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Enciclopédia Einaudi
volume 29
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Tempo / temporalidade

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IMPRENSA NACIONAL - CASA DA MOEDA


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'" 92 Génese (K. Pomian)

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103
164
Ciclo (K. Pomian)
Periodização (K. Pomian)
c'M-õôo·;·-G'·5~.25g 214
236
Evento (K. Pomian)
Catástrofes (K. Pomian)

253 Plano da obra


254 Gráfico

Director
Ruggiero Romano

Consultores do projecto
Alfredo Salsano, Giorgio Bertoldi, Alessandro Fontana,
Jean Petitot, Massimo Piattelli Palmarini, Massimo Galuzzi,
Fernando Gil, Krzysztof Pomian, Giuseppe Geymonat,
Giuseppe Papagno, Gian Paolo Caprettini, Renato Betti,
Giulio Giorello, Clemente Ancona,

EDIÇÃO PORTUGUESA

Coordenador-responsável
Fernando Gil

Secretariado
Maria Bragança, Jorge Teixeira

Orientação gráfica
Departamento de Edições da INCM

© 1993 Imprensa Nacional - Casa da Moeda


NOTA DO EDITOR

Na sua versão original, esta Enciclopédia dispõe-se alfabeticamente, de «Ábaco»


até «Zero», num total de 551 entradas em 14 volumes. A Enciclopédia foi porém
concebida tematicamente, na forma de 79 conjuntos de entradas. No fim de
cada um dos volumes da presente edição, o leitor encontrará o gráfico da obra,
tal como ela se distribui pelos conjuntos temáticos: os conceitos sublinha-
dos - chamados portanti na edição italiana, quer dizer, «portadores» do con-
junto - correspondem aos títulos dos nossos volumes. Com efeito, na edição
portuguesa os conjuntos foram reagrupados, segundo um critério de proximi-
dade conceptual, num corpus de 41 volumes. Seguir-se-lhe-ão dois outros que
correspondem ao vol. 15 da edição italiana (Sistemática). Neles se apurar:n as
correlações internas e as grandes linhas de fundo da Enciclopédia.
Após cada artigo, um pequeno texto, da responsabilidade da redacção da
Enciclopédia, demarca a problemática global respectiva, nesse texto, as palavras
em itálico são designações de outras entradas da obra. Todos os artigos propõem
assim itinerários de leitura - diferentes em cada caso - através do corpus. Não
se trata, naturalmente, de recomendações rígidas de leitura mas tão-só de indica-
ções, que sugerem ao mesmo tempo os encadeamentos na base da Enciclopédia,
e convidam também o leitor a construir os seus próprios percursos. A circulação
dos conceitos está ainda assinalada por um sistema de referências cruzadas den-
tro das próprias entradas.
Os nomes de autores que figuram no texto dos artigos entre parênteses rec-
tos, assim como as datas entre parênteses rectos que se seguem aos nomes dos
autores, reenviam aos dados bibliográficos completos no fim de cada entrada.
São indicadas as traduções portuguesas existentes. Estes dados bibliográficos
referem-se unicamente às obras citadas ou mencionadas no corpo dos artigos:
não são de modo algum bibliografias. Os títulos das obras em italiano, francês,
inglês, espanhol, citadas no corpo dos artigos, são indicados na língua original.
Quanto às obras em alemão, russo, árabe, chinês, etc., menciona-se no texto
do artigo o título em português, seguido pelo título original entre parênteses
curvos, se não se reenvia aos dados bibliográficos; se porém tal reenvio é feito,
o título original achar-se-á nesses dados. No que se refere aos clássicos gregos
e latinos limitamo--nos a dar o título em português no corpo do artigo, com
as indicações necessárias para identificar os passos citados. As palavras em hebreu,
grego, árabe, etc., foram transliteradas.
As datas entre parênteses rectos nos dados bibliográficos são as da composi-
ção da obra ou representam uma referência cronológica diversa da 1.a edição
I Traduções
Maria Bragança (Catástrofes, CicIo, Evento, Génese, Periodização, (que figura, com indicação do autor e dolugar de publicação, depois do título),
Tempo/temporalidade ). por exemplo no caso das obras póstumas. ~

I)
TEMPO/TEMPORALIDADE

1. Relógios vivos, já que alguns dos nossos estados somáticos variam


com uma periodicidade circadiana de origem endógena [Reinberg 1974; 1976],
em circunstâncias normais, nós orientamo-nos, porém, de preferência, pelos
eventos externos, cujo número e complexidade influenciam fortemente, ou
mesmo determinam - os psicólogos estão muito divididos acerca deste
ponto [cf. por exemplo Ornstein 1969; Põppel 1971] -, o comprimento
atribuído a intervalos temporais na ausência de indicações forneci das pelos
relógios artificiais ou pelos fenómenos naturais de conhecida duração.
A definição da ligação entre estas duas variáveis e a avaliação do comprimento
dos intervalos temporais é também objecto de controvérsia. Segundo Ornstein
[1969], um dado intervalo parece, ceteris paribus, tanto mais longo quanto
maiores forem o número e a complexidade dos eventos que o preenchem, com
a reserva de que, a partir dum nível máximo, o aumento da complexidade
actua em sentido inverso. Segundo Doob [1971, p. 115; e cf. a sua crítica de
Ornstein, pp. 127-29], um intervalo vazio ou superpovoado parece longo,
e então o tempo passa devagar; em contrapartida, parece curto, e o tempo
passa depressa, quando se vêem produzir-se nele alguns eventos, mas nem
muitos nem muito poucos. Apesar da sua divergência, estes resultados
permitem concluir que, para diversos indivíduos, e para o mesmo indivíduo
~ em condições diversas, os minutos, as horas e os dias, metricamente idênticos,
não são de facto iguais uns aos outros porque os comprimentos que lhes são
subjectivamente conferidos não coincidem. O nosso presente quotidiano - um
presente longo, que difere do «presente psicológico» durante o qual conside-
ramos que percebemos como simultâneos eventos na realidade sucessivos,
contanto que não sejam nem muito numerosos nem muito intervalados ou
díspares, e que se consideram compreendidos ora entre 0,15 e 5 segundos
[Fraisse 1967, pp. 96-99] ora entre 4 e 7 segundos [Põppel 1971] - revela-
-se, pois, composto por intervalos heterogéneos e não comparáveis, cada um
dos quais depende, até pelo seu comprimento, do número e da complexidade
dos eventos percebidos. Este presente, o único apreendido por cada indivíduo
no decurso da sua actividade normal e depois conservado na memória, cabe,
pois, num tempo qualitativo.
Tal presente, tal passado. «Se me debruço sobre o meu passado, as recor-
dações não se alinham com regularidade. Há, neste olhar retrospectivo, nós
formados pelos eventos cruciais: uma morte, um bom êxito num concurso,
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uma guerra, que quebram a continuidade e desempenham a função dos entre os 46 e os 55; praticamente independente do sexo, é uma contrapartida
planos nas perspectivas espaciais; situamos os eventos conforme precedem manifestamente tributária do nível sociocultural: quanto mais elevado for
ou seguem estas cesuras da nossa existência. A distância entre estes dois este, mais longínquo é o futuro, mesmo nas pessoas de idade avançada
planos também não é homogénea: alguns períodos parecem-nos mais longos, [Leroux 1977]. Dito isto, à excepção daquilo que às vezes se chama o «quarto
outros mais curtos, embora nós saibamos que, à escala do calendário, tiveram mundo», de que. uma das características é justamente a impossibilidade
igual duração. Há muito que foi observado que esta duração relativa depende de pensar no futuro, à excepção também de certos doentes mentais e, talvez,
do número das recordações: um período parece-nos retrospectivamente tanto dos delinquentes [cf. Fraisse 1967, pp. 195 segs.; Doob 1971, pp. 273 segs.;
mais longo quanto mais rico em recordações» [Fraisse 1967, p. 175]. Tudo Nuttin 1977], age-se de tal modo que o futuro seja melhor que o presente.
isto é igualmente válido para o passado da família, às vezes muito alargada, Vamos à escola para passar de classe e para obter um diploma. Orientamo-
acerca do qual os nossos pais nos informam contando-nos as suas recor- -nos para esta ou aquela profissão, e fundamos na condição adquirida projectos
dações - e as dos seus pais, de que se tornaram depositários -, comentando ora modestos ora ambiciosos, ora utópicos ora realistas. Há um período
os objectos que, provavelmente, tiveram relações com este ou aquele durante o qual pensamos no casamento, depois nos filhos, nos seus estudos,
antepassado, repetindo narrações, anedotas e histórias. Substancialmente nas suas ocupações, no seu casamento, nos seus filhos. Compramos a crédito
conhecido através da transmissão oral, o passado familiar, ainda que apartamentos, automóveis, móveis e outros artigos de consumo duradouros,
longuíssimo, é o mais das vezes escondido, não pelos anos, mas pelas depositamos dinheiro em caixas de poupança ou em bancos, investimo-lo em
gerações: o que O subdivide em intervalos desiguais e heterogéneos, orga- acções ou em objectos que consideramos que se valorizarão, pensamos em
nizados em torno de eventos ou personagens memoráveis, cuja gesta, evocada assegurar uma pensão e em dispor da nossa fortuna no caso de morrermos.
por nomes próprios, lugares, relíquias, ressuscita durante as festas familiares: Tudo isto, para não falar de inúmeros projectos a curto prazo, absorve os
aniversários, casamentos, cerimónias laicas ou religiosas reservadas aos nossos pensamentos e influencia a nossa conduta. Neste sentido, «a nossa
parentes próximos [cf. Halbwachs 1925, ed. 1952 pp. 146 segs.]. Entre estas vida está essencialmente orientada para o futuro» [Minkowski, citado in
últimas cabe um papel particularmente importante àquela cerimónia familiar Fraisse 1967, p. 195].
por excelência que é, entre nós, o dia dos mortos: o seu culto, «tornado hoje Relativo a uma perspectiva temporal individual [Nuttin 1977], inseparável
a única manifestação religiosa comum aos não-crentes e aos crentes de todas dos eventos percebidos, das recordações vindas à superfície da memória, das
as confissões» [Ariês 1966, trad. it. p. 178], é, com efeito, uma homenagem expectativas traduzidas em pensamentos, em actos e em palavras, composto
prestada à família pelos seus membros, uma homenagem que ultrapassa o de intervalos desiguais e heterogéneos tanto no presente como no passado e
indivíduo, radicando-o no passado e prolongando-o no futuro. Memória dos no futuro, colorido, além disso, por estados afectivos e, portanto, sob esse
nomes, às vezes mesmo das dignidades e dos títulos, sempre das datas de aspecto muito variáveis, o tempo psicológico é um tempo qualitativo.
nascimento e da morte dos pai>, a inscrição funerária junto da qual são É também um tempo orientado, dotado duma direcção determinada e dividido
depositadas flores ou se acendenfvelas resume as vicissitudes da família, torna em fases ou períodos que se sucedem segundo uma ordem imutável: primeira
visível a sucessão das gerações e relaciona-a com a cronologia pública, ou infância, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice. A partir
mesmo com a história nacional. Deste modo ela ilustra a passagem do tempo duma certa idade, cada qual está consciente de que tal ordenamento e
e lembra aos indivíduos que após a sua morte eles permanecem na memória sucessão de períodos não pode ser modificada, e cada qual sabe tacitamente,
dos outros. sem mesmo pensar, que envelhece, que acumula um número crescente de
Sempre presente, mas o mais das vezes de maneira latente, o nosso passado recordações e de esquecimentos, sabe que o seu futuro pessoal encurta e
pessoal e familiar só ressurge e prende a atenção em raros momentos, que não pode remediar este facto: não há regresso ao passado, a não ser
mais ou menos excepcionais e mais ou menos solenes. Em compensação, em sonhos, cada «agora», cada «instante», desaparece para sempre dando lugar
o nosso futuro, objecto de preocupação, de projectos, antecipações, expec- a outro, o qual por sua vez desaparecerá. O tempo psicológico é irreversível
tativas, esperanças ou angústias, intervém correntemente no presente, ou e finito: compreendido entre o nascimento e a morte, na qual geralmente só
melhor: constitui uma sua componente, dado que, na sua grande maioria, as pensamos a espaços, nos momentos em que sentimos particularmente a nossa
actividades de hoje só podem dar frutos amanhã, ou mesmo ainda mais tarde. vulnerabilidade, mas que no entanto se mantém insidiosamente presente no
O grau de subordinação do presente ao futuro varia indubiamente segundo horizonte de todas as nossas antecipações, de todos os nossos projectos. I

categorias sociais: «O operário pago ao dia não tem os mesmos compor- Ao «cada um por si» do tempo psicológico, do qual, para sermos exactos,
tamentos temporais que o membro duma classe média pago ao mês, ou só devíamos falar no plural, os tempos colectivos opõem, na ordem esparsa,
do rentier que recebe anualmente os seus dividendos ou as suas rendas» o seu «um por todos». Assim, há um Sol para todos os habitantes dum dado
[Fraisse 1967, p. 185]. Analogamente, a extensão dos projectos para o futuro território, os quais, ainda que não organizem as suas actividades quotidianas
varia segundo as classes etárias: é mais marcada entre os 26 e os 35 anos e em função do seu despontar e do seu ocaso, reagem maciçamente às variações
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sazonais da temperatura, das precipitações, da iluminação, imprimindo às eclesiástico e o ano civil torna absurda a sucessão das festas religiosas no
nossas sociedades uma dupla morfologia: concentradas nas cidades nos quadro deste último: com efeito, ele encerra com a comemoração do
períodos de trabalho, elas espalham-se pelas montanhas durantes as férias nascimento de Cristo, que antes o devia inaugurar. Os três anos e o ano que
de Inverno e, em medida muito maior, nas praias durante as férias deles resulta subdividem-se em intervalos de comprimento variável: estações,
estivais [cf. Mauss 1904-905]. Num país como a França, se bem que mais de no caso do ano solar, e meses, no caso do ano civil; são subdivisões que não
metade da população não tire férias, a produção industrial desce, em Agosto, coincidem nem entre elas nem com aquela que distingue, no interior do ano
40 por cento relativamente à média anual, fenómeno aliás excepcional, eclesiástico, dois períodos: um, ocupado por festas religiosas, que vai do Natal
dado que no resto da Europa Ocidental só desce no mesmo mês entre 5 a 20 ao Pentecostes, e o outro, de carácter mais profano [cf. ibid.]. Inseparáveis
por cento, mantendo-se constante nos Estados Unidos, na URSS e no Japão pelo seu conteúdo (pelo que, ainda quando metricamente idênticos, são vistos
[Le Vert 1972, p. 67]. como heterogéneos), relativos de resto aos diversos países, estes intervalos
Um calendário litúrgico para todos os adeptos duma religião: no caso dos mostram bem que os tempos colectivos - solar, religioso, político - são,
católicos, por exemplo, ele define as grandes festas que se sucedem ao longo justamente como o tempo psicológico, tempos qualitativos.
do ano: Epifania; Quarta-Feira de Cinzas, Anunciação, Domingo de Ramos, Isto não impede que sejam diversos sob outros aspectos. O tempo solar é
Páscoa, Ascensão, Pentecostes, Corpo de Deus, Assunção, Todos-os-Santos, simplesmente cíclico: nunca inteiramente iguais, as estações e os dias, que se
Natal. Define ainda os períodos particularmente carregados de sacralidade e repetem, são sempre muito semelhantes aos dos anos passados; uma
durante os quais os crentes devem impor a si próprios privações excepcionais: Primavera, ainda que a mais fria e mais húmida de que há memória, é no
o Advento, preparação intensa à celebração do nascimento de Cristo e, antes entanto uma Primavera. Já o tempo litúrgico é linear e orientado. A um olhar
do tríduo pascal que faz reviver, como se se verificasse mais uma vez, a sua exterior e superficial, este facto é mascarado pelo retorno das mesmas festas
morte e ressurreição, a Quaresma com abstinência e jejum; e finalmente todos os anos. Mas conhecendo um pouquinho o seu conteúdo, torna-se claro
define os dias que, não sendo festas de toda a Igreja, se revestem de que, do Natal à Assunção, estamos perante a projecção no ano solar de uma
particular significado para este ou aquele grupo de fiéis, por ocasião dos sucessão de eventos que constitui uma progressão. No seu centro está a vida
aniversários da morte dos seus santos padroeiros [cf. Nocent 1975-77]. de Cristo ou, mais exactamente, a sua vida terrena, concluída, não pela morte
Um calendário político ppra todos os cidadãos dum estado, que estabelece e ressurreição, mas pela Ascensão; emoldura-a a vida da Virgem, concluída
o início do ano civil e de oueos tipos de ano (em particular o ano ou exercício com a Assunção, enquanto as vidas dos apóstolos e a história da comunidade
financeiro), que não coincidem necessariamente; e também do ano escolar, eclesiástica formam o seu prolongamento. O tempo litúrgico é, pois, linear e
variável segundo os países, mas sobretudo mais breve que o ano civil, e do orientado como o tempo psicológico, embora em direcção diferente: não
ano universitário, muitas vezes ainda mais breve; que estabelece a lista dos simplesmente do nascimento à morte, mas do nascimento cá na Terra, através
dias festivos com a sua subclasse particular, as festas legais: feriados da morte carnal, para a vida eterna no Além. Este tempo orienta-se também
religiosos reconhecidos pelo Estado e feriados ideológicos, tanto o chamado noutro sentido: é o nascimento de Cristo que serve de data inicial para o
nacional - ainda que, de facto, comemore as origens do estado na sua cômputo dos anos, uma vez que abre uma época na história do mundo. A partir
forma actual, o aniversário da vitória de 1945 ou do armistício de 1918- deste evento, como de todos os que compõem a história sagrada, estando
como, enfim, o 1.0 de Maio, estatizado em vários países europeus; que prevê ~ excluída do ponto de vista do crente toda a repetição que não seja simbólica,
outros eventos importantes do ano: as sessões do parlamento, as eleições, as uma vez que tais eventos se consideram situados, não no passado, mas numa
exposições internacionais ou as grandes feiras, as manifestações culturais ou espécie de presente atemporal e tornam a actualizar-se durante a celebração
desportivas; por outro lado, certos anos, diferentes de país para país, litúrgica, o tempo religioso é, como o tempo psicológico, irreversível. Em
constituem ocasião de festividades excepcionais destinadas a reavivar a contrapartida, é difícil caracterizá-Io de modo unívoco como finito ou como
recordação dum facto capital que atingiu o seu centenário ou pluricentenário. infinito. Por um lado, com efeito, as datas parecem estender-se sem limite
Para concluir esta rápida descrição, a estrutura aparentemente simples de algum antes e depois do ano-chame ira; por outro lado, fala-se da criação do
um ano resulta da sobreposição de três movimentos periódicos: variações mundo e do juízo universal que virá a concluir a sua história, mas sem situar
sazonais de origem solar, alternância de períodos e dias átonos e de períodos cronologicamente estes eventos. A finitude do tempo psicológico é um facto
e dias fortemente marcados pela religião, oscilações da presença visível e empírico; a finitude do tempo religioso é efeito do discurso que promete a
audível da ideologia e da política. Como cada um destes três movimentos é eternidade aos fiéis e que estabelece a duração definida do mundo,
independente dos outros, o ano solar compreendido entre dois retornos do determinada, mas de tudo desconhecida dos homens, em contraste com a
mesmo solstício não coincide com o ano civil que começa no 1.0 de Janeiro, duração, positivamente infinita, de Deus.
e o ano eclesiástico, que começa no primeiro domingo do Advento, não coin- Relativamente ao tempo político, nota-se em primeiro lugar que comporta
cide nem com este nem com aquele; além disso, a divergência entre o ano elementos cíclicos: certos eventos repetem-se periodicamente todos os anos,
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TEMPOrrEMPORALIDADE 16 17 TEMPO!fEMPORALIDADE

