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Capitulo 1 Técnicas, estruturas, autores A técnica, ou melhor, as técnicas, esto no cerne do trabalho do anima- dor. Na animagio cada imagem (ou fase) é criada individualmente, sendo a filmagem ou a digitalizacéo apenas uma etapa técnica com o objetivo de fazer suceder no ecra materiais inertes para criar um movimento. Nada de atores, nada de contratempos meteorolégicos que obrigam a adiar a rodagem desta ou daquela sequéncia, antes a planificag4o minuciosa, a cronometragem dos planos, a ctiagao do storyboard, a definigao das fases-chave, o intervalamento, © tragado, a passagem por guache (hoje substituidos por técnicas digitais), em suma, a lentidéo de um trabalho gréfico (em 2D ou 3D) ou artesanal (marionetas, etc.). Um imenso trabalho de formiga, portanto, que costuma estender-se nao por alguns meses, como uma produco em filmagem real, ‘mas por anos, Um trabalho que, pela propria lentidao, deixa também que ocorra com certos cineastas/artesios um lado de improviso ¢ de incerteza —e sempre, na animagéo nao digital, de stress. Nick Park observa: “Numa roda- gem classica, ¢ facil repetir um plano quatro ou cinco vezes com os atores para depois escolher a que se prefere. No caso de um filme de animagio, um trabalho longo e minucioso sé permite produrir uma sequéncia” (citado em Pinteau, 2003: 244). Genealogia de uma imagem “Ele nao devia falar, é um castor”, diz, pragmédtica, a irma mais velha de O Leto, A Feiticeira e 0 Guarda-Roupa: As Cronicas de Narnia, producéo Dis- ncy (Adamson, 2005), a0 ver pela primeira vez a personagem do dito castor a bambolear-se a sua frente; mas é mesmo ai que reside todo o interesse da animagao desde ha quase um século: podemos ressuscitar espécies extintas (Gertie the Dinosaur, Winsor McCay, 1914; O Parque Jurdsico, Steven Spielberg, 1993) ¢ fazer falar castores ou baratas apreciadoras de music-hall (Juke-Bar, Martin Barry, 1989; Sexo, Bararase Rock ‘n’ Roll, John Payson, 1996). O género da fabula, inventado por Esopo (séculos vir-v1 a.C.) aplica-se a fazer falar os 15 animais ¢ foi aproveitado por muitos autores da idade classica, dos quais La Fontaine (1668-1693) €0 mais conhecido. A mitologia habieuou-nos igualmente a perceber um além do real tal como o entendemos hoje, As Metamorfotes de Ovidio (Géculo 1 a.C,) € nesse sentido um texto precursor da animagéo, ¢ os numerosos efeitos visuais que engendra sio idealmente obtidos pelas técnicas digitais. Plantas, faunos, bichos: é todo um mundo humano, animal, vegetal ou intermedidrio que se transforma e renasce. Desde 0 desaparecimento da filosofia animista no Ocidente os homens foram obrigados a tragar fronteiras entre os dominios, o que faz. com que, como bem observa Georges Sifianos: “Aanimaco pressupéea inverséo de uma situacdo. Alguma coisa tomna-se’animada’ exatamente quando esperamos que nao", Ao passo que, prossegue o autor, “na época em que o animismo estava vivo como crenca, a animacao nao seria provavelmente uma transgressao mas um facto natural. £ hoje, com o animismo desaparecido, que as suas derradeiras manifestacées sobreviventes adquirem o cardcter de transgressao para a razao dominante” (1988: 44: ver também Morin, 1956: 73). A “bumanimagao” dos animais e dos objetos (alids comum na crianga até aos sete anos, Djénati, 2001: 217) € justamente uma dessas “manifestagées sobreviventes”, tanto no desenho animado como na animagio em volume, que logo surgem como lugar de um possivel regresso do animismo. O poder da animag4o japonesa atual deriva exatamente de uma crenga que os ocidentais, perderam, como verificamos nos filmes de Hayao Miyazaki. E af que entra em cena a anima, essa “alma” e esse sopro vital (¢ nao 0 simples movimento), que da o nome & animagao, e que reencontramos desde as fabulas de Ladislas Statevitch até Kokaku KidotailGhost in the Shell de Mamoru Oshii (1995) € que irrigam toda a literatura sobre a animagao'. Para Eisenstein (1991: 60), fino conhecedor do animismo japonés, 0 ato de atribuir uma alma aplica-se a todos os elementos que rodeiam 0 homem, ¢ ndo somente aos seres vivos, conforme observa em 1941: “Se quisermos, a prdptia ideia de animated cartoon como a encarnagéo do método do animismo. Esse lapso de tempo em que um objeto inanimado é dotado de uma vida e de uma alma, que conservamos ‘como uma sequela quando, ao esbarrar numa cadeira, interpelamo-la como um ser vivo, ou esse perfodo duradouro em que o homem primitivo provia de vida a natureza inanimada”. procedimento cinematogréfico imagem a imagem cia entao o movimento para animar objetos ou personagens inanimadas, em 2D (sem profundidade), ouem 3D (no espace, real ou virtual). Para o conseguir, inverte-se 0 processo normal de rodagem —a camara em filmagem real regista 24 imagens (filme) ou 25 (video) por segundo (mais imagens usando o retardador, menos acelerando) para, na projecio, enfrentar 0 cérebro gracas ao efeito phi— tendo a persisténcia 1 Enquanto muitas vezes, como mostraram Joubert-Laurencin (1997) ¢ Tomasovic (2003 c 2006), a morte esté presente na animacao, 7 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES retiniana muito menos importancia do que a rectiagéo do movimento pelo cérebro. A fluidez totalmente natural dos movimentos em filmagem real sé pode ser reconstituida na animagio a custa de enorme esforco, devendo 0 animador efetuar 24 fases de deslocagao por segundo para o igualat de um ponto de vista técnico (0 que ratissimamente ocorte, por tazes econémicas). Paradoxalmente, as animagGes que empregam essa técnica pesada ¢ muito realista, especialmente em rotoscopia (um processo que permite recopiar em desenho animado imagens prévias, reais), parecem tanto mais estranhas por tentarem tornar realista uma representacdo que raramente o é. $6 os efeitos especiais visam a perfeigao em termos de animacio ¢ de resultado, com 0 objetivo de integragéo nas imagens de filmagem real. A imagem de sintese, que beneficiou das investigacées sobre os efeitos especiais, permite fazer calcular as 24 ou 25 imagens por segundo pelo computador, acrescentando esbatimentos (motion blur) realistas. Em contraste, na animacao tradicional filmam-se entre 12 e 14 desenhos ou fases por segundo, o que dé um resultado muito diferente, bastante fluido ou irregular, embora os filmes de Disney e de Richard Williams (por exemplo) sejam intervalados a 24 imagens por segundo, O principio da animagao é assim exatamente inverso ao da filmagem real, pois trata-se de criar 0 movimento, e nao de o captar na realidade*, A técnica “rainha” do desenho animado deu lugar, desde os anos 1950, a outros meios de expressio: “A técnica cléssica de desenho animado em acetato, que era a forma canénica da animacao, foi ultrapassada por uma verdadeira explosio de técnicas diretas. A inventividade técnica foi assim o vetor que projetou varias obras importantes inspirou toda uma gerago de animadores. Isso fol acompanhado de uma explosao de estilos graficos retirados diretamente dos recursos infinitos da histria da arte” (Hébert, 2006: 154-155). O desaparecimento programado da animagio “tradicional”, ou seja, em 2D ¢ geralmente em acetato de celulose (0 “celuloide”), néo deve fazer esquecer que essa técnica continua a ser usada em muitos paises, por um lado, ¢ que a maior parte da produgio animada comercial desde a década de 1910 foi rea- lizada empregando