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slavoj zi ze k apresenta

Robespierre,
ou a “divina violência” do terror

Q
uando o primeiro-ministro chinês Chou En-lai estava
em Genebra, em 1953, nas negociações de paz para aca-
bar com a Guerra da Coréia, um jornalista francês pergun-
tou-lhe o que pensava sobre a Revolução Francesa; Chou
En-Lai respondeu: “Ainda é muito cedo para dizer alguma
coisa.” De certo modo, ele tinha razão: com a desintegração
das “democracias populares” no final dos anos 1990, desen-
cadeou-se mais uma vez a luta pelo significado histórico da
Revolução Francesa. Os revisionistas liberais tentaram im-
por a idéia de que o fim do comunismo, em 1989, ocorreu
no momento exato: marcou o fim da era que tivera início
em 1789, com o fracasso final do modelo estatal-revolucio-
nário que entrara na cena histórica pela primeira vez com
os jacobinos.
Em nenhuma circunstância a máxima “toda história é
uma história do presente” é mais verdadeira que no caso
da Revolução Francesa: sua recepção historiográfica sempre
refletiu de perto os giros e reviravoltas das lutas políticas. A
marca que identifica
jeição direta todos osatipos
do movimento: de conservadores
Revolução Francesa foié auma
re-
8 Virtude e Terror

catástrofe desde o princípio, o produto do espírito moderno sem Deus;


deve ser interpretada como a punição divina pelos caminhos tortuosos
da humanidade; portanto, cabe desmontar sua herança da forma mais
meticulosa possível. A atitude liberal típica é diferente: sua fórmula é
“1789 semdescafeinada,
revolução 1793”. Resumindo, o que osque
uma revolução sensíveis liberais
não cheira querem é As-
a revolução. uma
sim, François Furet e outros tentaram privar a Revolução Francesa de
seu estatuto de evento fundador da democracia moderna, relegando-a
a uma anomalia da história: houve uma necessidade histórica de afir-
mar os princípios modernos da liberdade pessoal etc., mas, como pro-
va o exemplo inglês, isso talvez pudesse ser conseguido de modo muito
mais efetivo por uma forma mais pacífica... Os radicais, ao contrário,
estão possuídos pelo que Alain Badiou chamou de “a paixão do Real”:
se você diz A – igualdade, liberdades e direitos humanos –, não deve fu-
gir de suas conseqüências, mas é preciso reunir coragem para dizer B –
o terror realmente precisou defender e afirmar A.1
De qualquer modo, seria simples demais dizer que a esquerda de
hoje deveria simplesmente continuar por esse caminho. Alguma coisa,
algum tipo de corte histórico aconteceu em 1990: todo mundo, inclu-
sive a “esquerda radical” de hoje, está de certo modo envergonhado do
legado jacobino do terror revolucionário concentrado no Estado, de
forma que o lema comumente aceito é que a esquerda, para recuperar
efetividade política, deveria reinventar-se por completo, abandonando
afinal o chamado “paradigma jacobino”. Em nossa era pós-moderna de
“propriedades emergentes” – a interação caótica de múltiplas subjeti-
vidades, a livre interação, mais que a hierarquia centralizada, a multi-
plicidade de opiniões em lugar de uma Verdade –, a ditadura jacobina
não é fundamentalmente “do nosso gosto” (a palavra “gosto” ganha
aqui todo o seu peso histórico, como nome de uma disposição ideoló-
gica básica). Podemos imaginar algo mais estranho ao nosso universo
de liberdade de opinião, concorrência de mercado, interação pluralista
nômade etc. que a política da Verdade (com “V” maiúsculo, é claro) de
Robespierre, cujo objetivo declarado era “devolver o destino da liber-
dade às mãos
maneira da verdade”? Tal Verdade só pode ser imposta de uma
terrorista:
Slavoj Zizek apresenta

Se a força moral do governo popular na paz é a virtude, a força moral


do governo popular em revolução é ao mesmo tempo virtude e terror: a
virtude, sem a qual o terror é funesto; o terror, sem o qual a virtude é im-
potente. O terror nada mais é que a justiça imediata, severa, inflexível; ele
é, portanto, uma emanação da virtude. Mais que um princípio particular,
é uma conseqüência do princípio2 geral da democracia aplicado às mais
prementes necessidades da pátria.

