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OE MOUSER ROCESO PENAL WO BAS aL a la democracia, principios que raras veces se conctetan, en la experiencia cotidiana del funcionamiento de nuesteo, (brasilefio) sistema de justicia penal.”*® ee , Genco zB Proceso penal brasileiio veinticineo alos después de Is ae ee Capitulo 8 O PROCESSO PENAL BRASILEIRO E ACONSCIENCIA INQUISITORIA Anna Carolina Pereira Cesarino Faraco Lamy" INTRODUGAO, OU BREVES CONSIDERAGOES ACERCA DO CODIGO DE PROCESSO PENAL ITALIANO DE 1930. O marco tedtico 20 desenvolvimento do presente artigo ser © texto de MARCO NICOLA MILETTI, “4 cincia no Cédigo — 0 direito processual penal na Itdlia Fascista’®"’, a partir do qual é possivel formular uma anilise certeira do modelo brasileiro. Referido ensaio foi publicado no livro “L ‘inconscio inguisitirio”, onganizado por LOREDANA GARLATI como registro do encontro ocortido em junho de 2006 na Universit deg Studi di Milano-Bicoca, que reuniu jutistas ¢ historiadores italianos para refletir acerca da efi Cédigo Ttaliano (1988). ia das mudangas trazidas pelo atual MILETTI ¢ jurista e historiador, Professor Ordinirio de Histéria do Direito Medieval e Moderna na Universidade de Foggia, e dentro do escopo da sua pesquisa se destaca a anilise do processo penal nos séculos XIX e XX. Na oportunidade do encontro propés-se a uma revisio histética do proceso ‘Doutoranda em Direto pela UFPR, Mestre em Direito Pela UFSC, Adsogada Criminal MILETT, Marco Nicola Lascienza nel cice I drittoprocessuale penale nell Italia Fasclta. In GARLATI, Loredana L'Incoascio Inguistrio ~ L'eredith del ebdice istcaitalana, Milo, Universita Degli Studi db legislativo do Cédigo de Processo Penal de 1930, idealizado ¢ editado durante o periodo fascista, © Cédigo de Processo Penal Italiano de 1930 foi a matriz ideoldgica que ensejou a produgio cientifica do Cédigo de Processo Penal Brasileiro de 1941 (Lei n. 3.689)", Ea raiz enfitica do Cédigo de Processo Penal Italiano € 0 sis- tema inquisit6rio, modelo te6rico identificado pela prevaléne cia do principio unificador inquisitive, que tem como carates tistica principal a acumulacio da funcio de acusar e julgat em uum tinico sujeito processual (0 juiz inquisitor), resultando isso na configuracao de um processo eminentemente repressivo, € avesso as garantias do sujeito passivo (investigado /indiciado/ acusado)”"”. O Cédigo Italiano (¢ o brasileiro, consequentemente) tem esta formatacio muito em razio do momento histérico no qual foi formulado, e pelas personagens que contribuiram para sua construcio ideolégica. Justamente essa a finalidade do texto produzido por MILETTE, percorrer este caminho histérico, ¢ responder alguns questionamentos essenciais para evitar a proliferaclo € reafirmagio de um modelo de processo penal avesso as gatantias individuais. A hermenéutica histérica é essencial para compreender a finalidade de uma norma. No caso do Cédigo de Process Penal Italiano de 1930, MILETTI concluiu que serviu ele 4 manutencio € fortalecimento do Estado repressor Fascista 316 LOPES JR, Aury DirtoProcesal Penal 10. So Pao Sarva 2013 CCOUTINHO, Jacino Nelson de Mirna! CARVALHO, Luiz Gustavo. Grandin Castanha de Sistema acusatério: arte em seu lugar constiticonalmemt® demareno. I O novo proces pals zd Consiga dene Lune ‘Juris, 2010. = aed Segundo MILETTI em dezembto de 1923 0 Governo foi autorizado a revisar 0 Cédigo Civil italiano, e formulas novos Cédigos Comercial e de Processo Civil, além de reformar a Legislacio de Marinha Mercantil. Dos “Dancos da esquerda” surgi a ideia de estender a reforma aos Cédigos Penal e de Processo Penal, considerados ultrapassados quando comparados a legislacio civil e processual civil". Que ironia que, da bancada de esquerda, oposicio ao movimento fascista, surge a prerrogativa politica para revisar a legislacio penal, o que posteriormente foi um dos principais instrumentos de imposicao de poder por parte de Benito Mussolini. Em janeiro de 1925 ALFREDO ROCCO apresenta 0 projeto de lei delegada para a seforma do Cédigo de Processo Penal Italiano, trazendo como principal bandeira a “prioridade” do executivo em combater a “delinguéncia habitual”. ROCCO, incumbido da reforma, seleciona MANZINI como redator do conteiido