essa técnica especifica. Inventado em 1914 por Earl Hurd, o acetato obteve imediatamente um enorme sucesso, pois petmitia desenhar ¢ pintar uma personagem numa folha de papel vegetal transparente que de seguida se sobrepde a um cenério fixo (0 qual também pode estar & frente da personagem, pintado numa placa de vidro sobreposta aos desenhos durante a filmagem). Inovagao de aleance imenso, ja que até entao o desenhador tinha de redesenhar a totalidade da aco, com todas as personagens ¢ 0 cenétio, 0 gue tornaya o trabalho muito fastidioso, Esse processo, como de resto veremos, foi capital na rentabilidade da animagdo, assim como uma outra invengio 2 Sobre os aspetos técnicos, ver Laybourne, 1998 e Williams, 2003, CINEMA DE ANIMAGAO _ fundamental, desta ver. de Raoul Barré: os pinos. Esses pequenos apoios de ferro fixados sobre uma régua serviam, e ainda servem, para posicionar de ‘maneira sempre idéntica os desenhos sucessivos, uns em relacéo aos outtos, de modo a obter uma animagao de qualidade. Até entio nao se podia sobrepot os desenhos perfeitamente, o que resultava numa ligeira instabilidade do filme, Enfim, decalcando um cendtio e uma personagem em acetato, posicionadas gtagas aos pinos, uma camara filma o plano de trabalho gragas a uma grua, um instrumento chamado “truca” que parece ter sido criado em 1906 por Segundo de Choméan, e ter sido utilizado por Emile Cohl com uma ilumina- go lateral para melhorar a qualidade da imagem, Em seguida inventaram-se procedimentos mais complexos, primeiro de maneira artesanal como se vé em Die Abenteuer des Prinzen Achmed [As Aventuras do Principe Ahmed] de Lotte Reiniger (1926) ou L’ddée de Berthold Bartosch (1932), ¢ mais tarde em Jean-Francois Laguionie ou Iuri Norstein, a fim de filmar nao um tinico plano 2D mas varias placas de vidro (¢ de desenhos) a uma certa distancia umas das outras, para assim simular profundidade de campo, esbatidos dticos € efeitos atmosféricos. Esta técnica, chamada “multiplana’, foi aperfeicoada por Disney em 1937 (veja-se The Old Mill, ¢ o longo plano introdutétio de Bambi, 1942), mecanizando cada um dos niveis para simular as deslocagées na profundidade segundo as regras da perspetiva. Na animacao digital, os softwares retomam esse sistema de camadas, ¢ os efeitos fotogrificos so rectiados apés a filmagem. Os desenhos podem ser substituidos na camara por muitas outras técnicas, como a pintura em vidro, a areia, objetos, etc. Nos casos em que se filma nao em 2D mas em 3D real, isto é, num espago tridimensional muito parecido com um esttidio normal, ¢ até no exterior, recorre-se ao stop motion. Essa ter- minologia aplica-se a todas as animacGes em volume: marionetas, plasticina, etc, Se filmarmos com elementos vivos (animais, seres humanos...), e jé no com objetos ou materiais, empregaremos o cermo “pixilacao”; as filmagens espagadas de fenémenos naturais (plantas, nuvens, cidade...) criam por seu lado uma aceleragao chamada time lapse. Por fim & preciso, claro, mencionar as técnicas de animagao sem cAmara que utilizam unicamente o suporte de 16mm ou 35mm; pode-se raspar 0 amorce preto ou pintar sobre amorce transparente com tintas diversas (Len Lye, Norman McLaren e Pierre Hébert, entre outros, empregaram essa técnica). Uma vez preparado 0 cenétio do esttidio, outro termo ¢ particularmente importante para compreender a animagao: a “fase”, Ele define um desenho ou tuma filmagem que serio usados num nimero maior ot menor de fotogramas, Quanto maior o ntimero de fotogramas a usar a mesma fase, menos “boa” é aanimagio do ponto de vista da fluidez. O efeito phi e, em menot medida, a Petsisténcia retiniana, que permitem enganar o olho a 24 imagens por segundo, continuam a agir quando a animagio se faz em 12 fases por segundo, cada uma delas filmada em duas imagens (2x12=24). A técnica da animagao “limitada” (limited animation) baixa todavia para 1, 2, 4, 6 ou 8 fases por segundo, e até 18 _ 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES ‘menos (um desenho pode ficar fixo varios segundos, embora essa técnica seja cada vez menos usada). O animador principal cria “fases-chave”, que seréo de seguida completadas pelos “intervalistas” (in-betweeners), que desenham a totalidade de uma ago entre essas fases-chave da animagio, a fim de restituir um movimento de maneira harmoniosa (em func4o, porém, do ntimero de fases por segundo). Em digital (imagens 3D e Flash, essencialmente), pelo contrario, os intervalos sio calculados automaticamente pelo computador, 60 que possibilita uma animagao bem mais fluida do que em acetato ou stop motion. Desde o fim dos anos 1980 (A Pequena Sereia, Disney, 1989), os acetatos comecaram a desaparecer em proveito de uma técnica de scan dos desenhos que permite de seguida coloti-los digitalmente e integré-los mais facilmente em ambientes 3D, técnica agora empregada em todo o mundo. ‘As técnicas de animagio estéo hoje em plena revolucio, e as ferramentas digitais permitem trabalhar sem cimara, ignorando portanto as contingéncias materiais de uma filmagem em pelicula (super 8, 16mm ou super 16mm, 35mm); o que de resto no exclui minimamente, dentro de um objetivo de realismo, recriar halos (lens flares) numa fase posterior, por exemplo. Refira-se que & excegao dos filmes em imagens de sintese, a maioria dos filmes em 2D ou em 3D real (marionetas, plasticina) ainda sio filmados em pelicula, por motivos de reprodugao técnica. Contudo, o desenvolvimento das cimaras de video em alta definigao real e de mquinas fotogrsficas digitais com o mesmo formato vai alterando consideravelmente o panorama. Filmes tio complexos visualmente como Fast Film de Virgil Widrich (2003) e L'’Inventaire fantéme, de Franck Dion (2004), embora visualmente muito diferentes entre si, foram “rodados” com uma maquina fotogréfica digital, sendo as fotografias tratadas por um sofiware de montagem e retocadas. Essa técnica, oriunda do universo amador, é promissora (mesmo que alguns, como Don Hertzfeldt, recusem 0 uso do computador), tanto mais que o ntimero de animadores amadores ou semiprofissionais a trabalhar sozinhos na sua garagem ou no seu computador é bastante consideravel, por uma razéo simples: o filme de animagao é quase © tinico tipo de filme que qualquer um pode escrever, realizar ¢ sobretudo produzir sozinho, na légica, hoje muito difundida entre os jovens, do “DIY” (do it yourself). Embora da mesma forma existam produgées amadoras em filmagem real desde a generalizacéo do formato mini DV, é de referir a qua lidade muitas vezes notdvel dos trabalhos amadores em 2D ou 3D. ‘Um amador, um artista interessado na procura poiética ou um profissional poderao utilizar as mesmas técnicas ~ residindo as diferencas geralmente no investimento humano (a equipa), no material (a qualidade dos equipamentos) e no processo de criacao. Podemos referir a publicagao entre a década de 1950 ¢ 1980 de manuais para amadores ¢ estudantes, destinados a mostrar que as técnicas eram geralmente de simples reprodugéo em casa ou na sala de aulas (ver Bellanger, 1977; Engler, 1982; Blair, 1999). Alids, Nick Park, Peter Lord e David Sproxton, entre tantos outros, descobriram a animagao aos doze anos, como amadores, antes de fazer dela o seu oficio ¢ de criar a sociedade Aardman. 