A linha de argumentação de Robespierre alcança seu clímax na


identificação paradoxal dos opostos: o terror revolucionário “nega” a
oposição entre punição e clemência – a punição justa e severa dos ini-
migos é a forma mais alta de clemência, pois nela coincidem o rigor e a
caridade: “Punir os opressores da humanidade é clemência; perdoá-los
é barbárie. O rigor dos tiranos tem por único princípio o rigor: o do
governo republicano parte da beneficência.”3
O que, então, deveriam fazer com isso aqueles que permanecem
fiéis ao legado da esquerda radical? Duas coisas, pelo menos. Primeiro,
o passado terrorista deve ser aceito como nosso, mesmo que – ou pre-
cisamente porque – ele seja rejeitado criticamente. A única alternativa
à hesitante posição defensiva de nos sentirmos culpados diante de nos-
sos críticos liberais ou direitistas é: precisamos fazer o trabalho crítico
melhor que nossos oponentes. Isso, no entanto, não é toda a histó-
ria: não devemos permitir que nossos oponentes escolham o campo
e o tema da luta. Isso quer dizer que a impiedosa autocrítica deve ser
acompanhada da admissão intimorata do que, para parafrasear o juízo
de Marx sobre a dialética de Hegel, somos tentados a chamar de “nú-
cleo racional” do terror jacobino:

A dialética materialista assume, sem particular alegria, que até agora ne-
nhum sujeito político foi capaz de chegar à eternidade da verdade que
estava desenvolvendo sem momentos de terror. Saint-Just perguntou: “O
que querem aqueles que não querem nem a Virtude nem o Terror?” A
resposta dele é bem conhecida: querem a corrupção – outro nome para a
derrota do sujeito.4

bemOu,
geralcomo definiu
é sempre sucintamente
terrível.”
5 Saint-Just:
Essas palavras “Aquiloserque
não devem produz o
interpreta-
10 Virtude e Terror

das como uma advertência contra a tentação de impor violentamen-


te o bem geral à sociedade, mas, pelo contrário, como uma verdade
amarga a ser totalmente endossada.
O ponto crucial suplementar que se deve ter em mente é que, para
Robespierre,
bespierre era oum
terror revolucionário
pacifista, é o próprio
não a partir opostooudada
da hipocrisia guerra: Ro-
sensibili-
dade humanitária, mas porque estava bem consciente de que a guerra
entre as nações, em geral, serve como meio de ofuscar a luta revolucio-
nária dentro de cada nação. O discurso de Robespierre “Sobre a guerra”
tem especial importância hoje: mostra-o como um verdadeiro pacifis-
ta que vigorosamente denuncia o patriótico chamado à guerra – mes-
mo que a guerra seja formulada como a defesa da Revolução – como a
tentativa daqueles que querem “revolução sem revolução” para desviar
a atenção da radicalização do processo revolucionário. Sua posição é
assim o oposto exato daquela adotada pelos que necessitam da guerra
para militarizar a vida social e assumir o controle ditatorial sobre ela. 6
Por isso Robespierre também denuncia a tentação de exportar a Re-
volução para outros países, eficazmente “liberando-os”: “Os franceses
não estão afligidos com a mania de tornar qualquer nação alegre e livre
contra sua vontade. Todos os reis poderiam ter vegetado ou morrido
impunemente em seus tronos manchados de sangue se tivessem sido
capazes de respeitar a independência do povo francês.”7
O terror revolucionário jacobino algumas vezes é (meio) justifi-
cado como o “crime criador” do universo burguês da lei e da ordem,
no qual é permitido aos cidadãos irem em paz ao encalço de seus in-
teresses. Deve-se rejeitar tal afirmação com base em duas coisas: não
só é factualmente errada (muitos conservadores estavam bem certos
ao assinalar que é possível alcançar a lei e a ordem burguesas sem ex-
cessos terroristas, como foi o caso na Grã-Bretanha – embora lá tenha
havido o episódio de Cromwell) e, muito mais importante, o Terror
revolucionário de 1792-94 não foi um caso do que Walter Benjamin
e outros chamam de violência da criação do Estado, mas antes um
caso de “divina violência”.8 Intérpretes de Benjamin lutam com aquilo
que “divina
sonho violência”
esquerdista de possa efetivamente
um evento “puro” significar
que nunca – talvez
ocorre?umDevería-
outro
Slavoj Zizek apresenta 11