como o início e o fim dos anos escolares e financeiros, ou com intervalos também, ou mesmo principalmente, quantitativo: medido e anunciado pelos
mais longos, de quatro em quatro anos como os jogos olímpicos, por exemplo, relógios.
e como as eleições em muitos países, de cinco em cinco anos como certos Sob diversas formas, estes estão constantemente presentes na nossa vida.
planos económicos, de sete em sete anos como as eleições presidenciais em A rádio dá várias vezes ao dia a hora exacta nos minutos e segundos. Numa
França. Mas também estes eventos repetitivos se inscrevem numa história grande cidade vêem-se centenas de relógios: nas estações, nos aeroportos, nos
linear e orientada: os jogos olímpicos, na história dos records estabelecidos edifícios públicos, nas montras das lojas, nas repartições dos correios,
e relembrados a cada nova manifestação para mostrar como se corre cada vez à esquina das ruas. Aparecem ainda nas fábricas, onde, de resto, o começo e
mais depressa, como se salta cada vez mais alto, como se arremessa cada o fim dos dias de trabalho ou as pausas são às vezes indicados por sinais
vez mais longe; as eleições, na história de cada país, que por um lado invoca sonoros; as escolas usam por tradição uma campainha para anunciar o
o passado para mostrar os progressos alcançados ao longo do mandato princípio e o fim das aulas. E não é tudo, uma vez que quase todos nós temos
agora chegado ao fim, e por outro se volta para o futuro para anunciar os que em casa despertadores ou relógios de pêndulo. Além disso, a julgar pelos
serão realizados. Os aniversários do Estado e outros feriados oficiais servem \ .. resultados duma sondagem realizada por Louis Harris-France para o Centre
para celebrar os sucessos alcançados ao longo do ano decorrido e que, d'information de l'horlogerie entre o dia 12 e o dia 17 de Dezembro de 1980
somando-se aos do passado, pressagiam outros novos para o futuro próximo. numa amostra nacional de 1023 pessoas representativa da população francesa
Linear e orientado, embora comportando elementos cíclicos, o tempo político com mais de dezoito anos, verifica-se que 90 por cento dos adultos possuem
\.. é também ele irreversível: não haverá outra guerra da independência dos um relógio de pulso; é de crer que a mesma proporção se registe noutros países
Estados Unidos, nem outra tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno; as comparáveis à França. Segundo dados tornados públicos pelo Centre
revoluções só são concebíveis no passado: rupturas fundadoras, a partir d'information de l'horlogerie durante uma conferência de imprensa de 26 de
das quais se entra, embora com muitas convulsões, no reino do contínuo. Fevereiro de 1981 em França, venderam-se, em 1980, cerca de treze milhões
Enfim, o tempo político abre-se para o futuro infinito. Para bem apreender de relógios de pulso, contra 12,4 milhões vendidos no ano anterior; no
esta dimensão temos, contudo, de recorrer a um instrumento que permita decurso do mesmo ano, a produção mundial rondava, segundo as estimativas,
impor um mesmo tempo a uma colectividade, e particularmente a todos os 300 milhões de peças, entre as quais 170 milhões de relógios mecânicos
quantos vivem dentro das fronteiras de um Estado, com uma eficácia e 130 milhões de relógios de quartzo. A isto se somam os numerosos
incomparavelmente maior que o Sol, que o calendário litúrgico, que o calen- calendários de parede e agendas de escritório e de bolso, que são igualmente
dário político, ou mesmo que os três juntos. instrumentos de medir e dar a conhecer o tempo, neste caso as datas diurnas,
Se um dia todos os relógios se recusassem a obedecer, a nossa sociedade e teremos o retrato-robot duma sociedade dominada pelo tempo mensurável.
afundar-se-ia por completo. Os transportes ferroviários e aéreos parariam Este último é a tal ponto omnipresente que só foi possível distinguir entre o
catastroficamente, pois não podem funcionar a não ser respeitando horários tempo solar, religioso e político à custa dum artifício expositivo, isto é,
bem precisos. A indústria, igualmente submetida a horários, teria dificuldade fingindo esquecer que a duração das férias se exprime num certo número de
em manter-se em actividade, quanto mais não fosse pelos inevitáveis dias, que as cerimónias religiosas se realizam segundo um horário, que os
atrasos do pessoal, e isso seria de todo impossível para as grandes empresas, feriados oficiais são muitas vezes programados ao minuto, etc. Salvo casos
nas quais diversas operações devem estar minuciosamente sincronizadas excepcionais, o tempo qualitativo não é, na nossa sociedade, isolável do tempo
para conduzir ao resultado final. Por outro lado, a rede de distribuição de quantitativo, a não ser mentalmente: na vida colectiva real, os dois tempos
energia eléctrica sofreria certamente um colapso, pois, para assegurar o seu compenetram-se.
normal funcionamento, é preciso proceder a descongestionamentos nos Tudo isto concerne sobretudo o presente. Mas o passado colectivo
momentos de ponta e desactivar algumas centrais nos períodos de menor manifesta-se também sob as duas espécies: dá-se a ver, ler e imaginar através
procura; tudo coisas inexequíveis com a necessária precisão, não havendo dos vestígios que dele restam: monumentos arquitectónicos e lugares, em
relógios exactos e estáveis. O sistema das comunicações ficaria profundamente particular escavações arqueológicas; armas, utensílios e objectos vários,
desorganizado, e assim também os meios de comunicação de massa, incapazes sobretudo obras de arte, conservadas nas colecções e nos museus; documentos
de seguir os seus programas, os serviços, o ensino, a polícia, as alfândegas. g~a~dados nos arquivos; manuscritos e textos impressos recolhidos nas
Para não falar de todas as reuniões adiadas ou anuladas, de todo o trabalho bl~hotecas. E, mediante estes mesmos vestígios como mediante outros
administrativo perturbado, de todas as refeições queimadas por impossibilidade ??Je.ctos que lhes podem ser assimilados e cujo número é praticamente
da dona de casa de seguir as receitas. Estes poucos exemplos bastam para ilímítado, o passado deixa-se estudar e medir. Temos, assim, por um lado, as
recordar que a nossa sociedade se reproduz diariamente graças a actividades descrições das épocas passadas, as narrativas que retratam os seus perso-
inúmeras, cuja ordenação, às vezes subtilíssima, só é possível porque os vários nagens e que nos fazem reviver as suas peripécias nos romances ou nos filmes
poderes públicos impõem a todos um tempo não meramente qualitativo mas históricos, ou que narram certos eventos tendo o cuidado de manter-se fiéis
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aos relatos das testemunhas dignas de confiança e de conformar-se às regras A Program for Survival [Brandt e Sampson 1980] -, às previsões quanti-
da história; é um passado traduzido numa sucessão de imagens e organizado, tativas constituem, no entanto, uma pequena fracção dos trabalhos que
do mesmo modo que o tempo psicológico, em períodos definidos, não pelo pretendem tanto «controlar o provável e administrar o imprevisível»
seu comprimento métrico, mas pelo número e o carácter espectacular dos [Interfutures 1979] como dar imagens justificadas e convincentes do que
eventos que o preenchem. E, por outro lado, temos os vários estudos quan- espera a humanidade se esta se recusar a tomar juízo. Mais que o passado, o
titativos, séries de quadros ou diagramas que estudam, num tempo uniforme futuro está hoje sujeito a uma desenfreada exploração ideológica, se bem que
e homogéneo, representado pelas abcissas dos gráficos ou pelas colunas de certos sintomas permitem supor que os discursos de que é objecto começam
datas, as evoluções destas ou daquelas variáveis: dos preços, dos salários, dos a perder credibilidade [cf. Pomian 1980a].
rendimentos agrícolas, da mortalidade, da altura dos conscritos, da produção Medido pelo relógio e o calendário, o tempo quantitativo da vida colectiva
do aço, das trocas internacionais, etc. (veja-se acerca desta dualidade o artigo presente, da história e da prospectiva, é um tempo macroscópico e breve.
«Evento» nesta mesma Enciclopédia). Macroscópico, porque a sua unidade mínima é o segundo; breve, porque não
Como os indivíduos que a compõem, a nossa sociedade está essencialmente abarca mais do que alguns milénios. Sob estes dois aspectos, é inteiramente
virada para o futuro. Qualquer empresa de certa importância, e sobretudo uma distinto do tempo da ciência. É, com efeito, uma diferença, não de grau, mas
multinacional, é obrigada a prever a breve e médio termo a evolução do de natureza, que separa os relógios usuais, mesmo os mais sofisticados,
mercado dos produtos que fabrica e das matérias-primas que transforma, do dos relógios empregados nas experiências de física e que operam com
custo da energia e da mão-de-obra, da tecnologia empregada e do ambiente unidades da ordem de um mil milionésimo (10-9) ou um bilionésimo (10-12)
político: daqui a proliferação de gabinetes de estudo e de várias pesquisas de segundo; há já oito anos que se chegou mesmo a intervalos de 0,3
tidas por capazes de delinear as grandes tendências dos anos vindouros. Isto picossegundos (10-12 segundos), e esperava-se chegar em breve a 0,001
é ainda mais evidente no caso dos estados, já que certas decisões no campo picossegundos [Alfano e Shapiro 1973]. Trata-se de durações de brevidade
'-.. científico e militar, ou relacionadas com determinados investimentos
industriais, devem ser tomadas com grande antecipação. Assim, os Governos
inimaginável, e que estão fora do alcance de qualquer aparelho mecânico;
utilizando certas técnicas electrónicas, chegou-se a um nanossegundo
franceses têm por objectivo a redução das importações de energia, que hoje (10-9 segundos), mas para estudar os fenómenos mil·vezes mais breves, foi
cobrem cerca de 75 por cento das necessidades do país, a cerca de 50 por cento necessário esperar pelo laser. Por outro lado, a física, a química e a biologia
por volta do ano 2000, promovendo, pois, uma política de economias desenvolveram muitas técnicas de datação que permitem medir tempos
energéticas e de desenvolvimento das fontes energéticas alternativas (solar, ultralongos. A dendrocronologia fornece séries de amostras de árvores datadas,
geotérmicas, etc.) como também um programa nuclear. A realização de tal cada uma delas válida para a localidade de que provém; a série mais longa,
programa, empreendida a partir de meados dos anos 50, teve início com o das White Mountains na Califórnia, estende-se ao longo de 8200 anos no
reactor experimental Rapsodie, que atingiu a sua potência nominal em 1967, passado, e pensa-se conseguir prolongá-Ia mais 2000 anos [Bannister e
dez anos após o estudo do projecto. Foram necessários dez anos para que se Robinson 1975]; na Europa, certas séries regionais remontam ao século VIII
tornasse operacional, em 1974, o reactor autofertilizante Fénix [Zaleski 1980]. antes da nossa era [ChampionI980]. A importância específica da den-
Este exemplo (poderíamos citar muitos outros) mostra bem que, em certos drocronologia reside em particular no facto de ter permitido controlar as
casos, há que pensar com cerca de meio século de antecipação e que os datas obtidas medindo o teor de carbono 14 das matérias orgânicas; daqui
períodos de tempo que separam as decisões das actuações são muito longos. resultou que tais datas devem ser atiradas para cima, o que abalou profun-
O mesmo acontece com o sistema monetário internacional, inteiramente damente a imagem da pré-história europeia [Renfrew 1973]. Reequilibrada
projectado no futuro, dado que os créditos hoje concedidos só podem graças à dendrocronologia e completada por outros métodos, a datação por
dar resultados passados alguns anos, e que o seu reembolso se estende meio do carbono 14 mantém-se, porém, insubstituível para o período que vai
por um período ainda mais longo. O futurocentrismo dos países desenvolvidos, até 35 000 anos atrás; para além disso, deixa de ser fiável. Uma nova técnica,
imposto, por um lado, por vínculos técnicos e, por outro, pela ideologia, que consiste na medição do conteúdo de carbono 14 do colagénio dos ossos,
conduz a tentativas para prever a evolução das principais variáveis econó- permite, porém,. datar os achados com uma margem de erro aceitável, sempre
micas, demográficas e ecológicas. Deste modo foram avaliadas até ao ano que os próprios achados não remontem a mais de 40-50 000 anos; e julga-se
2020 as necessidades de urânio natural da França, e o crescimento da poder estender este limite até 75000 [Berger 1975]. Neste ponto insere-se o
população mundial até ao ano 2150; quanto à energia e ao inquinamento, método de datação fundado na medida da racemização dos aminoácidos
sendo muito grande o número das incógnitas, limitamo-nos a elaborar cenários contidos nos ossos, método que pode ser aplicado a um espaço de tempo q
plausíveis para o próximo meio século. Realizadas o mais das vezes por vai de alguns milhares a cem mil anos ou mais [Bada e Helfman 1975
iniciativa dos Governos ou das organizações internacionais - como, por minerais e as rochas cuja idade esteja compreendida entre os 35 O
exemplo, o Global Two Thousand Report [Barney 1979] e o North-South: 50 milhões de anos são datáveis por vários métodos: um dos mai
nóMr01TEMPOIGU:.1DADE

aos relatos das testemunhas dignas de confiança e de conformar-se às regras A Program for Survival [Brandt e Sampson 1980] -, as previsões quanti-
da história; é um passado traduzido numa sucessão de imagens e organizado, tativas constituem, no entanto, uma pequena fracção dos trabalhos que
do mesmo modo que o tempo psicológico, em períodos definidos, não pelo pretendem tanto «controlar o provável e administrar o imprevisível»
seu comprimento métrico, mas pelo número e o carácter espectacular dos [Interfutures 1979] como dar imagens justificadas e convincentes do que
eventos que o preenchem. E, por outro lado, temos os vários estudos quan- espera a humanidade se esta se recusar a tomar juízo. Mais que o passado, o
titativos, séries de quadros ou diagramas que estudam, num tempo uniforme futuro está hoje sujeito a uma desenfreada exploração ideológica, se bem que
e homogéneo, representado pelas abcissas dos gráficos ou pelas colunas de certos sintomas permitem supor que os discursos de que é objecto começam
datas, as evoluções destas ou daquelas váriáveis: dos preços, dos salários, dos a perder credibilidade [cf. Pomian 1980a].
rendimentos agrícolas, da mortalidade, da altura dos conscritos, da produção Medido pelo relógio e o calendário, o tempo quantitativo da vida colectiva
do aço, das trocas internacionais, etc. (veja-se acerca desta dualidade o artigo presente, da história e da prospectiva, é um tempo macroscópico e breve.
«Evento» nesta mesma Enciclopédia). Macroscópico, porque a sua unidade mínima é o segundo; breve, porque não
Como os indivíduos que a compõem, a nossa sociedade está essencialmente abarca mais do que alguns milénios. Sob estes dois aspectos, é inteiramente
virada para o futuro. Qualquer empresa de certa importância, e sobretudo uma distinto do tempo da ciência. É, com efeito, uma diferença, não de grau, mas
multinacional, é obrigada a prever a breve e médio termo a evolução do de natureza, que separa os relógios usuais, mesmo os mais sofisticados,
mercado dos produtos que fabrica e das matérias-primas que transforma, do dos relógios empregados nas experiências de física e que operam com
custo da energia e da mão-de-obra, da tecnologia empregada e do ambiente unidades da ordem de um mil milionésimo (10-9) ou um bilionésimo (10-12)
político: daqui a proliferação de gabinetes de estudo e de várias pesquisas de segundo; há já oito anos que se chegou mesmo a intervalos de 0,3
tidas por capazes de delinear as grandes tendências dos anos vindouros. Isto picossegundos (10-12 segundos), e esperava-se chegar em breve a 0,001
é ainda mais evidente no caso dos estados, já que certas decisões no campo picossegundos [Alfano e Shapiro 1973]. Trata-se de durações de brevidade

"- científico e militar, ou relacionadas com determinados investimentos


industriais, devem ser tomadas com grande antecipação. Assim, os Governos
franceses têm por objectivo a redução das importações de energia, que hoje
inimaginável, e que estão fora do alcance de qualquer aparelho mecânico;
utilizando certas técnicas electrónicas, chegou-se a um nanossegundo
(10-9 segundos), mas para estudar os fenómenos mil vezes mais breves, foi
cobrem cerca de 75 por cento das necessidades do país, a cerca de 50 por cento necessário esperar pelo làser. Por outro lado, a física, a química e a biologia
por volta do ano 2000, promovendo, pois, uma política de economias desenvolveram muitas técnicas de datação que permitem medir tempos
energéticas e de desenvolvimento das fontes energéticas alternativas (solar, ultralongos. A dendrocronologia fornece séries de amostras de árvores datadas,
geotérmicas, etc.) como também um programa nuclear. A realização de tal cada uma delas válida para a localidade de que provém; a série mais longa,
programa, empreendida a partir de meados dos anos 50, teve início com o das White Mountains na Califórnia, estende-se ao longo de 8200 anos no
reactor experimental Rapsodie, que atingiu a sua potência nominal em 1967, passado, e pensa-se conseguir prolongá-Ia mais 2000 anos [Bannister e
dez anos após o estudo do projecto. Foram necessários dez anos para que se Robinson 1975]; na Europa, certas séries regionais remontam ao século VIII
tornasse operacional, em 1974, o reactor autofertilizante Fénix [Zaleski 1980]. antes da nossa era [Champion1980). A importância específica da den-
Este exemplo (poderíamos citar muitos outros) mostra bem que, em certos drocronologia reside em particular no facto de ter permitido controlar as
casos, há que pensar com cerca de meio século de antecipação e que os datas obtidas medindo o teor de carbono 14 das matérias orgânicas; daqui 1
1\
períodos de tempo que separam as decisões das actuações são muito longos. resultou que tais datas devem ser atiradas para cima, o que abalou profun-
O mesmo acontece com o sistema monetário internacional, inteiramente damente a imagem da pré-história europeia [Renfrew 1973). Reequilibrada
projectado no futuro, dado que os créditos hoje concedidos só podem graças à dendrocronologia e completada por outros métodos, a datação por
dar resultados passados alguns anos, e que o seu reembolso se estende meio do carbono 14 mantém-se, porém, insubstituível para o período que vai
por um' período ainda mais longo. O futurocentrismo dos países desenvolvidos, até 35 000 anos atrás; para além disso, deixa de ser fiável. Uma nova técnica,
imposto, por um lado, por vínculos técnicos e, por outro, pela ideologia, que consiste na medição do conteúdo de carbono 14 do colagénio dos ossos,
conduz a tentativas para prever a evolução das principais variáveis econó- permite, porém, datar os achados com uma margem de erro aceitável, sempre
micas, demográficas e ecológicas. Deste modo foram avaliadas até ao ano que os próprios achados não remontem a mais de 40-50 000 anos; e julga-se
2020 as necessidades de urânio natural da França, e o crescimento da poder estender este limite até 75000 [Berger 1975]. Neste ponto insere-se o
população mundial até ao ano 2150; quanto à energia e ao inquinamento, método de datação fundado na medida da racemização dos aminoácidos
sendo muito grande o número das incógnitas, limitamo-nos a elaborar cenários contidos nos ossos, método que pode ser aplicado a um espaço de tempo que
plausíveis para o próximo meio século. Realizadas o mais das vezes por vai de alguns milhares a cem mil anos ou mais [Bada e Helfman 1975). Os
iniciativa dos Governos ou das organizações internacionais - como, por minerais e as rochas cuja idade esteja compreendida entre os 35 000 e os
exemplo, o Global Two Thousand Report [Barney 1979] e o North-South: 50 milhões de anos são datáveis por vários métodos: um dos mais utilizados
para este fim parece valer-se da medição da relação entre árgon e potássio na Tabela 1.
amostra estudada [Curtis 1975]. E se um cristal ou um vidro apresentam sinais
da fissão espontânea do urânio 238 (sinais que podem ser apagados pela Os mais importantes eventos da história do universo. A escala dos tempos dos eventos mais
antigos deve ser considerada indicativa porque não se conhece a idade exacta do universo.
temperatura elevada), pode-se atribuir-lhes uma data, praticamente sem
É, pois, melhor datar tais eventos em função da deslocação para o vermelho (red shift), que
limitações temporais, contanto que não sejam mais recentes que um século e é uma medida do grau de compressão do universo em expansão (cf. o artigo «Génese» nesta
mais velhos que o sistema solar: o que concede a tal método um tranquilizador mesma Enciclopédia). Para as velocidades aitíssimas características de épocas próximas do
espaço de aplicação de quatro mil milhões de anos [Fleischer 1975; big bang, a deslocação para o vermelho é dada por (1 - v2/c)/(1 - v2/c2)lf2 - 1, onde v indica
Macdougall 1976]. a velocidade da fonte de radiação e c é a velocidade da luz [Barrow e Silk 1980, trad. it.
p.103].
O resultado de tudo isto é um espantoso prolongamento da história, da
sucessão de factos acompanhados todos de uma data: os homens dominam o
fogo há 500 000 anos; os Antropídeos apareceram há seis milhões de anos;
a vida tem cerca de 3500 milhões de anos, e atribui-se ainda à Terra e ao Deslocação
Tempo
sistema solar mais mil milhões [Mayr 1978]. Quanto ao universo, nascido Época para o Eventos Anos atrás
cósmico vermelho
segundo as teorias cosmo lógicas contemporâneas de um único evento inicial,
tem uma idade inferior a 24, ou mesmo a 15,8, e superior a 13,8 mil milhões
de anos [Symbalisty e outros 1980]. Parece lícito considerar estes cerca de o Singularidade Infinito Big bang 20 X 109
10.43 segundos Tempo de Planck 1032 Criação das partículas 20 X 109
15 mil milhões de anos, que se pensa nos separem das origens do universo,

, como o comprimento temporal com um significado físico; para os cosmólogos,


o limite a partir do qual os raciocínios fundados nas leis conhecidas deixam
de ter validade situa-se nas proximidades de 10-43 segundos após o big bang
10.6 segundos
1 segundo
1 minuto
1 semana
10000 anos
Era hadrónica
Era leptónica
Era da radiação