19 QCINEMADEANIMACAQ ————e Halas e Privett (1952: 9), no seu guia de como fazer um desenho animado, descreviam, logo no preficio, a industrializagao e a formatacao da animacio profissional, € 0 seu oposto, a formidével liberdade concedida ao amador: este, “que trabalha sé ou com um pequeno grupo de amigos, tem as maiores possi- bilidades de alcancar a espontaneidade e a originalidade, pois a sua ideia nio tetd de passar por tantos desvios antes de chegar & tela”. Isso ainda é verdade, em especial na internet com a evolucéo das animagoes bisicas e em plena expansio do seu custo médico; e a estética que dat resulta, & base de demios coloridos e formas simples, contribui em muito para 0 sucesso desse medium democratico. Milhares de filmes so assim autoproduzidos e apresentados por animadores de todo o mundo, inclusive em festivais profissionais. Pelo contratio, os esttidios de animagao digital compoem-se de dezenas, ou ‘mesmo centenas, de fungées informadticas nas quais trabalham especialistas dos programas necesséios (de que os mais importantes so 0 3DS Max e 0 Maya). No entanto, néo existem diferencas fundamentais na cadeia de producao, que se mantém muito hierarquizada entre os anos 1960, por exemplo, eos dias de hoje': apds a redacio da ideia e do argumento, sio criadas model sheets para as personagens a fim de definir as suas caracteristicas visuais constantes, € depois 0 storyboard a partir das personagens criadas. Em seguida efetua-se 9 lay out, decomposicao de cada plano do storyboard, para determinar cada um dos elementos que constituem o plano (cenério, personagens, underlay, overlay, efeitos, sombras e luzes...), assim como as folhas de exposi¢ao que permitem calcular 0 nimero de fases pata cada elemento. Os didlogos sio entao gravados para conferit um timing preciso ao filme. Plano a plano, petsonagem a personagem, as acées principais (e as fases-chave) so a partir dai decididas pelo diretor da animacio ¢ pelos animadores (um “chefe” que supervisiona cada personagem). Para conseguir uma animacio de qualidade sio precisos muitos esbogos, os quais requerem um talento de ator, pois os animadores costumam imitar “a sua” personagem. Eles podem, claro, basear- -se no trabalho pré-filmado do ator (como Jeremy Irons no papel de Scar em O Rei Ledo, que o animador Andreas Deja, para inspitar-se, foi ver nos seus filmes de fic¢do). Seja como for, mesmo assim o animador executa um trabalho solitario e pouco conhecido, pois como refere Ed Hooks (2005: X): “O grande piblico nao sabe, e nem Ihe intetessa, se 0 animador pode ser um bom ator. $6 se preocupa com o que vé no ecra” (ver também Hooks, 2001). ‘Uma primeira animagao de traco sumério (rough) € projetada ou visionada num programa de line fest, retrabalhando-se ai os tempos para verificar a fluidez da animagio. Seguem-se as erapas dos assistentes (modelagem, inter- valagem e clean definitivo). Se a producio der luz verde, as personagens sio entdo tragadas a tinta da china e coloridas sobre acetato, enquanto em 3D a animagao em “arame” e as armaduras das personagens s40 completadas por texturas (pelo, pele, reflexos...) que a seguir necessitam de um processamento 1 Sobre. fase de preparacio ¢ de rodagem, ver Maureen Furniss, 1998, e Paul Wells, 2006, 20 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES. informatico (rendering) extremamente demorado. Em 2D como em 3D, 0 cendrio é realizado separadamente, com uma qualidade muito elevada. Em 3D predominam termos ingleses para designar as fases da fabricacao: o layout €a organizagio geral de um local de rodagem virtual, o modelling é a fase da escultura virtual das personagens, o set up confere & personagem as suas arti- culagées ¢ os seus principios de acio, a texturing serve para regular as texturas co lighting para regular as luzes. Nesse momento preciso (antes, portanto, da realizagio) ha uma grande analogia com o jogo de video, cujas necessidades sio as mesmas (o cenario, o set up das personagens, as suas funcionalidades. ..). Autores e técnicas Alentidao do trabalho de concegio e de realizagao, consequéncia do fabrico tradicional (inclusive, muitas vezes, no digital), é importante para compreen- der a psicologia dos animadores. Séo muitas vezes mulheres e homens pouco conhecidos, sem diivida pela propria invisibilidade do processo de produgio na animacio, resguardado pelas paredes de um esttidio no caso de uma grande produgio, ou entao em casa, se forem autores a produzir sozinhos. Por causa disso, os animadores costumam ser mais “apagados” do que a maioria dos cineastas que trabalham em rodagens, no universo bem conhecido e hiper- mediatizado do “cinema” (mesmo tratando-se geralmente de audiovisual). Os maiores animadores/autores sao alias conhecidos pela sua recusa do estatuto de “artista”, preferindo destacar a sua obra do que o seu ego, a imagem de Paul Grimault, Norman McLaren, Hayao Miyazaki, René Laloux, Tex Avery, etc. Como observava justamente Alexandre Alexeieff em 1973 “Aatitude do pintor de cavalete, que guarda avidamente nas suas pastas os menores esbogos na esperanga de os vender um dia, é estranha ao animador. Um filme de doze minutos contém a volta de dezasseis mil imagens. Terao os maiores mestres feito tantos desenhos durante as suas vidas? O animador nao tem tempo para a vida 'boémia™ (prefacio de Bendazzi, 1991: 23) E 0 critico Paul Gilson notava em L’TIntransigeant em 1933 que Une Nuit sur le Mont Chauve, “que nem sequer dura meia hora, representa mais de um ano de trabalho” (na verdade o filme dura oito minutos). “Assim, por vezes Alexandre Alexeieff e Claire Parker viveram durante um dia um segundo do seu filme” (citado em Bendazzi, 2001: 30). Esse aspeto tem uma consequéncia positiva, sobretudo hoje, em que o emprego nos meios do cinema é precirio: “os animadores trabalham longos meses ou anos numa producio, garantindo assim um salario fixo (quando sio pagos!), a0 contratio dos seus colegas que trabalham no cinema em filmagem real. Posto o relativo anonimato do animador e o seu desaparecimento por tras da massa de trabalho necessaria & finaliza¢ao do filme, cada técnico contribui 21 O CINEMA DE ANIMACAO. com as suas particularidades, as suas vantagens ¢ os seus inconvenientes, que © realizador deverd avaliar para usar a técnica mais adequada ao seu projeto, tanto financeira como esteticamente: sendo que, como na filmagem real, um bom filme de animagao é o que faz uso da técnica melhor adaptada a0 argumento ¢ ao design geral do projeto inicial. Cada técnica de animagao gera uma estética particular. Um filme realizado com lépis de cor num estilo minimal nao pode criar a mesma impressio visual que um filme realizado num plateau com marionetas, em pixilacao ou em imagens digitais. Depois, cada maneira particular de utilizar essa técnica envolve 0 espetador em universos que podem ser radicalmente diferentes. Alguns raros animadores mudaram constantemente de técnica, como Norman McLaren, numa pesquisa audio- visual permanente. A maioria, pelo contratio, manteve sempre uma técnica idéntica para conservar um toque reconhecivel. Um filme de Miyazaki, ainda que realizado em 2D tradicional, nao se parece com outros filmes realizados com a mesma técnica realista. A nogio de autor ainda nao entrou totalmente nos hdbitos no que tespeita ao cinema de animagao. Um filme de animagao nao tem estrelas (salvo nas vozes das longas-metragens, sinal aliés de uma contaminagao pela filmagem real e seu funcionamento), nem um realizador célebre, cujo universo