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O livro didático de História como fonte: A resistência dos subalternos sob o olhar

do pós-colonialismo

Silvéria da Aparecida Ferreira1

Resumo:

Esta pesquisa teve por objetivo analisar os conteúdos referentes à resistência dos
colonizados no período Colonial do Brasil, buscou-se problematizar a temática em dois
livros didáticos de História. Ambos com edição posterior a Lei 10.639/03 que
contempla a obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Africana e Afro-
Brasileira nos estabelecimentos públicos e privados de ensino. Sendo assim,
procuramos atentar para a superação das ideologias eurocêntricas, nas quais perduram
os estereótipos e o preconceito em relação às culturas subalternas nos conteúdos dos
manuais. Apoiamo-nos nas teorias pós-coloniais de Homi K. Bhabha, Walter Mignolo e
James Scott para desenvolver a crítica às ideias de superioridade e inferioridade colonial
e também para embasar os conceitos de subalternos, Colonialidade do poder,
estereótipo, discurso etc. Foram utilizados dois livros didáticos para a realização dessa
pesquisa, um destinado ao 7° ano do Ensino Fundamental e outro ao 2° ano do Ensino
Médio, ambos foram usados no ano de 2015 em duas escolas públicas da cidade de
Palmeira no Paraná.

Palavras-chave: Pós-colonialismo; Livro Didático; Resistências.

Abstract:

Introdução:

Essa proposta surgiu a partir de discussões gestadas na disciplina de Cultura,


diversidade e processos educativos do Mestrado em Educação da Universidade Estadual
do Centro-Oeste do Paraná, algumas indagações surgiram, por exemplo: a ausência de
estudo de algumas temáticas no ensino Fundamental e Médio, a saber: as complexas
relações travadas entre os membros do processo de colonização, as resistências, o
discurso etc. Ou então, porque eu, enquanto professora de História não ministrei aulas
ponderando sobre as resistências e o discurso do colonizador que não estava claro no
comportamento dos membros do período escravocrata pelo qual nosso país passou.

1
Graduada em História e Mestranda em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do
Paraná – UNICENTRO.

1
Confesso que poucas vezes havia atentado para tais questões, mesmo sendo professora
de História.

Apenas a graduação não foi suficiente para entender e tratar o assunto de


maneira coerente, considero que não foi por má vontade, mas por falta de conhecimento
em relação ao assunto. Sendo assim, a partir das inúmeras discussões de obras pós-
coloniais nas aulas, outra pergunta surgiu: Como os livros didáticos de História
abordam a temática das resistências dos colonizados? Principalmente levando em
consideração que por vezes esse é o único material utilizado por professores da rede
pública de ensino.

Nesse artigo, analisaremos dois livros didáticos de História que surgem após a
Lei 10.639/03, que contempla a obrigatoriedade do ensino da História e cultura da
África e dos afrodescendentes. Assim sendo, esses manuais usados como fonte possuem
a obrigatoriedade de acatar a norma e discutir a temática rompendo com o olhar
preconceituoso, simplista e eurocêntrico (do colonizador) que por muito tempo imperou
nos livros didáticos. Partimos do pressuposto que esses manuais são muito importantes
para o ensino/aprendizagem na escola, pois auxiliam o professor na prática pedagógica
e a compreensão dos alunos. Dessa forma, o consideramos uma ferramenta
indispensável, porém não deve ser utilizada como única fonte nas aulas.

Nossa ânsia consiste em descobrir por quais concepções teóricas o livro


didático a ser analisado atravessa, sabemos que nessas temáticas as teorias Pós-
colonialistas estão ganhando campo, mas as teorias eurocêntricas que perduram os
estereótipos de submissão e inferioridade ainda são muito fortes. Logo, nos
perguntamos: o discurso maniqueísta, consagrado por muito tempo, ainda hoje está
presente nos livros didáticos? Será que atualmente o discurso embutido nos manuais
ainda traz a concepção eurocêntrica da identidade forjada pelo “eu” colonizador do
“outro” colonizado? Tais concepções presentes nos livros didáticos auxiliam a olhar o
“outro” como membro integrante do processo de desenvolvimento político, social,
econômico e cultural do Brasil, ou servem para perdurar os estereótipos, os preconceitos
e o racismo?

Corroborando com esse humilde trabalho Marli Solange de Oliveira


problematiza em sua dissertação: “A representação dos negros em livros didáticos de

2
História: Mudanças e permanências após a promulgação da Lei 10.639/03” que a
“visão eurocêntrica faz parte da nossa história” (OLIVEIRA, 2009. p: 14), portanto,
está nos currículos e nos livros didáticos, mas essa visão precisa ser superada, isso não
quer dizer que devamos colocar no lugar do etnocentrismo uma espécie de
“afrocentrismo”, contudo devemos abrir lugar a outros discursos, a olhar de outra forma
para o “outro” sem subjugá-lo ou inferiorizá-lo, percebendo-o como membro ativo do
processo histórico, político e social.

Posto isso, esse artigo configura-se em três principais momentos: o primeiro


destaca a importância do livro didático para a prática do professor e para o aluno, na
sequência torna-se imprescindível a discussão teórica com autores pós-coloniais que
darão base para a última parte, que se configura na análise crítica de um capítulo do
livro “Vontade de saber história” e de quatro capítulos (três com menos ênfase) do livro
“História Global”. Por fim, temos as considerações finais, trazendo as reflexões feitas
acerca do estudo.