Era da matéria
1013•
1010
109
, 107
104
Aniquilamento de pares protão-antiprotão
Aniquilamento de pares electrão-positão
Nucieossíntese de hélio e deutério
A radiação terrnaliza-se antes desta época
O universo é dominado pela matéria
20 X 109
20 X 109
20 X 109
20 X 109
20 X 109
(o tempo de Planck); os eventos que imaginamos poder situar antes não
300000 anos Era do desaco- 103 O universo torna- se transparente 19,9997 X 109
passam de puros produtos de uma desenfreada especulação intelectual plamento
[Barrow e Silk 1980]. Ora, não intervém esta antes? A imagem duma bola de 1-2 X 109 anos 10-30 Começam a formar-se as galáxias 18-19 X 109
fogo que de repente explode, sem que se saiba porquê, dando assim origem 3 x 109 anos 5 Começam a formar-se os aglomerados 17 X 109
ao universo tal como é hoje conhecido, tem algo de profundamente chocante galácticos
4 X 109 anos A nossa protogaláxia entra em colapso 16 X 109
para qualquer espírito racional; voltaremos a falar dos motivos destas
4,1 x 109 anos Formam-se as primeiras estrelas 15,9 X 109
reticências evidentes na refutação de certos cientistas à teoria do big bang, 5 x 109 anos 3 Nascem os quasar; formam-se as estrelas 15 X 109
que acusam de não passar duma recuperação de antigos mitos [Alfvén 1976; da 11 população
Pecker 1977]. Mas, para a condenar, seria preciso não só dar outra 10 X 109 anos Formam-se as estrelas da I população 10 X 109
interpretação a numerosos dados da observação, nomeadamente da radiação .15,2 x 109 anos Forma-se a nuvem interestelar nossa 4,8 X 109
generatriz
de 3 °K [Henry 1980], invalidar o princípio cosmo lógico ou contestar, com
15,3 X 109 anos Colapso da nebulosa protossolar ~xW
argumentos, boa parte da física contemporânea [sobre os fundamentos físicos 15,4 x 109 anos Formam-se os planetas; solidificam-se as rochas UxW
da cosmologia cf. Weinberg 1976]: seria ainda preciso elaborar uma teoria 15,7 x 109 anos Intensa formação de crateras nos planetas ~xW
nova, mais fácil de aceitar. Enquanto não estiverem satisfeitas estas condições, 16,1 x 109 anos Era arqueozóica Formam-se as mais antigas rochas terrestres ~xW
não se pode deixar de aceitar a cosmologia do big bang, a qual, integrando 17 x 109 anos Nasce a vida microscópica 3x1~
18 x 109 anos Era proterozóica Desenvolve-se uma atmosfera rica em 2x1~
numa mesma história cósmica o tempo expresso em fracções de picossegundo
oxigénio
e o tempo expresso em milhares de milhões de anos (cf. tab. 1), descreve o 19 X 109 anos Nasce a vida macroscópica 1 X 109
passado do universo e dá vislumbres do seu futuro: prossecução indefinida 19,4 x 109 anos Era paleozóica Vestígios fósseis mais antigos 600 X 106
da expansão [Gott e outros 1976]. 19,55 x 109 anos Primeiros peixes 450 X 106
Tempos individuais: biológico e psicológico; tempos colectivos: solar, 19,6 x 109 anos Primeiras plantas de terra firme 400 X 106
19,7 x 109 anos Fetos e coníferas 300 X 106
religioso, político; tempo físico. Ou, doutro ponto de vista: tempos da natureza
19,8 x 109 anos Era mesozóica Primeiros mamíferos 200 X 106
(biológico e físico), tempos da sociedade (todos os outros). Ou ainda: 19,85 x 109 anos Primeiras aves 150 X 106
I tempos qualitativos, tempos quantitativos, enquanto o tempo político participa 19,94 x 109 anos Era cenozóica Primeiros prima tas 60 X 106
dos dois. A arquitectura temporal agora traçada a grandes linhas, e com 19,95 x 109 anos Aumento dos mamíferos 50 X 106
espaços em branco que serão preenchidos no momento oportuno, deve ser 20 x 109 anos Homo sapiens 1 X 105
julgada pelo seu justo valor e devolvida aos seus limites. É própria da
___ I I ....
:L:i.-yJ.-r~rr.a::;lYJ.-ro~r.D~C

colectividade industrial contemporânea e só dela. Convém ainda acrescentar do tempo quantitativo e do tempo qualitativo gera outra série de problemas,
que, mesmo no seu seio, as relações com o tempo são muito diversificadas. desta vez não na meteorologia, mas na vida quotidiana [Grossin 1974],
Certas profissões lidam sempre com o tempo físico, microscópico e ultralongo: e nomeadamente no local de trabalho, onde os indivíduos estão sujeitos a
o pessoal da indústria aerospacial, dos computadores, da energia nuclear, da vínculos temporais a que têm de conformar-se; são mais atingidos os operários
aviação, das telecomunicações, dos instrumentos e dos materiais de precisão, que trabalham nas cadeias de montagem e que têm um ritmo de trabalho
da investigação científica e técnica, etc. Outras, muito numerosas, ouvem falar imposto pela deslocação automática de um produto ou-de uma peça, ou pela
deste tempo na rádio e na televisão, lêem os livros e os artigos que lhe são cadência automática de uma máquina [Molinié e Volkoff 1981]. Uma terceira
dedicados nos jornais. Outras, ainda, não fazem dele a mais pálida ideia. série de problemas incide nas relações entre os diversos tempos qualitativos:
Analogamente, os vínculos impostos pelo tempo quantitativo são muito o tempo biológico e o tempo psicológico, por exemplo, ou o tempo solar e o
diferentes conforme os países, as regiões e as categorias sociais. Assim, nas tempo religioso, etc. Menos importantes na prática, estes problemas, como
nossas terras, só excepcionalmente se encontram indivíduos ou grupos que lhe todos os que acabamos de recordar e que voltarão ~~recei, trabalham,
escapam, ao passo que, noutras latitudes, populações inteiras ainda hoje não às vezes sem que os próprios autores saibam disso, as obras filosóficas e
usam relógio, sendo as suas actividades separadas pelo movimento aparente literárias dedicadas ao tempo, que não se podem compreender verdadeiramente
do Sol. E se o transístor penetrou um pouco por toda a parte, e com ele os sem determinar de que tempo ou tempos falam, que tempos privilegiam e que
sinais horários das emissoras, isso não modificou a organização do dia, do mês tempos descuram, como os caracterizam e com que raciocínios chegam às
e do ano imposta por fortes vínculos de ordem económica-ecológica, pelas vezes a reduzir a sua multiplicidade a um único elemento, definido como o
crenças tradicionais e pelos poderes. A arquitectura temporal aqui apresentada tempo.
é, por isso, geograficamente diversificada e limitada, embora com a ressalva Construção em vários planos ou em vários estratos, a arquitectura tem-
de que em cada país, por muito atrasado que seja, existem doravante sectores poral da civilização industrial contemporânea mostra, quando a percorremos
"- nos quais o tempo é quantitativo: os aeroportos, por exemplo, os caminhos-
-de-ferro, certos ramos da indústria e muitas vezes o exército. Esta arquitectura
de baixo para cima, os vestígios de um passado cada vez mais próximo,
estando porém os vestígios anteriores contaminados pelo efeito de retorno dos
temporal, coisa de resto evidente, é também ela um facto histórico, e mesmo posteriores, dos quais só são separáveis de maneira mais ou menos arbitrária.
recente: os relógios só são usados há poucos séculos, e os métodos que O tempo político quantitativo, pouco profundo enquanto só os documentos
permitem medir o tempo físico, muito mais recentes, apenas têm na maior escritos permitiam datar os factos históricos e tudo o que precedia a escrita
parte dos casos poucas dezenas de anos, mas a sua importância cresce era necessariamente abandonado à cronologia relativa, capaz de determinar
continuamente. relações de sucessão, mas não de medir os intervalos temporais, sofreu assim
Os diversos tempos quantitativos formam um sistema cuja unidade de base uma dilatação surpreendente em consequência da descoberta de novas técnicas
é o segundo; a Conferência Geral sobre Pesos e Medidas definiu-o, em 1967, de datação. Apesar da diferença dos estatutos epistemológicos entre as datas
do seguinte modo: «O segundo é a duração de 9 192 631 770 períodos da fundadas na análise paleográfica ou diplomática, ou seja, em definitivo na
radiação correspondentes à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado leitura, e as datas obtidas medindo por exemplo o conteúdo de carbono 14 dos
fundamental do átomo de césio 133». Todas as unidades do tempo micros- restos orgânicos, umas e outras, uma vez reconhecidas como uma sucessão
cópico são, como os seus próprios nomes indicam, fracções de segundo; todas contínua, fazem parte de uma sucessão ainda mais longa, estendendo-se, como
as unidades do tempo macroscópico são múltiplos do segundo. Seria, pois, de vimos, até ao big bang. Para estudar um a um os estratos da arquitectura
crer que a distinção entre o tempo microscópico e ultralongo da física e o temporal contemporânea em estado puro, ou seja, como foram antes de terem
tempo macroscópico e relativamente breve, ou tempo quantitativo usual, já sido modificados pelos que a eles se sobrepuseram, é, pois, necessário descer
não é pertinente, uma vez que o primeiro inclui o segundo, estando também a um passado muito remoto e depois remontar para o presente. É o que vamos
incluído nele. A diferença entre os dois é, porém, real: daqui resultam certos agora fazer, estudando tanto os processos (as instituições que assumem a
problemas a que se procura dar solução na prática da meteorologia. Esta perspectiva temporal, os processos que se supõe fornecerem um controlo do
última, com efeito, utiliza duas escalas de tempo: o tempo atómico inter- tempo, as técnicas de medida) como as representações e as crenças, não sendo
nacional (TAl) e o tempo universal coordenado, isto é, unificado por convenção estas inseparáveis daquelas. Uma vez regressados ao presente, iremos encarar
internacional (UTC); o segundo, necessário à navegação, e do qual deriva o o estudo dos problemas levantados pela articulação dos diversos estratos da
tempo quantitativo usual, uma vez que com ele se conformam todos os sinais arquitectura temporal e o estudo das soluções que lhes são dadas por palavras
horários, atrasa-se em relação ao primeiro, que é o tempo da física, um número e nos factos.
inteiro de segundos, variável de ano para ano [Kartaschoff 1978, pp. 101-3;
Terrien 1978]; consideração suficiente para mostrar como o seu ajustamento 2. Não há conhecimento senão intuitivo. Entre os factores cuja acção
não é automático, como em seguida veremos ainda melhor. A sobreposição lenta, desenrolando-se prolongadamente, começara por desgastar e depois
fizera cair esta evidência primária, pedra angular de um saber milenário A partir do século XII, insiste-se no carácter indestrutível da escrita. «Nem
relativo ao visível e ao invisível, cabe certamente um lugar de primeiro plano unta inundação, nem um incêndio, nem um flagelo, nem o múltiplo passar dos
à escrita, que, a partir do século XI, deixa de ser monopólio do clero para se séculos poderá certamente reduzir a nada os nossos escritos, que se difundem
propagar em estratos cada vez mais largos das populações urbanas. Com e circulam por toda a parte. Só os escritos fazem sobreviver os mortais com
efeito, a multiplicação do número de textos, documentos e escritos de todos a imortalidade da fama, e permitem que as obras dos Antigos, deixadas à
os tipos, faz entrar no próprio seio do presente um passado visível e tangível, posteridade, não atinjam a velhice» [Pedro de Blois, Epistolae, LXXVII, in
que imaginam por provirem dele, desmentindo assim a ideia segundo a qual Migne, Patrologia latina, CCVII, col. 238 (cf. col. 489)]. Subtraídos à acção
as acções dos homens e os seus produtos mais não são do que marcas traçadas destruidora do tempo, ao envelhecimento e à decrepitude em que caem todas
na poeira dos caminhos, à mercê de qualquer aragem. Além disso, só uma as coisas corporais, os textos aparecem assim como existentes numa duração
parte dos textos em circulação é autenticada pela autoridade das instituições que certamente teve início e terá um fim, mas no seio da qual não se produz
religiosas ou laicas, como a Igreja tratando-se das Escrituras, das Sententiae nenhuma mudança substancial; nisto reconheceremos a definição tomista do
de Pedro Lombardo, das obras de Santo Agostinho, e, mais tarde, de São aevum. Este estatuto privilegiado atribuído aos textos, não enquanto objectos
Tomás; ou ainda como as universidades, no que se refere a certos comentários materiais sujeitos à corrupção e que, portanto, é necessá.rio proteger e
ou crónicas; assim como as chancelas reais, principescas ou episcopais, as preservar, mas enquanto portadores de saber, modificou - como já se disse -
grandes abadias, etc. Em particular, toda uma literatura profana, recopiada, a atitude face ao passado. Modificou também o modo de configurar o futuro.
lida e imitada por gerações sucessivas, deve a sua autoridade exclusivamente Porque, antes de mais, se o saber é indestrutível, cada geração herda o que
a si mesma, ao seu conteúdo, à sua língua, ao seu estilo, que testemunham as as gerações anteriores adquiriram; quanto maior for o seu número, maior será
suas origens antigas e, portanto, se bem que pagãs, prestigiosas. Não admira, o saber que transmitem juntas à posteridade. Por mais que o tempo faça que
a aproximação do seu fim tome os homens mais pequenos de tal modo que
pois, que ela se tenha tornado objecto de estudos que, a partir do século xv,
de gigantes se tomam anões, não pode impedir - não tendo nenhum poder
traduzem o sentimento cada vez mais agudo da distância temporal entre o
sobre o próprio saber - que os anões vejam mais longe que os gigantes,
período de que provêm os modelos e o presente. Ao longo deste intervalo,
porque estão sentados aos ombros destes últimos, ou, por. outras palavras,
desta media aetas, media tempestas, produziram-se acontecimentos que tomam
porque gozam do saber acumulado [cf. Pomian 1964, pp. 29-31; 1968,
doravante impossível uma identificação espontânea com os Antigos; não é,
pp. 199-201 e as referências nas pp. 406-7; e o artigo «Ciclo» nesta mesma
pois, possível, alcançá-lo senão deliberadamente, tentando aprender tudo o que
Enciclopédia]. Começa assim a definir-se uma linearidade no próprio seio da
se puder a seu respeito. Para este fim procuram-se, coleccionam-se e cotejam-
história profana que a tradição agostiniana considerava completamente
se os manuscritos das obras dos Antigos, recolhem-se religiosamente todas as
submetida aos ciclos. Podemos exprimi-l o por outras palavras dizendo que um
relíquias da Antiguidade susceptíveis de permitir uma sua melhor futuro profano se delineia onde anteriormente o único futuro concebível era
compreensão: inscrições, gemas, moedas, esculturas. Estudam-se as ruínas de sagrado e que um futuro imanente à história surge ao lado de um futuro posto
Roma. Sepultado há séculos ou reduzido à categoria de resíduo, um passado como transcendente.
reemerge e torna-se objecto de conhecimento [cf., por exemplo, Weiss 1969]. O aparecimento da perspectiva de um futuro profano traduz-se, pois, na
Mas torna-se e é-o até 'ao século XVIII enquanto presente e muito menos nova vitalidade conferida, embora com outro significado, ao antigo ideal de
enquanto passado remoto; por outras palavras, são estabelecidos como glória [cf. as referências antigas e medievais in Lida de Malkiel 1952], cuja
objectos de conhecimento, não tanto os acontecimentos e as instituições relação com a escrita parece indúbia. A citação de Pedro de Blois é apenas
da Antiguidade como os vestígios por ela deixados: os estudos antiquários um dos muitos exemplos possíveis; cerca de quatro séculos mais tarde, Monluc
contrapõem-se à história antiga que se crê ter sido escrita pelos antigos atesta a permanência deste tema: «Se não existissem as obras escritas, a maior
historiadores cuja autoridade permanece intacta, como o conhecimento se parte dos homens honrados não cuidaria de alcançar fama, pois custa muito
opõe à fé [cf. Momigliano 1950]. esforço ... Mas o honesto desejo que temos de perpetuar o nosso nome, como
É diferente o caso da história medieval colocada pela Reforma no centro se faz com os escritos, faz que a pena pareça muito doce a quem tem um
duma controvérsia que, à custa de trabalhos eruditos, destrói a própria coração generoso» [citado in Tenenti 1957, ed. 1978 p. 365; cf. também ibid.,
autoridade dos autores originários desta época, já muito atacada pela crítica p. 376, nota 50, as palavras de Du Bellay]. Prometendo à existência terrena
a que os defensores dos Antigos haviam submetido a sua língua, o seu estilo dum indivíduo uma duração muito maior que a da sua vida corpórea, contando
e a sua cultura. Assim, foi neste âmbito, mais do que em qualquer outro, que que esta última seja bem orientada, o ideal de glória, à medida que se propaga,
o passado enquanto passado se tornou objecto de conhecimento, primeira vai atribuir um valor autónomo e sempre crescente às actividades profanas,
ruptura com a equiparação deste ao conhecimento imediato e com uma ideia em particular a literatura, a política e a guerra; inspira assim uma nova maneira
do tempo que não atribuía realidade senão ao presente. de viver a própria vida, que deve ser preenchida com acções brilhantes e obras
TEMPOffEMPORALIDADE 26 27 TEMPOffEMPORALIDADE

de que resulte a fama. Sem dúvida que, durante séculos, o ideal de glória se refere aos depósitos dos clientes de modo a tirar proveito deles, mas sempre
póstuma e de uma vida virada para as coisas terrenas coexistiu, muitas vezes com a possibilidade de reembolsar cada qual na data prevista; à especulação
nas mesmas pessoas, com a aspiração à beatitude do Além, que só se podia baseada na ignorância provisória dos concorrentes relativamente a tal mudança
merecer cuidando constantemente da salvação da própria alma. Percebidas monetária ou tal naufrágio (encontram-se exemplos in Sardella 1948); à defesa
ora como complementares ora como conflituosas, as duas orientações da duração mais vantajosa do dia de trabalho contra os assalariados que
parecem convergir na maneira como acentuam a necessidade de utilizar bem lutavam para a reduzir [Le Goff 1963]. Estes poucos exemplos escolhidos
o tempo de que se dispõe e que não é lícito desperdiçar se se quiser deixar entre vários outros são suficientes para mostrar que o tempo, enquanto tem
uma recordação duradoura junto dos vivos ou aceder à felicidade celeste. uma grandeza e um preço, intervém constantemente nas actividades dos
Convergem ainda no significado que atribuem à morte, entendida mais como comerciantes, dos banqueiros e dos cambistas. Por isso é tratado como um bem
termo da existência carnal do que como passagem para um mundo melhor; precioso, analogamente à moeda, à qual é comparado a partir do século xv
a partir disto, tiram-se, porém, conclusões muito diversas: para alguns, pondo [cf. Bec 1967, p. 319]. Controlá-lo e utilizá-lo segundo a própria vontade
a nu a miséria da vida, a morte indica que é preciso subordinar esta última à torna-se um objectivo a perseguir, pois, como diz Alberti, «Quem sabe não
busca dos bens espirituais, os únicos duradouros, ao passo que, para os outros, perder tempo sabe fazer quase tudo, e quem sabe aproveitar o tempo será
ensina que é necessário saber aproveitar os bens acessíveis neste mundo, de senhor de tudo o que quiser» [1437-41, ed. 1980 p. 261].
que podemos ser privados de repente. Se, na epigrafia funerária, ao lado da Paralelamente à propagação da escrita e ao incremento do papel da moeda
data da morte aparece a partir do século XIV a idade do defunto, é porque, nas trocas, começam a manifestar-se, a partir do século XII, mudanças na
quer do ponto de vista teológico como profano, a vida e o tempo são agora própria arquitectura temporal. A par da eternidade, do tempo litúrgico nas suas
percebidos como algo de precioso [cf. Tenenti 1952; 1957, ed. 1978 em duas espécies, universal e individual, e do tempo cósmico, aparece o tempo
particular pp. 43 segs.; Ariês 1977, trad. it. pp. 144-49]. dos relógios: relógios hidráulicos, primeiro, que parecem ter sido muito
Com uma força que, pela sua mais ampla difusão, era provavelmente maior procurados, e depois, a partir do século XIII, relógios mecânicos [Usher 1929,
que a da escrita, a moeda intervém cada vez mais frequentemente nas relações ed. 1954 pp. 187-210]. Descendentes dos planetários, dos equatoriais e dos
entre os homens, e contribui igualmente para minar o mundo da imediatez, astrolábios, que permitiam aos astrónomos medir o tempo sideral e o
das relações humanas directas, modificando por isso as atitudes face ao tempo. verdadeiro tempo solar, os primeiros relógios, menos instrumentos de
Ela é, com efeito, o único operador susceptível de converter o qualitativo no medida do tempo que visualização do modelo do universo [White 1962,
quantitativo, de atribuir a qualquer objecto e a qualquer duração um número trad. it. pp. 181-82; e para os astrolábios North 1974], imitavam, a princípio
capaz de exprimir o valor, o preço. Foram precisos séculos e foi precisa a de modo muito imperfeito, o tempo uniforme da esfera celeste, que desse
conjunção de circunstâncias múltiplas para que estas potencialidades da moeda modo reportavam para a Terra. Sem que ninguém desse conta, os relógios
se vissem finalmente realizadas. Mas, desde o século XII, com a sua vitalidade lançavam uma primeira ponte sobre o abismo que se supunha dividir, segundo
económica, e sobretudo a partir do século XIII, quando as cidades italianas a teoria de Aristóteles, os fenómenos sublunares, sujeitos à geração e à
começam a cunhar as grandes moedas de prata para depois se dedicarem à corrupção, e a regularidade não-modificável do movimento das estrelas fixas.
cunhagem do ouro, no oceano da troca fracamente monetarizada aparecem Mas antes que esta inovação produzisse efeitos no campo científico, outro
ilhas e arquipélagos inteiros literalmente dominados pela moeda e por aqueles aspecto do relógio, o seu aspecto propriamente social e até político, depressa
que a ela se dedicam a título profissional: comerciantes, cambistas, banqueiros fez dele um instrumento público cujo funcionamento não concernia um
com o seu séquito de notários, contabilistas, copistas, etc. Todas estas pessoas pequeno grupo de estudiosos, mas todos os habitantes da cidade. Com efeito,
praticam ofícios que obrigam a quantificar o tempo, antes mesmo que se a capacidade de mostrar o tempo, dando as horas, com o céu encoberto e com
comece a medi-lo habitualmente com os relógios. Para eles, com efeito, o céu limpo, de dia e de noite, levou no século XIV as cidades a instalarem
o tempo tem um valor. Isto torna-se particularmente evidente se considerarmos relógios na torre sineira e no campanário da catedral, ao mesmo tempo que
a transmissão das cartas; as despesas são proporcionais à rapidez com que o rei de França colocava um no seu palácio [Le Goff 1960, trad. it. p. 14;
tal operação é executada: no início do século XVI, entre Veneza e Roma, Cipolla 1967, pp. 40 segs.]. Recorde-se que a área geográfica dos primeiros
pagam-se 40 a 44 ducados venezianos, se o correio chega em 40 horas, e de relógios públicos «é justamente a das grandes zonas urbanas: Norte de
10 a 12 se leva 96 [Sardella 1948, p. 50]. Dois séculos mais tarde, Itália, Catalunha, França Setentrional, Inglaterra Meridional, Flandres,
o pontificado de Avinhão ver-se-á já confrontado com o dilema «ou a rapidez Alemanha». E que, muito rapidamente, o domínio do tempo dos relógios
e a ruína, ou a gratuidade e a lentidão» [cf. Renouard 1937]. Um segundo «tornou-se - num quadro urbano que seja, porém, o duma capital - signo
exemplo concerne o empréstimo a juros condenado pela Igreja precisamente eficaz de governo: em 1370 Carlos V ordena que todos os sinos de Paris se
porque não tolerava que se pudesse vender o tempo [Le Goff 1960], e todas regulem pelo relógio do palácio real, que dá as horas e os quartos. O tempo I1
as técnicas utilizadas para contornar esta proibição. O mesmo acontece no que novo torna-se assim o tempo do Estado» [Le Goff 1963, trad. it. pp. 34, 36]. ,I }
TEMPO(fEMPORALIDADE 28 29 TEMPOrrEMPORALIDADE