e nome sejam conhecidos por todaa gente. Quantos espetadores, entre as centenas de milhées que viram Shrek, lembraréo o nome dos realizadores do filme? Isso também acontece no cinema em filmagem real, ¢ nao se trata de instituir a animacio como parente pobre quanto 3 autoria. Porém, nao ha diwida de que cada cineasta desenvolve um estilo particular; inclusive Walt Disney, cuja producao difere nitidamente quando se ocupa diretamente dos filmes ou nao. E exatamente a nogio de autor que permite compreender que os animadores mais interessantes, que também séo frequentemente os mais préximos das artes plésticas, tenham dificuldade em integrar uma estrutura. Paul Wells observa a propésito dos varios artistas (e nao sé Fischinger) que trabalharam em Fantasia (1940) que 0 que havia de arte nos seus esbogos preparatérios foi “sactificado as necessidades fundamentais do modelo industrial. E um dos motivos por que muitos artistas que trabalham na drea da animago nao querem tabalhar num grande estiidio, desejando preservar a particularidade da sua arte na forma que podem utilizar enquanto individuos” (Wells, 2002a: 20). Cada animador-autor (isto é, cada animador cujo trabalho é imediata- mente reconhecivel) tem a sua técnica predileta, aquela com a qual se sente mais livre. Assim, Michel Ocelot trabalha a partir de papéis recortados em sombras chinesas antes de aplicar uma mistura de 2D e 3D realmente tinica; Joanna Quinn emprega um trago a lapis muito fluido e colorido, tocante, que traduz a intimidade das situag6es que apresenta; Phil Mulloy e J.-J. Villard usam uma técnica gréfica rudimentar com desenhos basicos muito contrasta- dos, para mais facilmente atingirem os seus fins; Jan Svankmajer reaproveita inimeros materiais para fabricar a partir de tudo um mundo compésito aberrante ¢ surreal; os estiidios Aardman continuam a empregar plasticina, 22 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES. ou numa coprodugdo com a DreamWorks uma animagio digital com essa mesma plasticina; luri Norstein cria um universo doce, em feltro, para situ- ages complexas ¢ mneménicas; Osvaldo Cavandoli cria uma linha bisica ¢ super-expressiva, toda de verve italiana; Te Wei retoma a tradicéo grifica chinesa usando a tinta ¢ os efeitos de aguarela, etc. A lista seria evidentemente muito longa, pois cada autor de animagao (¢ hd muitos, na maioria pouco conhecidos) determina a sua escolha técnica (e portanto estética) relativamente ao seu modo de narrar ¢ a contingéncias econémicas, ¢ até ideolégicas. O que explica que cettos realizadores como Jean-Francois Laguionie ou René Laloux, ao libertar-se progressivamente da execugao gréfica para trabalhar com diferentes artistas, constituam cada qual uma filmografia bastante coerente, baseada numa forma de artesanato (Laguionie criou um dos raros estiidios franceses, que se chama justamente “La Fabrique”). Ha uma diferenga notavel entre a filmagem real ¢ a animacio: nesta os realizadores tém geralmente um passado de animadores, ¢ por isso um conhe- cimento técnico real antes de passar & realizacao, o que nao é necessariamente © caso para um realizador de cinema em filmagem real. Isso explica-se sim- plesmente porque este néo tem a cada segundo de mexer 12 ou 24 vezes nas sobrancelhas, nos bracos ou nas pernas dos seus atores para os ver moverem- -se. O tealizador de animacao tem de ser também animador (ou conhecer os ptincipios da animagio), porque precisa projetar-se constantemente uma representagao mental antes de poder passar ao trabalho concreto. A qualidade da animagao, um problema de produgao Nao hé qualidade relativa da animagao. Uma técnica 6 ¢ interessante se for adequada ao projeto ¢ ao argumento, se nao canibalizar o filme (para bem ¢ para o mal). A estética trash de Plympton e Pic Pic André, em que 0 t1ago a0 ‘mesmo tempo infantil e de pesadelo de Jean-Luc Chansay (que utiliza desenhos da sua propria filha em Eyen, clipe de 2001 para o grupo Plaid) se harmoniza com argumentos ¢ enredos cuja Iégica é a mesma que a do grafismo, tal como 0 traco simplicissimo em Sisyphe (Marcell Jankovics, 1974), transmite por si a tragédia humana que presenciamos. A estética lisa ¢ a animagao “perfeita” da Pixar cola por seu lado particularmente bem no tratamento da vida dos objetos e das méquinas. A qualidade da animagao depende assim do projeto inicial e do seu custo de produgao. Habitualmente, a qualidade pouco cuidada de uma animacio no est relacionada com escolhas artisticas, mas financeiras. Nao se pretende criar uma estética particular, mas apenas diminuir 0 némero de fases titeis para um segundo de filme. A maioria das produg6es importantes para as salas de cinema sao animadas a 12 fases por segundo quando a a¢ao se presta a tal, mas as producées televisivas so animadas a 2, 4 ou 6 fases por segundo por razées econdmicas. Nao ¢ uma questo de levantar um palmarés: 23 Bill Plympton usa um niimero reduzido de fases por segundo, mas com um resultado espetacular, que incorpora a pobreza da animacao na sua estética. O caso do 3D € diferente, pois conforme referimos, a interpolacao (a criagso de imagens intermédias entre dois movimentos-chave) é automatizada e efetuada por cilculo informético, ¢ ndo por animadores/intervalistas. Um juizo sobre a qualidade da animagao telaciona-se antes de tudo com © projeto. Aceita-se uma animacio “cadtica” para um projeto de excecional originalidade gréfica ou guionistica como € 0 caso com Christopher Hinton (Fluex, 2002) ou Christa Moesker (Sientje, 1997), Pelo contratio, uma animagio “perfeita” ao servigo de um argumento e de um grafismo indigentes nao tem grande interesse. Vé-se cada vez. mais no caso de filmes em animagao digital, nos quais a animagao e o design sao alisados, mas ao servico de inttigas ¢ argu- mentos éticos. Nesse caso, a qualidade da animasao e dos efeitos podera obter ‘uma rece¢ao positiva por parte de técnicos especialistas em imagens digitais, ou agradar ao piiblico pela sua facilidade; mas em nada terd contribuido para a arte da animagao. Do mesmo modo, no cinema em filmagem real podemos extasiar-nos com a imagem de certo grande ditetor de fotografia, sem contudo gostarmos do filme assim distinguido. Boa parte da produco de animacio faz-se em curta-metragem, geralmente fora das estruturas tradicionais de produgio e no campo de uma animacio de “experimentacao plistica’, para retomar o termo de Patrick Barrés (2006). No que toca & longa-metragem, nada ha evidentemente de comum (quer no trabalho quotidiano, quer no resultado final, do ponto de vista do realizador) entre uma grande estrucura como a DreamWorks e as estruturas francesas ou internacionais com as quais René Laloux, por exemplo, teve de batalhar durante anos (ainda que elas tenham tido a coragem de lhe produzir os filmes): “Vendo a distancia, acho que todos os meus filmes sio mais ou menos falhados, por falta de dinheito. Bem entendido, existem varios graus de falhango (...). Porém, € um facto, sempre fiz filmes de pobre!” (entrevista em Blin, 2004: 98). A. produgéo determina assim de manciza importante o resultado final. De resto, as estruturas de produgao vio evoluindo em simultaneo com as téc- hhicas, com elas a qualidade da animagao e dos argumentos. Com a implantagao de técnicas digitais baratas, os oficios da animagio democratizam-se. Vejamos © exemplo da Machine Molle, pequeno esttidio de