Livro didático: mercadoria e ferramenta ideológica

Historicamente os manuais didáticos passaram por muitas concepções de


ensino, norteadas pelo momento histórico que seus autores viviam, por exemplo, em
alguns livros de décadas anteriores, percebemos suas visões explicitamente positivistas
e eurocêntricas (TAVARES). Ainda que essa temática seja relevante, nessa pesquisa
não conseguiremos contemplá-la2. Contudo, não podemos desconsiderar tais
ferramentas que amparam o ensino/aprendizagem na escola, devemos entendê-los em
cada contexto, nossa atitude mais sensata é utilizá-los na tentativa de compreendê-los e
superar seus equívocos. Sendo assim, nossa preocupação aqui, foca na análise dos livros
didáticos atuais. Ponderamos que:

O livro didático continua sendo um dos materiais pedagógicos mais


utilizados pelos professores e alunos das redes públicas de ensino.
Muitas vezes, ele é o único acesso à leitura não só para os alunos, mas
também para os seus pais, oriundos das classes populares como nos
lembra Silva (2001). Essas crianças, às quais são destinados os livros

2
Para mais informações sobre o percurso das perspectivas e concepções históricas presente em
livros didáticos, ver artigo de Adriana Gomes Tavares: “A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS
LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA EM MINAS GERAIS (1960-2005)”. Disponível em:
<http://www.fae.ufmg.br/portalmineiro/conteudo/externos/4cpehemg/Textos/pdf/5a_1.pdf> Acesso em:
08/07/2016.

3
didáticos, representam 60% da população estudantil brasileira na faixa
de obrigatoriedade escolar (FREITAG, MOTTA e COSTA, 1997). Ao
livro didático é atribuída uma importância, um sentido de verdade que
acaba por legitimar os conteúdos presentes neles e, consequentemente,
as imagens também. Assim, os preconceitos, os estereótipos, a
discriminação presentes nesses livros acabam propagando ideologias
como a do branqueamento, inferioridade e superioridade raciais.
(OLIVEIRA, 2009. p: 34)

Considerando o livro didático como uma ferramenta que norteia a prática do


professor em sala de aula, identificamos na sua forma de uso um crescente risco, muitas
vezes o livro didático é utilizado como fonte única e verdadeira da história, sem que
haja qualquer problematização da fonte e das versões que nela estão impressas. Não
podemos generalizar, mas é algo que acontece em muitas salas de aula pelo Brasil, o
que acaba por legitimar a superioridade e a inferioridade de alguns grupos, como
lembra-nos Oliveira na citação acima.

Segundo a mesma autora, desde o século XIX, o livro didático tem sido o
principal instrumento de trabalho de professores e alunos, sendo utilizado nas aulas
das mais variadas disciplinas e condições pedagógicas. Essa ferramenta tem como
principal função a mediação entre a proposta oficial, expressa nas propostas
curriculares, e o conhecimento escolar, ensinado pelo professor (Oliveira, 2009. p: 36).
Mediação no sentido de combinar as exigências expressas nas diretrizes curriculares,
que são normas oficiais as quais devem ser seguidas, e os demais assuntos que precisam
ser tratados na escola. Nesse caso, torna-se fundamental ressaltar que os livros a serem
analisados foram escritos, organizados e distribuídos após a promulgação da Lei
10.639/03 que afirma:
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. (LEI
N° 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.)3

3
LEI N° 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm > Acesso em: 22/07/2016. Presidência da
República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei assinada pelo então Presidente da
República: Luiz Inácio Lula da Silva.

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Partindo dessa norma, as diretrizes e os livros didáticos possuem a obrigação
de contemplar temáticas que norteiam a “História da África e dos Africanos”, com o
objetivo de superar os padrões eurocêntricos permeados pelo estereótipo de que os
negros consistiam em seres passivos e naturalmente inferiores, justificando a
dominação, a violência e o preconceito racial.

O processo de construção de um livro didático é complexo, passa por várias


etapas, sendo que a última é a escolha pelo professor na escola. No entanto, nem sempre
o professor possui tempo hábil para escolhê-lo, pois o mercado editorial desses manuais
vem crescendo muito nos últimos anos e com ele as ofertas desse tipo de material.
Sendo assim, são muitas opções, mas pouco tempo para apreciação dos docentes, posto
isso, consideramos necessário compreendermos como esse material da disciplina de
História trabalha alguns temas. Evidentemente que esse instrumento não é construído
com perspectivas neutras e sim permeado de intenções, intenções essas que estão
impregnadas nas versões presentes no livro. Dessa forma, Oliveira afirma que o livro
didático “deve ser pesquisado como produto cultural, como mercadoria ligada ao
mundo editorial e dentro da lógica do mercado capitalista”, considerando-o também
“como suporte de conhecimentos e de métodos de ensino das diversas disciplinas e
matérias escolares e, ainda, como veículo de valores ideológicos ou culturais”
(Oliveira, 2009. p: 37).

Para esse trabalho, necessitou-se de um recorte previamente estabelecido.


Dessa maneira, as temáticas que serão analisadas aqui, se referem ao período colonial
no Brasil. Pretendemos entender como dois livros didáticos desenvolveram suas versões
do período que compreende a Colonização do Brasil por Portugal e o período
escravocrata na colônia, identificar de que forma as resistências e o imaginário dos
colonizados estão retratados, ou se, a história só é problematizada a partir da noção
cotidiana do colonizador.

Os livros escolhidos para análise foram: o primeiro do 7° ano; Ensino


Fundamental II, intitulado: “Vontade de saber História” (2012) escrito e organizado por
três professores: Marco Pellegrini, Adriana Dias e Keila Grinberg. O segundo destina-se
a alunos do 2° ano do Ensino Médio: “História Global Brasil e Geral” (2010) de
Gilberto Cotrim. O critério de seleção desses dois livros consistiu inicialmente os anos
de edição, relativamente próximos – 2010 e 2012 – e posteriores a lei 10.639/03: que

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definiu a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira na
Educação Básica. Em seguida, por ser um do Ensino Fundamental e outro do Médio,
destinados ao 7° (Fundamental) e ao 2° ano (Médio), período em que se trabalha a
problemática da Colonização da América. E especialmente, por terem sido usados no
ano de 2015 como aparato nas aulas de História, de duas turmas, uma de cada colégio
em Palmeira: Colégio Estadual do Campo Henrique Stadler e Colégio Estadual Dom
Alberto Gonçalves.