técnico do Cédigo, 0 qual jé havia apresentado sua opinifio de que a producio cientifica de cédigos deveria ser delegada a uma tinica “wenfe”: Assim o foi com o Cédigo de Proceso Penal de 1930, um “Cade unis authoris”. CORDERO oportunamente descreveu MANZINI como “tomem devotado a tradigao inguisitria italiana” o que se confirma 318 Na viedo dos membros do Congress Italian o Cédigo de Proceso Civil alan tina tama formatagdo mis tecnica © conteipodnea, muito embora 0 Codigo de Processo eal ut recede oe 1900 ra de 113,00 com menos de vit anos de ade ‘quando reformado, A autora deste artigo enende que favez ess seja uma as ozbes {Tensejar a categoria eines Teoria Gera do Process, tentando enoonta, em émbilo “Gm do consitaconal,pontos de convergéncia ere modelos processus io dversos. A omegar peo objeto e objetivo de cada qual un lidand, majritaramente, com dios Aisponives, otadamente os panmonit, enguano 0 our tem © escopo deinsrumento fe" defesalegitmo ao implcado. Tambem por iso a auiora defende que o dieto procesual penal, nada ostane apresniado fom instrument, nio visa obtengo de {im bem dayida, mas em sum bem da vida o bem maior, a garaniaaiberdade, Por ‘eo tem efiliad aide de quo processo peal ele, cro mara em si mesmo, 0 ‘dreito fundamental denote condenado sem 0 devo process eval. pelo contetido do Cédigo, ostensivamente punitivo, norma esta posteriormente reproduzida, quase que integralmente, pelo legislador brasileiro na década de quatenta (contexts histético que também seri oportunamente explorado). Claro que as justificativas formalmente expressas (ligadas § ideia de zelo a seguranga priblica) eram mero disfarce a ocultar 4 real intencio da reforma. Nada obstante tenham pregado que © Cédigo de Processo Penal de 1913 (Zanatdelli e Finochiaro- Aprile) era ultrapassado ¢ embasado em parimetros estritamente consuetudinatios, na verdade Guglielmo Sabatini perceben que tal codificagio estava em contraste com os ideais fascistas, 0 que Provocou uma mobilizacio instantinea no intento de adequi-lo a nova ordem imposta Em maio de 1929, apés a apresentacio do projeto inicial por MANZINI, ROCCO anuncia a sua complementacio, sem que se forme comissio com este intuito, ¢, ja no més seguinte, era Publicado o projeto preliminar. Assim, 0 Cédigo de Processo Penal Italiano vai tomando contorno: escrito apenas por uma pessoa, de inteleccio inquisitéria, e sem que ninguém pudesse interfer, pela auséncia de uma comissio. A revisio de texto, feita, naturalmente, pelo proprio MANZINI, estendeu-se até 24 de maio de 1930, ¢ uma semana depois 31.05.1930) o projeto definitivo foi entregue, sendo nomeada comissio interparlamentar, com publicacio definitiva em 19 de outubro de 1930. Ainfluéncia pulsante de MANZINI sobre 0 Cédigo de Processo Penal Italiano de 1930 € tema central do ensaio de MILETT E, principalmente por sua visio reconhecidamente positivista, sendo vido critico de reformas legislativas nio precedidas de uma “moderna elaboragao cienifca do dirito vigente” Dentre suas conclusdes autor indica que a finalidade (divulgada) do Codigo de 1930 era criar uma ciéncia processual penal significativa, em detrimento ao “raguitismo cientifico” da segunda metade do século XIX. A raiz positivista de MANZINI se revela na tendéncia a incorporar conceitos de teoria geral do processo civil, como os de a¢io € relacio juridica processual. Em seu manual MANZINI di pistas de que aderia a teoria da reinvindicacio jntidica (pretensio). Assim se conclui que, para ele: “o processo penal é ‘obter 0 acertamento positivo on negativo, mediante a intervengio do juiz, fundada na pretensao punitiva originada pelo cometinento de um crime, feta valer pelo Ministerio Priblco ene representagio ao Estado” (MILETTI, in GARLATI, p. 72). Servitia, pois, © processo como meio auténomo A atuagio do direito penal substantivo (material), ou seja, como técnica formal a ensejar a subsuncio da norma abstrata (tipo penal) a0 caso concreto, © que resulta na condenacio. Assim, 0 processo para MANZINI é meio a projetar a pretensio punitiva, pista de que a finalidade dada a cle pela codificagio de 1930 é meramente instrumental, e em favor da repressio (punicio pela projecio da norma em abstrato sobre © caso conereto). A adosio de tais