animadores/eriativos que trabalham em varias dreas, incluindo a publicidade, que necessitam de uma elevada qualidade técnica. Muito criativos de um ponto de vista plistico, esses artistas sio capazes de realizar na pratica os filmes (ao passo que na publicidade € frequente a subcontratacao) e tém também os pés assentes na terra quanto As contingéncias financeiras. Essas pequenas estruturas vacilam assim (€ isso convém-lhes) entre high tech e low fi. O tealizador Virgil Widrich fez Fast Film, assim como o anterior, Copy Shop, na sua propria estrutura de producao, desti- hada a produzir publicidades e marketing, mas também filmes “de pesquisa”. A equipa é, portanto, maior do que em outros filmes experimentais (uma dezena de pessoas), mas a realizagdo mantém-se experimental, flexivel: nao existe 24 ee 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES uma légica de esttidio. O trabalho faz-se ao ritmo dos desejos do tealizador, que modifica o seu filme diretamente, ¢ paralclamente a outros filmes mais comerciais que permitem finalizar em boas condigées o projeto mais artistico. ‘A qualidade da animacao esté efetivamente relacionada com conhecimentos técnicos ¢ com 0 uso de materiais mais ou menos pesados, elementos que terdo um efeito imediato na feitura de um filme ¢ no seu custo. E ébvio que uma producdo da Pixar, DreamWorks, Disney ou Sony requer grandes instalacées € um pessoal numeroso. Dai, por exemplo, a parceria entre a Pacific Data Images (PDI), a DreamWorks e a empresa Hewlett-Packard para o desenvol- vimento de estagées de trabalho concebidas para o trabalho em equipa nas grandes produces DreamWorks. Mas nesses novos estiidios, os animadores nao dependem menos das mesmas questées da década de 1910, assinaladas por Charles Solomon (1996: 82): “Como tornar realista um movimento no ect, como criar personagens crediveis que exprimam emogées identificaveis, como fabricar filmes que utilizem estilos ¢ técnicas de realizacao modernas, aproveitando a animagéo, como contar histérias para um piiblico grande e vvasto? (...) Tal como 0s seus precursores, os animadores contemporaneos tém. de convencer 0 piiblico ¢ os decisores da indtistria do entretenimento de que a sua arte é mais do que uma inovagao efémera’. Mas as vezes fazer animagdo requer romper com os conhecimentos adquiridos ¢ voltar a partir do zero para reinventar a propria técnica. McLa- ren fazia produgéo no ONF (com os outros animadores) da mesma forma que nas suas proprias produgées, como refere Robert Forget, ex-diretor de animagao no ONF: “Um dos seus métodos, que hoje talvez seja uma licdo para muita gente, era dimint voluntariamente os recursos para chegar a uma situacao que permitisse aprofundar uma técnica. Assim, em vez de aumentar os meios e os recursos e de multiplicar ‘as técnicas, ele simplificava e aprofundava a sua técnica. E de cada vez isso levava ‘a uma outra descoberta, a um achado. € levantando obstaculos! Nos tempos que correm a tendéncia é fazer 0 contrario, aumenta-se os recursos, é necessario isto, ainda é preciso aquilo, e por fim dispersamo-nos” (Gay, 1989: 72). Com efeito, 0 que ora vélido para tecnologias rudimentares deveria sem duvida levar os realizadores que utilizam novas tecnologias a ser criticos com as suas imagens, e a refletir nas suas ferramentas para repensar os efeitos desejados, 0 conceito, a visio. Joseph Gilland, animador e professor, é critico por exemplo em relagio aos estudantes fazerem cursos de animagio digital: “Muitas vezes eles esquecem o mundo magico do movimento, do design e da nar- ago, que podiam aprender com uma formacao cléssica de cinema. maginem um estudante de literatura que aprendesse a escrever aprendendo a utilizar Word, ‘em vez de vivera sua vida para achar coisas que contar. Tantas vezes os estudantes procuram respostas nos seus computadores, em vez de procurarem inspiracao no mundo vivo que os rodeia” (Gilland, 2005: 48). 25 O.CINEMA DE ANIMACAQ _ As estruturas de produgao Destaca-se pouco a importincia da produgéo no cinema de animagao. Isso acontece, sem diivida, porque, sendo geralmente a estética animada dis. tinta do mundo real, os filmes parecem autoproduzit-se, autogerar-se fora da realidade econdmica do cinema, Ora, a produgio de um filme de animacéo costuma ser bastante dispendiosa. O que se pretende analisar é sobretudo a importincia das estruturas de produgéo no aspeto final de um filme de animagio. Podemos reconhecer pelo menos trés modalidades de produgao diferentes, que dao lugar a resultados também diferentes: os criadores isolados, as estruturas-mecenas, e as produtoras tradicionais, Parair do mais ‘pequeno” ao “maior”, observamos a importancia da autopro- dugdo na animacao desde a década de 1910. Emile Reynaud e Winsor McCay cram 08 seus prdprios mecenas, ao mesmo tempo desenhadores, animadores ¢ Produtores do seu trabalho. Claire Parker, oriunda de uma boa familia norte- -americana, nao s6 foi mulher ¢ colaboradora, como mecenas de Alexandre Alexeieff durante muitos anos. Foi o pai de Omer Boucquey quem produziu © seu primeiro “Choupinet”. Esse tipo de autoprodugo continuou a existir de maneira idéntica, até hoje. Em 1967, 0 manifesto Ubu Films, proveniente da Austrilia, vincava as possibilidades infinitas do “feito a mao" (hand-made), © agora pode, com o apogeu do digital, aplicar-sea qualquer produco audiovisual. Por exemplo: “I) Nao deixe ninguém dizer que ¢ caro fazer cinema. Qualquer resto de pelicula pode ser transformado em filme ‘feito A mao’ sem nenhum custo. 2) Que a fotografia nao mais seja essencial & producao de um filme, Os filmes ‘feitos & mao’ sio feitos sem camara’ (citado em Wells, 2006: 103). De Marv Newland aos jovens animadores que trabalham em Flash ou com plasticina, em casa, milhares de animadores laboram na sombra, autoprodi- indo os seus desejos de animagao com os magros rendimentos que auferem, e exibindo-os depois em super 8 (existiram muitos festivais para proporcionar a difuséo da animagao amadora) e agora na internet. As estruturas-mecenas sio aquelas que permitem a liberdade mais mportante, oferecendo ao animador a seguranga financeita por um petiodo geralmente limitado, a fim de levar um projeto a bom termo. Essas estruturas podem ser piblicas ou privadas. O Spike and Mike’s Festival of Animation, ou ainda a MTY, fizeram o papel de mecenas para muitissimos animadores independentes, Em Franga, 0 CNC, estructura invejada em todo o mundo, Presta apoio financeiro aos produtores de animagéo, sem contudo tratar-se de mecenato, De resto, existem poucas estruturas de mecenato puro, “desinte- ressado”, como, por exemplo, na pintura (alids, 0 mecenato quase nao existe para o cinema em geral). Nota-se por outro lado a importdncia de estruturas nacionais pesadas que sustentaram cinemas de animacio de pesquisa, como © Service de la Recherche da ORTF em Franca, a Soyuzmalefilm na Russia, © Office National du Film (ONF) no Canad, ou o Instituto do Cinema no Tro, entre outros. Nem sempre essas estruturas sio desprovidas de ideologia a 0 0 e 0 23] eS 1, TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES (procuram até difundi-ta o mais possivel através da animagao) e de contingéncias (luri Norstein atriscou-se a ndo concluis Jojik v Tumane (O Porco-Espinho no Nevociro], pois 4 data da entrega s6 tinha realizado 20% do filme, e poderia ter sido censurado pelo partido), mas elas