Inicialmente, consideramos de extrema importância o debate teórico pós-


colonial, com base em alguns autores que são referências nesse campo de estudo, a
exemplo: James Scott, Walter Mignolo e Homi K. Bhabha. Com base nesses autores,
poderemos entender como a temática da colonização e pós-colonização devem ser
tratadas nos diversos âmbitos da sociedade, nesse caso em especial na escola, para que
não se reforce os discursos hegemônicos ocidentais, etnocêntricos, racistas e de versões
únicas, que até pouco tempo imperavam como absolutos nos livros didáticos e nas
práticas cotidianas sem serem problematizados.

A análise do livro didático busca investigar a partir do contexto cultural, da


própria realidade “multicultural e pluriétnica” (Oliveira, 2009) da sociedade brasileira,
os discursos incutidos nesse material. Sendo assim, não só o cumprimento da lei, mas
também como as versões estereotipadas, preconceituosas e racistas em relação a
culturas “subalternas” estão sendo transpassadas no livro didático e na prática do
professor. Isso porque o livro didático e entendido aqui como uma ferramenta que
auxilia o docente, mas não o impede de criticar, comparar e confrontar outras
interpretações.

Contribuições dos autores Pós-coloniais

Para essa discussão, utilizamos três autores consagrados no campo de estudo


denominado Pós-colonialismo. São eles: Homi K. Bhabha, Walter Mignolo e James
Scott. Desses renomados escritores, emprestamos alguns conceitos que contribuem para
compreendermos os discursos presentes nos processos coloniais e as relações de poder e
resistências que perpassam o momento histórico estudado. Os conceitos, sucintamente
discutidos nesse trabalho são: Subalterno, Gnose/pensamento liminar, Colonialidade do

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poder (MIGNOLO); Discurso oculto e discurso público (SCOTT); mímica e estereótipo
(BHABHA).

Iniciaremos com Homi K. Bhabha, conceituado autor dessa corrente de


pensamento chamada Pós-colonialismo, que de forma sucinta pode ser definida como
uma forma particular de analisar a sociedade e as relações travadas por ela, com
enfoque especial na questão cultural (pós-colonização). O pós-colonialismo deriva dos
estudos culturais, no entanto toma seu próprio caminho. Aborda, sobretudo, questões de
classe, gênero e raça, mas rejeitando as polaridades que explica a realidade do Outro
a partir de categorias binárias (NEVES e ALMEIDA, 2012: 124). Bhabha, nasceu em
Bombaim na Índia em 1949, atualmente é reitor da Universidade de Harvard nos
Estados Unidos. Em seu livro, que podemos considerar sua principal obra pós-
colonialista, “O local da Cultura” (2007) explicita suas reflexões sobre o discurso
colonial, superando as categorias binárias, para além das relações sujeito/objeto,
excluído/incluído.

Não é o Eu colonialista ou o Outro colonizado, mas a perturbadora


distância entre os dois que constitui a figura da alteridade colonial – o
artifício do homem branco inscrito no corpo do homem negro. É em
relação a esse objeto impossível que emerge o problema liminar da
identidade colonial e suas vicissitudes. (BHABHA, 2007: 76)

Bhabha, chama atenção para o discurso colonial, ou seja, não foram as


condições físicas/naturais que determinaram, mas sim a criação de uma forma de
discurso que favoreceu o branco em detrimento do negro, que serviu para legitimar a
superioridade e a inferioridade com base naquilo que já estava dado naturalmente: a
diferente pigmentação da pele.

A presença negra atravessa a narrativa representativa do conceito de


pessoa ocidental: seu passado amarrado a traiçoeiros estereótipos de
primitivismo e degeneração não produzirá uma história de progresso
civil, um espaço para o Socius; seu presente, desmembrado e
deslocado, não conterá a imagem de identidade que é questionada na
dialética mente/corpo e resolvida na epistemologia da aparência e
realidade. Os olhos do homem branco destroçam o corpo do homem
negro e nesse ato de violência epistemológica seu próprio quadro de
referência é transgredido, seu campo de visão perturbado (BHABHA,
2007, p. 73).

O colonizado, referimo-nos aqui especialmente ao negro, já tem previamente


estabelecido “o que é” e “o que representa”, seu passado está amarrado a traiçoeiros
estereótipos, discursados pelo colonizador (entendido como o branco) tanto que ele

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próprio – o negro – passa a entender-se como tal e almeja ser como o branco.
Entendemos, portanto, que as relações coloniais são muito mais complexas do que
apenas as diferenças dualistas e binárias. “Para a identificação, a identidade nunca é
um a priori, nem um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático
de acesso a uma imagem da totalidade” (BHABHA, 2007: 85).

O olhar do “Eu” lançado ao “outro” – o negro – vem permeado de preconceitos


do que seja esse “outro”, é como se imediatamente, quase que inconscientemente, viesse
à mente todo o histórico vivido pelos seus ancestrais, muitas vezes não vivido, mas que
nos é colocado através do discurso assimétrico “Tais crenças tem o germe do racismo,
da intolerância, e, frequentemente, são utilizadas para justificar a violência praticada
contra os outros” (LARAIA, 2001: 73), aquela velha (nem sempre tão antiga) noção
eurocêntrica de que o negro foi e continua sendo submisso, passivo, inferior e tantas
outras características que serviram para legitimar a superioridade do colonizador e a
inferioridade, o estereótipo, o preconceito em relação ao colonizado.