premissas também pode ser atribuida patticipagio do Ministro ROCCO na reforma, 0 qual no deixaria de lado a disseminada propaganda acerca da sentenca civil, onde agio foi definida como “paderjuridioo piblio de pedir a brestasao da fungéo jurisdicional” (MILETTI, in GARLATI, p. 73). Verifica-se a ideia de que construir uma ciéncia processuals penal significava, a0 menos e em abstrato, adquirir 0 mesmo, refinamento conceitual do direito processual civil; usando para tanto a referéncia alema, pautada na premissa de uma teoria geral do proceso, fungivel aos ritos civil, penal e administrativo, Somado a isso tem-se a adogio do conceito de relacio juridica processual penal, propagada por ARTURO ROCCO. Inspirado em BINDING, havia desctito a relagio penal como o vinculo obrigatério com base no qual o Estado pode impor qualquer coisa a pessoa do réu (¢ © processo seria 0 caminho a justificar —mesmo que formalmente — esta imposigio). Denota-se, pois, que a construcio da teoria processual-penal para a confec¢io do Cédigo de 1930 tem raizes na ficcdo da teoria geral do proceso, utilizando conceitos de processo civil como referencial te6rico, ou justificativa, com o suposto fito de centfigar 6 direito processual penal. Para tanto, os conceitos de acio, pretensio (como a punitiva) ¢ relagio juridica processual, amplamente difundidas na teoria getal do processo civil, sio adaptadas a0 processo penal pelo legislador de 1930, € principalmente pelos protagonistas do processo legislative (Manzini, Arturo Rocco, Alfredo Rocco), sendo as suas interpretacdes pessoais aquelas que prosperam confeceao do Cédigo de 1930. MILETTI chama esse fendmeno de “contaminagio interdisciplinar” (MILETTI, i GARLATI, p. 95) petmanecendo a relacio juridica em destaque na década que antecede a0 Cédigo de 1930, sendo o “fio condutor” onde s€ projeta a trama do procedimento. Pode-se concluir, pois, que todas as premissas que embasaram © CPP brasileiro de 1941 ja estavam la quando do processO legislativo do CPP italiano de 1930. © conceito de proceso a dcpender de uma relacio juridica, o conceito de aio, 0 conceito de pretensio, ainda hoje utilizados amplamente pelos autores que defendem haver uma teoria do processo comum ao civil, penal, administrativo, etc. E se extrai do livto (L ‘inconscio inguisitorio) a conclusio que, nada obstante haja um novo Cédigo de Processo Penal em vigor (0 de 1988), este, cujo processo legislativo se deu de forma absolutamente democritica (ou, pelo menos, a0 que tudo indica), as priticas do cotidiano forense ainda remontam & disciplina do Cédigo anterior. Diz-se haver um inconsciente inquisitério que faz com que se mantenham as priticas do Cédigo de 1930. Que a reforma acabou sendo mais formal que material A partir dessa construgio de MILETTI, ¢ as reflexdes colocadas adiante acerca do modelo e processual penal brasileiro, o presente texto de propée a explorar o tal “inconsciente inguisitério”e suas nuances, para esclarecer, ao final, se 0 que ha, é, de fato, um inconsciente. 1. O CODIGO DE PROCESSO PENAL DE 1941 - O INQUISITORIO BRASILEIRO Assim como MILETTI fez em seu ensaio, o presente artigo se propée a uma reflexo acerca do Cédigo de Proceso Penal Brasileiro de 1941, a partir do pariimetro interpretativo histérico. Para isso sera utilizado 0 texto de MILETTI como modelo metodolégico, primeiro fazendo-se uma descrigao do cenatio (© processo legislativo e pano de fundo hist6rico), para depois se ater as personagens (como MANZINI foi para 0 Cédigo Italiano, ha pessoas cuja andlise de suas personalidade: MNMALOADE MOUSTOMAE ROCESEO PENAL NO BUS VOU também é essencial para compreender a dialética da norma), Isso porque ambos: momento ¢ pessoas envolvidas; sig elementos indispensiveis para compreender de onde veio q ideologia que se projeta em uma determinada lei, ¢, com isso, tentar antecipar seus desdobramentos. A Lei 3.689 de 3 de outubro de 19441 institui em todo o tertitérig nacional o Cédigo de Processo Penal. Teve nacatio his de menos de trés meses, entrando em vigor em 1° de janeizo de 1942, Em 1941 estava em curso 0 denominado Estado Novo, ¢ 0: Brasil era presidido por Getiilio Vargas, na segunda metade de seu mandato que dura quinze anos. um perfodo de confecgio de varias novas