permitiram (e € esse o seu mérito) que dezenas de animadores vivessem e desenvolvessem a sua atte, a0 servico de uma proposta mais ou menos politica, mas em geral sem grandes constran- gimentos de tempo ou de dinheiro (o que ndo significa que os orcamentos dos filmes fossem elevados; estou a falar dos criadores). Nesse quadro especifico, a rentabilidade comercial nao é 0 objetivo principal da estrutura-mecenas. As estruturas mais numerosas, como veremos num capitulo dedicado a rentabilidade comercial da animacio, so (€ é normal que o sejam numa economia de mercado) empresas de producao tradicionais, que produzem ¢ entregam para distribuigdo (as mais importantes tém distribuigao prépria) os filmes realizados pelos autores, técnicos ¢ realizadores “da casa”. Essa formula, muito disseminada desde a expansio da animacéo nos EUA nas décadas de 1910 e 1920, primeiro na costa leste, depois na costa ocidental, continua valida hoje para a maioria das produgées de envergadura. O custo da animacéo é muito elevado devido ao grande ntimero de pessoas envolvidas em todas as ctapas da realizagao, tanto em 2D como em 3D, & crescente profissionalizacao dessas fung6es no campo terciétio, e & longa duracao dos projetos (3 a4 anos para uma longa-metragem). Um engenheiro informatico é hoje mais caro do que uma pintora de guache sem qualificacées era hé cinquenta anos. Esses custos elevados exigem uma grande rentabilidade ¢, portanto, bons circui- tos de distribui¢ao. Existem, contudo, muitas produtoras médias, como La Fabrique ¢ Folimage em Franca, ou a Aardman na Gré-Bretanha, com um volume de negécios bastante menor do que as produtoras notte-americanas, mas que mesmo assim empregam muitos animadores, Seja qual for a técnica escolhida, a animagao leva imenso tempo a fazer — e mais ainda num contexto de autoprodugio. £ entao necessdrio preparar a rodagem com bastante antecedéncia, fazer uma planificagao muito precisa, com prazos realistas, e sobretudo um storyboard, elemento central de toda a cadeia de produgao até 8 montagem — embora certos cineastas vejam nessa ferramenta mais uma teia flucuante do que uma obrigacéo'. A propria escrita costuma ser (¢ é sempre nas grandes produgées) central para definir uma iden- tidade prépria para a animacao, de modo a nao copiar simplesmente o cinema em filmagem real. Os departamentos de “desenvolvimento” sio, portanto, muito importantes nas grandes estruturas de producao, seja qual for a técnica. As pequenas produgées ¢ os autores que se produzem a si mesmos pensam menos em termos de esctita por estarem menos ligados a contingéncias de rentabilidade, 0 que néo quer dizer que ndo invistam tempo na preparagio. Esses autores querem apenas preservar a possibilidade de alterar a animacao 1 Turi Norstein, Wendy Tilby e Florence Miailhe recusam aarmadilha de um storyboard demasiado perfeito, para permitir que a criagao acontega na rodagem. Ver Barrés, 2006: 15. 27 © CINEMA DE ANIMACAO. a qualquer momento da fabricagao do filme, numa Iégica arcesanal afastada da dos grandes estiidios onde cada empregado deve efetuar uma tarefa precisa necessdtia & finalizagéo ¢ & harmonia artistica do conjunto. Nesse método artesanal, a arte deve poder surgir de improviso. Os custos cada vez maiores da produgéo na vertente comercial tornam neces- séria uma publicidade especifica 4 animagio ¢ aos efeitos especiais: os esttidios Disney “orgulham-se de apresentar” 700 animadotes e técnicos para Mulan, ¢ 800 em O Rei Ledo, enquanto a Pixar, somente com 400 animadores para Toy Story (para um custo de 35 milhdes de délares contra os 45 de O Rei Ledo), destaca a revolucao técnica que o filme representa. Como observa com humor Brad Bird, realizador de O Gigante de Ferro e The Incredibles ~ Os Super-Herbis “Nunca se ouve falar do numero de tubos de tinta que Picasso usou para pintar Guer nica, do ntimero exato de notas de Rhapsody in Blue de Gershwin, ou do ntimero de expressées facials que Brando empregou em Hd Lodo no Cais. No entanto, quando se fala de animacao é em geral para falar de numeros, em declaracoes destas: ‘Foram precisos mais de 23 milhdes de desenhos para realizar Rumpelskiltin. Se todos os desenhos fossem postos lado a lado, cobririam seis vezes a distancia da viagem de ida e volta entre a Terra e Jupiter’. Quando uma forma artistica pode ser descrita nestes termos de uma maneira tao morna e recorrente, é facil ver porque @ animacdo é mais encarada como uma técnica do que como uma arte, ¢ os seus Praticantes considerados pouco mais do que técnicos munidos de lépis,plasticina, Pixels ou bonecas" (prefacio de Hooks, 2001: VI) O custo faradnico (mais de 150 milhées de délares) de Final Fantasy (adaptado do jogo de video homénimo) ¢ apresentado como uma vitéria sobre a representacio fotorrealista. Como consequéncia, o filme amortiza-se necessariamente nao por si, mas através de muitos produtos derivados, pelo menos no caso das grandes procdug6es— que sio cada vez mais. Esses produtos derivados, acrescentados ao mercado “secundario” do video (DVD, jogos de video), costumam gerar receitas mais importantes do que as da exibigao nas salas. Esse dado econémico de base & capital para compreender 0 préprio aspeto das personagens (que as vezes so desenhadas em funcao desse marke- ting secundirio — veja-se 0 capitulo “Novos Modelos?”), assim como o visual getal do filme, particularmente em termos de realismo ou de nio-tealismo, relativamente ao piblico-alvo determinado pelo produtor e com frequéncia pelo discribuidor ou os coprodutores (especialmente os canais de televis4o). Realismo e rejeicao do real Sendo a animagéo s6 raramente hiper-realista (ou seja, confundindo-se com elementos captados na realidade), existem diferentes graus de realismo (entendido como a relagao entre o real e a sta representagio) nos filmes de 28 | 1, TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES 1 animagéo, que definem a relacdo mais ou menos longinqua do animador com o “teal” (ver nota 2, p. 7). O uso muito frequente do plano-sequéncia na animagio reproduz por exemplo o encadeamento das imagens mentais num nico fluxo e numa forma de mondlogo interior, a que os angléfonos chamam stream of consciousness, Essa reptesentagio marca um “desprendimento” em relagdo a filmagem real, que torna esse tipo de plano-sequéncia extremamente penoso e complexo de rodar. Seja nas transformagées ininterruptas de Cohl ou nos sravellings impossiveis de Ryan Larkin e Georges Schwizgebel, no uso das matérias ¢ das cores, a realizagio na animagdo retoma as técnicas da filmagem real mas adapta-as as capacidades ilimitadas do cétebro. Como diz Turi Norstein, a animagio “é mais capaz de realizar a tarefa do cinema, porque ela é mais livre, mais auténoma em relagio a matéria. A sa superio- ridade € essa” (entrevisca com Joubert-Laurencin, 1997: 332). Com efeito, a animagdo constrdi com todas as pecas um mundo gréfico ou material com uma realidade propria. O lugar da cor é particularmente importante. Logo em 1954, Henri Agel notava que, gracas & cor, Le Petit Soldat de Paul Grimault “impée com a maior profundidade esse sonho acordado, esse mundo retardado e lunar que esta 1nos antipodas do universo trepidante e geralmente cruel do desenho animado norte-americano no seu conjunto. Os desenhos animados de Tex Avery, de Walter Lantz e de alguns outros apostam no paroxismo, no desencadeamento da