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Andre Gorz - A Saida Do Capitalismo PDF
Andre Gorz - A Saida Do Capitalismo PDF
Paulo Marques
Pouco antes de falecer, o filósofo André Gorz enviou para a revista Ecorev este artigo.
Escrito em julho de 2007 foi reproduzido pela revista espanhola “ El Viejo Topo” na edição 258-
259 de julho e agosto de 2009.
No artigo Gorz constata que o sistema capitalista a partir das profundas transformações que
advém das novas tecnologias coloca em xeque a própria existência do sistema. Segundo Gorz esse
processo do que ele denomina “saída do capitalismo” já começou, mas ainda não se sabe se a saída
deste modelo hegemônico de produção será de forma civilizada ou bárbara. Segundo Gorz “já
conhecemos a forma bárbara. Prevalece em várias regiões da África, dominadas por senhores da
guerra, pelo saque das ruínas da modernidade, os massacres e tráfico de seres humanos”. Por
outro lado as condições que se abrem para a forma civilizada, que seria a partir de uma outra
economia baseada no que o autor chama de auto-produção comunal, estão dadas.
Neste dia Internacional dos Trabalhadores o blog Brasil Autogestionário reproduz este artigo
traduzido para o português, como uma homenagem a este que foi um dos grandes pensadores
contemporâneos do tema do trabalho e como contribuição à reflexão sobre as possibilidades e
perspectivas das práticas dos trabalhadores e trabalhadoras que fazem da autogestão uma
possibilidade de saída civilizada do capitalismo.
Boa Leitura,
André Gorz
A questão da saída do capitalismo nunca esteve tão na atualidade: apresenta-se hoje como
uma novidade e com a necessidade urgente de uma radicalidade nova. Devido ao seu próprio
desenvolvimento, o capitalismo alcançou um limite interno e externo que é incapaz de superar e que
lhe converte em um sistema que sobrevive graças a subterfúgios à crise de suas categorias
fundamentais: o trabalho, o valor, o capital.
A informatização e a robotização têm permitido produzir cada vez mais mercadorias com
cada vez menos trabalho. O custo do trabalho por unidade de produto não deixou de diminuir e o
preço dos produtos tende a baixar. Entretanto, quanto mais diminui a quantidade de trabalho para
uma produção particular, mais tem que aumentar o valor produzido por trabalhador- sua
produtividade- para que a massa de benefício não diminua. Obtemos, portanto, este paradoxo
aparente: quanto mais aumenta a produtividade, mais tem que aumentar esta para evitar que o
benefício diminua. A corrida pela produtividade tende a acelerar-se, os recursos humanos a reduzir-
se, a pressão sobre as pessoas a endurecer, o nível e a massa salarial a diminuir. O sistema evolui até
um limite interno onde a produção e o investimento na produção deixa de ser já suficientemente
rentável.
As cifras provam que se alcançou este limíte. A acumulação de capital produtivo não têm
deixado de experimentar uma regressão. Nos Estados Unidos, as 500 empresas do índice Standart &
Poors dispõe de 631 bilhões de reservas líquidas, a metade dos benefícios das empresas americanas
provém de operações nos mercados financeiros. Na França, o investimento produtivo das empresas
do CAC 40 nem sequer aumenta quando seus benefícios se multiplicam.
Posto que a produção já não é capaz de valorizar todos os capitais acumulados, uma parte
crescente deles fica sob a forma de capital financeiro. Se constitui uma indústria financeira que não
deixa de refinar a arte de fazer dinheiro comprando e vendendo somente diversas formas de
dinheiro. O dinheiro mesmo é a única mercadoria que produz a industria financeira através de
operações cada vez mais arriscadas e cada vez menos controláveis nos mercados financeiros. A
massa de capital que a industria financeira drena e gestiona supera desde logo a massa de capital
que valoriza a economia real(o total dos ativos financeiros representa 160 bilhões de dólares, o que
quer dizer, três a quatro vezes o PIB mundial). O “valor” deste capital é puramente fictício;
descansa em grande parte sobre o endividamento e o “good will”, isto é, sobre antecipações: a bolsa
capitaliza o crescimento futuro, os benefícios futuros das empresas, a futura alta de preços
imobiliários, os lucros que poderão aportar as reestruturações, fusões, concentrações, etc... As
cotações da bolsa se incham de capitais e de suas mais-valias futuras: os bancos incitam as famílias
a comprar (entre outras coisas) ações e certificados de investimento imobiliário, a acelerar assim a
alta das cotações, a pedir empréstimos a seu banco importâncias crescentes na medida que aumenta
seu capital fictício bursátil.