Como testemunha o inventário dos seus móveis, Carlos V deixou-se fascinar que a organização do dia começa a tornar-se profana.
literalmente pelo tempo: tinha no seu quarto não só onze astrolábios e dois Multiplicação dos relógios mecânicos nas cidades; generalização da divisão
quadrantes, provavelmente solares, mas também «um grande relógio de mar, do dia em vinte e quatro horas iguais, cada uma de sessenta minutos,
de duas grandes ampolas cheias de areia, num grande estojo de madeira», «um dividindo-se por sua vez o minuto em sessenta segundos, então puramente
relógio todo de prata, sem ferro, que pertencera a Filipe o Belo, com dois teóricos uma vez que não havia possibilidade de medi-los; início do abandono
contrapesos de prata cheios de chumbo» e «um relógio de prata branca» por parte das grandes companhias comerciais e bancárias dos antigos métodos
[Labarte 1879, nn. 2120, 2598, 3067]. de cômputo do tempo, que faziam começar o ano em datas variáveis segundo
Os comerciantes, e sobretudo os comerciantes florentinos dos séculos XIV os estados, para o fazer começar no 1.0 de Janeiro [Renouard 1954, ed. 1968
e XV, não são unicamente homens absorvidos pela sua actividade económica, pp. 490-91]: o século XIV é a época mais importante da história do tempo da
são também homens de letras: além dos livros exigidos pelas necessidades do Antiguidade ao início do nosso século. Mas não só por ter assistido ao esboço
seu comércio, alguns escrevem ricordanze em que estão contidos tanto os das transformações da arquitectura do tempo: a sua importância deriva do facto
resumos dos negócios pessoais e das actividades familiares e comerciais como de que começaram então a modificar-se as atitudes face ao tempo, à vida e à
as reproduções dos actos notariais considerados importantes [cf. Bec 1967, morte, ao passado e ao futuro. Documentam-no as imagens e os escritos, as
p. 50). Crónica familiar, que às vezes se alarga a ponto de se tornar a crónica cartas, os testamentos e as sepulturas [cf. Tenenti 1957, ed. 1978 sobretudo a
da cidade [ibid., pp. 53 segs., 131 segs.], um livro de ricordanze permite pp. 410 segs. sobre a iconografia da morte; Ariês 1977, trad. it. pp. 191 segs.,
avaliar o horizonte temporal do seu autor e a atitude deste face ao tempo. 236 segs., 273 segs. e passim]. Documenta-o o aparecimento das primeiras
Escolhemos como exemplo um membro influente da oligarquia florentina, críticas sobre as lendas etnogenéticas e das primeiras colecções de
Lapo Niccolini. Inteiramente citado, como ele próprio fazem duas ocasiões, antiguidades. Além disso, é no século XIV que o relógio, com Froissart
o seu nome é muito mais comprido: Lapo di Giovanni di Lapo di Niccholino (ao que parece), entra na literatura [cf. Cipolla 1967, pp. 41-42). E é no
di Ruzza d' Arigho di Luchese di Bonavia di Lucchese de' Sirigatti; desta século XIV que Nicola d'Oresme compara o universo a um grande relógio 11
forma ele resume a história da família ao longo de oito gerações. Mas o mecânico ao qual Deus, que é o seu artífice, imprimiu um movimento tal que Ir
antepassado mais remoto de que Lapo sabe dizer alguma coisa é Ruzza, faz girar todos os mecanismos o mais harmoniosamente possível [White 1962,
o primeiro a instalar-se em Florença: era de grande e bela compleição, e viveu
cento e trinta anos [Bec 1969, pp. 55-56]. Se as notas de Lapo se repartem
trad. it. p. 184). Apesar disto, há que reconhecer que a importância conferida
ao século XIV só parece legítima numa visão histórica que interpreta os factos
~ii
entre 1379 e 1427, a sua memória familiar remonta, pois, a um passado mais em função da importância que ulteriormente adquiriram do que do papel I:

muito remoto, a quatro gerações atrás; os predecessores de Ruzza são meros que tiveram na sua época. Porque, não o esqueçamos, a realidade de que
nomes, mas, quando se trata deste último, Lapo cita o seu pai, que o pôde
II
falámos só concernia naquela época uma exígua minoria da população na \
I,
conhecer. Contrasta com esta presença do passado a quase-ausência de um Europa Ocidental. Entre as ilhas urbanas, com os seus relógios que dão as \
futuro profano; após anular o testamento que fez em solteiro, Lapo não redigiu horas, e nas quais se concentram as cartas e as moedas, estende-se o oceano
mais nenhum até 1405 [ibid., p. 67] e nada nos diz das suas decisões ulteriores dos campos onde a vida e o trabalho se vão manter ainda durante séculos 11

a este propósito. O único futuro verdadeiramente presente nas «memórias» de ritmados pelo tempo solar e o tempo litúrgico cristão, sobreposto a um I
Lapo é o futuro sagrado, no sentido em que é sempre colocado sob a protecção calendário festivo que provém duma idade indefinível e conseguiu conservar-
de Deus, citado vinte e nove vezes [ibid., p. 26], da Virgem e dos santos se localmente quase até aos nossos dias [cf. Caro Baroja 1965). De resto, nas
tutelares. Não nos espanta constatar que Lapo, o qual não constitui uma cidades os relógios avariam-se frequentemente e às vezes é preciso esperar
excepção a este respeito [cf. Bec 1967, pp. 90, 179, 319], assinala as datas muito tempo até encontrar alguém que os conserte, e sempre de uma forma
com grande exactidão; ao falar das mortes e dos nascimentos, indica imperfeita: assim, o guarda do relógio está particularmente encarregado de o
geralmente a hora: «Quis Nosso Senhor Deus dar-me um filho varão da dita fazer adiantar ou atrasar de tal modo que as suas indicações não difiram
Katerina, aos dias xxxj de Agosto de 1402, o dia do beato São Julião, de excessivamente das do sol [Cipolla 1967, pp. 43, 122-23]. Tempo minoritário
manhã, soada axij hora, estando para vir a xiij hora, a quem demos o nome e que ainda então começa a introduzir-se nos costumes e no sistema das
de Pagolo e Giuliano. Que Deus o cubra de graças e lhe dê grande e longa instituições, o tempo dos relógios ainda não é nesta época um tempo
vida e faça dele um bom homem» [Bec 1969, p. 93; e cf. as notas que quantitativo.
mencionam as horas, pp. 60, 80, 81, 89, 92, 100, 102, 109, 134]. Embora Para que viesse a sê-lo, impunha-se acima de tudo tornar os relógios
através de formas estereotipadas, exprime-se aqui a convicção de que o futuro exactos. Abrem caminho três invenções essenciais, cujos autores são
depende de Deus; o presente aparece como uma mistura do tempo litúrgico no entanto desconhecidos: certamente no século XV, e talvez mesmo já no
(o dia de São Julião) e do tempo medido por um relógio que Florença possuía século XIV, aprende-se a utilizar a mola como origem da força motriz
em 1329 [Bec 1967, p. 318]. O calendário depende então do sagrado, ao passo (os primeiros relógios eram movidos por um peso); remonta também ao
TEMPOrrEMPORALIDADE 30 31 TEMPOrrEMPORALIDADE

século xv o fuselo, que permite a esta força, a qual decresce à medida que a tos integrados entre os quais um descodificador, no caso da afixação
mola se distende, agir de modo uniforme; o stackfreed, atestado a partir do numérica.
século XVI, desempenha a mesma função. Graças a estas invenções, foi Graças às aplicações científicas, o tempo dos relógios tornou-se verda-
possível a partir do século xv fabricar relógios portáteis [cf. White 1962, trad. deiramente quantitativo e isto permitiu a autonomização do funcionamento dos
it. pp. 185-87]. Ricamente decorados, como aliás o são nesta época os relógios relógios relativamente às diversas influências externas. Por sua vez,
de mesa, alguns dos quais constituem autênticas obras-primas, estes relógios a electrónica tornou possível não só uma maior estabilidade mas também um
serviam mais para impressionar quem os via do que para medir o tempo; basta, novo tipo de afixação que separa a duração das referências visuais e faz dela
para disso nos convencermos, observar os exemplares conservados nos museus uma abstracção: uma sucessão de números, com o resultado de que, por
(por exemplo no Musée de I'Horlogerie em Genebra ou no Museo Poldi exemplo, os jovens estudantes franceses - segundo refere o «Express» de
Pezzoli em Milão). No século XVI parece difundir-se o costume de acrescentar 19 de Abril de 1980 - parecem perder a noção do tempo, que não conseguem
ao ponteiro que indicava as horas, e que foi durante muito tempo o único, um imaginar sem o auxílio dos ponteiros.
outro ponteiro para indicar os minutos; o facto é interessante, especialmente Para se chegar a isto, para o relógio aparecer no pulso dos jovens, era
porque testemunha uma necessidade de exactidão que não se podia obter com preciso que, paralelamente às transformações da relojoaria, se desenvolvesse
os meios então disponíveis. Só um século mais tarde tal necessidade começa a produção de todas as variedades de relógios de modo a torná-los acessíveis
a ser satisfeita: Galileu descobre as leis do pêndulo e concebe a ideia de a estratos cada vez mais vastos da população, pondo assim o tempo quan-
utilizá-lo para medir o tempo [Defossez 1946, pp. 82 segs., 113 segs.]; titativo ao alcance de todos. Impossível de avaliar antes da era estatística, tal
em Dezembro de 1656, Christian Huygens inventa o relógio de pêndulo, produção começou certamente a aumentar no século XVII, como se presume
cuja fabricação, confiada ao relojoeiro Salomon Coster, de Haia, é iniciada do facto de que o número dos mestres relojoeiros em Genebra passou de
no ano seguinte (frequentemente reproduzido, o primeiro relógio deste 25-30 em 1600 para mais de 100 em 1680 e o mesmo se verificou em Londres
tipo encontra-se no Museu Boerhaave de Leida [cf. ibid., pp. 95 segs. e no [Cipolla 1967, pp. 65 segs.]. Nos finais do século XVIII, a média anual da
quadro XXVII; Institut Néerlandais 1979, fase. XI]). A inexactidão dos relógios produção londrina rondava as 130 000 peças, 80 000 das quais se destinavam
que, salvo nalguns exemplares excepcionais, era de alguns minutos todas as à exportação, ao passo que Genebra produzia 70 a 80 000, todas para a
vinte e quatro horas, reduziu-se, com a introdução do pêndulo, a cerca de dez exportação. A história da produção suíça de relógio parece significativamente
segundos: mudança revolucionária [cf. Cipolla 1967, p. 58] cuja importância ilustrada pelos dados relativos a uma aldeia do cantão de Neuchâtel, Fleurier.
foi imediatamente percebida. Realizada por Coster, a invenção de Huygens Por volta de 1770, só se encontra ali um fabricante de relógios; em 1794, numa
logo encontrou clientes, e, no estrangeiro, onde o privilégio dos estados da população de 800 habitantes, havia «88 relojoeiros, 13 afectos à montagem
Holanda não a protegia, encontrou mesmo imitadores [Institut Néerlandais de caixas, cuja produção alimentava toda a região, 2 gravadores, 2 fabricantes
1979, pp. 26-27 e fasc. XI]. Era apenas o primeiro duma longa série de de molas e 300 rendeiras», e todos trabalhavam para os negociantes de
aperfeiçoamentos levados a cabo, a partir do século XVII, na arte de fabricar Genebra [Jéquier 1972, p. 32]. Após o atraso devido ao bloqueio ocidental,
relógios fixos e portáteis [Usher 1929, ed. 1954 pp. 304-31]. Recordemos, em Fleurier retoma a produção maciça de relógios destinados essencialmente
particular, as tentativas para resolver o problema das longitudes: calcular a ao mercado chinês, cujas importações, que atingiam no início do século XIX
posição de um navio no alto mar com base na diferença entre a hora local e um valor entre os cem e duzentos mil dólares [ibid., p. 34; cf. Cipolla 1967,
a hora standard indicada pelo relógio transportado a bordo, só foi possível pp. 76 segs.], sofreram depois uma forte descida para decolar após o tratato
em 1761, graças ao cronómetro de Harrison, insensível às variações da de Nanquim, imposto pelos Chineses aos Ingleses em 1842 [Jéquier 1972,
temperatura e à oscilação. No começo do século XIX, os relógios mecânicos p. 38]. O número dos relojoeiros no cantão de Neuchâtel sobe então
adquirem a sua estrutura definitiva no que se refere às partes essenciais. vertiginosamente: de 567 em 1830, passa para 1909 em 1848 e para 2687 em
A primeira revolução na relojoaria, determinada pelo impacte com a ciência 1866, 634 dos quais só na aldeia de Fleurier [ibid., p. 44].
(Huygens e o pêndulo), parece ter esgotado assim todos os seus efeitos. As A continuação desta história é a entrada no maquinismo na indústria
inovações fundamentais verificar-se-âo somente na época moderna, na esteira relojoeira suíça, principalmente sob a pressão da concorrência americana e da
da electrónica: o relógio de quartzo será produzido a partir dos anos 50. passagem concomitante do trabalho doméstico, ainda maioritário em 1870, ao
Doravante, a energia já não é de origem mecânica (ou produzida pelo trabalho nas grandes oficinas e nas fábricas, que se tornará dominante a partir
movimento do braço no caso da corda automática), mas provém duma pilha dos primeiros anos do século xx [ibid., p. 62]. A relojoaria suíça, que
que, enquanto reserva de energia, substitui a mola de barrilete. O regulador representa nesta época 90 por cento do mercado mundial, exporta em 1902
já não é um balanceiro em espiral mas um quartzo. Em vez do escapo e das os, ~eus produtos para a Grâ-Bretanha, Alemanha, Áustria-Hungria, Rússia,
rodas que comandavam os ponteiros, tem-se um circuito integrado, ligado Itaha, Estados Unidos, França e Espanha [ibid., p. 91]. A aldeia de Fleurier
a um motor e às rodas, no caso da afixação analógica, ou dois circui- fornece o seu contributo ao progresso dos negócios; em 1900, em 3579
TEMPOrrEMPORALIDADE 32 33 TEMPOffEMPORALIDADE

habitantes, 629 são relojoeiros; passam a 695 em 4121 habitantes em 1910, papel durante toda a história da relojoaria, determinando os comportamentos
e a 671 em 4109 em 1920 [ibid., p. 98]. A partir de 1885, dispõe-se de dados não só dos ricos mas também dos estratos populares para os quais a aquisição
mais sintéticos para avaliar o crescimento da indústria relojoeira suíça: esta de um relógio, motivada por considerações de prestígio, era muitas vezes
exporta neste ano cerca de três milhões de relógios e mecanismos completos; prioritária [cf. Thompson 1967]. Mas, nos finais do século XVIII, inte!vêm
este número sobe para 13 milhões em 1913, para cerca de 21 milhões em 1946 novos factores cuja importância parece pelo menos equivalente. E em
e para mais de 60 milhões em 1966 [ibid., p. 336; e para 1946 e 1966, primeiro lugar a Marinha, que precisa decronómetros. Depois, em meados
cf. Waeber 1968, p. 317]. Ao crescimento do número de relógios produzidos do século XIX, são os caminhos-de-ferro, que exigem relógios fixos e portáteis,
e exportados corresponde uma diminuição do custo unitário; pouco clara no e que estimulam o seu consumo. Com efeito, as companhias ferroviárias
caso dos relógios de ouro, devido às flutuações do preço do metal, esta introduzem horários muito mais precisos que as diligências, pois calculam-
tendência é nitidamente visível no que se refere aos relógios de prata, cujo -nos em minutos e não em meias horas [cf. Thuillier 1977, p. 223, nota 97],
valor de exportação por unidade desce de 20,40 francos suíços em 1885 para e impõem-nos tanto ao público, que aprende a ler os minutos consultando o
11,64 em 1914, e ainda mais no caso de relógios metálicos: 11,90 em 1885 e relógio instalado, para tal fim, na fachada das estações, como ao seu pessoal,
apenas 5,19 em 1914 [Jéquier 1972, p. 334]. Estas baixas nos custos cujos prémios e descontos dependem do cálculo dos minutos que os comboios
repercutiram-se nos preços segundo diferentes modalidades, e em função ganharam ou perderam [ibid., p. 210]; por tal motivo o relógio de bolso tornar-
das tarifas aduaneiras, das taxas e impostos, etc. Depois da Primeira Guerra se-á um sinal típico de maquinistas e controladores.
Mundial, relógios fixos, de pulso e despertadores podem, pois, tornar-se, em Passaremos por alto os factores de menor importância para nos
todos os países desenvolvidos, artigos de uso corrente. Confirma-o uma concentrarmos num elemento essencial: a disciplina do trabalho na indústria,
interessante investigação realizada numa região da França, o Nivernais. que, além de suscitar uma procura maciça de relógios, depois estabilizada,
Verifica-se que o relógio pessoal, que começa a espalhar-se nos anos 1860- inscreveu solidamente o tempo quantitativo no próprio corpo dos indivíduos.
-65, mantém-se, até 1914 aproximadamente, um objecto dispendioso e raro; Os regulamentos draconianos, os despedimentos, as multas e os prémios,
até 1920-25, as mulheres, mesmo na cidade, não o usam senão aos domingos, as ameaças e as exortações morais inculcaram nos camponeses, ou nos
e só se difunde por toda a parte, com a moda do relógio de pulso, depois de artífices independentes prestes a serem transformados em operários, uma nova
1930 [Thuillier 1977, pp. 208-9]. As datas seriam sem dúvida diferentes atitude face ao tempo. Ensinou-se-Ihes a apresentarem-se na oficina à hora
noutras regiões; nas grandes metrópoles, seria preciso fazê-Ias avançar várias exacta, indicada pelo relógio, e a não interromperem ou cessarem o traba-
dezenas de anos, tendo em conta os desvios, às vezes enormes, entre as lho antes do anúncio da pausa ou do fim do dia. Tentou-se fazer-lhes perder
diversas categorias sociais; nas províncias afastadas e rurais de Itália e o hábito de não trabalhar à segunda-feira ou nos dias que seguem as festi-
Espanha, seria, pelo contrário, preciso recuá-Ias, uma vez que o relógio pessoal vidades, impondo-lhes o costume de trabalhar regularmente toda a semana e
provavelmente só se difundiu a nível de massa nos anos 50. Seja como for, descansar ao domingo, de modo a recuperar forças para a semana seguinte.
a substituição na vida social do tempo qualitativo pelo tempo quantitativo é Assegurou-se a manutenção dum ritmo constante durante todo o dia, que podia
um fenómeno muito recente, e que não pode ser analisado enquanto o tempo ultrapassar até as doze horas, instaurando um sistema de vigilância ou
quantitativo não tiver sido posto ao alcance de todos. obrigando os operários a conformar-se com a velocidade das máquinas [para
Tal fenómeno, analisado até aqui unicamente do ponto de vista da oferta tudo isto, cf. Thompson 1967]. Alguns dados relativos à França bastarão para
de relógios de todos os tipos, só se torna verdadeiramente compreensível recordar o peso da fábrica na vida do operário: só em 1841 foi legalmente
quando se identificam os factores que, tendo estimulado na longa duração a proibido contratar rapazes de idade inferior a oito anos, e impor mais de doze
procura destes objectos, lhes asseguraram um mercado em constante expansão horas de trabalho a rapazes de idade compreendida entre doze e dezasseis
durante quase cinco séculos, apesar das inevitáveis variações cíclicas. Durante anos; só em 1906 se tornou obrigatório um dia de descanso semanal; a lei das
muitíssimo tempo, o mais importante destes factores parece ter sido o desejo oito horas é de 1919, e só em 1936 foram aprovadas as duas semanas de férias
de tornar manifesta a condição social a que se pertencia, e até mesmo o gosto pagas anualmente para todos os assalariados. Os empresários, por seu lado,
ou a cultura. Os relógios de ouro e substâncias raras ou de bronze e de eram vítimas duma verdadeira obsessão do tempo morto, em que o dinheiro
mármore, decorados com esculturas e baixos-relevos que reproduziam obras não dá juros, as máquinas não trabalham e os operários não produzem. Para
célebres da escultura e da pintura, os relógios astronómicos, geográficos ou um. empresário, o tempo morto é o tempo do capital que permanece impro-
com autómatos, os relógios de metais preciosos com pedras e esmaltes: todos dutIVO.Donde os esforços destinados a administrar bem o próprio tempo,
estes objectos constituem acima de tudo status symbols e só secundariamente atestados pela multiplicação das agendas e dos mementos, para não falar dos
são instrumentos para medir o tempo. Ainda hoje visível no facto de os relógios fixos e portáteis, da regularização dos horários nos escritórios, nas
relógios, embora destinados a um uso duradouro, sofrerem, como o vestuário, administrações, nos bancos. Donde, ainda, as contínuas pesquisas no sentido
os efeitos de variação da moda, este desejo de distinguir-se desempenhou um de economizar o tempo: o tempo das comunicações e o tempo dos transportes,
TEMPOrrEMPORALIDADE 34 35 TEMPOtrEMPORALIDADE