normas, com especial énfase 20 Cédigo de Proceso Penal. Assim como 0 italiano, 0 Cédigo de Proceso Penal Brasileiro foi “encomendado” pelo Governo Federal. O incumbido da confeccio de seu texto foi o professor Aledintara Machado, da Faculdade de Diteito de Sio Paulo (USP), apresentado 20 presidente Getilio por Francisco Campos. A Europa neste intervalo historico (1942-1945) sentia a forga da Segunda Guetta Mundial, que projeta lideres autorititios, dentre os quais o proprio italiano Benito Mussolini, Nesse contexto, ¢ pouco mais de dez anos apés a vigéncia do Cédigo Italiano entrar em vigor, as personagens vio aqui 8€ repetindo: Gerilio Vargas tendo seu equivalente em Benito Mussolini, que intentava a cria¢io de normas que gatantissem status quo favorivel & acumulacio de poder; Francisco Campos pode ser colocado como o ROCCO brasileiro, que apadriaha © processo legislativo; ¢, finalmente, Aledntara Machado € © homem tinico que se ocupa de sua redagio. Restri¢io de direitos na Itélia de 1930; mesma configura no Brasil de 1941. Como dito, Vargas seguia com seu mandato forte ¢ incisivo, e um novo Cédigo de Processo Penal deveria servir manutencio dessa estrutura. Por isso 0 Cédigo de 1941 prevé em sua exposi¢io de motivos finalidade idéntica aquela declarada pelo legislador italiano de 1930, dat: “maior efciénciae energia da ao repressva do Estado contra os que delinguem’*™, Ou seja, dar menos garantias em favor de uma maior repressio, © que garante controle social pela violéncia e pela ilusio da seguranga juridica. O fortalecimento das instituicGes também ganha com essa configuragio, a medida em que, havendo mais pessoas taxadas como ctiminosas 0 aparato repressor tem que aumentar, ¢ as policias se legitimam por meio disso™ A millitarizagio do pais também se estabelece a partir dessa toupagem, a medida em que o mecanismo de garantia 4 repressio é, justamente, a policia militar. Pode-se cogitar que 4 estrutura poderosa das policias de hoje € fruto nio apenas da ditadura militar, mas também pela proposta do Cédigo de Processo Penal de 1941 Tateressante pensar o quanto uma norma é capaz de alterar 0 curso da hist6ria, ¢ 0 quanto ela é fruto da tealidade na qual esta inserida. Sendo as regras uma construcio humana, ¢ o direito linguagem, é justamente uma necessidade momentinea que faz com que uma norma se torne importante, ¢, que, de importante, trone-se indispensivel. Naturalmente cada norma serve a um contexto ¢ a um dono, 319 Exposioio de motives do CPP de 1981 ~ fone: 320 ANDRADE, Vera Regina Pereira A lus da seguranga juries, 2. ed. Porto Ale {Livrana do Advogaso, 2003, eae en haaja vista como se configura 0 processo legislativa, encabegado, por pessoas que revelam nelas uma finalidade pessoal. Com, feito, a lei jamais é para todos, mas voltada a um determinado sujeito passivo a depender do que é politicamente importante naquele determinado momento histérico. Os Cédigos de Processo Penal italiano e brasileiro serviram a seus mestres, pessoas que tinham um projeto bem resolvide de obtengio ¢ manutencio de poder, e que viram nele oportunidade de assegurar para si o monopélio da forca. O Cédigo Italiano de 1930 foi revogado, ¢ substituido em: sua integralidade pelo de 1988. No entanto, nao foi isso que aconteceu com o brasileiro, que apés mais de setenta anos petmanece sendo um mecanismo de poder tio forte quanto era quando foi concebido. Os ensaios produzidos para 0 liveo L‘inconscio inguisitorio concluem que a revogacio do Cédigo de 1930 nao significou, necessariamente, a afastamento da pratica forense das premissas Ii idealizadas. Em outras palavras, 0 Cédigo foi revogado, mas suas ideias continuaram ressoando no dia a dia dos Tribunais. Assim como 0 texto base a esta pesquisa no se propés a explicar 0 porqué, © presente artigo também no tem essa pretensio; apenas registrando que essa conclusio, a de a revogacio de uma norma nio significa a assimilacio da sua sucessora, foi a provocagio reflexio aqui posta. E a pergunta que a motiva é: de que serve a vigéncia de uma norma, se a simples colocagio dela no sistema juridico ni0 assegura sua eficécia? Na Itilia hoje existe um Cédigo democritico, que seguit fielmente 0 proceso legislative, e prevé dircito e garantias fundamentais