mos lembrar aqui a referência de Friedrich Engels à Comuna de Paris


como um exemplo de ditadura do proletariado: “Utimamente, os fi-
listeus socialdemocratas têm sido outra vez tomados por um sagrado
terror diante das palavras ditadura do proletariado. Pois muito bem,
senhores, queremfoisaber
de Paris. Aquilo como édo
a ditadura essa ditadura? Olhem
proletariado.” 9 para a Comuna
Deveríamos repetir isso,mutatis mutandis, a propósito da divina
violência: “Pois muito bem, cavalheiros críticos teóricos, querem saber
como é essa divina violência? Olhem para o Terror revolucionário de
1792-94. Aquilo foi a Divina Violência.” (E a série continua: o Terror Ver-
melho de 1919...) Quer dizer,deveríamos identificar sem medo adivina
violência com um fenômeno histórico positivamente existente, evitan-
do assim qualquer mistificação obscurantista. Quando aqueles que estão
fora do campo social estruturado atacam “às cegas”, exigindo e prati-
cando imediata justiça/vingança, isso é a “divina violência”. Lembrem-
se, há pouco mais de uma década, do pânico no Rio de Janeiro, quando
multidões desceram das favelas para a parte rica da cidade e começaram
a saquear e queimar supermercados* –isso foi “divina violência”...
Como os gafanhotos bíblicos, a punição divina para os pecados
dos homens, a divina violência ataca de repente, um meio sem um fim,
vindo de parte alguma e de toda parte – ou, como escreveu Robespier-
re em seu discurso que exigia a execução de Luís XVI: “Os povos não
julgam como as cortes judiciárias; não proferem sentenças, eles lançam
o raio; não condenam os reis, eles os mergulham de novo no nada; e
essa justiça é tão boa quanto a dos tribunais.”10
A “divina violência” benjaminiana deve ser assim concebida como
divina no sentido preciso da velha máxima latina vox populi, vox dei:**
não no sentido perverso de “estamos fazendo isso como meros instru-
mentos da Vontade do Povo”, mas como o heróico ato de assumir a
solidão de uma decisão soberana. É uma decisão (de matar, de arris-
car ou perder a própria vida) feita em solidão absoluta, não coberta

***Referência a fatos passados no Rio de Janeiro na década de 1990. (N.T.)


Em latim: a voz do povo é a voz de Deus. (N.T.)
12 Virtude e Terror

pelo grande Outro. Se é extramoral, não é “imoral”, não dá ao agente


a licença para matar irrefletidamente, com algum tipo de inocência
angelical. A máxima da divina violência é fiat iustitia, pereat mundus:*
a divina violência é justiça, o ponto de não-distinção entre justiça e
vingança,
terror e faznooutras
qual opartes
“povo” (a parteoanônima
pagarem preço – odaDia
não-parte)
do Juízo impõe seu
Final para
a longa história de opressão, exploração, sofrimento – ou, como o pró-
prio Robespierre expressou de forma pungente:

Que pretendeis vós, que quereis que a verdade não tenha força na boca dos
representantes do povo francês? A verdade, sem dúvida, tem sua potên-
cia, sua cólera, seu despotismo; ela tem entonações tocantes, terríveis, que
ecoam com força tanto nos corações puros como nas consciências culpa-
das, e que a mentira não pode imitar, assim como Salomé não pode imitar
os raios do céu. Mas acusai disso a natureza; acusai disso o povo, que quer
a verdade e que a ama.11
É isso que Robespierre tem como objetivo, em sua famosa acusa-
ção aos moderados, de que o que realmente querem é uma “revolução
sem revolução”: desejam uma revolução destituída do excesso em que
a democracia e o terror coincidam, uma revolução que respeite as re-
gras sociais, subordinada a normas preexistentes, uma revolução na
qual a violência é privada da dimensão “divina” e assim reduzida a uma
intervenção estratégica que serve a objetivos precisos e limitados:

Cidadãos, queríeis uma revolução sem revolução? Qual é esse espírito de


perseguição que veio revisar, por assim dizer, aquela que rompeu nossos
grilhões? Mas como submeter a um julgamento certo os efeitos que podem
trazer essas grandes comoções? Quem podemarcar, depois do golpe, o pon-
to preciso onde devem se quebrar as vagas da insurreição popular? A esse
preço, que povo poderia jamais sacudir o uj go do despotismo? Porque, se é
verdade que uma grande nação não pode se levantar por um movimento
simultâneo, e que a tirania só pode ser golpeada pela parte dos cidadãos
que está mais próxima dela; como esses ousarão atacá-la se, depois da vi-
tória, delegados vindos de lugares afastados podem torná-los responsáveis

* Em latim: faça-se a justiça, pereça o mundo. (N.T.)