o tempo inutilizável devido ao escuro, redutível graças à iluminação de, depois de 1880, eles serem eléctricos e sincronizados em todas as redes
artificial, e sobretudo o tempo dos operários suspeitos de o desperdiçarem, [cf. Thuillier 1977, p. 209, notas 79-81; p. 221, notas 97-99; p. 223]. Com
uma vez que a sua produtividade é sempre considerada insatisfatória efeito, por razões evidentes, as companhias ferroviárias não podiam tolerar o
[numerosos exemplos a este propósito in Thuillier 1977, pp. 205-29]. A partir caos no âmbito do tempo. E foi graças a elas que o tempo, ligado de modo
do século XIV [cf. Le Goff 1963] e com uma intensidade crescente, relativa coerente ao espaço, sofreu uma unificação a nível mundial. Este processo
ao crescimento e aprofundamento da «revolução industrial», o tempo de começou nos Estados Unidos, onde existia uma multiplicidade de tempos
trabalho e o seu complementar, o tempo livre, vêm a achar-se no fulcro dum locais não redutíveis a um único devido às dimensões do país. Donde a ideia
conflito entre operários e empresários [cf. Thompson 1967]. Em função das de o dividir em zonas, cada uma das quais era dotada dum tempo local. Em
transformações da técnica, da maior precisão dos instrumentos de medir o 1878, o engenheiro-chefe do Governo canadiano, Sanford Fleming, propôs que
tempo e da evolução das relações de força no conflito relativo ao tempo de se aplicasse esta ideia a toda a superfície da Terra, dividindo-a em vinte e
trabalho, a organização do processo produtivo na indústria como também o quatro zonas de quinze graus de longitude, calculadas na direcção leste-oeste
funcionamento do sector terciário acham-se cada vez mais sujeitos ao ritmo partindo do meridiano de Greenwich; em cada zona, o tempo local seria o
imposto pelos relógios. A hora substitui o dia como unidade de medida do tempo do meridiano bissector. Introduzido nos Estados Unidos pelas grandes
tempo de trabalho, e, na primeira metade do século XIX, começa a medir-se companhias ferroviárias a partir de 18 de Novembro de 1883, este sistema de
a duração da execução das tarefas para estabelecer normas de rendimento. fusos horários foi adoptado no anos seguintes por quase todos os outros países
Tudo isto irá culminar, em 1830, com a «organização científica do trabalho» [Bartky e Harrison 1979].
de Frederick Winslow Taylor, com a sua cronometragem das «operações O tempo sofre também uma estandardização; após a assinatura, a 20 de
elementares» em que cada tarefa é decomposta, a fim de eliminar todos os Maio de 1875, da convenção do metro, o Comité international des poids et
gestos considerados supérfluos e economizar fracções de segundo, cuja soma mesures, cuja missão consiste em assegurar a unificação mundial das medidas
permite encurtar consideravelmente o tempo de produção. No conflito entre físicas, é encarregado de estabelecer os padrões e as escalas das principais
operários e patrões, os relógios fixos e portáteis desempenham, em suma, grandezas físicas e de conservar os protótipos internacionais, de confrontar
o papel de instrumentos que permitem a estes últimos reforçar a vigilância os padrões nacionais e internacionais, de assegurar a coordenação entre as
sobre os operários e fazê-los trabalhar segundo cadências mais rápidas. Mas técnicas de medida correspondentes, de efectuar e coordenar as determinações
desempenham ainda o papel de instrumentos que permitem aos mesmos relativas às constantes físicas fundamentais. O segundo é definido como a I
,\

operários controlar melhor o seu tempo, não se deixar dominar e arrancar aos fracção 1/86 400 do dia solar médio, que representa «a duração média do dia
patrões concessões nada desprezíveis. solar determinada num grande número de anos, de modo a eliminar por
Transportes marítimos e ferroviários, fábricas, escritórios, lojas e bancos, compensação as desigualdades periódicas». A definição do dia solar médio,
e, além disso, escolas e exército: tudo instituições em pleno desenvolvimento e, por conseguinte, do segundo, só podia no entanto ser utilizada graças à
com milhões de indivíduos, alguns dos quais podiam adquirir relógios de luxo observação que dava o valor das constantes de integração das equações
e relógios portáteis de ouro, ao passo que os outros tinham de contentar-se diferenciais da mecânica celeste, a mais importante das quais é a duração do
com relógios de madeira e com portáteis baratos. Todos eles criavam um ano trópico; o seu valor «para 1900 Janeiro O ao meio-dia de Greenwich
enorme mercado para as produções da indústria do relógio e asseguravam a (31 de Dezembro de 1899 ao meio-dia) era de ... 365,242198781 dias =
sua expansão, não falando dos países semicoloniais e das colónias, onde estas = 31556 925,9477 ... segundos». Era, pois, necessário que a duração da
produções desempenhavam de preferência o papel de status symbol. Mas esta revolução sideral da Terra fosse constante. Ora, desde a segunda metade do
propagação do tempo quantitativo materializado nos relógios de vários tipos, século XIX, a teoria que afirmava a uniformidade absoluta da rotação da Terra
inscrito no andamento das instituições e interiorizado pelos indivíduos, punha revelou-se incapaz de explicar os resultados das observações da Lua e dos
problemas inéditos, que tinham de ser resolvidos para explorar a fundo as planetas de acordo com as leis da mecânica celeste; em 1926 demonstrou-se
novas possibilidades que se abriam. Assim, a exactidão dum relógio tem pouco que era possível contornar esta dificuldade admitindo que a rotação da Terra
valor, se tiver de ser acertado por meio dum quadrante solar, como ainda no está sujeita a uma variação secular e a certas flutuações. O dia solar médio,
século XIX acontecia em muitos sítios; ou então se diversos relógios, em «o círculo mais racional de todos», para Platão, perdeu assim a sua dignidade
desacordo uns com os outros, não indicam todos a mesma hora. Em Nevers, de padrão invariável e, em 1956, o Comité international des poids et mesures
a sincronização dos relógios só se tornou possível a partir de 1925, por ab-rogou a definição tradicional do segundo para a substituir pela seguinte:
intermédio da hora difundida pela rádio. Anteriormente, «os condutores «O segundo é a fracção 1/31 556 925,9477 do ano trópico para 1900 Janeiro
das viaturas postais todas as manhãs acertavam o relógio na estação e O às 12 horas T.E.», quer dizer, da escala temporal chamada das Efemérides,
comunicavam a hora ao sacristão e aos carteiros, que a distribuíam pelas que define em princípio o movimento orbital da Terra em volta do Sol e, na
casas». Este papel privilegiado dos relógios ferroviários dependia do facto prática, o da Lua em volta da Terra. Ainda em 1956, a mesma comissão criou
TEMPOrrEMPORALIDADE 36
37 TEMPOrrEMPORALIDADE

o Comité consultatif pour Ia définition de Ia seconde, cujos trabalhos


ligado ao corpo, mergulhado no mundo sensível; mas encontra-se num
prepararam a nova definição deste último, introduzida em 1967 e que ainda
contacto intemporal com um objecto transcendente posto, por definição, fora
hoje se mantém em vigor [cf. Terrien 1978].
do tempo. Em suma, o tempo é um carácter acidental daquilo que se deixa
conhecer por meio dos sentidos. Esta noção do tempo-acidente é contestada
3. Os cientistas e filósofos não esperaram pelo século XIX para
a partir do século XVI, não porque se pretenda fazer do tempo uma substância,
abordar os problemas postos pela introdução do tempo quantitativo na
um objecto transcendente, mas porque se quer atribuir-lhe, analogamente ao
arquitectura temporal tradicional; fizeram-no antes mesmo que o novo
espaço, um estatuto sui generis [cf, Cassirer 1906-907, trad. it.I, pp. 294-97].
tempo começasse a materializar-se em relógios passavelmente exactos.
Continuado r desta corrente de pensamento, Gassendi afirma que a dicotomia
A invenção, por Galileu, do óculo como instrumento científico, justificada
substância/acidente não esgota a totalidade do ser, porque o tempo e o espaço
teoricamente por Kepler, e a descoberta, sempre por Galileu, da experimen-
não são nem um nem outro. Se bem que incorpóreos, estes não constituem
tação - investigação de relações quantitativas entre duas séries de variações,
quimeras do intelecto, mas existem em si; neste ponto, no que se refere ao
a do comportamento dos objectos anteriormente postos em condições con-
tempo, Gassendi está em conflito com Descartes, para o qual «a duração de
troláveis e a de qualquer elemento destas últimas - inauguraram com efeito
cada coisa é um modo ou uma maneira, pelo qual consideramos esta coisa
uma prática cognoscitiva que já não se identifica com a intuição. Reconhecido
enquanto continua a ser» [1644, trad. it. p. 54]. Independente do intelecto,
em astronomia como indispensável e legítimo por parte de Aristóteles e seus
o tempo é-o também em relação às próprias coisas, assim como ao movimento
sucessores (que, contudo, estabeleciam uma diferença de natureza entre os /
e ao repouso; antes da criação do mundo, decorria do mesmo modo que hoje
movimentos dos céus, regulares e descritíveis mediante a geometria, e os
e era igualmente real. Porque o tempo não tem início nem fim; difere da
movimentos qualitativos do mundo sublunar), o uso dos instrumentos de
eternidade, reservada ao Criador, pelo facto de que esta última consiste numa
medição revelava-se igualmente indispensável e legítimo na física, elevada à
presença neste tempo infinito considerado como um todo. Tal posição parece,
categoria de ciência do céu e da Terra. Daqui o rápido crescimento, durante
conforme com a de São Tomás, mas o tempo tratado nos dois autores não é
o século XVII, da panóplia de instrumentos de observação e de medida:
realmente o mesmo. Gassendi refere-se a um tempo quantitativo, como se pode
termómetros, higrómetros, barómetros, telescópios, microscópios, etc.: pode
deduzir da sua insistência no facto de que o fluxo temporal é medido pelo
ver-se uma bela colecção deles no Museu de História da Ciência em Florença
movimento do relógio ou mesmo mediante o próprio movimento do Sol, que
[reproduzi da e descrita in Righini Bonelli 1968]. Donde o interesse pelos ,I
representa uma espécie de relógio; o homem comum serve-se, porém, mais ,
problemas de medição do tempo, como já se viu, em Galileu e sobretudo em ,
facilmente de clepsidras, relógios de areia ou quadrantes solares; adaptados
Huygens. Daqui, enfim, a necessidade de descrever o próprio tempo e de
ao movimento celeste de modo a imitá-lo o mais possível, estes podem ser
definir o seu estatuto, tendo em conta as várias inovações que pareciam ter
os seus substitutos enquanto permitem ver o que de outro modo não poderia II
tornado caducas as opiniões de Aristóteles retomadas pelos autores medievais,
ser percebido. Gassendi não menciona aqui o relógio mecânico, cuja exactidão
ou seja, toda a física tal como fora herdada do passado. No entanto, se a partir
de Galileu os sentidos se libertaram rapidamente do axioma segundo o qual
- antes de Huygens - era muito menor que a dos quadrantes solares I
aperfeiçoados, de que se serviam então os astrónomos [cf. Righini Bonelli
não há conhecimento a não ser imediato, o intelecto perrnanecer-lhe-á fiel até
1968, tabs. 63-69 e descrições nas PI>. 173 segs.]. Trata-se contudo, sem
finais do século XVIII. O resultado será uma assimilação dos objectos
dúvida alguma, de um tempo quantitativo: separado de todos os seres parti-
observáveis (inacessíveis aos sentidos mas susceptíveis de compreensão, em
culares, de todas as mudanças, de todos os movimentos, universal, infinito,
condições bem definidas, por meio de instrumentos apropriados) a objectos
uniforme e caracterizado pela mesurabilidade, que só se revela através de um
transcendentes que podem ser compreendidos através duma intuição
relógio. Tal género de tempo não é perceptível nem poderia ser abstraído do
intelectual, e que são muitas vezes identificados com objectos matemáticos.
movimento como seu número. Só se pode observá-lo, isto é, eventualmente
Tal assimilação, com a qual a metafísica vai procurar justificar as suas
medi-Io para constatar que, a partir dum dado momento, decorreram tantas
pretensões à cientificidade, encontra-se sobretudo nos textos relativos ao
unidades. Tendo isto em conta, não admira que, para fundar a realidade do
tempo [sobre os objectos sensíveis, observáveis, transcendentes, cf. o artigo
tempo assim definido, Gassendi faça dele o atributo do único ser que não
«Filosofia/filosofias» nesta mesma Enciclopédia; cf. também Pomian 1980b].
depende de modo algum das coisas, que é universal, infinito e imutável: Deus
Número do movimento segundo o antes e o depois, ou o próprio «movi-
[cf. Gassendi 1658, I, pp. 179-84 e 222-28; cf. Cassirer 1906-907, trad. it. 11,
mento» da alma, o tempo para Aristóteles, para os neoplatónicos e para todas
pp. 53-55]. Significa isto que o tempo é a duração divina medida por todo o
as outras escolas da Antiguidade e da Idade Média, é sempre inerente a alguma
movimento regular e periódico? Se assim fosse, como responder à questão
coisa. Neste sentido, é um acidente, ou mesmo um acidente de segundo grau,
agostiniana «Quid faciebat Deus, antequam faceret coelum et terram?», que
e é apreendido mediante a percepção sensível ou uma intuição intelectual de
pode ser formulada de modo mais adequado aos problemas cosmo lógicos da
si mesmo. Esta última concerne o tempo enquanto se volta para um objecto
nova ciência?
\

TEMPOrrEMPORALIDADE 39 TEMPOrrEMPORALIDADE
38

o novo conceito de tempo foi enunciado com mais clareza do que nunca exacta, o homem comum não a saberia distinguir de outra inexacta, à falta
nos Principia de Newton (1687, 2.a ed. 1713); é tão grande a importância desta de meios que lhe permitam operar tal distinção. Neste sentido, este tempo é
passagem que convém citá-Ia por inteiro, embora já o tenha sido várias vezes: «vulgar». Verifica-se, pois, que o tempo «relativo, aparente e vulgar»
«Acabamos de indicar em que sentido se devem entender nesta obra corresponde exactamente ao que neste artigo chamamos «tempo qualitativo»,
palavras que não são conhecidas correntemente. Mas já não defino tempo, e que, no século XVII, é simplesmente o tempo da vida quotidiana, o tempo
espaço, lugar e movimento, conhecidos de toda a gente. Notemos, porém, que usual que Newton opõe ao da ciência. .
correntemente só se concebem estas quantidades em relação a coisas sensíveis, O estatuto do tempo «absoluto» é mais difícil de definir. Não há dúvida
o que dá origem a vários erros. Para os eliminar, convém distinguir as mesmas de que se trata do tempo quantitativo; o próprio Newton o designa como uma
quantidades em absolutas e relativas, verdadeiras e aparentes, matemáticas e «quantidade», e é a propósito dele que invoca o relógio de pêndulo e as
vulgares. observações dos eclipses dos satélites de Jüpiter. Mas as indicações a
«I. O tempo absoluto, verdadeiro, matemático, em si mesmo e por natureza, um relógio de pêndulo são ainda «sensíveis» e não oferecem garantias
decorre uniformemente sem relação com algo de externo, e é chamado por de exactidão enquanto não forem controladas. A «equação astronómica»
outro nome duração. O tempo relativo, aparente e vulgar, é uma medida permite passar de um tempo «sensível» e incerto, isto é, sempre «relativo» e
(exacta ou inexacta) sensível e externa da duração por meio do movimento, «aparente», enquanto fundado no conhecimento instrumental, a um tempo
que é correntemente empregada no lugar do verdadeiro tempo: tais são a hora, «absoluto» e «verdadeiro», que é também matemático, sendo medido com
o dia, o mês, o ano» [1713, trad. it. pp. 101-2]. um padrão cuja invariância é estabelecida teoricamente; por exemplo: dia solar
«Distingue-se correntemente em astronomia o tempo absoluto e o tempo médio, duração duma rotação completa da Terra em torno do seu. eixo,
relativo por meio da equação do tempo. Com efeito, os dias naturais, após ter eliminado por compensação as desigualdades periódicas. O tempo
usualmente considerados iguais e usados como medida do tempo, são «absoluto» é, pois, alcançado indirectamente graças aos cálculos feitos com
desiguais. Os astrónomos corrigem esta desigualdade a fim de que, com base nas observações e em medidas obtidas utilizando instrumentos. Mas deve
um tempo mais verdadeiro, possam medir os movimentos celestes. É possível ser alcançável doutro modo, pois nenhuma matemática pode demonstrar que r'I
que não haja movimento tão uniforme que por meio dele se possa medir «em si e por natureza, (ele) decorre uniformemente sem relação com algo de I}
acuradamente o tempo. Todos os movimentos podem ser acelerados ou externo». Achamo-nos aqui em plena metafísica, que confere a realidade a um
retardados, mas o fluxo do tempo absoluto não pode ser mudado. Idêntica é tempo independente das coisas, formando o quadro no interior do qual e graças
a duração ou a persistência das coisas, ou porque os movimentos sejam ao qual elas se sucedem. Este tempo - a totalidade do ser assumida na ordem
da sucessão, ordem imutável, como o próprio Newton esclarece nos parágrafos
acelerados ou porque sejam retardados, ou porque sejam anulados; pelo I
dedicados ao espaço e não citados aqui - acha-se, pois (no Scho/ium generale
que, esta duração deve ser distinguida das suas medidas sensíveis, e isso
no final dos Principia), reconduzido coerentemente a Deus, cuja duração se
Ij
faz-se através da equação astronómica. A necessidade desta equação na
estende da eternidade passada à eternidade futura, e cuja presença vai do '1
determinação de um fenómeno demonstra-se quer mediante a experiência do
relógio oscilatório quer mediante os eclipses dos satélites de Júpiter» [ibid., infinito ao infinito. A propósito de Deus, Newton afirma com insistência que
pp. 105-6]. «não é a eternidade ou a infinitude, mas é eterno e infinito; não é a duração
Gassendi falava de um único tempo; Newton distingue dois. Qual o motivo e o espaço, mas dura e está presente. Dura sempre e está presente em toda
de tal desdobramento? O tempo «relativo» é-o, evidentemente, em relação aos a parte, e existindo sempre e em toda a parte, funda a duração e o espaço»
resultados das operações de medida. Mas trata-se de medidas «exactas ou [ibid., p. 793]. Não é, pois, exacto que o tempo «absoluto, verdadeiro,
inexactas, sensíveis e externas», das medidas realizadas sem utilizar os matemático» seja «sem relação com algo de externo», a menos que por
instrumentos que Newton não evoca neste contexto. O tempo «relativo» «externo» se entendam só as coisas materiais; com efeito, o tempo está
pertence, pois, à esfera do visível, está ligado à percepção, deixa-se constatar em relação com Deus, e de modo tão íntimo que o seu próprio ser parece
a olho nu, observando os fenómenos; todos os exemplos mostram com toda indissoluvelmente ligado à duração divina. Resta saber se este tempo
a evidência que a hora, o dia, o mês, o ano reenviam sem excepção para os «absoluto» - apresentado num belo acordo pelas matemáticas e a metafísica,
movimentos visíveis dos corpos celestes. Neste sentido, este tempo é ou, se preferirmos, pela teologia racional - é um tempo observável, que pode,
«aparente». Por outro lado, é um tempo de que se conhece o fluxo sem em suma, ser susceptível de medida e dotado de significado físico. Newton
recorrer a um saber especializado fundado no conhecimento instrumental e no admite que um «movimento tão uniforme», e por isso susceptível de medir o
uso da matemática, o único capaz de corrigir os erros dos sentidos. Por certo tempo «absoluto», possa mesmo não existir; as suas observações a este
que, ao falar da «medida ... da duração por meio do movimento», Newton propósito não são, no entanto, categóricas. Para ele, nada impede em todo o
acrescenta entre parênteses: independentemente do facto de ser «exacta ou caso de buscar um movimento que, sem o auxílio da «equação astronómica»,
inexacta». Mas isto parece querer apenas dizer que, ainda que a medida fosse teria medido directamente o tempo, nem por conseguinte de supor que este
TEMPOffEMPORALIDADE 40 41 TEMPOffEMPORALIDADE