II
O capitalismo deve sua expansão e sua dominação ao poder que adquiriu em um século,
tanto na produção como no consumo. Ao privar primeiro os operários de seus meios de trabalho e
de seus produtos, garantiu-se progressivamente o monopólio dos meios de produção que têm
conseguido subordinar o trabalho. Com a especialização, a divisão e mecanização do trabalho em
grandes instalações, os trabalhadores se converteram nos apêndices das mega máquinas do capital.
Tornou-se assim impossível para os produtores apropriar-se dos meios de produção. Graças a
eliminação do poder daqueles sobre a natureza e o destino dos produtores, se têm assegurado ao
capital o quase monopólio da oferta, quer dizer o poder de antepor em todos os âmbitos as
produções e os consumos mais rentáveis, assim como o poder de criar os gostos e desejos dos
consumidores e a maneira com a que podem satisfazer suas necessidades. Este poder é o que a
revolução informacional começa a cindir.
O valor comercial (o preço) dos produtos teria, portanto, que depender mais de suas
qualidades imateriais não mensuráveis que de sua utilidade (valor de uso) substancial. Estas
qualidades imateriais – o estilo, a novidade, o prestígio da marca, a raridade ou “exclusividade”-
teriam que conferir aos produtos um estatuto comparável ao das obras de arte. Estas últimas tem um
valor intrínseco; não existe nenhum padrão que permita estabelecer entre elas uma relação de
equivalência ou “preço justo”. Não são, portanto, verdadeiras mercadorias. Seu preço depende da
raridade, a reputação do criador, o desejo do comprador eventual. As qualidades imateriais
incomparáveis proporcionam a empresa produtiva o equivalente de um monopólio e a possibilidade
de assegurar-se uma renda de novidade, raridade, exclusividade. Esta renda esconde, compensa e
freqüentemente recompensa a diminuição do valor em sua aceitação econômica do que a redução
dos custos de produção gera para os produtos que são mercadorias por essência intercambiáveis
entre si segundo a relação de equivalência. Desde um ponto de vista econômico, a inovação não cria
valor: é o meio para criar uma rara fonte de renda e conseguir um sobre preço em detrimento dos
produtos concorrentes. A parte da renda no preço de uma mercadoria pode ser dez, vinte ou
cinqüenta vezes mais grande que seu custo de produção, e não só se aplica aos artigos de luxo;
também se aplica aos artigos do dia a dia como tênis de esporte, camisetas, celulares, discos, calças
jeans, etc...
Entretanto, a renda não tem a mesma natureza que o benefício: não corresponde a criação de
um aumento de valor, de uma mais-valia. Redistribui a massa total do valor a favor das empresas
rentistas e em detrimento dos outros, não aumenta essa massa.
Neste sistema todo se opõe a autonomia dos indivíduos; a sua capacidade de refletir sobre
seus objetivos e necessidades comuns; de concertar-se sobre a melhor maneira de eliminar o
desperdício, de economizar recursos, de elaborar juntos, como produtores e consumidores, uma
norma comum do suficiente – o que Jacques Delors chamava uma “abundancia frugal”. Sem dúvida
alguma, a ruptura com a tendência de “produzir mais , consumir mais” e a redefinição autônoma de
um modelo de vida que aspira a “fazer mais e melhor com menos” supõe a ruptura com uma
civilização onde não se produz nada do que se consome e não se consome nada do que se produz;
onde os produtores e consumidores estão separados e onde cada um se opõe a si mesmo já que é
sempre ou um ou outro a cada vez; onde todas as necessidades e todos os desejos se centram na
necessidade de ganhar dinheiro e o desejo de ganhar mais, onde a possibilidade de auto-produção
para o auto-consumo parece fora do alcance e ridicularmente arcaica e sem razão.
Entretanto, a “ditadura das necessidades” perde força. A influência que as empresas exercem
sobre os consumidores se torna mais débil apesar do aumento exponencial dos gastos para o
marketing e a publicidade. A tendência a auto-produção ganha de novo terreno graças ao peso
crescente que tem os conteúdos imateriais na natureza das mercadorias. O monopólio da oferta
escapa pouco a pouco ao capital.
