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Um rio de pessegueiros

A Mãe

Sentado no soalho gasto do velho teatro no centro da cidade, lia uma primeira edição do

Água Viva como quem suspende a vida por um tempo. Lia-o pela terceira vez e lá fora

chovia. Caía pesada a chuva, impiedosa, como se cada gota caísse por cada pecado. E as

palavras de Lispector penetravam assim no seu pensamento imerso em fantasias e

terrores, mais agora que as relia e às vezes lhes tirava novo significado. A água torrente

descia avenida abaixo pelas sarjetas sujas. Cheirava a madeira velha e os feixes de luz

ténue dos holofotes ligados a meia potência denunciavam o pó abundante que pairava

no teatro. Poucas vezes lia concentrado mais que três ou quatro páginas. Que uma

pessoa de pensar numas coisas logo começa a conjeturar outras e ele que não podia

largar uma ideia sem a escrutinar de todas as maneiras. E bem se sabe que há certos

lugares que muito estimulam o pensamento e as considerações. O lugar dele era aquele

teatro. Há uma certa excitação em olhar um teatro vazio; é da ilusão do que podia ser e

ele vivia dessa ilusão.

Em casa, as paredes da cozinha haviam de estar baças do vapor que saía das panelas e o

ar impregnado do cheiro a peixe cozido. Vou fazer uma caldeirada para a gente comer à

noite, disse-lhe a mãe mesmo antes de ele sair de casa pela manhã, Vê lá se não me

chegas por que horas que os teus tios querem comer cedo e o peixe também se não se

comer na hora não presta. E ele a pensar que tudo faria por se atrasar que mais lhe valia

um ralhete que uma refeição de rabos de peixe em molho de água fervida com gordura e

tomate e a companhia da mãe e de um tio aleijado e de uma tia pouca esperta e muito

arisca. Lá se foi deixando ficar, sempre podia dizer que o autocarro se atrasou devido à

chuva e que ainda assim correu o quanto pôde e que penosamente nem toda a força que

fizera naquelas pernas nem todo o ar que enchera naqueles pulmões lhe concederam a
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grande vontade de chegar a tempo à caldeirada. Ainda podia acrescentar, Já viu, minha

mãe, como as coisas se complicam tanto sem uma pessoa ter culpa nenhuma? E a mãe

se apaziguaria moderadamente com aquele acontecer que ele tudo fez para contrariar,

mas não contrariou, e faria aquela cara de quem já se habituou ao triste fado de só lhe

ter sobrado um filho e ainda por mais o piorzinho.

Muita comichão sentia pela cara toda quando estava quieto, mais na fronte. Era por isso

também que não lia seguido. Como podia ler se estava sempre com necessidade de se

coçar? Passava as unhas rentes na testa com a força precisa para lhe saber bem mas com

o cuidado de não se arranhar, que depois lhe ia causar grande ardume de manhã quando

se pintasse para ser palhaço. Enquanto se coçava, apercebeu-se o Zé que era tarde, já a

contar com o atraso que o livrasse da caldeirada e de metade da festa. Dobrou para

dentro o canto superior da página para marcar onde ia, fechou o livro e levantou-se num

movimento lento, doloroso, que de há muito estar sentado naquela mesma posição,

naquele chão duro, lhe doíam as pernas e as costas como se tivesse sido açoitado. Lá foi

caminhando palco fora, em direção ao camarim, meio trôpego de início, já mais

equilibrado três ou quatro passos depois, curvado andava sempre. Por trás do palco foi

ao quadro elétrico para desligar os holofotes e, na penumbra, percorreu a apalpar as

paredes, mais por cautela que por necessidade, o caminho que lhe faltava. Sorte que

tinha ali os sacos de plástico mesmo à mão, pegou num, pôs o livro lá dentro, enrolou-

lhe as pegas para baixo e guardou-o dentro da mala. Agarrou num guarda-chuva, que

não tinha trazido a propósito, mas que por acaso lá estava esquecido de outro dia

qualquer e saiu. Que tempo! A chuva já não era tão pesada, mas a ventania inutilizava

qualquer tentativa de se abrigar. Não é que estivesse muito frio, não fosse aquele vento

e aquela chuva. E a esta hora até era bem capaz de arranjar um lugar sentado no
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autocarro. Não era tudo mau, a bem dizer, era terça-feira, nove de fevereiro e ele fazia

trinta e dois anos.

A Festa

Chegou a casa já passava das oito e meia, preparava o espírito para as palavras

impiedosas da mãe e o corpo para o cheiro a peixe cozido. Respirou fundo e rodou

lentamente a chave na fechadura. Ia começar a festa. Tu só me chegas a esta hora Zé?

Olha a gente já começou a comer que a tua tia está adoentada e eu também não ia deixar

arrefecer o peixe. Zé apressou-se a pousar o guarda-chuva que pingava generoso no

chão e a despir o casaco que pousou numa cadeira encostada ao canto da cozinha.