último seja uma entidade física e de proceder em consequência. Objecto «que alguém pergunta porque é que Deus não criou todas as coisas um ano
demonstrável, transcendente e virtualmente mensurável ou, por outras mais cedo, e que pretende inferir daqui que Deus fez alguma coisa sem que
palavras, matemático, metafísico (ou teológico) e virtualmente físico, o tempo haja uma razão para a ter feito assim e não doutra maneira; poderíamos
«absoluto» de Newton ilustra perfeitamente o que iremos dizer acerca da responder-lhe que a sua ilação seria verdadeira se o tempo fosse algo fora das
confusão, que perdurou no século XVII e durante muito mais tempo, destes três coisas temporais: com efeito, não poderia haver razão alguma para que as
estatutos ontológicos. As controvérsias sobre o tempo tal como é concebido coisas fossem atribuídas a tais momentos e não a outros, mantendo-se a sua
pela física e a filosofia com pretensões científicas serão em todo o caso sucessão a mesma. Mas isto demonstra justamente que os instantes, fora das
tributárias dos problemas levantados por Newton até ao advento da teoria da coisas, nada são, e que não consistem noutra coisa que não seja a sua ordem
relatividade [cf., para o debate no século XVIII, Cassirer 1906-907, trad. it. 11, sucessiva; e; permanecendo esta imutável, um dos dois estados, por exemplo
pp. 485 segs.; Koyré 1957, em particular os caps. VII, X, xI)]. o da suposta antecipação, em nada diferiria, e não poderia ser distinto do outro
No início do século XVIII, Berkeley afirma que, separado das ideias que que agora existe» [1715-16, trad. it. p. 401]. Leibniz começa, pois, por adoptar,
se sucedem no espírito e considerado como uma duração abstracta, o tempo para depois o reduzir ao absurdo, o ponto de vista de Newton segundo o qual
é totalmente incompreensível e, portanto, nada é, no sentido em que nenhuma o tempo é independente das coisas; a criação destas últimas aconteceria, pois,
noção inteligível corresponde a semelhante união de palavras. Alguns num determinado momento. Porque escolheu Deus este momento e não outro,
parágrafos adiante, Berkeley assinala, porém, que se refere aos Principia, não havendo na trama do tempo nenhuma razão para favorecer uma escolha?
particularmente à passagem cuja parte relativa ao tempo foi citada neste artigo Problema inquietante, pois atribui a Deus uma acção arbitrária e torna, assim,
[cf. Berkeley 1710, I, §§ 97, 98, 110, 111]. O que, portanto, mostraria que, opaco o próprio princípio de inteligibilidade, mas inevitável, para os
para ele, se trata de eliminar o tempo «absoluto» de Newton a favor do tempo newtonianos, que consideram o tempo como existente antes das coisas, que
psicológico, constituído por uma sucessão de ideias. Mas, se todo o tempo lhe respondem apelando para a «simples vontade de Deus» [cf. ibid., p. 395].
psicológico aparece necessariamente como uma sucessão, a recíproca não é Aos olhos de Leibniz, porém, esta resposta é absurda: erigir a simples vontade
verdadeira. Assim, Leibniz refuta o tempo newtoniano para o substituir por de Deus como razão suficiente para a escolha do momento da criação
um tempo definido como «ordem das Existências sucessivas» ou simplesmente «é justamente afirmar que Deus queira algo sem que exista uma razão
«ordem das sucessões» [Leibniz e Clarke 1715-16 trad. it. p. 400], insistindo suficiente para a sua vontade, contra o axioma ou a regra fundamental de tudo
embora em considerá-lo uma coisa verdadeira ainda que ideal, como o número; quanto acontece» [ibid., p. 402]. Em resumo, aceitando que o tempo existe
«se não houvesse criaturas ... tempo e espaço ... só existiriam na ideia de antes das coisas, seguem-se consequências contrárias ao princípio da razão
Deus» [ibid., p. 461]. Não menos «objectivo» que o de Newton, o tempo de suficiente. Não se podendo negar tal princípio, há que aceitar como
Leibniz difere essencialmente dele porque, em vez de ser, com o espaço, demonstrado «que os instantes, fora das coisas, nada são, e que eles não
um fundamento último e absoluto da medida, deve, como o espaço, tornar o consistem noutra coisa que não seja a sua ordem sucessiva» [ibid., p. 401].
universo totalmente inteligível. Por tal motivo, como Clarke observou, o tempo Chegamos assim a um dos pontos-chave do debate entre Leibniz e Clarke,
de Leibniz não é uma quantidade [cf. ibid., pp. 406, 423]. Leibniz responde o problema da inteligibilidade do tempo. Que este último seja independente
afirmando que «a ordem também tem a sua quantidade: há nela o que das coisas e esteja intimamente ligado a Deus, é um facto que Newton e o
precede e o que segue, há distância ou intervalo» [ibid., p. 447]. No seu último seu seguidor aceitam sem o tentar reconduzir a outra coisa, considerada mais
escrito, que nunca chegou ao destinatário, Clarke replica: «PRECEDER, e fundamental e mais satisfatória para o espírito. Portanto, as relações entre Deus
SEGUIR, constitui SITUAÇÃO ou ORDEM; mas a DISTÃNCIA, INTERVALO ou e o tempo tornam-se, se possível, ainda mais enigmáticas que as que ele
QUANTIDADEde TEMPO ou ESPAÇO, em que uma Coisa segue outra, é Coisa mantém com o espaço, porque só a propósito deste último é utilizada a
completamente distinta da SITUAÇÃO ou ORDEM, e não constitui uma metáfora do sensorium, que, fazendo embora correr muita tinta, sobretudo
QUANTIDADEDE SITUAÇÃO OU ORDEM: a SITUAÇÃOOU ORDEM pode ser a durante o debate entre Leibniz e Clarke, permitia pelo menos imaginar o
MESMA,quando a QUANTIDADEDE TEMPOOU ESPAÇOINTERVENlENTEé MUITO ~s~aç? como um quadro no seio do qual Deus «vê as coisas na sua própria
DIVERSA» [1715-16, ed. 1957 p. 195]. Neste ponto, Clarke tem plena razão. IntimIdade e percebe-as e compreende-as inteiramente pela sua imediata
O que Leibniz não aceita em Newton, opondo-lhe a sua definição de tempo presença nele» [Newton 1704, trad. it. p. 577; cf. o comentário de Koyré 1957,
como estrutura de ordem, é justamente a ideia de tempo entendido como uma trad. it. pp. 159 segs.]. Parece, pois, que, para Newton o tempo não é um
grandeza variável que existe independentemente das coisas e cresce a um ritmo sensorium de Deus análogo ao espaço; mantém-se então a questão de saber o
absolutamente uniforme. que ele é. Ora, a relação do tempo com a duração divina é tanto mais difícil
Leibniz justifica a refutação desta ideia pela impossibilidade em que se de compreender porquanto Deus é absolutamente imutável, ao passo que o
encontra quem quer que a assuma de responder a um problema que se revela tempo é um fluxo, «decorre». Acrescente-se a isto a criação das coisas no
manifestamente uma variante da questão agostiniana. Suponhamos, com efeito, tempo, também este um facto aceite mas de que nada se consegue dizer que
TEMPO!fEMPORALIDADE 42
43 TEMPO!fEMPORALIDADE

o possa esclarecer, inserindo-o numa lógica. São justamente estes os factos


de entrada das essências na existência, a ordem da realização dos possíveis.
que Leibniz se recusa a admitir como tais, como dados brutos. O princípio
Mediante a razão suficiente da sua passagem do estado de ideia de Deus ao
de razão suficiente tem essencialmente a função de torná-Ios inteligíveis.
estado de «ordem das Existências sucessivas», que coincide com a razão
Após constatar que toda a aritmética e toda a geometria só podem ser
suficiente da criação em geral, o tempo adquire uma inteligibilidade intrínseca;
demonstradas a partir do princípio de identidade, Leibniz prossegue: «Mas,
em vez de ser aceite como um facto ou um dado bruto, é reconduzido a uma
para passar da matemática à física, é ainda necessário outro princípio, como
estrutura puramente lógica, regida pelo princípio de identidade.
notei na minha Teodiceia: o princípio da necessidade duma razão suficiente.
«Absoluto» ou relacional, newtoniano ou leibniziano, em ambos os casos
Quer dizer, nada acontece sem que haja uma razão para que aconteça
o tempo é posto como «objectivo»: realidade em todas as suas partes ou ordem
assim e não doutra maneira. Por isso, Arquimedes, querendo passar da
em conformidade com a qual se sucedem as coisas e que foi incorporada no
matemática à física, no seu livro sobre o equilíbrio, foi obrigado a valer-se
seu próprio desenvolvimento. Ele é dado, exterior e independente do
dum caso particular do grande princípio da razão suficiente. Considera
conhecimento que dele possam ter os indivíduos e que se limita a constatar o
estabelecido que, se nos dois extremos duma balança em equilíbrio se
seu fluxo a partir de mudanças visíveis, ou a medir o intervalo entre um certo
suspenderem pesos iguais dos dois lados, o todo ficará em repouso: isto porque
momento e outro, comparando as indicações dos relógios; o fundamento da
não há razão alguma para que a balança desça mais dum lado do que do outro.
sua «objectividade» é a duração divina ou uma ideia de Deus. O que constitui
Ora, com este simples princípio, quer dizer, que é necessária uma razão
a sua verdadeira natureza - isto é, o facto de que deve sempre decorrer do
suficiente para que as coisas sejam assim e não doutra maneira, eu demonstro
mesmo modo ou de que é inteligível intrinsecamente - só poderia ser
a Divindade e todo o resto da metafísica ou da teologia natural; e também,
compreendido pondo em curto-circuito ou corrigindo o que dele dizem os
de certo modo, os princípios físicos independentes da matemática, isto é, os
sentidos, com ou sem instrumentos, por meio do raciocínio dedutivo ou da
princípios dinâmicos, ou da força» [Leibniz e Clarke 1715-16, trad. it. p. 391].
intuição intelectual: os quais são, de resto, inseparáveis, no momento em que
É claro: assim como aqui enunciámos, o princípio de razão suficiente é um
se abandona o campo do visível e do observável. Assim, o tempo «absoluto»
princípio de conservação; a passagem duma posição de equilíbrio a uma
newtoniano é um objecto transcendente como o de Leibniz, ainda que este
posição de desequilíbrio e, mais em geral, de uma simetria à sua ruptura só é
último não estivesse disposto a conceder-lhe a inteligibilidade. É um objecto
considerada aceitável se a inteligibilidade do estado originário se achar
transcendente ou, como se dirá no século XIX, «metaffsico», porque se supõe
no estado final. Isto pressupõe evidentemente que a simetria seja inteligível
que a sua realidade foi definida por um raciocínio dedutivo, acompanhado
enquanto tal, que não exija nenhuma explicação, ao passo que toda a
de uma intuição intelectual. Ora, tanto o raciocínio dedutivo como a
ruptura de simetria, cuja inteligibilidade é aparentemente menor, recebe
intuição intelectual são cada vez mais contestados, enquanto modalidades
um complemento que permite satisfazer o princípio de conservação, graças
cognoscitivas, pela corrente de pensamento a que pertencem, entre outros,
à evidenciação da razão suficiente do desvio entre a simetria rompida e
Locke e Berkeley e à qual a obra de Hume confere um rigor exemplar.
a simetria inicial. Por outras palavras: tudo o que é simétrico é inteligível
Paralelamente, é posta em dúvida a validade dos conceitos, como o de
- ideia que se encontra na afirmação do princípio de identidade -, mas o
substância, que designam seres considerados «objectivos», e portanto
que é inteligível não é necessariamente simétrico; mesmo uma dissimetria é
acessíveis apenas ao raciocínio-intuição, mas que a análise revela como
inteligível, contanto que se conheça a sua razão suficiente. Ora, Deus é um
puramente imaginários. No interior desta corrente desenha-se cada vez mais
ser absolutamente inteligível; a sua essência compreende a sua existência,
nitidamente um novo modo de abordar o tempo: esté é inserido, não nas
e isto significa que ele é em si mesmo a sua razão suficiente. Introduzir o
relações entre Deus e as coisas, mas entre o homem e as coisas, não na
tempo «absoluto», como Newton faz, significa pois não apenas colocar junto
problemática do ser, mas na problemática do conhecimento de que se exclui,
de Deus uma entidade inteligível enquanto dissimétrica por definição e privada
a partir de Hume, a possibilidade de que este seja contemporaneamente
de razão suficiente, mas também tornar inteligível a própria criação. Será então
intelectual e intuitivo. Para Hume, o tempo é simplesmente uma ideia do
necessário definir o tempo de tal maneira que seja indissociável das coisas
nosso espírito forjada a partir da sucessão das ideias e das impressões; faltando
criadas, porquanto constitui a sua ordem de sucessão; só deste modo se poderá
as percepções na sua sucessão, não há consciência do tempo [1739, trad. it.
refutar como inaceitável o problema da escolha do momento em que Deus
pp. 46-52]. Se, pelo contrário, estas estão presentes, o tempo é não só relativo
criou o mundo. Caímos então noutro problema clássico da teologia, o pro-
ao modo como as percepções se manifestam ao nosso espírito e tal que, por
blema dos motivos da criação do mundo por parte dum ser perfeito e que não
assim dizer, se esgota na aparência, mas, além disso, nenhuma correcção nos
carece de nada, pois engloba tudo. Não examinamos aqui a resposta de
poderia fazer aceder a um tempo «verdadeiro e matemático»; a própria ideia
Leibniz, fundada, como é natural, no princípio da razão suficiente. Limitamo-
de uma correcção, que ultrapasse a exactidão dos nossos instrumentos e da
-nos à sua tese segundo a qual, antes da criação, o tempo era uma ideia de
nossa arte de medir, é uma ficção inútil e incompreensível [ibid., pp. 52-66].
Deus, uma espécie de programa que determinava antecipadamente a ordem
Tanto a concepção de Newton como a de Leibniz são assim refutadas, e a
TEMPO/fEMPORALIDADE 44 45 TEMPOrrEMPORALIDADE

geometria, para não falar da física, aparece como uma ciência aproximativa. para Kant «o que decorre não é o tempo, mas a existência do que muda
Em vez de perseguir a quimera de um saber exacto e não tautológico no que no tempo»; quanto ao tempo, «é em si mesmo imóvel e permanente» [ibid.,
se refere aos objectos externos, é, pois, preferível, segundo Hume, estudar a p. 194]. Esta frase é, aliás, contradita mais adiante, onde se lê que «o tempo,
natureza humana para compreender como ela pode incorrer em semelhantes e com ele tudo o que se encontra no sentido interno, decorre constantemente»
bizarrias. [ibid., p. 262). Não é possível pôr aqui o problema de saber se, entre a primeira
«O tempo não é um conceito empírico, derivado de qualquer experiência». edição da Crítica da Razão Pura e a segunda, Kant mudou a sua opinião sobre
Manifestamente dirigida contra posições como a de Hume, esta tese abre a o fluir do tempo. Limitamo-nos a indicar o papel desempenhado por este
secção consagrada ao tempo na Crítica da Razão Pura [Kant 1787, trad. it. último na filosofia kantiana, papel tão diversificado e tão determinante que,
p. 106]. Mas os problemas que, a propósito do tempo, Kant levanta na estética para o explicar de modo adequado, seria necessário apresentar esta filosofia
transcendental aproximam-se mais dos de Hume que dos de Newton ou em pormenor. Note-se, por exemplo, a função de mediador que o tempo
Leibniz. Trata-se, com efeito, de saber como nos é possível perceber os desempenha entre os conceitos puros do intelecto e os objectos da intuição
fenómenos enquanto simultâneos ou sucessivos; trata-se ainda de saber qual sensível, graças aos esquemas do intelecto, os quais «mais não são do que
o fundamento da necessidade em que nos vemos de os perceber desta maneira determinações a priori do tempo segundo regras, as quais se referem,
e não doutra. Por outro lado, diga Hume o que disser, a matemática é uma segundo a ordem das categorias, à série do tempo, ao conteúdo do
ciência exacta, e as suas proposições gozam de uma validade universal, tempo, à ordem do tempo e, enfim, ao conjunto do tempo relati-
embora não sendo tautológicas (analíticas): como é possível uma tal ciência? vamente a todos os objectos possíveis» [ibid., p. 195).
Como são possíveis, para nos exprimirmos em termos kantianos, os juízos Ainda ao tempo, para citarmos um exemplo ulterior, atribui Kant a função
sintéticos a priori? Ao afirmar que o tempo não é um conceito empírico, Kant de «terceiro termo», «do qual só pode nascer a síntese de dois conceitos» e
refuta a pretensão de Hume de ter reduzido ao tempo psicológico a arqui- que, portanto, toma possíveis os juízos sintéticos [ibid., p. 201). Por outro lado,
tectura temporal newtoniana com o seu tríptico: eternidade divina, tempo todos os princípios sintéticos do intelecto puro - axiomas da intuição,
«absoluto», tempo «relativo»; e, contudo, os problemas que ele põe estão antecipações da percepção, analogias da experiência e postulados do
focalizados, não em Deus enquanto criador das coisas, mas no sujeito humano pensamento empírico - fazem constante referência ao tempo. «Ninguém pode
enquanto produtor das representações. Com efeito, segundo .ele, «o tempo não explicar o conceito de quantidade em geral a não ser deste modo: a quantidade
passa, pois, de uma condição subjectiva da nossa (humana) intuição (a qual é a característica duma coisa pela qual é possível pensar quantas vezes a
é sempre sensível, isto é, implica que nós somos afectados pelos objectos), unidade está contida nela. Este «quantas vezes», porém, repousa na repetição
e nada é, em si mesmo, fora do sujeito» [ibid., p. 109]. Todavia, e é este o sucessiva, e portanto no tempo e na síntese do tempo (do homogéneo).
ponto crucial, o tempo, embora subjectivo, não é dependente dos fenómenos, A realidade só pode ser esclareci da, por oposição à negação, pensando um
e não é redutível à sua sucessão. Pelo contrário, é o tempo que torna possíveis tempo (como conjunto de todo o ser), o qual está cheio dela ou vazio. Se no
a sucessão e a simultaneidade dos fenómenos, das coisas enquanto objectos conceito de substância eu abstrair a permanência (que é a existência em todos
da intuição sensível, porque ele é «a forma do sentido interno, ou seja, da os tempos), só me resta, para o conceito de substância, a representação lógica
intuição de nós mesmos e do nosso estado interno», o que faz dele «a condição do sujeito ... Quanto ao conceito de causa (se prescindisse do tempo, no qual
formal a priori de todos os fenómenos em geral» [ibid., pp. 108-109]. uma coisa sucede a outra coisa segundo uma regra), nada mais encontraria na
Notar-se-á que a relação entre o tempo e os fenómenos, como Kant a pura categoria senão que há alguma coisa de que se pode deduzir a existência
define, recorda irresistivelmente a que Newton estabelecia entre o tempo e de outra coisa» [ibid., pp. 268-69). Parece, pois, poder dizer-se que a Crítica
as coisas. Exterior aos fenómenos, o tempo é independente deles como da Razão Pura se apresenta, entre outras coisas, como um livro sobre o tempo
independente das coisas. O tempo é uma condição necessária à existência dos enquanto condição de possibilidade do conhecimento. Em definitivo, é a
fenómenos enquanto fenómenos, assim como era uma condição necessária à estrutura do tempo (e também do espaço) que permite apreender e pensar os
existência das coisas. Por conseguinte, o tempo kantiano não é seguramente fenómenos, e que oferece o seu fundamento à ciência capaz de exprimir, de
um tempo psicológico, que é sempre um tempo relacional (sem que a inversa forma matemática, as leis da natureza.
seja verdadeira). É antes análogo ao tempo «absoluto» de Newton: tempo Mas este tempo - newtoniano, quantitativo, subtraído a Deus para dar
quantitativo transposto para o interior do indivíduo. O próprio Kant explica uma forma a priori da sensibilidade humana, ou melhor, da sensibilidade
noutra altura que «espaço e tempo são quanta continua, pelo facto de que não de «todo o ser pensante finito», de que exprime justamente a finitude (isto é,
é possível dar uma parte deles sem a fechar dentro de limites (pontos e a dependência face a outro ser quanto à existência e à intuição) [cf. ibid.,
instantes), e portanto sem fazer que a parte dada seja também ela um espaço p. 122] - está presente no pensamento kantiano juntamente com outros dois.
ou um tempo. Portanto o espaço é apenas constituído por espaços, e o tempo, Com efeito, a experiência põe em contacto com um tempo dos fenómenos,
por tempos» [ibid., pp. 211-12]. Todavia, diferindo neste ponto de Newton; percebido unicamente com eles, através da sua permanência, sucessão
TEMPOrrEMPORALIDADE 46 47 TEMPO/TEMPORALIDADE

e simultaneidade, e portanto relacional: «O tempo em si não pode ser apreendido pelo intelecto, e que, no contacto com este último, não sofra
percebido. Por isso, nos objectos da percepção, ou seja, nos fenómenos, deve nenhuma transformação. A refutação da intuição intelectual significa, pois,
encontrar-se o substrato que represente o tempo em geral e no qual possa ser que já não se acredita na capacidade do intelecto de pôr em curto-circuito os
percebida toda a mudança e simultaneidade, por meio da relação dos sentidos e que se recusa tudo o que era suposto fundar-se nesta pretensa
fenómenos com tal substrato» [ibid., p. 220]. Este «substrato da representa- capacidade, em particular a afirmação da existência de objectos completos,
ção empírica do tempo, o único que torna possível toda a determinação do definitivos e a apreender como tais. Os sentidos, os únicos que têm o direito
tempo» [ibid., p. 221], algo de permanente nos fenómenos, que Kant designa de entrar em contacto com os objectos, não oferecem. mais que um fluxo de
pelo velho termo 'substância' embora modificando-lhe o significado tradicio- dados, e todo o nosso saber, que tem a pretensão de fundar-se nos próprios
nal, permite atribuir à existência «uma quantidade que toma o nome de objectos, é posto em discussão. Chegado a este ponto, Hume mostra que as
duração» [ibid.]; nele ainda se funda «a justificação da noção de mudança» aspirações do intelecto não poderiam ser satisfeitas: a única coisa que pode
[ibid., p. 224], porque a mudança consiste numa sucessão de acidentes ou de fazer sem transgredir os limites que lhe são próprios consiste em estabelecer
estados que, na ausência dum substrato, seria inconcebível. Enquanto toda a entre os dados sensoriais ligações baseadas no hábito: pelas suas simples
sucessão de fenómenos é uma mudança, a hipótese de um substrato revela-se forças, ele só pode gerar erros ou tautologias (juízos analíticos). Ora, segundo
uma condição necessária da possibilidade de figurar a ligação causal. Kant, esta «derivação empírica» do saber «é incomparável com a real exis-
Estas referências a Kant permitem .entrever o motivo da distinção aqui tência dos conhecimentos científicos a priori que estão na nossa posse, isto
introduzida entre tempo «transcendental» e «psicológico», «absoluto» e é, com a matemática pura e a física geral, e é assim contrariada pelos
«relacional», quantitativo e qualitativo; embora não tenham recebido nomes factos» [ibid., pp. 159-60]. Os juízos sintéticos a priori são, pois, possíveis.
diferentes - o que não facilita a leitura da Crítica -, a diferença entre eles Mas de que modo? A resposta está na chamada «revolução coperniciana», e
parece plenamente fundada. Mas Kant considera ainda um terceiro tempo, que, consiste (dito em termos muito simples) em mostrar que um conhecimento a
'I
em rigor, deveria ter indicado com o termo 'eternidade'. Sobre este «tempo» priori (puramente intelectual) é possível, mas só relativamente ao espaço e
dos númenos, das coisas em si, a razão teórica não tem estritamente nada a ao tempo; quanto à experiência, é uma série de sínteses, cujo grau mais baixo,
dizer; é a razão prática que induz a admiti-lo tornando credível a afirmação o dos sentidos, só é possível pelo grau mais elevado, o do intelecto. Não é
da existência de Deus. Reaparece assim em Kant o tríptico newtoniano necessário remontar aqui até à origem de toda a síntese, cuja colocação é, aliás,
(eternidade, tempo «absoluto», tempo «relativo»), mas todas as suas com- ,
controversa; basta recordar a definição kantiana das relações entre sentidos e I

ponentes mudaram o estatuto. Isto é particularmente importante no caso intelecto: «A nossa natureza é tal que a intuição nunca pode ser senão "

do antigo tempo «absoluto», o qual, separado da duração divina (que, para sensível, ou seja, contém apenas o modo como somos afectados pelos "
II
Newton, era o fundamento da sua «objectividade»), se revela subjectivo, ligado objectos. Em contra partida, a faculdade de pensar o objecto da intuição I