Proceder de maneira etnocêntrica, pode resultar em atitudes ou discursos


depreciativos de padrões culturais dos outros povos, “práticas de outros sistemas
culturais são catalogadas como absurdas, deprimidas e imorais” (LARAIA, 2001. p:
72). Assim sendo, será que esse discurso maniqueísta, consagrado por muito tempo,
ainda hoje está presente nos livros didáticos? Será que atualmente o discurso embutido
nos manuais, ainda traz a concepção eurocêntrica da identidade forjada pelo “eu”
colonizador do “outro” colonizado? Tais concepções presentes nos livros didáticos,
auxiliam a olhar o “outro” como membro integrante do processo de desenvolvimento
político, social, econômico e cultural do Brasil, ou servem para perdurar os estereótipos,
os preconceitos e o racismo?

Percebemos através de discussões, e leitura de algumas obras de pós-


colonialistas as complexidades existentes nas relações coloniais. O discurso simplista e
binário do superior X inferior não se sustenta, há outros muitos aspectos e formas de ver
o “outro” que estão imbricadas nas relações coloniais e que não são contempladas no
discurso eurocêntrico. Portanto, propomos uma leitura em busca das resistências
cotidianas dos subalternos no período colonial, utilizando o livro didático como fonte.

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James Scott trabalha com a problemática da resistência no seu livro: “Los
dominados y el arte de la resistência” (2003), analisando as relações de classe de um
povo malaio, buscou entender como as relações cotidianas acontecem, de que forma
podemos compreender os discursos, as formas de resistência e o cotidiano específico
daquele povo. Inicialmente Scott problematiza:

Más aún, las contradicciones respondían a cierta lógica según su punto


de articulación social. Cuando yo limitaba el problema a las relaciones
de clase -uno de muchos problemas-, parecía que los pobres hablaban
de una manera en presencia de los ricos y de otra cuando se hallaban
entre personas de su misma condición. Asimismo, los ricos no se
dirigían a los pobres de la misma manera que se comunicaban entre sí.
Estas eran las diferencias más patentes. (SCOTT, 2003: p:16)

O autor problematiza qual seria o motivo do comportamento diferenciado,


observa que limitar o problema às relações de classe era insuficiente, dessa maneira
coloca sua própria pessoa no jogo do texto, como ele mesmo se comporta em frente à
outra pessoa, principalmente se essa pessoa representa alguma forma de poder sobre ele.
Percebe-sem, o quanto o discurso é afetado pela relação de poder estabelecida entre os
que falam e os que ouvem e vice-versa. Dessa maneira, no decorrer da obra o autor
explicita, nos coloca que há duas principais formas de discurso são: o discurso oculto e
o discurso público. Nas palavras do autor:

Cada grupo subordinado produce, a partir de su sufrimiento, un


discurso oculto que representa una crítica del poder a espaldas del
dominador. El poderoso, por su lado, también elabora un discurso
oculto donde se articulan las prácticas y las exigencias de su poder que
no se pueden expresar abiertamente. Comparando el discurso oculto
de los débiles con el de los poderosos, y ambos con el discurso
público de las relaciones de poder, accedemos a una manera
fundamentalmente distinta de entender la resistencia ante el poder.
(SCOTT, 2003: p: 21).

As relações estabelecidas entre os seres humanos, são muito mais complexas


do que podemos expor. A própria investigação de Scott nos demostra isso, entender
como cada pessoa se comporta diante de outra é um processo abstruso, a forma de
comportamento, depende de vários outros aspectos, geralmente determinados pelo
grupo ao qual a outra pessoa pertence. O discurso oculto, configura-se em uma forma de
resistência ao poder, pois demostra uma reação, mesmo que oculta, ao discurso do
outro. Quantas vezes nos vemos nessa situação, pensamos de uma forma, mas agimos
de outra, principalmente devido ao poder significativo do o qual a pessoa que nos
dirigimos exerce sobre nós. O mesmo ocorre com o “poderoso”, que no discurso

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público não deve falar o que pensa da maneira que quiser. Há por detrás do seu
discurso, na presença do “outro”, uma forma pensada de se pronunciar, para manter a
legitimidade de seu poder.

As formas de resistência não precisam necessariamente, aparecer de forma


clara, no sentido de um conflito armado ou no discurso definido, a maioria das formas
de reação a um poder estabelecido, advém de ações camufladas, como podemos
perceber no livro e nos conceitos de discurso oculto e público desenvolvido por Scott. A
noção de discurso público, está conectada a ideia de „o que pode ser dito‟, ou „o que
deve ser dito‟ na presença de determinado grupo, ou indivíduo, consiste em uma
manipulação de discurso para manter o poder, ou a sobrevivência diante do poder.

Devemos pensar às relações coloniais, a partir da “construção do sujeito


colonial no discurso”, ou seja, no “exercício do poder colonial através do discurso”.
(BHABHA, 2007. p:107). Colocar as categorias binárias como regra, é negar as
complexidades vividas no período colonial, o discurso como aparato de poder
(BHABHA) e as resistências embutidas nesse processo. Sobre o discurso colonial:

“Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de


conhecimentos do colonizador e do colonizado que são estereotipados
mas avaliados antiteticamente. O objetivo do discurso colonial é
apresentar o colonizado como uma população de tipos degenerados
com base na origem racial de modo a justificar a conquista e
estabelecer sistemas de administração e instrução” (BHABHA, 2007.
p: 111).

Observamos a necessidade de superar o discurso colonial “que busca


legitimação” do poder através do preconceito que dele procede: “colonizado como uma
população de tipos degenerados”, nas propostas dos autores pós-coloniais. E é nesse
esforço notório, que atentamos para pensar às formas de resistência nesse jogo do
sistema colonial.

Olhar para os relatos pós-coloniais dos colonizados, nos desperta para outra
realidade, a uma identidade que não foi construída pelo outro e sim pelo próprio “eu”
colonizado. Bhabha conduz, além da problemática dos retratos pós-coloniais, a
contribuição de Edward Said sobre o orientalismo, do qual faz distinções, mas no que
diz respeito a esse olhar do Ocidente sobre o Oriente, afirma que é o repositório
inconsciente da fantasia de escritos imaginativos e ideia essenciais (BHABHA, 2007. p:
112).