ferocidade, na montagem e também na cor” (Agel, 1960: 169). De facto acor é rica ¢ complexa na animagéo, variando de um autor para outro tio seguramente (¢ sem diivida até mais) como no cinema em filmagem real. Com George Schwizgebel, Solveig von Kleist, Gianluigi Toccafondo ou Florence Miailhe, a cor encontra-se no ptéprio cetne do principio criativo (Bartés, 2006; Folch, 2004); grandes dreas de cores vivas definem a estética das produgées UPA e da Warner no final dos anos 1940; um vermelho vivo na boca do paciente do filme irlandés The Inside Job de Aidan Hickey (1987) faz compreender 0 horror da situagéo (um falso dentista opera-o como um carniceiro). Pelo contrério, L’Homme aux bras ballants (Gorgiard, 1997) e Llnventaire fantéme (Dion, 2004) experimentam a dessaturacio, enquanto certos autores como Regina Pessoa (Histéria Trdgica com Final Feliz, 2005) Paul Bush (Zhe Albaeross, 1998) trabalham com um preto ¢ branco préximo da gravura. Como jé sabemos, ha tantos motivos para a cor ou o preto e branco como cineastas de animacio. Mas, mais uma vez, o tipo de produgio define parcialmente 0 uso das componentes plisticas da animacio, da criagao experimental 4 animagio ndustrial. Para Patrick Barrés, existem essencialmente técnicas grificas que definem outros tantos projetos de representacao: “Os filmes de animagao de experiéncias plasticas, de modo diferente dos desenhos animados realizados em acetato, inscritos numa tradi¢ao cléssica do desenho (que em geral mantém um nivel de hierarquizacao entre o fundo e a forma, entre 29 O CINEMA DE ANIMAGAO © desenho e a cor: a prépria organizacao do trabalho nos estlidios de produgao Prova-o, ao separar as atividades do desenhador e do colorista), traduzem esse efeito de esboco através do procedimento que consiste em ‘condensar’ as cores € ‘as margens graficas. Reencontramos aqui a oposicao entre o desenho eo colorido (..).A obra de desenho, de pintura ou de gravura animada fica em estado de esboco e basta-se a si prépria” (2006: 76). Nessa perspetiva, existem entao dois tipos de realismo, que regressam as discussées sobre a pintura realista no fim do século xix: um reside na matéria. pictérica, prosseguindo os trabalhos de um Manet (uma maneira nao realista de abordar o real), o outro no assunto (o tratamento hiper-realista da pintura convencional), A saida de Une Nuit sur le Mont Chauve, de Alexandre Alexeieff, 0 ct(- tico Emile Vuillermoz realcava a técnica utilizada (0 ecra de alfinetes, uma superficie coberta por milhares de alfinetes iluminados por uma luz rasante) como “gravuras animadas que repelem qualquer elemento realista. Elas ndo sao fotografias do real. Aqui, tudo é composigao ¢ transposicao” (citado em Bendazzi, 2001: 28). As técnicas nao transmitem da mesma maneira o grau de realismo desejado pelo realizador. O emprego de uma técnica relaciona-se em geral num cineasta com as suas préprias qualidades de artista. Se souber desenhar ou caricaturar, 0 uso de um simples traco a Kipis serlhe-d facil; se for mais escultor, poderd voltar-se para as técnicas de stop motion; ¢ se tiver atracao pela informatica ou pelo aspeto virtual da animagio, ird recorret A anima¢ao por computador. Uma personagem desenhada grosseiramente, ou em plasticina, é naruralmente menos realista do que uma personagem realizada com as mais recentes tecnologias digitais — nao deixa de ser, em qualquer caso, uma representacdo nao fotogréfica. As marionetas quase humanas de Suzie Templeton em Dog (2001) sio extraordindrias porque se afastam do humano tanto quanto se aproximam dele, tal como acontece no enigmético Rubber Johnny (Chris Cunningham, 2005). Em Dad's Dead (Chris Shepherd, 2003), © trabalho visual a partir de imagens reais pretende exatamente questionar © quotidiano, ¢ transportar de imediato o espetador a um mundo paralelo que comunica com a realidade. O interesse dessas técnicas mistas, proximas das artes plisticas, encontra-se justamente na indeterminacéo quanto aos uuniversos de referéncia. Antes da invengao das técnicas digitais, Barthélémy Amengual (1965) explicava a sua incredulidade perante o surreal desenhado, € propunha (como André Martin, alids) a necesséria utilizacio de um real de referéncia (por exemplo, fotografia ou sombras chinesas, fora do desenho animado propriamente dito) para criar uma surtealidade. A evolugio das técnicas de animagio levou os criadores, talvez mais do que o necessdtio, a oprar por um campo no dominio da criagao, entre 2D ¢ 3D, por exemplo, ou entre animagao brutal ¢ soft; quando é sem diivida na mistura dos géneros que a animagéo encontra a sua especificidade e 0 seu interesse, Até filmes como os de Miyazaki compoem-se na verdade de técnicas mistas, entre o 2D 0 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES tradicional eo 3D, mas de maneira pouco visivel e essencialmente pragmitica: qual seré a técnica menos cara para obter um efeito preciso? As técnicas tendem cada vez mais a misturar-se, com personagens em 3D As quais se aplica um tratamento em cel-shading, que confere um sombreado nitido como no acetato (€ néo matizado como na imagem digital), ou com personagens que evoluern num universo tridimensional (veja-se Mulan, Bancroft € Cook, 1998, por exemplo). Cono refere Philippe Moins (2001: 8-9): “Hoje, todas essas formas de animacio, 2D, 3D, tradicional, digital, cém tendéncia a mesclar-se, a alimentar-se umas das outras, ¢ a regenerar assim um cinema de animacio que, & forca de sc repisar, vinha mordendo a cauda”. O mesmo autor nota, alids, que o sucesso das imagens digitais deve-se sem duivida a0 realismo acrescido do espaco visual apresentado a0 espetador, tal como o 3D real em plasticina ou outro material. Um filme como Wonderfid Days (Kim Mun-saeng, 2003) mistura 2D ¢ 3D real e virtual. Michel Ocelot, otiundo do 2D, e que costumava empregar técnicas artesanais (recortes, sombras chi- nesas), utiliza em Azur et Asmar (2006) 0 3D digital de maneira igualmente ponderada e convincente ~ como uma ferramenta de ctiagio plistica e néo como um fim em si mesmo. Flatworld, de Daniel Greaves (1998) explora com mestria a totalidade dessas técnicas, encenando personagens em 2D recortados ¢ filmados imagem a imagem num universo de 3D real e virtual, Desse modo, a diferenga estabelecida por Couchot e Hillaire entre a animacio tradicional a digital fica problemética. Para eles, nos filmes da Pixar, “as personagens jé nndo so desenhos, mas encantadoras marionetas que percotrem cendrios quase ‘naturais’ ou um plateau de cinema, iluminadas por focos e filmadas por uma camara. A técnica ea estética da animagao cai na influéncia cinematografica” (2003: 43-44). Por um lado, o desenho continua a ser uma componente capital do trabalho na Pixar, inclusive na fase de modelizacao, € por outro lado essa estética existe desde os filmes de George Pal, que rodava com marionetas inter- mutiveis em estiidios amplamente iluminados, com uma camara de 35mm. Em 1989 Georges Sifianos notava que a animacéo nao é por si mesma mais “poética” do que a filmagem real’, mas que é no intersticio entre a ani- mao ¢ a cinema de filmagem real que se pode definir a especificidade da animacao. O autor, de resto, evocava um esbatimento préximo (que veio a acontecer) das fronteiras entre os dois mundos para dar lugar a uma estética fundida, “unificada”. De facto, na publicidade e no clipe, tal como na curta ena longa-metragem, as técnicas de animacéo ¢ compositing tendem a diluir consideravelmente os limites do real do surreal, O realismo das imagens animadas é geralmente um falso problema, jé que fora do hiper-realismo do 3D (ou fotorrealismo, entendido por Laurent Jullier como “o ponto de 1 A questio, todavia, gera discusses na comunidade dos animadores. Para Francois Darrasse (carta ao autor), “como na poesia, a animagao grita a sua subjetividade muito alto; o real nunca & mais do que citago que atravessa o filtro sensivel de um individuo reconhe- cidamente néo omnisciente”. 