de seu tema, seja
O processo de construção do signo fotográfico im- durante a trqetória dessa mesma imagem ao longo do tem-
plica necessariamente a criação documental de uma reali- po e do espaço, quando apreciada, interpretada e sentida
dade concreta. Tiata-se, entretanro, da realidade da repre- pelos diferentes receptores, não importando qual seja o
sentação que, não raro, conflira com a realidade material, objeto da representaçáo - ou qual seja o vínculo que pos-
objetiva, passada. Do ponto de vista do receptor, há um sa eventualmente existir entre o receptor e essa represen-
confronto entre o documento presenre (originado no pas- tação - haverá sempre um complexo e fascinante processl
sado) com o próprio passado inatingível fisicamente, ape- de construção de realidades.
nas mentalmente, subjetivamente. Aí reside, possivelmente, o ponto nodal da expressão
É o confronto entre a realidade que se vê: a segunda fotográfica. Seria esta, enfim, a realidade da fongrafa: uma
realìdade (a que se inscreve no documento, a representa- realidade moldável em sua produçáo, fluida em sua recep-
çã.ò - através de nossos filtros culturais, estético/ideológi, ção, plena de verdades explícitas (análogas, sua realidade

46 47
Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fotográfca

exterior) e de segredos implícitos (sua história Particular, Quadro 4


sr,n rea li d"adr interìo r), do cumenta I p orëm imaginária. Tra-
MECANISMOS INTERNOS DA PRODUÇÁO E DA
tamos, pois, de umâ expressão peculiar que, por possibi- RECEPÇÁO DAS IMAGENS
litar inúmerâs representaçóes/interpretações, realimenta o pRocEssos DE coNSTRUçÁo DE REALTDÁDES

imaginário num processo sucessivo e interminável de cons-


trução e criação de novas realidades.

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48 49
Mundo Real e Mundo Ficcional

A chamada "fotografia documental" abrange o regis-


tro fotográfico sistemático de temas de qualquer natureza
captados do real; no entanto, existe, em geral, um inte-
resse específico, uma intençáo no registro de algum assunto
determinado. É e- função disso que surgiu o hábito de
se separar ou dividir a fotodocumentaçáo por classes ou
categorias de documentação: jornalística, antropológica,
etnográfica, social, arquitetônica, urbana, geográfica, tec-
nológica etc. Essas classificaçóes são, não raro, pouco con-
vincentes posto que permitem leituras sob diferentes abor-
dagens, de acordo com a formação ou interesse pessoal dos
diferentes receptores. Uma única imagem reúne, em seu
conteúdo, uma série de elementos icônicos que fornecem
informações para diferentes áreas do conhecimento: a fo-
tografia sempre propicia análises e interpretaçóes multidis-
ciplinares.
O chamado documento fotográfico não é inócuo. A
imagem fotográfica não é um simples registro fisicoquí-
mico ou eletrônico do objeto fotografado: qualquer que
seja o objeto da documentação não se pode esquecer que
Boris Kossoy
Realidades e Ficções na Trama Fongráfca

a fotografia é sempre uma representação a parrir do real comportamento a ser seguido na realidade concreta. Tem-
intermediada pelo fotógrafo que a produz segundo sua for-
se, assim, num extremo, durante a produção, a constfu-
ma particular de compreensão daquele real, seu repertó-
ção de um mundo ficcional (calcado no mundo real); no
rio, sua ideologia. A fotografia é, como já vimos reitera- outro, durante a recepçáo, que é o que conta do ponto de
das vezes, o resultado de um processo de niação/consfuução vista social, o mundo ficcional tornando real - objeto de
técnico, cultural e estético elaborado pelo fotógrafo. A ima- consumo.
gem de qualquer objeto ou situação documentada pode O irreal ou ficcional da publicidade de moda é mero
ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase pre-
artiffcio para que os empresários da indústria da moda
tendida pelo fotógrafo em funçáo da finalidade ou aplica- possam atingir seu público consumidor. A criação desse
ção a que se destina. mundo irreal no estúdio ou fora dele (a coreografia estu-
No universo da moda tem-se uma personagem-mo- dada, a iluminaçáo dramática criando uma atmosfera de-
delo representando no interior de um cenário criado: uma terminada, a representação teatral das personagens-mode-
representação teatral. Náo deixa de ser uma realidade ima- los em suas poses e atitudes) não se esgota em si mesma,
ginada é verdade, mas também, ao mesmo tempo, se cons- visa propagar um conceito. Pretende-se, naturalmente, a
titui num fato social que ocorre no espaço e no rempo. concretização material da idéia: o seu respectivo consumo,
Temos agorâ uma segunda realidade que é a do mundo um consumo que se restringe, é verdade, â um determi-
das imagens, dos documentos, das representações. Temos nado grupo socioeconômico.
portanto uma fantasia que é tornada realidade concreta No mundo da publicidade, vimos durante décadas a
uma vez que veiculada pela mídia e consumide enquanto disseminação de micro-histórias diabólicas destinadas à
produto. massa. Anúncios que promovem, por exemplo, o cigarro
A foto de moda exemplifica muito bem como o associando o seu consumo à determinaçáo, ao bem-estar
mundo ficcional que a envolve se torna um mundo real. e ao prazer. Mensagens codificadas pela retórica da pro-
Com a foto de moda consome-se, ao mesmo tempo, dois paganda de um etilo de vida a ser imitado. Mensagens
produtos que se mesclam num todo indivisível: a roupa, veiculadas através de histórias em que contracenam per-
o vestuário propriamente dito e o seu entorno, o mundo sonagens fortes, belas, introspectivas, extrovertidas, elegan-
ficcional (apenas na aparência) que envolve a cena, a si- tes, despojadas, saudáveis... sempre representando em
tuação e a pose. Neste processo consome-se um estilo, ambientes selecionados, em locaçóes que mais se coadu-
uma estética de vida codificada no conteúdo da represen- nem com e, m Íc do cigarro. Mensagens sofisticadas car-
tação; nela se acha montado o snipta ser interpretado pelo regadas dos mais ambíguos e sedutores apelos na sua pro-
potencial consumidor além do estúdio, um padrão de posta de alcançar o maior consumo possível, uma proposta