Mas tudo muda no momento em que os conteúdos imateriais não são inseparáveis dos
produtos que os contém, nem sequer das pessoas que os possuem; quando acedem a uma existência
independente de todo uso particular e se convertem em suscetíveis de ser reproduzidos em
quantidades ilimitadas por um custo ínfimo, após sua tradução em programas. Então podem
converter em um bem abundante que, por sua disponibilidade ilimitada, perde qualquer valor de
mudança e cai no domínio público como bem comum gratuito- salvo se for possível impedi-lo ao
proibir o acesso e o uso ilimitado para os quais estão feitos.
O importante para o momento é que a principal força produtiva e a principal fonte de renda
caem progressivamente no domínio público e tendem à gratuidade; que a propriedade privada dos
meios de produção e, portanto, o monopólio da oferta são cada vez menos possíveis; que por
conseguinte a influência do capital sobre o consumo se torna flexivel e este pode tender à
emancipar-se da oferta mercantil. Trata-se aqui de uma ruptura que ataca a base do capitalismo. A
luta empreendida entre os “programas proprietários” e os “ programas livres” ( livre, “free”, que é
também o equivalente em inglês de “gratuito”) têm sido o início do conflito central desta época. Se
estende e se prolonga na luta contra a mercantilização das riquezas primárias- a terra, as sementes,
o genoma, os bens culturais, os saberes e as competências comuns que constituem a cultura
cotidiana e que são as condições prévias da existência de uma sociedade. Do resultado desta luta
definirá se a saída do capitalismo será de forma civilizada ou bárbara.
Duas circunstancias advogam a favor deste tipo de desenvolvimento. A primeira é que existe
muito mais know-how, talento e criatividade do que a economia capitalista é capaz de utilizar. Este
excedente de recursos humanos somente pode ser produtivo em uma economia onde a criação de
riqueza não se submeta a critérios de rentabilidade. A segunda é que “ o emprego é uma espécie em
vias de extinção”.
Não digo que estas transformações radicais vão acontecer. Somente digo que pela primeira
vez podemos querer que se realizem. Os meios existem, assim como as pessoas que os põe em
prática metodicamente. È provável que sejam os sul americanos e os sul africanos os primeiros que
decidam recriar nos subúrbios deserdados das cidades européias as oficinas de auto-produção de
suas favelas ou de suas township de origem.
* André Gorz, nasceu em Viena em 1923, filósofo ajudou a fundar em 1964 o semanário Le
Nouvel Observateur. Gorz tornou-se um teórico importante do movimento da chamada Nova
Esquerda nos anos 60 N(ew Left). Iinspirado no jovem Marx, discutiu os temas do humanismo,
alienação e liberação da humanidade. Gorz foi influenciado, também, pela Escola de Frankfurt,
sendo amigo de Herbert Marcuse.
Seu tema central de pesquisa foi o trabalho: liberação do trabalho, justa distribuição de
trabalho, trabalho alienado, autonomia e emancipação. Autor da obra "Metamorfoses do Trabalho",
na qual analisa, entre outras questões, a relação do Cálculo Contábil com a Racionalidade
Econômica. Gorz colocou-se na oposição, então, ao individualismo hedonista, ao utilitarismo, ao
materialismo e ao coletivismo produtivo, defendendo uma versão humanista da ecologia. A ecologia
de Gorz, de qualquer maneira, permaneceu ligada à critica ao Capitalismo.
Entre suas obras destacam-se La morale de l'histoire (Seuil, 1959) ;Socialisme et Révolution
(Seuil, 1969) ;Ecologie et Politique (Galilée, 1975) ;The Traitor (1980) ;Adeus ao Proletariado
(Forense, 1982) ;Les Chemins du Paradis (1983);Critique of Economic Reason (1989) ;Capitalism,
Socialism, Ecology (1994) ;Reclaiming Work: Beyond the Wage-Based Society (1999);O Imaterial:
conhecimento, valor e capital (Annablume Editora) ;Misérias do Presente, Riqueza do Possível
(Annablume);Critica da Divisão do Trabalho (Martins Fontes);Metamorfoses do Trabalho
(Annablume);Cartas a D. História de um amor (Annablume).
André Gorz cometeu suicídio no dia 24 de Setembro de 2007, aos 84 anos, porque sua
mulher, Doriane, estava acometida de doença incurável, e segundo o próprio Gorz, não seria
possível para ele viver um segundo sequer nesse mundo sem a presença e a companhia de sua
amada.