em detrimento da simples funcio repressora proposta pelo cédigo anterior. Mas isso niio reflete em melhores condigdes as pessoas que estio expostas a um processo criminal ‘Trata-se de uma lei no papel que niio surte os efeitos desejados na ptitica em razio das pessoas que as operam. E isso provoca, necessariamente, o reconhecimento da importincia do intéxpre- te, haja vista ser a norma mero instrumento formal e inanimado, que adquire vida e afeta os outros pelas mios de quem a aplica. E também nio se pode deixar de lado a afirmagio evidente (c até mesmo dbvia) de que © sujeito mais importante nessa dialética é 0 magistrado, ¢ que a doutrina contemporinea tem que se ocupar em estudé-lo mais, e compreender melhor os fendmenos mentais que provocam a decisio judicial. Nio se trata de mera aplicacio da norma, mas, sim, de um fendmeno subjetivo anterior, que culmina com a justificativa de uma ideia preexistente & norma. Com essas consideragdes em mente, importante analisar se © fendmeno de manutengio da configuragio de uma notma revogada é algo inconsciente, como indica 0 livro, ou se é fruto de uma atuagio racional do intéxprete em negar 0 novo modelo. Nio sem antes fazer uma breve digressio acerca do sistema inquisitério, demonstrando sua influéncia ao modelo brasileiro. 2. SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS E O SISTEMA VIGENTE NO BRASIL: Nada obstante tenha-se defendido durante algum tempo que a simples divisio da fungio de acusar e julgar seria suficiente Para identificar um sistema processual penal, a doutrina mais recente chega A conclusao diversa. Conclui que o elemento identificador de um sistema é 9 denominado principio unificador, Essa construgio tem escopo, no conceito clissico de sistema como um todo organizado ¢ voltado a um objeto comum. Exemplo cotidiano, ¢ de facil percepcio € o sistema solar, consistente em varios astros organizados e atraidos em si pela forca exercida pelo Sol. Com um sistema processual nio € tio diferente. Uma série de atos e conceitos se unem para encontrar coeréncia, ¢ essa uniio é resultado da atracio exercida pelo principio unificador. MIRANDA COUTINHO ja se posicionou neste sentido, aduzindo: “Tenho a nogéo de sistema a partir da versio usual, caleada na nogio etinoligica grega (sistema-atos), como um conjunto de temas Juridicos que, colacados em relagio por um principio unificador, formam um todo orgénico que se destina a um fim. E fundamental, como parece Aabvio, ser 0 conjunto orquestrado pelo principio unificador e voltado para 0 ‘fim ao qual se destina”®™. sistema acusatério é identificado pelo principio unificador dispositivo, 0 inquisitétio pelo principio inquisitivo. A divisio das. fungGes de acusar e jugar é apenas um dos fatores diferenciadores, porque no modelo inquisitétio o acimulo de fungio adere ao seu principio unificador ¢ a sua finalidade (punir), ¢ no acusatério a divisio das fungdes tem 0 mesmo escopo. Possivel também afirmar que nio existe sistema puro em nenhum pais, porque como o instrumento é operado por pessoas € curial a mistura de modelos ligada a percepgio de cada operador. 321 COUTINHO, Jaciato Nelson de Miranda. Critica &teorin geral do Direto Process Penal. io de Jana. Renover, 201. p 16-17, Havendo a incidéncia de ambos os sistemas - acusatério inquisitério - parece ser possivel também concluir que em cada pais (¢ cada sistema processual de cada pais) deva existir uma preponderincia de um sistema sobre 0 outro, porque somente admitindo a predomindncia de um modelo sistémico, criando, assim, uma referéncia, pode-se analisar a adequacio contemporanea dos temas processuais penais. Nesse diapasio, os paises anglo-saxdes__apresentam, majoritariamente, caracteristicas do modelo acusatério (principio dispositivo, adversarial/dispositivo), e nos demais paises, com influéncia das tendéncias processuais encontradas na Europa Ocidental (como Itélia), prepondera uma caracteristica inquisitorial (principio inquisitivo) Pelo fato de cada sistema ser identificado por um tinico principio unificador, sendo este o que prepondera de sua anilise global, também nfo se pode cogitar de um sistema misto, pois este dependeria da incidéncia de um principio misto, a coadunat duas perspectivas absolutamente antagénicas