Slavoj Zizek apresenta 13

pela duração ou violência da tormenta políticaque salvou a pátria? Deve-se


considerar que eles estão autorizados por uma procuração tácita de toda a
sociedade. Os franceses, amigos da liberdade, reunidos em Paris no mês de
agosto último, agiram dessa forma, em nome de todosos departamentos. É
necessário aprová-los ou discordar deles imediatamente. Fazê-los criminal-
mente responsáveis por algumas desordens aparentes ou reais, inseparáveis
de um abalo tão grande, seria puni-los por sua devoção.12

Essa lógica revolucionária autêntica pode ser discernida já no pla-


no das figuras de retórica com as quais Robespierre gosta de inverter o
procedimento-padrão de primeiro evocar uma posição aparentemente
“realista” e depois mostrar sua natureza ilusória. Freqüentemente Ro-
bespierre começa apresentando uma posição ou a descrição de uma si-
tuação de modo exagerado, e depois nos lembra que aquilo que, numa
primeira aproximação, só poderia parecer ficção, é de fato a própria
verdade: “Mas o que digo? Aquilo que apresentei agora como hipóte-
se absurda é, na verdade, uma realidade muito clara.” É essa posição
revolucionária radical que também habilita Robespierre a denunciar
a preocupação “humanitária” com as vítimas da “divina violência” re-
volucionária: “A sensibilidade que geme quase exclusivamente pelos
inimigos da liberdade me é suspeita. Cessai de agitar diante de meus
olhos a túnica ensangüentada do tirano, ou acreditarei que vós quereis
acorrentar Roma outra vez.”13
A análise crítica e a aceitação do legado histórico dos jacobinos
encobrem a questão real que deve ser discutida: a realidade (freqüen-
temente deplorável) do Terror revolucionário obriga-nos a rejeitar a
própria idéia do Terror, ou existe um modo de o repetir nas diferentes
constelações históricas de hoje, para resgatar o conteúdo virtual de
sua prática? Isso pode e deve ser feito, e a mais concisa fórmula
de repetir o evento designado pelo nome de “Robespierre” é passar
do terror humanista (de Robespierre) para o terror anti-humanista
(ou melhor, inumano).
Em Le siècle, Alain Badiou argumenta que a guinada de “huma-
nismo e terror” para “humanismo ou terror”, que ocorreu no final do
século XX, foi um sinal de regressão política. Em 1946, Maurice Mer-
leau-Ponty escreveu Humanisme et terreur, sua defesa do comunismo
14 Virtude e Terror

soviético, que recorreria a uma espécie de aposta pascaliana, o que


anunciava a idéia que Bernard Williams mais tarde desenvolveu como
a noção de “sorte moral”: o terror presente será retroativamente justi-
ficado se a sociedade que dele emergir revelar-se de fato humana. Hoje,
tal conjunção de
predominante terror oe ehumanismo
substitui pelo ou: ou éhumanismo
impensável;oua terror...
visão liberal
Mais
precisamente, existem quatro variações sobre esse tema: humanismo e
terror, humanismo ou terror, cada qual em um sentido “positivo”ou em
um sentido “negativo”. “Humanismo e terror” em sentido positivo é o
que elaborou Merleau-Ponty: ele apóia o stalinismo (o engendramento
forçado – “terrorista” – do Homem Novo) e já é claramente discernível
na Revolução Francesa, sob a aparência da conjunção entre virtude e
terror feita por Robespierre. Essa conjunção pode ser negada de duas
formas. Pode envolver a escolha “humanismoou terror”, isto é, o pro-
jeto humanista liberal em todas as suas versões, desde o humanismo
dissidente anti-stalinista até os neo-habermasianos de hoje (Luc Ferry
e Alain Renaut na França, por exemplo) e outros defensores de direitos
humanos contra o terror (totalitário, fundamentalista). Ou pode con-
servar a conjunção “humanismo e terror”, mas de um modo negativo:
todas aquelas orientações filosóficas e ideológicas, desde Heidegger e
dos cristãos conservadores até os partidários da espiritualidade orien-
tal e da ecologia radical, que percebem o terror como a verdade – a
conseqüência última – do próprio projeto humanista, de sua hubris.*
Existe, no entanto, uma quarta variação, em geral deixada de lado:
a escolha “humanismo ou terror”, mas comterror, e não humanismo,
como termo positivo. Essa é uma posição radical difícil de sustentar,
mas, talvez, nossa única esperança: ela não resulta na obscena loucu-
ra de seguir abertamente uma “política terrorista e inumana”, mas em
alguma coisa muito mais difícil de considerar. No pensamento “pós-
desconstrucionista” de hoje (se arriscarmos essa designação ridícu-
la, que só pode soar como sua própria paródia), o termo “inumano”