à finitude, e muda de posição relativamente ao espaço. Já em Newton a sensível é o intelecto. Nenhuma destas duas faculdades deve ser anteposta
simetria entre os dois não parece completa porque só o espaço é qualificado à outra. Sem sensibilidade, nenhum objecto nos seria dado, e sem intelecto
como sensorium Dei. Kant avança mais decididamente nesta direcção, tanto nenhum objecto seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios,
que se pode falar duma ruptura com a representação tradicional das relações intuições sem conceitos são cegas» [ibid., p. 126].
entre o tempo e o espaço: doravante o segundo, condição formal a priori dos Segue-se que, se lidamos com objectos e não com conjuntos heteróclitos
fenómenos externos, está fortemente subordinado ao primeiro, que representa de qualidades sensíveis, é porque os nossos sentidos sabem o que fazer,
tal condição para todos os fenómenos em geral. Na história das representações
"
não se movem às cegas, mas são guiados pelos conceitos de modo a preen-
do tempo, assiste-se aqui a uma viragem essencial que reenvia para as chê-Ios, de modo a satisfazer as suas exigências. Definindo assim o papel dos
transformações sofridas pela própria arquitectura temporal (de que voltaremos sentidos, Kant opera em relação aos seus predecessores, Hume inclusive, uma
a falar mais adiante), e que explica também a importância a atribuir nesta inversão da orientação temporal da experiência: esta não é mais um mero
história à obra kantiana, onde pela primeira vez estas transformações foram registo nem está inteiramente subordinada ao passado; é antes uma síntese
pensadas até às últimas consequências. antecipadora que, enquanto tal, está virada para o futuro. Certamente que este
Para sermos mais claros, podemos perguntar que mudanças da ideia fu~uro já é à sua maneira pré-determinado sob a forma de conceitos, de regras,
mesma de conhecimento derivam, na nossa perspectiva, do abandono da pnncípios, categorias. Mas permanece vazio enquanto não é preenchido pelos
crença na possibilidade duma intuição intelectual. Esta última pressupõe, dados sensoriais. Seres pensantes, estamos orientados para o futuro. Mas,
convém lembrar, um intelecto que, uma vez confrontado com um objecto como seres finitos, não o podemos alcançar imediatamente, de uma vez por
transcendente, o regista com absoluta fidelidade, realizando assim a adequação todas, saltando por cima do tempo que nos separa dele, e constituindo o futuro
do intelecto com a própria coisa, fundamento da verdade; pressupõe, por outro como eternidade. Seres pensantes e finitos, só alcançamos o futuro mediante
lado, que o objecto da intuição possua já a sua forma completa antes de ser Um trabalho paciente que ponha em ordem os dados sensoriais unificando-os
TEMPO!I'EMPORALIDADE 48 TEMPO!I'EMPORALIDADE
49

com os conceitos numa síntese nunca definitiva. O papel determinante e tempo, dar-lhe uma justificação filosófica e dela tirar consequências. Mas a
diversificado do tempo na filosofia kantiana e a posição privilegiada que ressonância do kantismo deve-se, entre outras coisas, ao facto de corresponder
esta lhe confere em relação ao espaço derivam da inversão da orientação neste ponto fundamental a mudanças que, independentemente dele, se
temporal do conhecimento. produziam nos mais variados campos da cultura, da vida social e política. Com
o próprio Kant e depois com Laplace, a mecânica celeste aborda problemas
4. A par da entrada do tempo quantitativo em todos os campos da de cosmogonia, ao passo que a física se interessa cada vez mais pela
civilização ocidental, produzem-se outras duas mudanças destinadas a electricidade, o magnetismo e o calor, e a geologia e o estudo dos seres vivos
repercutir-se não só nas atitudes face ao tempo e nas teorias de que é objecto põem em primeiro plano os problemas genéticos. A mudança mais espec-
mas também na arquitectura temporal no seu conjunto: prolongamento da tacular concerne, porém, a história. Esta entra no século XVIII como uma
duração atribuída à história do universo, da Terra e da vida [Rossi 1979], e, prática intelectual cujo estatuto é objecto de controvérsia entre aqueles que a
aspecto mais relevante, uma vez que condiciona este mesmo prolongamento, querem reduzir à erudição e aqueles para quem é um ramo da literatura. Entre
passagem de um tempo virado para o passado a um tempo virado para o os primeiros, são ainda influentes os partidários duma história auxiliar da
futuro. A inversão do tempo individual e social do passado para o futuro é teologia [cf. Pomian 1972; 1973]. Ela entra, pois, no século XVIII com
acompanhada de uma promoção da ciência: é cada vez mais esta última, e não ambições muito limitadas: ocupa-se de coisas militares, políticas no sentido
a religião, que confere legitimidade às instituições, às práticas e às doutrinas. mais restrito, religiosas. Nos finais do século, em compensação, o seu âmbito
Com efeito, a religião é essencialmente tradicionalista: os exemplos e modelos alarga-se a todo o conjunto das actividades e produções humanas, e é
que propõe derivam do passado; até mesmo o futuro que anuncia está reconhecida como uma disciplina filosófica por excelência. Mais que uma
programado desde as origens. O tempo que a religião pressupõe e representa disciplina particular, é doravante um método a que os seus adeptos mais
nas suas cerimónias é um tempo finito, o tempo da humanidade, comparável entusiastas atribuirão um campo de aplicação quase ilimitado. <<Á característica
a um indivíduo cuja vida, compreendida entre o nascimento e a morte, não do século XIX», escreve Renan, «é ter substituído o método histórico pelo
poderia ultrapassar um certo comprimento antecipadamente determinado. Pelo método dogmático em todos os estudos relativos ao espírito humano. A crítica
contrário, a ciência moderna, que, diferentemente do saber das épocas literária passa a ser a exposição das diversas formas da beleza, isto é, do modo
precedentes, se funda no conhecimento instrumental, está por este motivo como as diversas famílias e as diversas épocas da humanidade resolveram o
(sejam quais forem a este propósito as opiniões dos cientistas), inteiramente problema estético. A filosofia passa a ser a resenha das soluções propostas
virada para o futuro. Praticá-Ia é aumentar o poder de resolução dos para resolver o problema filosófico. A teologia passa a ser simplesmente a
instrumentos de observação e de medida, é achar-lhes aplicações imprevistas, história dos esforços espontâneos levados a cabo para resolver o problema
é inventar outros novos para observar e medir aquilo que escapava aos divino. Com efeito, a história é a forma necessária da ciência de tudo quanto
instrumentos já disponíveis. É também tentar dar à linguagem que se utiliza está submetido às leis da vida mutável e sucessiva. A ciência das línguas é a
uma precisão e um rigor sempre crescentes. Significa, pois, por outras história das línguas; a ciência das literaturas e das filosofias é a história das
palavras, multiplicar o número de objectos observáveis, criando ao mesmo literaturas e das filosofias; a ciência do espírito humano é, uma vez mais,
tempo um léxico e uma sintaxe que permitam descrevê-los. Resumindo, se a a história do espírito humano, e não a mera análise dos mecanismos da
religião é constitutivamente passadista, se os que por ela são responsáveis se alma individual. A psicologia apenas considera o indivíduo e considera-o de
empenham essencialmente em preservar o depósito da fé, a eles confiado pelos maneira abstracta e absoluta, como um sujeito permanente e sempre
seus predecessores para ser transmitido intacto à posteridade, a ciência, por idêntico a si mesmo; aos olhos da crítica, a consciência realiza-se na huma-
seu lado, é essencialmente futurista: os que a praticam têm a missão de nidade como no indivíduo; ela tem a sua própria história» [1852, ed. 1861
provocar mudanças no estado dos nossos conhecimentos e enriquecer a pp. VI-VII].
panóplia dos meios para os adquirir. Enquanto a religião dá a preferência a Esta promoção da história em todas as suas formas não exprime apenas a
um mundo fechado e a um tempo finito, a ciência não poderia prescindir do deslocação do tempo para o futuro mas também, e talvez sobretudo,
duplo infinito, espacial e temporal. a cO~~icção cada vez mais espalhada de que este último é em princípio
Prolongamento da duração atribuída ao universo, deslocação para o prevlslvel, de que, partindo de um estudo do passado e do presente, é possível
futuro do centro de gravidade do tempo: estas duas importantes inovações traçar as suas grandes linhas ou mesmo os seus mínimos pormenores. Aqueles
introduzidas durante o século XVIIIna arquitectura temporal são acompanhadas que, com angústia, vêem operar-se na sociedade uma regressão - abandono
de uma mudança no próprio estatuto do tempo, que se torna proeminente em dos valores experimentados a favor das novidades, inevitavelmente portadoras
relação ao espaço. Autor da História Geral da Natureza [1755], publicada um de desastres - concordam a este propósito com aqueles que constatam
quarto de século antes da Crítica da Razão Pura, Kant estava particularmente entusiasticamente o crescimento contínuo das riquezas, o progresso das luzes,
bem colocado para tomar consciência da posição recentemente atribuída ao a prOpagação cada vez mais vasta da virtude, e mesmo da felicidade. Por
TEMPOrrEMPORALIDADE 50 51 TEMPO/fEMPORALIDADE

outras palavras, quem considera a história susceptível de reforçar com os seus este último seja definido como uma recuperação do passado, como um
ensinamentos o apego à religião e às instituições tradicionais em geral, admite renascimento ou uma restituição - mas sempre a um alto nível e sobre
que o futuro é previsível, exactamente como quem considera que a história, novas bases - de um estado que se julga perdido. Foi, pois, esta convicção
aliada da ciência, tem por tarefa contribuir para a instauração, dentro dum que, por uma série de contra-sensos, recebeu o nome um tanto aberrante de
prazo relativamente breve, de um mundo conforme com a razão e, neste «ideologia». De facto, toda a crença designada por esta palavra é uma filosofia
sentido, desvinculado do passado. Este conflito que apresenta todo um leque da história, que pretende ter apreendido o seu sentido último, a sua orientação
de posições intermédias entre as posições extremas confere significado e principal, a sua lei ou as suas leis, e que, além disso, manifesta a aspiração a
importância tanto às investigações históricas como às filosofias da história; uma cientificidade cujos critérios ela mesma se arroga o privilégio de definir.
umas e outras fornecem doravante argumentos para, socorrendo-se das Enquanto exige ser reconhecida com base em argumentos irrefutáveis para
deduções e dos factos, justificar imagens de um futuro apocalíptico ou, pelo todo o ser humano «normal», ela interpreta a sua refutação como uma prova
contrário, paradisíaco. «Se o homem pode predizer com segurança quase de que o opositor participa imperfeitamente da humanidade: este último é
total os fenómenos cujas leis conhece; se, mesmo quando as desconhece, ele então acusado de representar um ponto de vista fortemente parcial, deformado
pode, com base na experiência do passado, prever com grande probabilidade (ainda que inconscientemente) pela sua posição social ou pela sua pertença
os acontecimentos do futuro, porque se havia de considerar como uma empresa étnica ou racial, que o torna intrinsecamente inábil para apreender o
quimérica a que consiste em traçar com alguma verosimilhança o quadro dos verdadeiro. Trata-se, enfim, duma filosofia da história que se apresenta como
futuros destinos da espécie humana, com base nos resultados da sua história? um saber e ao mesmo tempo como um apelo à acção, e que portanto vê o
O único fundamento da crença nas ciências naturais é esta ideia de que as leis critério da sua validade no sucesso que conseguirá obter enquanto programa
gerais, conhecidas e desconhecidas, que regem os fenómenos do universo, são político em que se inspira um movimento soci~l ou um partido. Assim
necessárias e constantes; e por que razão este princípio seria menos verdadeiro definidas, as ideologias exprimem um modelo de convicção que não tem "

para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do homem do que precedente nem nas variantes progressistas para as quais o futuro, superior ao
para as outras operações da natureza? Por último, uma vez que as opiniões passado e ao presente, introduzirá na história uma descontinuidade radical,
formadas sobre a experiência do passado... são a única regra de conduta nem nas variantes reaccionárias preconizadoras dum futuro que regressa ao ,
dos homens mais sábios, porque se haveria de impedir o filósofo de fundar passado e, neste sentido, opera uma ruptura com o presente. Com efeito, elas I,
as suas conjecturas nesta base, contanto que não lhes atribua uma certeza diferem das utopias pré-revolucionárias porque comportam um programa de 1
"

superior àquela que pode nascer do número, da constância, da exactidão das acção colectivo destinado a conduzir a uma transformação da sociedade. 11
observações?» Extraído da Esquisse d'un tableau historique des progrês de Futuristas em relação à ciência que imitam e em cujos resultados procuram I:
l'esprit humain [Condorcet 1793-94, trad. it. p. 165] - título que assume todo fundar a sua legitimidade, as ideologias opõem-se, por vezes de modo muito
o seu relevo se tivermos em conta que é o dum livro-testamento escrito por violento, à religião, a qual é constitutivamente passadista, e às organizações
um candidato à guilhotina, que evitou, suicidando-se -, este texto, meio secretas, que se esforçam por eliminar ou, pelo menos, por enfraquecer. O seu
século mais tarde, será retomado por John Stuart Mill no System of Logic, onde aparecimento e a sua difusão, sintoma de uma deslocação do tempo para o
aparecerá em exergo ao sexto livro dedicado à lógica das ciências morais futuro, que elas reforçam encarnando em instituições de Estado - e sobretudo,
[1843, trad. it. p. 824]. Dele se encontram ainda reminiscências nas sob a forma de ideologias nacionais, no ensino e nas forças armadas, pelos
.,
diversas cronosofias do progresso cujas confrontações ocupam boa parte quais passa a maior parte da população - mas também nos partidos políticos,
do século XIX: em Comte e nos positivistas, por um lado, em Hegel e s~ndicatos, associações, etc., caracterizam os séculos XIX e XX, cujas tendên-
nos seus sucessores, por outro (cf. o citado artigo «Periodização»), que eras de longa duração acompanham, traduzem e co-determinam: alfabetização
poderiam ter dito, de acordo com Mill: «Creio realmente que a tendência em massa, monetarização cada vez mais acentuada da economia, desenvolvi-
geral é e continua a ser, salvo excepções ocasionais e temporárias, de mento da indústria (ilustrado precedentemente com o exemplo da indústria da
melhoramento - tendência para um estado melhor e mais feliz. Não é, no relojoaria), penetração do tempo quantitativo na vida quotidiana, importância
entanto, uma questão do método da ciência social, mas um teorema da própria crescente do Estado e das suas intervenções no âmbito de todas as actividades
ciência» [ibid., p. 905]. que concernem o futuro. Testemunha-o eloquentemente o interesse mani-
Esta problemática das relações entre o passado, o presente e o futuro festado, há cerca de cinquenta anos, pelas políticas consideradas aptas para
adquire após a Revolução Francesa um significado explicitamente político. rO~~er o ciclo da conjuntura, pela planificação sob formas extremamente
Com efeito, começa agora a espalhar-se a crença de que um futuro melhor vanaveis , pela s naciona
. 1·izaçoes
- ( trata-se, essencialmente,
. .
de estatizações da
que o presente - a ponto de ter de romper com ele (na opinião de alguns)- eCon?~ia no seu conjunto, ou apenas de alguns ramos da indústria), pelas
é realizável mediante um esforço consciente, colectivo e organizado, não p.revlsoes cujos horizontes se alargam cada vez mais, pelos cenários, as
para o passado e o Além, mas para o futuro da sociedade, ainda que por vezes sImulações, as projecções. Destas e de muitas outras maneiras, o futuro exerce
TEMPOrrEMPORALIDADE 52 53 TEMPOrrEMPORALIDADE

a sua acção no presente com uma intensidade nunca dantes atingida na história. considerar o universo como um mecanismo finito, o qual «funciona como um
Não é mais o morto que se apossa do vivo, mas aquele que ainda não nasceu. movimento de relojoaria e pára definitivamente». Por outro lado, por razões
Voltemos à ciência que, ao longo de todo o século XIX, prossegue a sua de carácter predominantemente teológico, «nenhuma das conclusões da
conquista do tempo. Os estudiosos de geologia acumulam uma impressionante Ciência dinâmica, acerca da condição futura da Terra, pode ser utilizada para
massa de dados sobre os acontecimentos que se produziram durante o passado inspirar ideias desencorajadoras em relação ao destino da raça de seres
da Terra, que dividem em diversos estádios. Assim, para Cuvier, «o certo é inteligentes que actualmente a habitam». Depois de ter assim tranquilizado o
que nós nos achamos agora no meio duma quarta sucessão de animais terres- seu auditório, Thomson aborda o problema do arrefecimento secular do Sol
tres, e que após a era dos répteis, a dos paleotérios, a dos mamutes, a dos assimilado a uma massa líquida incandescente; mediante uma série de
mastodontes e a dos megatérios, veio a era em que a espécie humana, com a hipóteses, chega à conclusão de que «a sua temperatura desce 100° num
ajuda de alguns animais domésticos, domina e fecunda pacificamente a Terra: intervalo de tempo compreendido entre 700 e 700000 anos», o que torna
só nos terrenos formados após esta época, nos aluviões, nas turfeiras, nas pouco verosímeis as opiniões dos geólogos. Depois, após avaliar a actual
concreções recentes se encontram em estado fóssil ossadas que pertencem temperatura do Sol, põe a questão da origem e da quantidade total do calor
todas elas a animais conhecidos e ainda hoje vivos» [1812, ed. 1828 p. 353]. solar. Refutando a teoria química incapaz de explicar a duração da radiação
Sobre a duração destas eras, Cuvier continua a ser de uma discrição exemplar: solar, toma posição a favor daquela que vê nela a origem da reunião num
afirma que, «se há na geologia algo de constante, é o facto de a superfície do globo de meteoritos que caíam uns sobre os outros. São os cálculos que
nosso globo ter sido vítima de uma grande e inesperada revolução, cuja data permitem avaliar a produção do calor mediante semelhante mecanismo
não pode remontar a muito além de cinco ou seis mil anos» [ibid., pp. 282- que justificam a conclusão geral da conferência: «Parece, pois, muito provável
-83], mas não se arrisca a datar as revoluções precedentes. A sua teoria que o Sol não iluminou a Terra durante 100 milhões de anos, e é quase certo
catastrofista e também a atribuição de uma data muito recente à última das que não a iluminou durante 500 milhões de anos. Quanto ao futuro, pode
revoluções da superfície do globo permitiam todavia uma compreensão do dizer-se com igual segurança que os habitantes da Terra não poderão continuar
tempo necessário para poder dispor todos os factos geológicos e paleon- a gozar durante muitos milhões de anos da luz e do calor necessários à sua
to lógicos devidamente constatados. A substituição desta teoria pela de Lyell, existência, a menos que no grande arsenal da criação tenham sido postas de
que explica as mudanças sofridas pelo globo postulando causas lentas, as reserva fontes que de momento nos são desconhecidas».
mesmas que se vêem em acção nos nossos dias, obrigava, pelo contrário, a Vinte e cinco anos mais tarde, noutra conferência sobre o calor solar
"•
recorrer a um tempo muito mais longo, mas cuja duração ninguém podia [1887], Thomson chega a uma conclusão muito mais pessimista: «Parece-me I'
exprimir com precisão, à falta dos meios que permitissem estabelecer uma muito temerário supor que a luz do Sol tenha brilhado durante mais de I:
cronologia absoluta. A publicação em 1859 da Origin of Species de Darwin 20 milhões de anos no passado da história da Terra, ou contar para o futuro
deu nova virulência ao debate acerca deste assunto: combatida pelos com mais de 5 ou 6 milhões de anos-luz». Mas o verdadeiro interesse destes
defensores da religião e utilizada com fins ideológicos - as duas coisas textos não reside tanto nas suas conclusões, se bem que hajam exercido uma
reforçavam-se mutuamente -, a teoria darwiniana da evolução exigia, com influência notabilíssima nos biólogos e nos geólogos, sujeitando-os a uma
efeito, que o tempo decorrido desde a formação do sistema solar bastasse para cronologia manifestamente incapaz de satisfazer as suas necessidades e da qual
conter o processo que, sob a acção conjunta da variação e da selecção natu- eles, de resto, não conseguirão libertar-se pelas suas próprias forças porque
ral, produziu todas as formas dos seres vivos, começando com os mais era sancionada pela autoridade da termo dinâmica [cf. Toulmin e Goodfield
primitivos e terminando com o homem. Ninguém sabia então quantos anos 1965, ed. 1966 pp. 222-24]. Mais importante que as conclusões é o modo de
eram necessários à realização deste processo, que em todo o caso parecia levar proc~der de Thomson, de que já vimos um primeiro esboço em Buffon e que
algumas centenas de milhões de anos. ConSIste em fazer referência aos mecanismos físicos inteligíveis e a leis físicas
Referindo-se à avaliação da idade de uma formação geológica em ~onhecidas para avaliar a duração dos processos observados na natureza.
trezentos milhões de anos, e mencionando neste contexto o nome de Darwin, E in~til .observar que tal avaliação não tem consequências no plano prático;
Sir William Thomson (mais tarde Lord Kelvin) tenta demonstrar como a idade a cunosIdade apaixonada que este assunto suscitava dependia da sua posição
que se pode atribuir razoavelmente à radiação solar impede de levar a sério C~ntral no campo onde se confrontavam as ideologias. É o que se vê
semelhantes avaliações. A sua conferência [1862] começa recordando a ~ aramente na conferência de 1862, que começa por uma justificação da recusa
segunda lei da termodinâmica e o estado «de repouso e de morte» que o ~ ?ar um alcance cronosófico aos resultados da ciência; estes últimos
esgotamento progressivo da energia potencial existente no universo material o ngavam a prever a morte térmica do universo e a extinção da humanidade,
provocaria, se este último fosse finito. Mas é impossível conceber um limite Kelv .tendo-se tornado inconcebível a finitude espacial e temporal da matéria,
à extensão da matéria no universo: a Ciência, portanto, leva mais a admitir d elvID [1887] introduz factores metafísicos que desmentem certas «ideias
um desenvolvimento sem fim num espaço privado de limites do que a esenCorajadoras» a propósito do futuro.
TEMPOrrEMPORALIDADE 54 TEMPOrrEMPORALIDADE
55