31 nio-distingao entre impressio analdgica e sintese digital”, 1998: 81), todas as técnicas (inclusive a pixilacdo) remodelam profundamente o real. Consegue- -se perfeitamente representar de mancira realista acontecimentos que ndo 0 sao e vice-versa, como se vé em muito cinema de filmagem real. Mas ndo devemos enganar-nos: sao raros os filmes ou séries que utilizem a animagéo de modo nio realista, principalmente no que respeita a0 movimento (que McLaren ¢ Len Lye colocavam no centro da animagio). O facto de tratar-se de uma sobrerrepresentacao por vezes exagerada (em especial no desenho animado ou no anime’ japonés) em nada modifica a tepresentaao mimética, ‘Um filme como Journal de Sébastien Laudenbach (1998) é bastante realista cru, apesar de uma animagao espartana e uma estética minimalista. Pro and Con de Joanna Priestley e Joan Gratz (1993) utiliza num modo documental depoimentos orais relativos a vida na prisao do estado de Oregéo, visualizados de maneira nao realista. Também a proximidade com o real é antes de tudo uma opgio do argumento. Portanto, a animagao nao se usa necessariamente para “rejeitar” o real; cla é uma forma de expresso que permite mostré-lo, da mesma maneira que outzas vias simbdlicas igualmente originais. $6 0 caso de Walt Disney e dos que copiaram a sua estética depende da analogia com a filmagem real - com tum percurso ao longo da vida que mistura desenho animado e filmagem real, do emprego do rotoscépio até a Disneylandia (ver o capitulo “Disney”). O rotoscépio, inventado por Max Fleischer em 1915, é uma maquina que per- ite, através de retroprojegio, decalcar os movimentos de petsonagens reais para aplicé-los a personagens de desenho animado. A imagem é copiada em Papel, o que resulta evidentemente numa animagao extremamente fluida (ja que se baseia em movimentos reais), na qual a diferenca entre o desenho ea realidade cria um choque visual. Os Fleischer utilizaram a sua invengéo na série Out of the Inkwell a partir de 1919, com o palhaco Koko, ¢ depois em As Viagens de Gulliver (Dave Fleischer, 1939) ¢ na série Superman durante a Segunda Guerra Mundial. Um dos problemas apontados ao rotoscépio € 0 seu aspeto ao mesmo tempo demasiado “mecinico” e “mole” (Georges Schwizgebel, por exemplo, deixou de o usat), mas basta ver a sua utilizagao muito diversa nos filmes da cineasta do Quebeque, Michéle Cournoyer, ou do norte-americano Richard Linklater para perceber todo o interesse desse instrumento 20 servico da ctiagio dos animadores?, Em Feeling My Way (1997), Jonathan Hodgson mistura filmagem real ¢ elementos desenhados 4 medida que um homem vai caminhando (de um ponto de vista duplamente “subjetivo”) pela rua. Do mesmo modo, a utilizagao de efeitos visuais de ani- macao em filmagem real favorece uma reflexo aprofundada sobre a prépria percegéo, como indica Chris Landreth a propésito dos seus filmes The End ou Ryan: “Os meus filmes instauram uma realidade diferente, isto é uma 1 Termo japonés que define a animacio, Pronuncia-se “animé”, 2 Ver o dessir consagrado ao rotoscépio em Marcel Jean, 2006: 34-61. 32 1. TECNICAS, ESTRUTURAS, AUTORES realidade baseada no real concreto, percetivel, mas & qual se juntam camadas de sentido que dizem respeito & bagagem emocional, ao estado psicoldgico das minhas personagens” (entrevista com Marcel Jean, 2006: 85). Ex nibilo A técnica da imagem a imagem possibilita “engendrat” formas a pouco ¢ pouco, nao na magia do momento ou do gesto criador stibito, mas no tempo necessariamente demorado de quem esculpe a matéria, Alexandre Alexeieff era obcecado pela singularidade da animacio relativamente ao “cinema direto”, ou seja, a0 cinema em filmagem real, chegando a separat os dois campos de uma maneira decerto algo artificial (j4 que o animador utiliza 4 mesma o cinema como suporte), mas que explica bem a especificidade do modo de ctiagdo da animagao: “A animacdo, que descobriu muitas técnicas de realizacéo, apresenta-se como um método de criagio de movimento ‘imagem a imagem’, seja qual for a técnica empregada. Quando se pronuncia a palavra cria¢do hd evidentemente exagero, ois o homem nada pode criar: nem pedras, nem plantas, nem animais. A palavra designa antes uma manipulacao, um arranjo de coisas existentes” (prefacio de Bendazzi, 1991: 21). Mas nem todos os animadores ¢ autores tém essa reticéncia no uso das palavras, a comecar por Ladislas Starevitch, que descreve assim o animador: “No reino da ilusio onde constantemente se move, ele pode recriar & sua vontade 0 caos dos firmamentos ou a décima milionésima parte do inseto mais minusculo (citado em Martin, 2000: 396). Para Lloyd Price, “o que ha de belo na animacio é a ideia de insuflar vida a uma matéria totalmente inerte. O cinema é uma arte da iluséo, mas quando é da animagao que se trata, pode-se dizer que esperamos 0 auge da ilusio, pois logo que desligamos a camara, s6 resta um monte de plasticina” (citado em Moins, 2001: 128). A plasticina, tal como o simples traco, so ideais para fazer nascer formas ex nihilo. Do nada pode nascer tudo. O “principio da transformagao, tao facil de realizar na modelagem” (ibid:: 17), foi assim utilizado muitas vezes, como uma alegoria do trabalho artistico. A modelagem e o dom de vida vém de Jonge, remontam ao homunculus ¢ ao Golem. E dizer que a animagao do inanimado nao esperou o processo de imagem a imagem para colonizar 0 imagindrio, tendo criado ha séculos uma poderosa mitologia. Brian Sibley descreve bem a relago que se instaura entre a massa informe ¢ 0 animador: "0 mito da Criacdo, conjugado em milltiplas variantes culturais e religiosas, é 0 mai antigo e partilhado do mundo. A imagem simbélica da génese, que tanto mostra as origens do homem como a fonte da sua criatividade, desde sempre inspirou os artistas. Também os animadores que trabalham com volume encontraram nela 33 © CINEMA DE ANIMAGAO __ ae um tema predileto, Peter Lord aproveitou a ideia na sua curta-metragem Adam, nomeada para os Oscares de 1991, para evocar a omnipoténcia do animador face a sua bola de plasticina’ (Lord e Sibley, 1999: 17). O caso da animagao em volume (para a qual é vélido 0 termo 3D) difere da animacio em 2D por o animador ter de intervir diretamente perante a cimara (enquanto no 2D tradicional a fotografia ou a fotogravura dos acetatos ou dos desenhos é apenas uma etapa mecinica efetuada por um técnico — se bem que outras técnicas de 2D possibilitem a animagao direta sob a camara, como os recortes, a arcia, etc.). Philippe Moins observa (2001: 9): “Osrealizadores de 3D sao maestros e demiurgos; s4o artistas plisticos mas também contadores de historias, encenadores, operadores de camara, diretores de fotografia, irigem os seus atores, fazem a sua pesquisa, e tomam-se um pouco por Deus a0

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