entre si. Ademais, 0 conceito de sistemas concebido por KANT merece atengio, ao passo que ainda no foi proposta uma alternativa, capaz de substitui-lo. Nao foi trazido pela doutrina critica um substituto efetivo aos sistemas kantianos (que sio identificados pela sua organizagao a partir de um principio unificador). ‘Trata-se, pois, de um problema antes filos6fico do que juridico, porque a partir do campo da filosofia é que se poderia construir a ideia de um substituto aos sistemas, que pudesse suprit as necessidades provocadas pela falta de referéncias. Assim, para que se conclua pela finalidade de um tema de dircito processual penal, tem-se que identificar de onde ele parti; se da incidéncia de atos norteados pelo principio inquisitério ou norteados pelo principio dispositivo. E somente assim é possivel estabelecer um critério para sua anilise critica. Tendo em vista o cariter repressor atribuido a0 proceso penal tanto na Itilia quanto no Brasil, possivel concluir que a preponderancia nesses paises é do sistema inquisit6tio, e, assim sendo, reduzido em garantias idigos Italiano de 1930 ¢ Brasileiro de 1941 revela © cariter inquisitério do modelo proposto, principalmente quando considerados os seus idealizadores, a maneira como se concretizaram ¢ is finalidades a que se destinavam. O texto dos Nesse diapasio pode-se afirmar com seguranca que, numa perspectiva pos Segunda Guerra e pro direitos humanos, ambas as normas deveriam ser revisitadas, ou a partic de reformas integrais, ou por um signi xereicio de hermenéutica, Como ji foi colocado, o Cédigo Italiano de 1930 foi revogado em 1988, entrando em vigor uma nova legislacao mais pautada pelas garantias individuais. Ocorre que, ¢ essa é a conclusio do livro utilizado como marco teérico a0 presente artigo, 08 estudiosos do diteito italiano concluiram que, muito embora revogado, 0 cédigo antigo continua sendo amplamente difundido e utilizado no cotidiano forense. No Brasil, o Cédigo de 1941 continua em vigor, havendo projeto de lei (PLS 156/09), remetido 4 Camara dos Deputados em 2011, recentemente nomeada a comissio a conduzir 0 proceso legislativo na casa revisora™™, © livro L inconscio inguisitorio conclui que © que provoca projecao da legislagao antiga apés sua revogacio é0 inconsciente do operador do direito em continuar reproduzindo aquilo que Ihe € mais confortavel. 322 Fee< hp ccna go npopsioes Web itadermtacaidropseao-90 253. ace de feverero ce 206 " Partindo dessas premissas, e da certeza de que 0 modelo atual no Brasil € 0 inquisitério, de que & imprescindivel adapti-lo nova proposta humanizada do Dircito, e do Proceso Penal, ‘mais especificamente; o presente artigo se propée a analisar em que medida a revogacio do Cédigo de Processo Penal Brasileiro de 1941 provocaria uma resignificagio do modelo nacional, € sua conversio para uma estrutura verdadeiramente acusatoria, 4. O INQUISITORIO E INCONSCIENTE? Essa é a questo que provoca a presente reflexio: 0 inquisitério, ou, a tendéncia e inclinacio 20 modelo inquisitorio, é inconsciente? Dito isso, importante consignar que o entendimento que permeia © presente artigo é 0 de que a simples alteragio legislativa no tem 0 condio de converter um modelo preponderantemente inquisitério em acusatério como num passe de magica, justamente porque tal modelo ja estari incorporado pelos intéxpretes, ¢ a mudanca, naturalmente, é algo desconfortivel. Nio se trata de simples reforma normativa, mas antes de uma tesignificacio € introjecio dos intérpretes quanto a0 novo formato. De nada adianta teformar uma norma se a cultura ¢ tendéncia da sociedade, o que é naturalmente reproduzido nas decisdes jndiciais de um determinado pais, sio voltados a defesa da inquisitoriedade, e da reducio de diteito fundamentais. Exemplo disso é a recente decisio da Suprema Corte brasileira no HC 126292, julgado em 17 de fevereito de 2016 pelo plenirio, com alteracio do entendimento que o Tribunal Constitucional tinha desde 2009 para autotizar a execucao prematura da pena antes do trinsito em julgado da sentenga penal condenatéria’® Referido julgado, de uma atecnia abissal, basicamente revoga 9 inciso LVIII do artigo 5° da Constituicio Federal; ou seja, 9 ‘Tribunal Constitucional esti, ele proprio, encontrando