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Entre as formas de resistências destacamos a mímica, que consiste para Bhabha
em uma das estratégias mais ardilosas e eficazes do poder e do saber colonial, pois se
mostra ao Outro, como fonte de inspiração para a imitação, a cópia e consequentemente
para a relativização da cultura subalterna.
Dentro da economia conflituosa do discurso colonial, a mímica representa um
“acordo irônico”. O autor exemplifica com as palavras de Samuel Weber: “Então a
mimica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível, como sujeito de uma
diferença que é quase a mesma, mas não exatamente”. (Apud: BHABHA, 2007. p:
130). Logo, o discurso da mímica é construído em torno de uma ambivalência, para ser
eficaz ela deve produzir seu deslizamento, seu excesso, sua diferença. No entanto,
consiste em um processo que não é consciente.
A mímica, denomina-se como a autoridade de um discurso colonial, que é a
representação de uma diferença, que é ela mesma um processo de recusa, constitui-se
um processo complexo. Ou seja, o sujeito colonial apropria-se da imitação ao mesmo
tempo em que a vê como inapropriada. Na mímica, a representação da identidade e do
sentido é rearticulada, ao longo do eixo da metonímia (BHABHA).
O colonizador não permite que o colonizado seja como ele é, o faz acreditar
que sua cultura é ruim e que para melhorar devem assemelhar-se ao „europeu
civilizado‟. A mímica revela o “Outro” do entre-lugar, aquele diferente do seu objeto de
imitação e marcado por uma identidade parcial (do quase ser isso, mas não ser).
Outro conceito pertinente a essa discussão é o de estereótipo, que é o resultado
de uma recusa que nega as diferenças do outro, mas que produz em seu lugar formas de
autoridade e crenças múltiplas, nas quais alienam as pressuposições do discurso civil
(BHABHA).
No livro, “Histórias locais/projetos Globais”, Walter Mignolo destaca a
emergência de um novo pensamento, um pensamento que traga à tona os saberes
subalternos, sem negar a contribuição dos saberes hegemônicos, mas dando espaço para
a gnose/pensamento liminar. Torna-se imprescindível o entendimento do discurso
hegemônico no seu contexto, precisamos compreender que os acontecimentos locais
europeus foram tomados como projetos globais, como regras para o resto do mundo,
aquilo que não se assemelhava ao modo como o europeu vivia e compreendia o mundo,
não estava no padrão, portanto era inferior. Podemos ousar entender essa forma de
discurso, como artimanha para subjugar o “outro”, sejam os saberes tidos como do
subalterno, ou seja, de outros grupos não europeus. Sendo assim:

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[...] é impossível pensar a modernidade sem a colonialidade, não dá
para pensar nos esplendores e nos triunfos da modernidade ocidental
sem pensar na colonialidade do poder e do saber. Essa idéia implica
em ver a modernidade de forma indissociável da colonialidade. A
colonialidade é parte constitutiva da modernidade, é seu lado sombrio,
oculto e silenciado. (CRUZ, 2005. p: 137)

O pensamento liminar busca compensar o que a diferença colonial tentava


naturalizar como ordem universal. A diferença colonial é o espaço onde emerge a
Colonialidade do poder, ou seja, é a partir do reconhecimento físico e ideológico dos
pensamentos ocidentais que se justifica a subalternização e, portanto, a Colonialidade
do poder (MIGNOLO).

Ponderando sobre a seriedade das reflexões colocadas acima, faz-se necessário


atentar para os materiais didáticos com essas preocupações. Considera-se de suma
importância problematizar o conteúdo apresentado pelos manuais didáticos e a ideologia
nele impressa. Entendemos que as teorias presentes no livro, devem ser para superar o
pensamento hegemônico ocidental, superando-o por incorporação, não por exclusão,
sem sobrepor um pensamento ao outro, mas reconhecendo e valorizando cada um. Que
um não sirva para legitimar o poder de uns em detrimento dos outros, como outrora
mencionado.

Os livros didáticos:

A análise dos livros didáticos tem como base as teorias pós-coloniais


referenciadas nesse texto anteriormente. Senso assim, buscar-se-á entender como
problematizou-se nesses manuais as temáticas da História do Brasil colonial e o período
escravocrata no Brasil.
Para facilitar a análise e o entendimento separamos esse momento em dois
tópicos fundamentais para a discussão. O primeiro contempla as críticas feitas ao livro
do Ensino Fundamental e o segundo o livro do Ensino médio.
Vontade de saber história:
O livro didático que será examinado nesse tópico intitula-se: “Vontade de saber
história”, destinado ao 7° ano do ensino Fundamental, 2° edição, Editora: FTD, São
Paulo, 2012. Os autores: Marco César Pellegrini, Adriana Machado Dias e Keila
Grinberg, todos graduados em História, o primeiro e a segunda pela Universidade
Estadual de Londrina (UEL) e a última pela Universidade Federal Fluminense (UFF). O
Professor Pellegrini é editor de livros na área de ensino de História e professor da rede