<')
53
Boris Kossoy Realidades e Ficções na Tiama Fongnífca

que visa lucros não importand.o os meios - e isto é real. ção diferente - e, por vezes, até antagônica - daquela para
A ficção é o artifÏcio. A morte o último ato. a qual foi produzida originalmente através, simplesmen-
te, como já foi dito, da mera invenção de uma nova le-
genda ou título.
PÓS-PRODUÇÁO E FICÇÃO DOCUME,NTAL
Obtém-se assim, por meio da composição imagem-
texto, um conteúdo transferido de contexto: um novo docu-
No caso das fotografias que serão veiculadas pelos mento é criado a partir do original visando gerar uma di-
meios de comunicaçáo o Processl de construção da represen- ferente compreensão dos fatos, os quais passam a ter uma
tação náo se finaliza com a materialização da imagem atra- nova trama, uma nova realidade, uma outra uerdade. Mais
vés do processo de criaçáo do fotógrafo. Não é nenhuma uma f.cção documental.
novidade que a produção da representação, tal como é De uma forma geral - e, mais especificamente, em
empreendida pelo fotógrafo, tem seqüência ao longo da matérìas políticas ou ideológicas -, a imagem que será apli-
editoraçáo da imagem. É o que poderíamos chamar de pós' cada em algum veículo de informaçáo é sempre objeto de
produçã0, isto é, quando a imagem se vê objeto de uma
algum tipo de "tratamento" com o intuito de direcionar a
série de "adaptações" visando sua inserçáo na página do leitura dos receptores. Ela é reelaborada - em conjunto
jornal, da revista, do cartaz etc. Tiatam-se de alteraçóes fí- com o texto - e aplicada em determinado artigo ou ma-
sicas em sua forma, como por exemplo, os "cortes" ou téria como comprovação de algo ou, então, de forma
mutilaçóes que se fazem em seu formato original com o opinativa, com o propósito de conduzir, ou melhor dizen-
objetivo de que ela simplesmente "se encaixe" em deter- do, controkr ao máximo o ato da recepçã'o numa direçáo
minado espaço da pâgina, ou que mostre apenas parte do determinada: são, enfim, as interpretaçóes pré-construídas
assunto, segundo algum interesse determinado do editor. pelo próprio veículo que irão influir decisivamente nas
Neste sentido, são muitas as possibilidades de mani- mentes dos leitores durante o Przcesso de construção da
interpretaçã0.
pulação elaboradas pelos meios de comunicação impressa.
Desde sempre as imagens foram vulneráveis às alterações
Com a digitalizaçá.o e os sortwares "especiais" as oPe-
raçóes de falsificações das imagens fotográficas tornaram-
de seus significados em função do título que recebem, dos
se "sedutoras", tais como, retoques, aumento e diminui-
textos que "ilustram", das legendas que as acompanham,
da forma como são paginadas, dos contrapontos que esta- ção de contrastes, eliminação ou introduçáo de elementos
belecem quando diagramadas com outras fotos etc. Tirdo na cena, alteração de tonalidades, aplicação de textlÌras
isso além de outras manipulaçóes como a reutilizaçáo de entre tantos outros artifícios. Ampliam-se cada vez mais,
através dos laboratórios de pós-produção digital, sofistica-
uma mesma fotografia para servir de prova numa situa-

55
54
Boris Kossoy

das possibilidades tecnológicas de montagens esréricas e


Proposição Metodológica de Anrílise
ideológicas das imagens e, por conseguinre-, de criações de
novas realidades (Quadro 5). e Interpretação das Fontes Fotográficas:
A Desmontagem do Signo Fotográfico
Quadro J