medidas de contornar a determinagio da Magna Carta. Isso € muito grave, ¢ um retrato fiel da inquisitoriedade do modelo brasileiro, Assim, em paises como o Brasil, onde o carter eminentemente repressivo do processo penal é bandeira politica™, no se pode acreditar na falécia de que uma reforma legislativa importatd em automitica adaptacio do processo penal as premissas constitucionais, Ademais, 0 fato de uma norma ser teformada, e mesmo Publicada, nao significa nada no atual cenério legislativo. Veja- se 0 caso do Novo Cédigo de Processo Civil, que acabou de set teformado, ¢, ainda em sua sucatio legis, jé soften mais de duas alteracdes substanciais em seu texto™. (Ou seja, nem mesmo se pode assegurar que a lei alterada vai poder surtir seus efeitos, antes que novas forcas politicas institucionais a facam mudar (c por vezes essa mudanga é para voltat a estaca zero). Nesse diapasio, 0 trabalho se propée a explorar 0 fendmeno que provoca a reforma meramente formal de uma norma, que, ‘mesmo retitada do sistema, pode-se tornar uma alma penada € seguir assombrando 0 modelo processual constitucional. SESS) cae dat GUSH i RGD, Cm edo Seen de ee re Teme «hel Saag an acs a pene Se processo é modalidade de procedimento em contradit6rio™, ou se € uma série de atos procedimento sobre uma base de direitos fandamentais™”, o que é certo € que 0 tinico ponto de tangéncia que pode apontar para uma teoria geral do processo sio 08 direitos e garantias fundamentais que incidem sobre ele. Ou seja, no resta qualquer diivida que a forca cogente da Constituicio Federal deveria suttir seus efeitos sobre as normas infraconstitucionais, mas, na pritica, 0 que se projeta é 0 verdadeiro oposto. Assim, seria facil encontrar meios de interpretacio da lei posto para que se adequasse as diretrizes trazidas pela Constituicio Federal de 1988, mas o intéxprete simplemente nio se propoe e niio se dedica a isso. Registre-se, novamente,a cabalisticadecisao do Supremo Tribunal Federal, que, basicamente, tripudiou o texto constitucional, que nao deixa qualquer espaco a interpretacdes dubias. Com efeito, a alteracio legislativa nao tem 0 condio de mudat aquilo que a boa vontade nio conseguiu. Boa vontade de enxergar o sistema juridica sob a lupa da Constituicao Federal, tendo como fito o principio unificador dispositivo, e vendo 0 Ptocesso como mecanismo de defesa a0 acusado, O processo ja poderia ter viés constitucional sem qualquer Basta teconhecer a incidéncia dos Ptincipios constitucionais que 0 regem, e obedecer a sua alteragionormati influéncia no tito. Oportunizar o contraditério material em dettimento do mero contraditério formal, garantir a ampla defesa em sua 226 FAZZALAR Elio tnstulges de Diet Proce, Campin: Bookseller 206. 327 LAMY, Eduardo; RODRIGUES, Horio Wandere. Teoria geral do proceso. 3. ed) Rio Janet: Elsevier, 2012 esséncia, atender as ditetrizes do devido processo legal da duracio razoavel do proceso. Compreender que em razig do estado € da presuncio de inocéncia ninguém deve sep condenado sem uma decisio definitiva de mérito, e também, por conta dele o 6nus da prova é exclusivamente da acusacio, Simplesmente teconhecer que 0 processo nio € uma ferramenta de puni¢ao, nada obstante seja ele jé uma peniténcia em si mesmo™, mas meio pelo qual se evita que uma pessoa inocente seja injustamente condenada, Isso tudo poderia ser facilmente feito sem a necessidade de uma reforma legislativa. Sem que se formasse um novo cédigo. Pode ser que, pela importincia da legislacio infraconstitucional em um modelo de Cini! Law, a reforma legislativa exerca poderes mais significativos na atuagio do intérprete, como se servisse de baliza ou de elemento de controle i sua interpretacio. Mas na Itilia, segundo a conclusio a que se chegon pelas reflexes da conduzidas na Universidade de Milio, no foi isso que aconteceu, havendo uma norma nova, mas tendo-se mantido a ideologia antiga. E 0 que foi apontado como fator decisivo i essa configuracio (lei nova, habitos antigos) é o inconsciente inquisitério que inquina o posicionamento das pessoas. Mas seri que esse fendmeno é, de fato, provocado pelo inconsciente? Pela simples tendéncia que as pessoas tém dé prosseguir aplicando normas antigas e mais rigorosas? A autora