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particular de ensino. Professora Adriana Dias é especialista em História Social e Ensino
de História pela UEL, também é professora da rede particular de ensino. E a Professora
Keila é doutora pela Universidade Federal Fluminense, atualmente leciona na
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UNIRIO (dados retirados do próprio manual
didático).
De maneira geral o livro não é denso, possui 224 páginas. Utilizamos o livro do
aluno, já que queremos entender o que chega até o discente. Composto por 12 capítulos,
os conteúdos vão desde o motivo pelo qual estudamos história, A Formação da Europa
Medieval até A Expansão das fronteiras da Colônia portuguesa. Contudo, o que nos
interessa para esse estudo em especial é o capítulo 11: A colonização da América
portuguesa (p: 178 – 197), pois trata do período que compreende a chegada dos
europeus no continente Americano e o trabalho escravo negro.
Prevalece inicialmente, no décimo primeiro capítulo, os tradicionais
depoimentos da chegada dos europeus, nesse caso retratado pela célebre carta de Pero
Vaz de Caminha, e os primeiros „contatos‟ com os tupiniquins. Percebemos
primeiramente, que as narrativas estão pautadas no olhar do colonizador sobre o “novo
mundo” com enfoque na relação econômica estabelecida com a Colônia. Na sequência,
“a mão de obra africana” entra em debate, com algumas gravuras, uma de 1850 de
africanos cativos sendo levados para o navio (Não apresenta o nome do autor, apenas:
Universidade da Virgínia, Charlottesville) e a outra uma xilogravura, Séc. XIX, (autor
desconhecido, coleção particular) representando a escravidão no continente africano,
seguida de um texto que fala sobre a escravidão no continente Africano:

A grande demanda provocada pelo comércio atlântico de escravos


alterou as características da escravidão tradicional africana. Como os
chefes se viam favorecidos ao adquirir produtos europeus [...], eles
passaram a se dedicar cada vez mais a captura de escravos [...].
(Vontade de saber História, 2012. p:185)
Observa-se, que não há problematização alguma sobre as resistências, a captura
de negros é algo natural, corriqueiro e já dado, outra coisa que chama atenção é a
utilização do termo escravo como sinônimo de negro. Também ocorre a generalização
das origens, fala-se de aldeias na África, mas não pontua-se quais, tampouco os
conflitos existentes no continente. Ao analisar livros didáticos Oliveira percebe que:

Textos e imagens ainda revelam a historiografia de visão eurocêntrica,


produzida no final do século XIX. As imagens, ao representarem a
diversidade étnica brasileira, colocam o negro em condição de

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escravo, no trabalho do engenho, no navio negreiro e como ser
passivo, apenas uma peça dentro do sistema capitalista. (OLIVEIRA,
2009. p:71)

O mesmo ocorre no livro didático analisado no momento, o negro representado


apenas como escravo nas imagens e nos textos. Sendo um livro posterior à Lei
10.639/03, nos preocupa que ainda traga essas visões estereotipadas do negro submisso
e naturalmente escravo. Ao falar sobre a necessidade do negro para a economia da
colônia, justificam-se as formas subumanas que os descendentes africanos viviam na
viagem e posteriormente na Colônia.

Nossa procura pelas resistências, no jogo das relações coloniais, até então não
havia obtido sucesso, apenas nas duas últimas páginas do capítulo como „prêmio de
consolação‟ encontramos o tema “A resistência africana”. Nesse momento os autores
afirmam:

Os africanos resistiram de diversas formas à dominação portuguesa.


Uma dessas formas era a preservação dos costumes de sua terra natal,
como danças, cantos e crenças. Outras ações, como a destruição de
ferramentas, a queimada das plantações ou a agressão aos senhores,
também eram realizadas pelos escravos africanos. (Vontade de Saber
História, 2012. p:192)

Detecta-se na citação acima, a forma simplista e reduzida: “resistiram de


diversas formas”, mas também a tentativa de se falar nas resistências dos colonizados,
ainda que o foco do capítulo não seja esse.
Nesse momento, os autores trazem para o debate um fragmento do texto de
Mauro Bertoni e Jurandir Malerba sobre os quilombos, que eram compostos por
populações de escravos foragidos, homens livres e marginalizados. Destaca-se o
quilombo de Palmares, ao lado um mapa da revista Nova escola, com os principais
quilombos (sem data da representação) e uma ilustração representando um quilombo.
Há também a célebre imagem de Zumbi dos Palmares, pintada por Antônio Pereira. Por
fim, um texto intitulado: “A cultura Afro-brasileira” que fala sobre a miscigenação, a
herança cultural, e sobre o dia 20 de novembro, no qual que se comemora o dia
Nacional da Consciência Negra, seguido de uma fotografia de 2005, retratando a
capoeira na Bahia. Percebe-se a tentativa de valorização da cultura, no entanto os textos
e imagens estão soltos, colocados de forma simplista, sem argumentar e problematizar o
que está exposto.

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Quando os autores abordaram as temáticas relativas ao cotidiano da colônia,
após a vinda dos africanos, em momento algum, mencionaram as resistências e as
permanências da cultura Africana. Todos os enfoques fazem referência ao olhar do
colonizador sobre a colônia. Apenas no final do capítulo observamos a tentativa de
cumprir as determinações das diretrizes curriculares, demostrando algumas
manifestações culturais e formas de resistência, como: o quilombo, as danças, cantos e
crenças. No entanto, o lugar de “apêndice” que ocupam no capítulo, demostra a pouca
importância dada às manifestações e resistências dos subalternos. É um conteúdo que
está à parte e não inserido no contexto de desenvolvimento do assunto, ou seja, a
importância da cultura africana fica fragmentada, relegada a um último plano, fora do
processo de construção da História do Brasil e da sociedade como um todo
(OLIVEIRA, 2009. p: 76).

História Global

O segundo livro a corroborar com esse estudo intitula-se “História Global:


Brasil e Geral”, obra de Gilberto Cotrim, vol. 2, 1°Ed., São Paulo, Editora: Saraiva,
2010. Destinado ao segundo ano do Ensino médio, esse manual é dividido por quatro
unidades temáticas e cada uma composta por 5 a 7 capítulos. A primeira unidade, a qual
pautará nossa análise, denomina-se Brasil Colônia. O livro ainda contempla uma
unidade para a Idade Moderna, e as últimas duas tratam da Idade Contemporânea, no
mundo e no Brasil respectivamente.

Com o objetivo de facilitar o trabalho realizamos um recorte, não será possível


contemplar aqui a primeira unidade inteira, então atentamos para os quatro primeiros
capítulos, que vão do início da colonização à escravidão e resistência. Os contatos
iniciais com o sumário nos trazem certa esperança, há um capítulo (4° capítulo)
destinado exclusivamente da escravidão e a resistência, vamos então ver do que se trata.