* Hubris, em grego no srcinal: soberba e arrogância desmedida. (N.T.)


Slavoj Zizek apresenta 15

ganhou novo peso, em especial na obra de Agamben e de Badiou. O


melhor modo de focalizá-lo é pela via da relutância de Freud quanto
a endossar a injunção “Ama teu próximo!”. A tentação a que se deve
resistir aqui é a domesticação ética do próximo – por exemplo, o que
Emmanuel
sal a partir Levinas
do qualfez com essa
emana noção do
o chamado próximo
pela como o ponto
responsabilidade abis-
ética. O
que Levinas ofusca desse modo é a monstruosidade do próximo, uma
monstruosidade pela qual Lacan aplica ao próximo o termo Coisa (das
Ding), usado por Freud para designar o objeto último de nossos dese-
jos em sua intolerável intensidade e impenetrabilidade. Deveríamos
ouvir neste termo todas as conotações da ficção de horror: o próximo
é a Coisa (Má) que espreita detrás de todo primitivo rosto humano.
Pensem no filme Shining (O iluminado), de Stanley Kubrick, no qual o
pai, um modesto escritor fracassado, aos poucos transforma-se numa
besta assassina que, com um sorriso maligno, massacra sua família. Em
um paradoxo apropriadamente dialético, com toda sua celebração da
Alteridade, o que Levinas falha em contemplar não é alguma Mesmi-
dade subjacente a todos os seres humanos, mas a própria Alteridade
radicalmente “inumana”: a Alteridade de um ser humano reduzido à
inumanidade, a Alteridade exemplificada pela terrível figura do Mu-
selmann, o “morto-vivo” nos campos de concentração. Em um plano
diferente, o mesmo vale para o comunismo stalinista. Na narrativa-
padrão stalinista, mesmo os campos de concentração nazistas eram
mais um cenário da luta contra o fascismo onde prisioneiros comu-
nistas organizavam redes de heróica resistência – em tal universo, é
claro, não existe lugar para a experiência-limite do Muselmänn, do
morto-vivo privado da capacidade de compromisso humano. Não é
de admirar que os comunistas stalinistas estivessem tão ansiosos de
“normalizar” os campos, considerando-os apenas outro lugar da luta
antifascista e desqualificando os Muselmänner como aqueles que sim-
plesmente eram demasiado fracos para agüentar a luta.
É contra esse panorama que se pode entender por que Lacan fala
do núcleo inumano do próximo. Nos anos 1960 – a era do estruturalis-
mo –, Louis
teórico”, Althusser lançou
permitindo, e mesmoa famosa fórmula
exigindo, do “anti-humanismo
que este fosse suplementa-
16 Virtude e Terror