cogita que, talvez, 0 que esteja por tras nao seja um fator inconsciente, mas a simples consciéncia e desejo (¢, por que nfo, escolha) de utilizar a lei mais rigorosa em detriment 328 NOBRE, Marta Faustino Porto. O processo como pena. da mais garantista, E por qué? Precisamente pela configuracio social de um pais, de seus habitos seu DNA. O Brasil, por exemplo, assim como a cilia (¢ tantos outros) tem uma hist6ria de periodos repressivos marcados por violéncia legitimada, e a lei sempre foi utilizada como mecanismo de empoderamento. Num pais com esta roupagem, dificil crer que uma norma infraconstitucional garantista v4 encontrar eficicia, ¢ que nio estari fadada a0 destino cruel trilhado pelo Novo Cédigo de Processo Civil. Em suma, de nada adiante alterar a regra se nio houver uma mudanca radical de mentalidade. Segundo GHERARDO COLOMBO, a cultura antecede a regra™, e justamente por isso a simples imposigio de uma norma nio assegura sua aplicagao por aqueles que tém o condio de operi-la © ensaio de COLOMBO cai como luva a reflexio aqui proposta, ¢ pode-se dizer que foi o grande fio condutor as ideias apresentadas no presente texto. Assim, ousa-se dizer que nao se trata de um inconsciente que invade as mentes dos intéxpretes fazendo com que apliquem as Premissas da lei mais rigorosa, mesmo que revogada, Trata-se, outrossim, € ousa-se specular, de medidas absolutamente conscientes, pautadas pela cultura de um determinado pais ¢ sua influéncia sobre as decisdes judiciais Em outras palavras, o intérprete simplesmente escolhe 0 caminho mais inquisitério, como fez a Suprema Corte no julgamento do HC 126292, escolheu mudar um entendimento 329 COLOMBO, Gherado, Lettera # um figho su mani pate La Reptilia: 2015, para justificar a antecipacio dos efeitos da pena, nada obstante haja possibilidade, ainda, de alteragio na decisio condenatétia, Mas isso ¢ tio consciente, e motivado por uma certeza tio forte, que vai justificar precisamente a redugio de anulages por parte dos Tribunais Superiores de decisdes ilegais, haja vista a pena jf estar em curso desde a decisio de segundo grau. Ora, a finalidade dos recursos nio é apenas a reforma da dccisiio, mas também a declaracio de sua invalidade, que pode culminar com uma alteragio substancial de seu conteiido (efeito infringente), Nesse caso, a pessoa que j cumpre pena antecipadamente faz © qué? Pleiteia uma indenizacio a0 Estado? Prova fazé-lo, e, mais provavelmente ainda, nao iri obté. CONCLUSAO: O INQUISITORIO E CONSCIENTE Com base no raciocinio construido neste texto, que é fruto do amadurecimento tedrico decorrente das aulas ministradas pelo Professor Jacinto Coutinho no Curso de Doutorado da Universidade Federal do Parana, a autora conclui que 0 inquisit6rio pode nio ser fruto do inconsciente. Actedita-se que a inquisitoriedade é algo ditecionado € racionalmente imposto sobre as pessoas a quem o sistema penal € dirigido. Trata-se de uma vontade do intérprete em projetar o caritet tepressivo da norma, ainda na linha de que o proceso criminal tem 0 escopo de punir, olvidando da necessidade de confirmat materialidade e autoria. Em outras palavras, 0 intéxprete, a quem incumbe a aplicagio da lei penal material e processual, tem a intencio consciente de manipular a norma para que ela possa ser utiizada como mecanismo fepressor ¢ de controle social, porque isso ainda é importante 4 manutengio do status quo. Ao julgar o HC 126292 0 intérprete tinha tanto a certeza de que tal posicionamento viola o texto constitucional quanto 4 intengao clara de travestir a norma para justificar uma manobra inquisitorial. Como dito alhures, o grande pilar da presente teflexio é a conclusio de COLOMBO de que a cultura antecede a regra, € de que nio adianta absolutamente nada alterar o sistema normativo quando a sua aplicagio no dia a dia, ¢ seu poder de alterar a vida das pessoas, é provocado pelo intérprete ¢ nio pela norma, que é inanimada. Com efeito, a melhor medida no sentido de alterar a feicio inquisit6ria do modelo brasileiro passa antes pela formacio dos intérpretese, ca necessitia critica partindo dos bancos das faculdades, para que entio uma norma acusatétia possa set efetivamente respeitada.

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