De modo geral no primeiro capítulo: “Início da colonização” o autor trata das


primeiras expedições, do início da colonização, das feitorias, do trabalho indígena
forçado, entre outros assuntos clichês. Aos poucos Gilberto Cotrim vai dando ênfase as
resistências indígenas, como a recusa desses a converter-se a fé cristã. Mas também, ao
ardiloso discurso da guerra justa, a qual propiciava aos colonos conquistar terras,
através do conflito com nativos (COTRIM).

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No segundo capítulo, “Administração portuguesa e Igreja Católica” o foco
gira em torno das questões políticas, administrativas e econômicas. Contudo, o autor vai
tratando de formas de resistência dos nativos, como por exemplo: “os Tupinambás,
parte dos tupiniquins, os carijós, e os guayanás das regiões de São Paulo e Rio de
Janeiro, com o apoio dos franceses, fizeram uma grande aliança de guerra, que
recebeu o nome de confederação dos Tamoios” (História Global, 2010. p:25). Por fim, o
autor traz questões referentes à atuação da Igreja e da Inquisição.

Nossa análise até aqui foi simplista e sucinta, objetivando compreender melhor
o terceiro e quarto capítulos, cujo título do terceiro é: “economia colonial: o açúcar”.
Nesse item o conteúdo proposto vincula-se à questão econômica da produção nos
engenhos de açúcar e chega no “predomínio da escravidão africana”. O autor começa a
temática falando das causas do prevalecimento da escravização africana em detrimento
da indígena. A inabilidade masculina dos indígenas para o trabalho braçal, as epidemias,
o domínio de técnicas pelos africanos e a oposição da igreja católica à escravização
indígena foram apontados pelo autor como causa da escravidão africana. Cotrim, faz a
problematização em relação a todo um empreendimento maior, um sistema de tráfico
dentro do próprio continente Africano, e do grande interesse econômico que estava
envolvido o sistema de escravidão.

Em seguida, uma imagem sob o título de “Habitação de negros”, (p: 36) de


Johann Moritz Rugendas, destaca que a casa dos “negros” era de pau a pique, caiada,
com cobertura de sapé, com o detalhe da casa grande ao fundo. Muitas imagens de
Rugendas, retrataram o cotidiano de sofrimento dos escravos (OLIVEIRA), ao menos
percebemos que essa não, ainda que demostre a inferioridade da morada dos negros em
relação à dos colonizadores, representa o cotidiano, crianças, mães e outros adultos no
convívio diário, sem retratar como característica principal dos escravos, os castigos.
Também consideramos interessante nessa imagem, as famosas senzalas, essas não eram
iguais em todos os locais, cada fazenda tinha relação diferenciada com os escravos e
com a morada desse grupo. Na maioria das vezes o que impera é a ideia de senzalas
padronizadas.

O autor reserva uma página no final do capítulo destinada ao “cotidiano dos


escravos nos engenhos”, utiliza-se de fragmentos do livro “Segredos internos:
engenhos e escravos na sociedade colonial” de Stuart Schwartz. Nesse momento, o

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autor relaciona os castigos, o vestuário e a alimentação dos escravos, mostrando como
era o sofrimento e os castigos, perpetuando o estereótipo de que o cotidiano dos
escravos era apenas esse.

O último capítulo proposto para análise no nosso estudo, talvez o mais


importante, constitui-se no quarto: “Escravidão e resistência”. Gilberto Cotrim afirma:

Os responsáveis pelo tráfico negreiro trouxeram para o Brasil cerca de


4 milhões de africanos durante mais de três séculos de escravidão.
Devido, em grande parte, a essa imigração compulsória, o Brasil tem
atualmente uma das maiores populações de afrodescendentes do
mundo. (História Global, 2010. p: 70)

Esse dado nos é importante, pois dentro das salas de aula, muitos dos alunos
que utilizam, ou utilizaram esse livro são afrodescendentes. Por isso, é de suma
importância que evidenciemos as muitas contribuições desse povo para a construção do
país que também é deles. O capítulo é destinado à escravidão e a resistência, optamos
por dar ênfase ao que o autor conduz sobre as resistências, já que, os dados sobre a
escravidão não são objetos desse estudo. Sendo assim Cotrim afirma:

Apesar de terem chegado ao Brasil sob as mais penosas condições, os


africanos participaram intensamente das vivências culturais
brasileiras. Essa participação deu-se por meio de um processo
contínuo, rico e diversificado, sendo marcante, por exemplo, na
literatura, na língua falada, no vocabulário, na música, na alimentação,
na religião, no vestuário e na ciência (História Global, 2010. p:45).

Não estamos aqui negando a crueldade do período escravocrata, mas


procurando romper com o estereótipo de que foi só isso. É notável essa preocupação
nesse manual didático, o autor trabalha com a ideia das culturas imbricadas no processo
colonização e não de reducionismo. Ao destacar as resistências, destaca também o quão
importante foi à presença negra, colocando o negro como sujeito da História, não só
para a economia, mas principalmente para a cultura.

No livro anterior “vontade de saber história” não encontramos nenhum texto


explorado, o que não estivesse ligado à ideologia eurocêntrica, do colonizador. Já esse
manual, apresenta um texto do historiador africano Joseph Ki-Zerbo. Um africano,
portanto, fala de dentro, não é visão do colonizador sobre o colonizado, mas do
colonizado sobre seus pares. Nesse fragmento do texto de Ki-Zerbo, destaca-se a
impossibilidade de compreender a história da África, ao ignorarmos o tráfico negreiro.