Cumprimentou primeiro o tio, com um aperto de mão, Parabéns rapaz, Obrigado tio,

obrigado, depois a tia, com um beijo que o deixou sentir a aspereza dos pelos negros

que lhe cresciam na cara, Credo que tu vens frio, fecha-me essa porta! e queira Deus

que eu não piore com estas correntes de ar. Sentou-se à mesa e tirou para o prato um

pedaço de peixe cozido que procurou não observar muito antes de meter à boca ainda

que o que pouco lhe apetecia, menos que o peixe, era tirar os olhos do prato. Explica lá

o que andas a fazer Zé que a gente nunca percebe muito bem. Sou palhaço tia faço

teatro para crianças. A tia deu uma gargalhada, E pagam-te para seres palhaço? Mal mas

vão pagando. Nunca teve grande jeito para nada, eu é que lhe fui valendo… olha com

esta idade, se não fosse eu não se sustentava, proferiu a mãe. Eu gosto do que faço,

gosto dos miúdos que lá vão ao teatro e vai dando para pagar as contas. Conta uma

anedota para a gente se rir Zé, o teu tio sabia muitas anedotas quando era novo, agora já

pouco sabe e pouco diz, mas quando era novo era engraçado. O tio levantou

ligeiramente a cabeça, olhou para Zé por cima dos óculos quadrados que lhe pesavam

no nariz e voltou a olhar para baixo e a comer. Eu não sei anedotas tia. Raio de palhaço

que está sempre maldisposto, nem para fazer circo, valha-me deus. O irmão, suspirou,
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tirou um lenço de pano do casaco de malha e pousou-o em cima da mesa, O irmão era

um santo, que os anjinhos o tenham… suspirou de novo e pegou no lenço, Tinha muita

cabecinha para a escola, as professoras todas o gabavam, ai o seu Tiago é muito esperto,

o seu Tiago vai longe, e quando começou a trabalhar na fábrica? Ui, os patrões só

faltava lhe pedirem para ser ele a mandar, já não se faz assim homens, assoou o nariz. A

gente sabe, a gente sabe, era um menino d’ouro o Tiaguinho, concordou a tia. Nisto a

mãe fixou Zé e começou a falar em tom agudo, arrastado, como quem chora mas não

chorava, Ele levou-me o meu Tiago, este traste levou-me o meu menino! Eu não tive

culpa mãe, não tive, quantas vezes eu vou ter de repetir que não tive culpa? Conteve o

choro o quanto pode e procurou concentrar-se em fazer parar o tremer do lábio inferior

mas o arranhar da garganta ganhou à força dele, fê-lo tossir e com o descontrolo da

tosse descontrolou-se tudo e ele chorou e gritou, Eu não aguento mais! Eu não aguento

mais este inferno! Esta casa! Esta vida! A culpa é sua, sua ouviu! Demónio! A mãe

esticou o braço e deu-lhe uma bofetada. A tia observava atentamente a situação, o tio

levantou desta vez os olhos do peixe, Calma, calma, dizia. Zé saiu apressadamente da

cozinha a chorar e quanto mais se queria conter mais chorava, correu pelo corredor

entrou na casa de banho e fechou-se lá dentro. Sentou-se na sanita e chorou primeiro de

nervos e depois de cansaço. Levantou-se passados longos minutos para se olhar no

espelho rachado do velho armário de medicamentos suspenso por cima do lavatório.

Deu-lhe um murro com o punho fechado, rachou-o ainda mais e sangrou de um lanho

que abriu na mão. Reparou também que o choro borrou os restos de maquilhagem que

pensava ter removido dos olhos, tinha duas longas linhas pretas a percorrerem-lhe a

face. Vagarosamente pegou num pouco de algodão, despejou-lhe uma noz de creme em

cima e começou a limpar a cara. Não sabia agora sair da casa de banho. Quando acabou

de limpar a cara encostou o ouvido à porta a ver se ouvia a tia, que o tio não ouvia de
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certeza, não ouviu nada e como tal deduziu que já se tivessem ido embora. Havia agora

de enfrentar a mãe, pois que remédio e não tivesse ele calma e ainda levava outra

bofetada. Abriu a porta da casa de banho e percorreu o corredor até à cozinha. A mãe

não estava lá, Mãe? Foi à sala, ao quarto do Tiago e nada. Preocupou-se aí, não soube

bem porquê mas soube bem que alguma coisa se passava, é daquelas coisas que não tem

explicação ou se tem a gente não a sabe. Mãe, onde está? Mãe? Correu para o quarto da

mãe que ficava no fundo do corredor. A porta estava entreaberta. Sem bater, entrou de

rompante e petrificou, quase se desequilibrou entre o primeiro impulso e o segundo,

quase sucumbiu à visão que se lhe afigurava. Sentiu uma azia primeiro, depois uma

enorme vontade de vomitar. Mãe…? O que se passou mãe? No meio da cama de mogno

envelhecido, em cima da colcha de flores bem esticada e com a almofada de rendas

brancas por baixo da cabeça, jazia, toda nua, a senhora sua mãe. Conseguindo aos

poucos abstrair-se da sensação de ver aquele corpo velho, enrugado, flácido, ali deitado,

o corpo de sua mãe, que ele nunca vira antes assim todo a descoberto, aproximou-se da

cama e disse, Mãe, consegue ouvir-me? A senhora estava deitada de barriga para cima,

com os olhos abertos, mas a expressão do seu rosto era vazia, como estivesse a dormir

ou como se estivesse morta. Morta não estava que no seu peito bem se percebia o

movimento ascendente e descendente da respiração. Mãe, tem de se vestir, não pode

estar aqui deitada assim… ao frio. Ela rodou a cabeça lentamente para olhar para ele e

perguntou, Que dia é hoje?