PÓS-PRODUÇÁO E FICÇÁO DOCUMENTAL

Processo de cznstraçãl da representação

PRODUÇÁO O que há por rrás do olhar e da pose da personagem


ELÁBORADÂ PELO FOTÓGRAFO deste retrato? O que existe nas fachadas das casas, ,"q.r.-
o marerialização
-l documental la janela semicerrada, naquele grupo de pedestres reuni-
I
dos, no movimenro da rua que vejo nesra visra fotográfi-
a -Y ca, enfim, que escapa à minha compreensão? Seja.rrqu"rr,o
a POS_PRODUÇÁO
EDIToMçÁo (rsrÉrrc,r/roeor_ócrca) documento paraa investigação histórica, objeto de recor-
manipulaçóes de toda, ordem: imagem/texto
dação ou elemento de ficção a fotografia escond,e dentro
o de si uma rrama, um mistério. É por detrás da aparência,
U
q
-o nmnrseNrÍçÁo rrNar- da visibilidade registrada pela imagem fotogrâfiia, que se
mensagem direcionada esconde o enigma que pretendemos decifrar.
q
o
Complementa a idéia da desmontagem do signo fo-
Ê.
Processo de consnulão da interpretaçõo
tográfico, além do conjunto de formulações teóricas vis-
I tas até aqui, a investigação sistematicamente conduzida
I

I segundo metodologias adequadas de análise e interpreta-


RECEPÇAO
r-pltun ns/rNrrnpRETÁÇóEs coNTRoL,ADAs
ção. Não é o caso de nos determos aqui na explicitação
dessa metodologia (desenvolvida especific"-.rrt. p^r:^
análise iconográfica e a interpretação iconológica como^
eixos para investigação das fontes fotográficas) já que foi,
a mesma, exaustivamenre explicitada em Fotografia e
História.

56
Boris Kossoy Realidades e Fìcções na Tíama Fotográfca

Retomamos, a seguir, apenas o conceito e a essência Busca-se, através da análise iconográfi ca, decodifi car
daquela proposição metodológica, já devidamente adequa- a realidade exterior do assunto registrado na representa-
da às novas formulaçóes constantes do presente livro. O ção fotográfica, sua face visível, sua segunda realidade.
diagrama do Quadro 6 complementa nossa reflexão.

INTERPRETAÇÁO ICONOLÓGICA
ANÁLISE iCONOGRÁFICA
É o -orn.ttto de lembrarmos que o documento fo-
Na análise iconográfica uma verdadeira "arqueologia" tográfico é uma rePresentação a partir do real, uma rePre-
do documento é empreendida. Duas linhas de análise mul- sentação onde se tem registrado um asPecto selecionado da-
tidisciplinares sáo sugeridas paraa decodificaçáo de infor- quele real, organizado cultural, técnica e esteticamente,
mações explícitasiimplícitas no documento fotográfico e portanto ideologicamente. O chamado testemunho foto-
no suporte que o contém e que tem Por meta: grâfico, embora registre em seu conteúdo uma dada situa-
çáo do real - o referente - sempre se constitui numa ela-
1. a reconstituiçáo do processo que originou o artefato, a boração, no resultado final de um processo criativo, de um
fotografia: pretende-se, assim, determinar os elementos modo de ver e compreender especial, de uma visão de
que concorreram para sua materializaçáo documental, mundo particular do fotógrafo; é ele que, na sua media-
(seus elementos constitutivos: assunto, fotógrafo, tecno- ção, crial constrói a representação.
logia) em dado lugar e época (suas coordenadas de si- Nesta altura não podemos mais estabelecer essa ou
tuação: espaço, tempo); aquela "regri' interpretativa posto que, embora o docu-
2. a recuperação do inventário de informações codificadas mento siga sendo a nossa referência, nos situamos além dele,
na imagem fotográfica: tÍata-se de obter uma minucio- nos círculos das idéias, na esfera das mentalidades. Dois
sa identificação dos detalhes icônicos que compóem seu caminhos básicos temos sugerido para essa decifração:
conteúdo.
na medida do possível, a história própria do
1. resgatar,
As informações obtidas por meio da análise icono- assunto, seja no momento em que foi registrado, seja
gráfica sáo de finitivame nte úteis, na medida em que nos independentemente da mesma representação;
revelam dados concretos sobre o documento no que diz 2.buscar a desmontagem das condições de produçáo: o
respeito à sua mate rialízaçáo documental e aos detalhes processo de criaçáo que resultou na r€presentação em
icônicos nele gravados. estudo.

58 59
Boris Kossoy

Busca-se, pela interpreração iconológica, decifrar a


realidade interior da representação fotogrâfrca, sua face
oculta, seu significado, sua primeira realidade, além da ver-
dade iconogrâfica.

Quadro 6

ANÁLISE ICONOGRÁFICA E
INTERPRETAÇÃO ICONOLÓGICA

60

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