do pelo humanismo prático. Em nossa prática, devemos atuar como


humanistas, respeitando os outros, tratando-os como pessoas livres
dotadas de total dignidade, como criadores de seu mundo. No entanto,
em teoria, nem por isso devemos deixar de ter em mente que o huma-
nismo
neamenteé uma ideologia,
nossa o modoepelo
difícil situação, que oqual experimentamos
verdadeiro esponta-
conhecimento dos
seres humanos e de sua história deveria tratar os indivíduos não como
sujeitos autônomos, mas como elementos de uma estrutura que segue
suas próprias leis. Em contraste com Althusser, Lacan efetua a passa-
gem do anti-humanismo teórico para o anti-humanismo prático, isto
é, para uma ética que vai além da dimensão do que Nietzsche chamou
de “humano, demasiado humano” e confronta o núcleo inumano da
humanidade. Isso não significa apenas uma ética que não mais nega,
mas que corajosamente leva em conta a latente monstruosidade que
há no ser humano, a diabólica dimensão que explode em fenômenos
comumente cobertos pelo nome-conceito “Auschwitz” – uma ética
que ainda seria possível depois de Auschwitz, para parafrasear Adorno.
Essa dimensão inumana é, para Lacan, ao mesmo tempo, o suporte
último da ética.
Em termos filosóficos, tal dimensão “inumana” pode ser definida
como aquela de um sujeito subtraído de toda forma de “individualidade”
ou “personalidade” humanas. Esta é a razão por que, na cultura popular
de hoje, uma das figuras exemplares de um sujeito puro é um não-hu-
mano – alienígena, ciborgue – que mostra mais fidelidade à sua missão,
à dignidade e à liberdade do que suas contrapartidas humanas,da figura
de Schwarzenegger em O exterminador do futuro até a do andróide de
Rutger-Hauer emO caçador de andróides. Lembrem-se do sombrio me-
lancólico de Husserl, em suasMeditações cartesianas, de como o cogito
transcendental permaneceria não afetado por uma praga que aniquilas-
se toda a humanidade: é simples, com esse exemplo, acumular pontos
fáceis sobre o cenário autodestrutivo da subjetividade transcendental, e
sobre como Husserl deixa escapar o paradoxo que Foucault, em seu As
palavras e as coisas, chamou de “casal transcendental-empírico”, o vín-

culo que une


tal modo que para sempre odo
a aniquilação egoúltimo,
transcendental e o ego
por definição, levaempírico, de
ao desapa-
Slavoj Zizek apresenta 17

recimento do primeiro. No entanto, o que aconteceria se, reconhecen-


do totalmente essa dependência como um fato (e nada mais que isso –
um fato estúpido do ser), mesmo assim insistíssemosna verdade de sua
negação, na verdade da afirmação da independência do sujeito com res-
peito ao indivíduonoempírico
está demonstrada qua ser vivente? Essa independência não
gesto definitivo de arriscar a própriavida, em estar
pronto para renunciar ao próprio ser? É contra o quadro desse tópico,
da soberana aceitação da morte, que deveríamos reler a reviravolta re-
tórica com freqüência referida como prova da manipulação “totalitária”
de sua audiência por Robespierre.14 Essa reviravolta teve lugar durante o
discurso de Robespierre na Convenção Nacional, no dia 11 de germinal
do ano II (31 de março de 1794); na noite anterior, Danton, Camille
Desmoulins e alguns outros tinham sido presos, e muitos membros da
Convenção temiam, de modo compreensível, que sua vez também che-
gasse. Robespierre indica diretamente que a hora é decisiva: “Cidadãos,
chegou o momento de falar a verdade.” Em seguida evoca o medo que
flutuava na sala: “Querem o(n veut) fazer-vos temer abusos de poder, do
poder nacional que haveis exercido. ... Querem fazer com que temamos
que o povo venha a cair como vítima dos comitês. ... Temem que os pri-
sioneiros estejam sendo oprimidos ...”15

A oposição aqui é entre a terceira pessoa impessoalizada “eles” (os


instigadores do medo não estão personificados) e o coletivo dessa ma-
neira posto sob pressão, que quase imperceptivelmente passa da segunda
pessoa do plural “vós (vous)” para a primeira pessoa “nós” (Robespierre
galantemente se inclui no coletivo). Contudo, a formulação final intro-
duz uma mudança ameaçadora: nãose trata mais de que “querem fazer
com que vós/nós temamos”, mas sim que “temem”, o que significa que o
inimigo que provoca o medo já não está fora de “vós/nós”, membros da
Convenção Nacional, ele está aqui, entre nós, entre “vós”, aos quais Ro-
bespierre se dirige, corroendo nossa unidade por dentro. Nesse preciso
momento, Robespierre, num verdadeiro golpe de mestre, assume total
subjetivação. Esperando um pouco para que o ameaçador efeito de suas
palavras tenha lugar, ele então continua, na primeirapessoa do singular:
“Eu digo que
inocência qualquer
nunca teme oum que trema
escrutínio nesse16momento é culpado; pois a
público.”

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