O Palhaço

- Ainda se lembra como é que ele se chamava?

- Hei de lembrar-me eu agora!

- E da cara dele?
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- Oh filha, eu não me lembro de nada. Olhe, lembro-me daquele cheiro a leite-creme

queimado que vinha da janela da Duzinda lá para as quatro da tarde…, mas tirando isso,

não me lembro de nada.

-Ainda te lembras como ele se chamava?

- Não.

- E da cara dele?

- Disso lembro. Toda ensanguentada…

- Do acidente?

- Qual acidente?

- A senhora teve um filho que morreu, o Tiago, e tem um ainda vivo, o José.

- Pois, olhe, nem sei quem é o vivo, nem sei quem foi o morto.

- Gostava que o seu filho viesse visitá-la um dia destes?

- Olhe o que eu gostava, menina, era que não me dessem sempre o comer sem sal.

- Oh, não seja assim. De certeza que ia gostar de ver o seu filho.

- Oh filha, vamos lá falar claro: eu já estou toda avariadinha, que eu bem sei, mas ainda

sou capaz de compreender certas coisas. Se no tempo que eu aqui estou nunca recebi

uma visita desse filho que você diz que eu tenho, é porque ele não há de querer visitar-

me.

- O acidente de carro, onde o teu irmão morreu.

- Quem morreu no acidente foi a minha mãe.

- Então o teu irmão morreu de quê?

- O carrou virou e a minha mãe ficou lá debaixo. Quando a tiraram já não vinha inteira.
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- Ele é bom rapaz, tem os problemas dele, como toda a gente, mas é bom rapaz.

- Ai conhece-o, é?

- Conheço de vista, mas já ouvi falar muito dele, é artista.

- É palhaço de circo, esse filho da puta!

- Afinal sempre se lembra dele?

- Como é que eu não havia de me lembrar desse traste? É por causa dele que eu estou

como estou, foi ele que me pôs assim.

- A tua mãe está viva, Zé.

- A minha mãe está viva…

- Gostavas de falar com ela?

- Tu já viste bem a tragédia que é ser palhaço?

- Que tragédia é essa?

- É que te estão sempre a pedir para seres palhaço e uma pessoa não consegue ser

palhaço a toda a hora.

- É cansativo?

- Não, era o ideal.

- Era o ideal?

- Era, o problema é não se conseguir.

A Doença

Ele refletiu por momentos e, com um leve sorriso na cara, respondeu, Hoje é domingo,

mãe. Domingo de manhã? De madrugada, ainda é noite lá fora. Graças a Deus não perdi

a hora da missa! E tu o quê que andas a fazer a pé a esta hora? Deu-me a fome; fui
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comer qualquer coisa e passei aqui a ver se a mãe não precisava de nada. Olha pr’ó que

te havia de dar!... Dorme rapaz, dorme que amanhã há muito que fazer. Boa noite, mãe.

E vê se não fazes barulho para não acordares o teu irmão.

Ele saiu do quarto da mãe, deixou a porta entreaberta e, em passos leves, voltou à

cozinha. Encheu de leite uma chávena larga, que colocou a aquecer no micro-ondas,

dois minutos e meio que era quanto bastava para o quente não muito quente. Partiu uma

fatia da regueifa recessa de domingo que estava em cima da mesa e sentou-se em frente

ao micro-ondas, a ver a chávena de leite rodar debaixo da luz amarela. Enquanto ia

acompanhando o movimento lento do botão do aparelho a descontar segundo a segundo

os dois minutos e meio que havia programando, pensou para si quando haveria de

começar a chamar-se Tiago.

A Mosca

a tortura maior é não poder esquecer certas coisas e não é que me aflijam as coisas

grandes que se dilatam na vida e a adensam como o calor faz à paisagem a mim chateia-

me o que é pequeno como esta mosca varejeira que se bate violentamente contra os três

milímetros de espessura de vidro da sala bate-se contra a janela num estalido metálico e

sem conseguir atingir a liberdade que tão translucidamente se lhe afigura dá mais uma

ou duas voltas no ar em círculos sem se afastar da janela como quem ganha forças para

uma nova investida às vezes poisa e cala-se aquele zumbido surdo é pior ainda que se

cale por esses poucos segundos que depois me parece exponenciada a agonia de o ouvir

recomeçar ah apetece-me vomitar as entranhas e se vomitar para cima das pernas

abertas muito gordas desta mulher sentada mesmo à minha frente que se se calou por

algum instante foi para assoar ruidosamente o nariz a satisfação será assim muito maior

que a de vomitar no chão somente sem grande miséria ainda fiz para me vir o vómito

mas não veio tossi mas pouco.

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