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Cotrim destaca várias formas de resistência adotadas pelos cativos nesse
período. Na tentativa de romper com o estereótipo eurocêntrico de passividade afirma:

Os africanos trazidos para o Brasil e seus descendentes não ficaram


passivos em sua condição escrava. Estudando as formas de
resistências empregadas pelos cativos, autores de obras mais recentes
mostram que os escravos reagiram à escravidão na medida de suas
possibilidades, ora promovendo a luta aberta contra o sistema, ora até
mesmo de „adaptando‟ a certas condições, mas propondo formas de
minimizar seus aspectos mais perversos mediante negociações com os
senhores. (História Global, 2010. p:46)

Percebemos a preocupação do autor de evidenciar as várias formas de


resistência, na medida do possível, colocadas pelos escravos. Destaca-se a violência
contra si mesmo, as fugas individuais e coletivas, os confrontos, boicotes e sabotagem,
as negociações e conflitos diretos, dá-se ênfase a resistência em forma de fuga e através
dos quilombos. Não cita os autores pós-coloniais, mas parece ir por esse lado,
identificando formas de resistências que nem sempre foram entendidas como
resistência.

Evidencia-se, principalmente no quarto capítulo, a preocupação do autor de


mostrar que havia e há muitas resistências e luta dos africanos e afrodescendentes em
relação à escravidão rompendo com o estereótipo de submissão negra. Compreendemos
que há muitos limites ainda na interpretação, mas um esforço contínuo para a mudança
e a superação da má interpretação, da falta de conhecimento, que se configura-se em
preconceitos e no seu ápice, o racismo.

Considerações finais:

Essa pesquisa teve por objetivo analisar dois livros didáticos, usados em duas
escolas públicas da cidade de Palmeira – PR. Buscou-se ponderar sobre as ideologias
impressas nesses manuais, problematizando a fonte. Preocupamo-nos em examinar os
livros didáticos buscando os conteúdos que tratavam do período colonial e escravocrata
brasileiro, com enfoque nas resistências dos colonizados.

Inicialmente, propomos a discussão da importância do livro didático como


aparato na prática do professor, ferramenta essencial para facilitar e auxiliar o docente
em seu trabalho cotidiano, mas que não deve ser usado como única fonte. Também
como forte influenciador de pensamentos, por isso o cuidado e a preocupação com o

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manual. Influenciador, porque muitas vezes é o único acesso dos alunos e de seus pais a
História, portanto é preciso problematizar essa fonte que é carregada de ideologia,
partimos da ideia que o livro didático não traz concepções neutras, pelo contrário.
Detectamos a forte concepção eurocêntrica imbricada ainda hoje nos livros didáticos, as
noções de superioridade e inferioridade de raça, estereótipo de passividade negra e
preconceitos, que acarretam em racismo.

Problematizamos com autores pós-coloniais, a emergência de reformular os


manuais com a preocupação de romper com as concepções estereotipadas e
preconceituosas dos padrões eurocêntricos. Destacamos, a eficácia que o discurso do
colonizador possuiu para inferiorizar o colonizado, e que ainda esse discurso tem força e
precisa ser superado. A visão do “eu” colonizador sobre o que é o “outro” impera ainda
hoje nos manuais é preciso mudar o olhar, inverter a visão, do colonizador falando pelo
colonizado, abrir espaço para o colonizado falar de si mesmo.

Por fim, demostramos as complexidades existentes nos conteúdos do livro


didático. O primeiro manual analisado, traz os conteúdos com forte viés eurocêntrico,
não problematiza as resistências, acaba por perdurar o preconceito, a ideia de submissão
e passividade dos escravos negros. Já no segundo livro, notou-se um esforço positivo,
significativo, para romper com os estereótipos em relação aos negros.

Há ainda muitos limites, tanto na abordagem dos livros didáticos, quanto na


nossa abordagem. Destacamos que a possibilidade de estudos mais detalhados e com
mais tempo de pesquisa, são essenciais para essa temática. Demostramos a grande
contribuição do estudo da Professora Marli Solange de Oliveira para essa pesquisa, seu
estudo referente ao tema teve maior complexidades e tempo de pesquisa. Sendo assim,
finalizamos este estudo considerando a necessidade de estudos mais aprofundados sobre
a temática.

Referências:

BHABHA, HOMI K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.


BRASIL. LEI N° 10.639, de 9/01/2003: altera a Lei 9394/96. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm > Acesso em:
22/07/2016.
COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. vol.2, 1°ed. São Paulo: Saraiva,
2010.

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LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 22° ed, Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
MIGNOLO, W. Histórias locais/projetos globais: Colonialidade, Saberes Subalternos e
Pensamento Liminar. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Resenha de: CRUZ, Valter
do Carmo. GEOgraphia – Ano 7, n°.13, p. 135-140, 2005. Disponível em: <
http://www.uff.br/geographia/ojs/index.php/geographia/article/viewFile/184/176>
Acesso em: 20/07/2016.
MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes
subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: EDUFMG, 2003.
NEVES, Cleiton Ricardo das: ALMEIDA, Amélia Cardoso de. A identidade do “Outro”
colonizado à luz das reflexões dos estudos Pós-Coloniais. Em Tempo de Histórias,
Publicação do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília
(PPGHIS/UnB) Nº. 20, Brasília, jan. – jul. 2012. ISSN 2316-1191. Disponível em:
<http://periodicos.unb.br/index.php/emtempos/article/viewFile/7288/5705> Acesso em:
29/06/2016.
Oliveira, Marli Solange. “A representação dos negros nos livros didáticos de
história: mudanças ou permanências após a promulgação da Lei 10.639/03”. Belo
Horizonte, 2009. Disponível em:
<http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Educacao_OliveiraMS_1.pdf> Acesso em:
29/06/2016.
PELLEGRINI, Marcos César; DIAS, Adriana Machado; GRINBERG, Keila. Vontade
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TAVARES, Adriana Gomes. “A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO NOS LIVROS
DIDÁTICOS DE HISTÓRIA EM MINAS GERAIS (1960-2005)”. Disponível em:
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