Deste modo, é sem inquietação que ele concede ao Sol uma existência caminho para um prolongamento da duração atribuída à Terra, ao sistema solar
muito breve, comparada com a que os geólogos e biólogos auspiciavam. Por ou ao universo no seu conjunto.
outro lado, ele não tinha por onde escolher: enquanto a produção da energia Em 1921, Perrin retoma sobre novas bases o problema da origem do calor
solar só parecia explicável nos termos de um processo mecânico (todos os solar, explicando-o pela condensação de átomos ligeiros em átomos pesados:
. outros então conhecidos eram incomparavelmente menos eficazes: em vez de «Se a matéria primitiva da Nebulosa pré-solar fosse composta de hidrogénio,
algumas dezenas de milhões de anos, por exemplo, as fontes químicas só a condensação atómica teria podido fornecer cerca de 160 mil milhões de
calorias, ou seja, o bastante para alimentar durante mais de 80 mil milhões
asseguravam umas poucas dezenas de milhares de anos de radiação), os
de anos a radiação solar à taxa actual» de duas calorias ao ano para cada grama
resultados eram previamente determinados até ao pormenor. Restava
de substância solar [1921, ed. 1950 p. 385]. Vinte anos mais tarde, estes cem
apenas sublinhar o carácter meramente provável destes resultados e a sua
mil milhões (1011) de anos aproximadamente parecem a Perrin «quase
dependência do estado actual dos conhecimentos: «A forma dada por
irrisórios». Interessando-se agora, não pelo Sol, mas pela idade do universo
Helmholtz à teoria meteórica da origem do calor solar», escreve Kelvin [ibid.],
a partir do momento em que as Galáxias estavam «apertadas umas contra as
«pode ser aceite como aquela que tem o mais alto grau de probabilidade
outras», avalia a duração «decorrida entre o tempo em que se acenderam as
científica atribuível a uma hipótese que concerne acontecimentos passados em
primeiras estrelas gigantes e o tempo em que as Galáxias se reduzirão a um
épocas pré-históricas». E conclui a sua conferência de 1862, ilustrando o
fervilhar de estrelas anãs avermelhadas, cada vez mais fracas» em um pouco
carácter futurocêntrico da ciência, com uma evocação das fontes de calor e
menos de dez mil triliões (1016) de anos, número tão prodigioso que ele
de luz ainda desconhecidas, mas que porventura «foram postas em reserva no
próprio o faz acompanhar de um ponto de exclamação [1941, ed. 1950 p. 396].
grande arsenal da criação».
No último parágrafo do mesmo escrito, publicado significativamente nos
Quatro anos antes da sua morte, Kelvin pudera ainda ler dois artigos onde, «Comptes rendus de l' Académie des Sciences», Perrin delineia uma imagem ,~lUil
de facto, se mostrava que «o arsenal da criação» contém fontes energéticas grandiosa do universo, onde alternam sucessivamente as fases de expansão e
de uma força prodigiosa. Curie e Laborde [1903] constatavam que um grama de contracção. Esta cosmologia cíclica é, no entanto, acompanhada, sem
de rádio liberta continuamente uma quantidade de calor da ordem das cem contrastes visíveis, da fé num progresso eterno: «Não excluímos sequer o "1
1
pequenas calorias à hora e interrogavam-se sobre a origem de semelhante sonho de que, adormecidos no espaço gélido, os esporos que, segundo
processo que uma «transformação química ordinária» não poderia explicar.. Arrhenius, expulsos pela luz, propagam a vida de planeta em planeta, possam
«Se procurarmos a origem da produção de calor numa transformação interna, durar várias Eras e transportar duma para a outra os germes de Formas
esta transformação deve ser de natureza mais profunda e deve depender duma preciosas, assim como a semente de Outono após o sono invernal se expande
modificação do próprio átomo de rádio. No entanto, semelhante transformação, nos meses de Verão. Com isto triunfaria a tendência das Coisas para um
se existe, dá-se com extrema lentidão ... Se, portanto, a hipótese precedente Pensamento sempre mais elevado, através das eternas oscilações dum universo
fosse exacta, a energia posta em jogo na transformação dos átomos seria que não conheceu Nascimento e não conhecerá Morte» [ibid., p. 397].
extraordinariamente grande» (ed. 1908 pp. 450-51). Num artigo publicado um Os dois artigos de Perrin não parecem ter exercido nenhuma influência na
pouco mais tarde no mesmo ano de 1903, Rutherford e Soddy tentam avaliar, evolução das ideias relativas à idade do universo; os historiadores da
cosmologia do século xx nem sequer os analisam [cf. Merleau-Ponty 1965; 1m
com base em considerações teóricas, a grandeza desta energia atómica e,
portanto, a duração de vida do rádio. Chegam assim a resultados que permitem North 1965]. Assim, o seu interesse não reside nos resultados numéricos que
entrever uma solução do enigma do calor solar: «Não há razão para crer que oferecem e que os cálculos feitos por outros a partir dos dados da astronomia
esta enorme quantidade de energia esteja apenas contida nos elementos e da astrofísica nunca confirmaram, mas no facto de ilustrar, melhor ainda que
do rádio. Parece provável que a energia atómica seja da mesma ordem de as conferências de Kelvin, as interferências entre um parti pris cronosófico e
grandeza, ainda que a ausência de mudança a impeça de manifestar-se. raciocínios reconhecidos na ciência como válidos. Procurando aumentar a
A existência desta energia explica a estabilidade dos elementos químicos" i,da~e do Solou do universo, que equivale para ele ao período sucessivo à
como também a conservação da radioactividade sob a influência das mais ~lhma contracção, Perrin baseia-se certamente em diversos factos então
variadas condições. Tal fenómeno deve ser levado em conta na física do Incontestáveis. Mas interpreta-os como se tentasse assegurar à humanidade as
cosmos. A manutenção da energia solar, por exemplo, já não apresenta condições de um progresso infinito; na conclusão, chega a prometer-lhe
dificuldades substanciais se a energia interna dos elementos que a compõem uma espécie de imortalidade colectiva sob forma de esporos que veiculam
for considerada utilizável, isto é, se se realizarem processos de mudanças através do tempo e do espaço não só a vida mas também o Pensamento (com
subatómicas» [1903, ed. 1964 p.166]. Ligeiramente posterior, um longo artigo maiúscula!) e, além disso, um «Pensamento sempre mais elevado» para o qual
de Rutherford atribui já ao tório uma duração de vida média de 2 x 109 anos Se supõe que tendem as próprias coisas. O homem aparece, pois, como
e ao urânio, de 5 x 108 anos [1905, ed. 1964 p. 226]. Está agora aberto o o resultado necessário e a meta suprema da evolução do universo cujas
TEMPO!fEMPORALIDADE 56 57 TEMPOfTEMPORALIDADE

oscilações, quase irreais considerando o comprimento inimaginável dos esforça-se por mostrar - e nisto consiste a originalidade da sua posição-
intervalos que as separam, não podem destruir as conquistas da inteligência; que esta sucessão não é de modo algum comparável à que percebe}llos, ou
estas últimas somam-se, portanto, na escala cósmica. Aqui se reconhece, melhor, a que julgamos perceber, quando nos viramos para as coisas. E porque
embora transposto, o esquema cronosófico que harmonizava os dois caracteres, a consciência e o mundo material são para ele incomensuráveis que Bergson
cíclico e progressivo, da história, atribuindo os ciclos à natureza e dotando o é obrigado a invalidar a ideia mesma de um tempo que englobe os dois e que
espírito humano, ou simplesmente o espírito, da capacidade de superar todos torne possível a sua sincronização. «Se a duração propriamente dita não é
os obstáculos e de prosseguir indefinidamente a sua ascensão. mensurável, que medem as oscilações do pêndulo? Admitir-se-á, em rigor, que
Nos finais do século XIX, a que temos de voltar mais uma vez, a proble- a duração interna, percebida pela consciência, se confunde com o encaixar dos
mática filosófica do tempo é determinada pela arquitectura temporal que factos da consciência uns nos outros, com o gradual enriquecimento do eu;
Newton e Kant delinearam e que ninguém põe em discussão. De resto, se a mas o tempo que o astrónomo introduz nas suas fórmulas e que os nossos
isolarmos da histórica (vejam-se os citados artigos «Ciclo» e «Periodização») relógios dividem em parcelas iguais, este tempo, objectar-se-á, é outra coisa;
e da problemática, formada mais tarde, da evolução dos seres vivos, esta é uma grandeza mensurável e, por conseguinte, homogénea. Bastará, no
problemática ocupa um lugar marginal do ponto de vista dos interesses entanto, um exame atento para dissipar esta última ilusão» [1889, ed. 1970
filosóficos, uma vez que não suscitou nenhum debate importante. Mas, nos p. 72]. Tal exame consiste em distinguir uma sucessão sem exterioridade,
anos 80, as tréguas são rompidas. É o conceito de tempo «absoluto», já como a do nosso eu, duma exterioridade sem sucessão, própria das coisas
contestado por Berkeley e Hume, e por razões diferentes, por Leibniz, que dispostas no espaço, para constatar que, ao escutar o tiquetaque dum relógio,
se encontra no centro das críticas. Estas últimas são, aliás, muito diferentes nós segmentamos o fluxo da vida consciente decompondo-a em partes
umas das outras: nada une a posição de Mach, de Bergson e de Poincaré. Não externas umas às outras. Estas últimas podem, pois, parecer simultâneas às
olhando à cronologia, trataremos primeiro Bergson, porquanto vai de certo batidas do relógio, as quais se revelam por sua vez unificadas e distintas,
modo mais longe que os outros: aquilo que põe em causa é a própria ideia pois o precedente não desaparece no sucessivo, mas deixa uma recordação
dum tempo quantitativo, ao qual não corresponderia nenhum dado; puro através da qual se introduz uma sucessão que não existiria sem a nossa I:II!
artifício, «o tempo, concebido sob a forma de um meio indefinido e presença. Resumindo, o hábito leva a interiorizar a exterioridade e a exte- Iq
homogéneo, não passa do fantasma do espaço que assedia a consciência riorizar a sucessão, criando assim, sem que disso nos apercebamos, uma I:'
,~ 11

reflexa» [1889, trad.it. p. 61]. Com efeito, não há contraste entre este mistura artificial, a que nada corresponde nem na consciência nem nas coisas: 'lI
tempo e o espaço, também ele indefinido e homogéneo. O que se opõe tempo homogéneo que se supõe compreender uma e outras. A crença na 1

'III1:
verdadeiramente ao espaço é a duração: «Forma que assume a sucessão dos
1'

realidade desta ficção está na base de numerosos problemas insolúveis que ,I,
nossos estados de consciência quando o eu se deixa viver, quando se abstém somos obrigados a abordar no momento em que tentamos pensar o tempo.
de estabelecer uma separação entre o estado presente e os estados anteriores ... Segundo Bergson [1889], «nesta confusão da verdadeira duração com o seu ,
11.i
como acontece quando recordamos, por assim dizer fundidas umas nas outras, símbolo residem ... ao mesmo tempo a força e a fraqueza do kantismo. Kant
:;1
as notas duma melodia» [ibid., pp. 61-62]. Vê-se logo que, enquanto o espaço imagina as coisas em si dum lado e, do outro, um Tempo e um Espaço
é algo de exterior relativamente à consciência, a duração identifica-se com homogéneos, através dos quais as coisas em si se refractam: assim nasceram, ;1
esta última; para a consciência, ser é durar, conservando a diversidade interna por um lado, o eu fenómeno, aquele que a consciência percebe, e, por outro,
subordinada à unidade de conjunto no que se refere a um ser vivo. Organizada os objectos externos. O tempo e o espaço não estariam, pois, em nós como
com base neste princípio, a duração é radicalmente contrária a toda a não estariam fora de nós; mas a própria distinção do fora e do dentro seria
espacialidade, a que estão ligados o isolamento, a justaposição, as relações obra do tempo e do espaço. Esta doutrina tem a vantagem de fornecer ao
extrínsecas, a quantidade. Com efeito, «a pura duração poderia muito bem ser nosso pensamento empírico um fundamento sólido e de assegurar-nos
uma sucessão de mudanças qualitativas que se fundem, que se compenetram, que os fenómenos, enquanto fenómenos, são adequadamente cognoscíveis.
sem contornos precisos, sem nenhuma tendência para se exteriorizarem umas Além disso, poderíamos erigir estes fenómenos em realidade absoluta
em relação às outras, sem afinidade alguma com o número: nisto consistiria e ?i~pensar-nos de recorrer a coisas incompreensíveis em si, se a razão
a heterogeneidade pura» [ibid., p. 63]. pratIca, reveladora do dever, não interviesse à maneira da reminiscência
Bergson não era por certo o primeiro a opor o tempo e o espaço, nem p(latónica para nos advertir de que a coisa em si existe, invisível e presente»
tão-pouco a assimilar um à qualidade e o outro à quantidade. Mas introduzindo trad. it. pp. 92-93).
o conceito de duração definida, Bergson foi muito mais longe que aqueles que, B Criticando a ideia de um tempo homogéneo e, portanto, mensurável,
antes dele, tinham procurado reduzir o tempo ao simples tempo psicológico. Aergs?n parece regredir muitos séculos, e aproximar-se de Plotino e
Com efeito, não se limita a estabelecer que existe unicamente um tempo . gostlllho. De certa forma, é assim mesmo: a filosofia bergsoniana pode ser
«relativo», idêntico à sucessão dos nossos estados de consciência, mas Interpretada como um protesto contra o mundo dominado pelo tempo dos
TEMPOrrEMPORALIDADE 58 TEMPO!fEMPORALIDADE
59

relógios, que se impõe definitivamente nas cidades durante os últimos decénios progride de modo análogo ao duma consciência. Teria sido então muito fácil
do século XIX. E, por conseguinte, como um protesto contra o tempo mecânico refutar toda a validade à ciência moderna, visto que não se interessa
e artificial, que descura totalmente, no seu percurso uniforme, a variabilidade minimamente por este Todo, mas estuda unicamente sistemas isolados. Ora
dos estados psíquicos dos indivíduos aos quais é imposto de fora com uma Bergson afirma que «a operação pela qual a ciência isola e fecha um sistema
força que os obriga a com ele se conformarem; como um protesto contra a não é uma operação inteiramente artificial», e que «ela tem um "fundamento
técnica em nome do orgânico e contra a ciência em nome da metafísica. Mas, objectivo" na tendência da matéria para constituir sistemas isoláveis que
ao contrário de muitos outros que exprimem semelhantes protestos naquela podem ser tratados geometricamente» [ibid., p. 40]. Tais sistemas, cujas
época, Bergson não considera o tempo homogéneo, a técnica ou a ciência, ligações com o resto do universo foram reduzidas ao mínimo, estão fora da
como puros e simples erros que não levantam nenhum problema e que bastaria duração, propriedade do Todo, para serem colocados no espaço, e portanto
eliminar, apagando de uma só vez três séculos de história europeia, para que dotados daquele tempo homogéneo que já conhecemos como uma duração
se restabeleça a ordem. Deste ponto de vista, a regressão que opera é espacializada. E mantêm-se válidos nos seus limites.
meramente aparente porque mantém sempre um contacto com o presente: Em contrapartida, é tratando o universo como se fosse um sistema isolado
testemunha-o o facto de que foi um dos poucos metafísicos do século XIX a que se comete um erro. Com efeito, reduz-se a duração que lhe é específica
aperceber-se da existência dos relógios. A relação entre a posição de Bergson a um tempo mensurável, substitui-se a «continuidade de interpenetração no
e a que ele critica é claramente visível quando, precisando e atenuando as suas tempo» pela «simples justaposição instantânea no espaço» e julga-se poder
afirmações anteriores, procura mostrar que «a sucessão é um facto «ler num estado presente do universo o futuro das formas vivas, desenrolando
incontestável mesmo no mundo material», mas que esta sucessão não constitui duma só vez a sua história futura», o que equivale a «um verdadeiro absurdo»
um tempo homogéneo: «Se eu quiser preparar um copo de água açucarada, [1907, ed. 1970 p. 783]. Sublinhe-se a diferença de princípio entre as
sou sempre obrigado a esperar que o açúcar se dissolva. Este pequeno facto cronosofias do progresso e da regressão e a cronosofia bergsoniana: as '1
é rico em ensinamentos, já que o tempo da espera não é mais o tempo primeiras consideram o futuro como previsível a partir do conhecimento do
matemático que poderia ser atribuído ao curso de toda a história do mundo passado e do presente, ao passo que a segunda nega terminantemente esta ~I
material, ainda que esta se desenrolasse duma só vez no espaço: ele coincide possibilidade. Com efeito, para Bergson «o tempo é invenção ou não é nada». 1
C'i
com a minha impaciência, isto é, com uma parte da minha duração, que não Mas justamente enquanto o tempo (isto é, o tempo do universo) é
pode ser alongada ou encurtada à vontade. Não é mais algo de pensado, mas essencialmente criativo, a ciência - e sobretudo a física - está condenada a r'\ l,
' I

de vivido, não é mais urna relação, mas um absoluto. Que significa isto senão ser parcial: «Ela separa os eventos do todo que apresenta a cada instante uma ~ I:
que o copo de água, o açúcar e o processo de dissolução do açúcar na água nova forma e que lhes transmite algo da sua novidade. Ela considera-os J,
,I
não passam de abstracções e que o Todo, em que foram recortados pelos meus abstractamente, tal corno poderiam existir fora do todo vivo, isto é, num tempo
sentidos e o meu intelecto, se desenvolve, talvez, da mesma maneira que uma transformado em espaço. Só consegue captar os eventos ou os sistemas de
consciência?» [1907, trad. it. p. 39]. eventos que se podem isolar sem os fazer sofrer uma deformação muito
Seria de responder que o açúcar se dissolve na água mesmo quando profunda, pois só estes últimos se prestam à aplicação do seu método. A nossa
ninguém lhe presta atenção e que, por outro lado, uma espera é urna espera física nasceu no dia em que se conseguiram isolar sistemas deste género»
qualquer que seja o objecto a que se refere: mas isto equivale a afirmar que [ibid., p. 784]. Como se vê, na fase madura do seu pensamento, Bergson não
estamos em presença de dois processos independentes um do outro e cujas considera uma eventual eliminação do tempo homogéneo, ao qual antes
ligações são unicamente acidentais. Bergson recusa uma posição deste género, c?ncede uma legitimidade parcial: este tempo aplica-se unicamente aos
que é a do bom senso e da percepção determinada, a seu ver, por imperativos SIstemasisolados, considerados enquanto tais, ao passo que o Universo tomado
de utilidade. E identifica o tempo da dissolução do açúcar com o da espera, co~o um Todo se parece na sua duração com o nosso Eu. Há aqui urna
transformando-o num tempo qualitativo: de outra forma, a consciência que eV~denterefutação do tempo «absoluto» newtoniano, que era ao mesmo tempo
dura ficaria nitidamente separada do mundo material. Esta identificação é ulllversal e mensurável; para Bergson, estes dois atributos são incompatíveis.
operada por Bergson adoptando, por assim dizer, a própria perspectiva do Kant, que, inspirando-se em Newton, atribuíra os dois ao tempo entendido
açúcar, como às vezes adopta a de um ponto material em movimento, ou como forma a priori da sensibilidade, é criticado pelo mesmo motivo. Por
melhor, atribuindo ao açúcar a sua espera corno se fosse animado e consciente. Outras palavras, se o tempo newtoniano-kantiano era tanto um objecto
Bergson chega assim a uma absorção do físico por parte do psíquico, tanto transcendental como um objecto observável, tanto uma entidade metafísica
que o primeiro aparece simplesmente como um caso particular do segundo, co~o uma entidade física, Bergson propõe que lhe seja dado um estatuto
como uma parte cujo isolamento no Todo é apenas relativa aos sentidos e ao Ulll~O~O, dividindo-o em dois: de um lado, há um tempo universal e metafísico,
intelecto do homem. Uma vez apagada a fronteira entre o Eu que espera e o a~sImIladoao fluxo da heterogeneidade pura, à invenção, à criação; do outro,
açúcar que se dissolve, é possível considerar o universo como um todo que ha um tempo parcial, ou melhor, uma multiplicidade de tempos parciais, cada
TEMPO(fEMPORALIDADE 60 61 TEMPOtrEMPORALIDADE

um dos quais corresponde a um sistema isolado, e que seriam os tempos físicos não é um fluxo, mas uma relação estabelecida entre os fenómenos; não é
e mensuráveis. É assim que, no par conflitual «ciência/metafísica», se justifica qualitativo, mas mensurável; em vez de ser uma «invenção», está ligado à
o primado desta última. tendência geral para a degradação, o nivelamento das diferenças, o olvido.
«Um movimento só pode ser uniforme em relação a outro. O problema A posição filosófica do Poincaré opõe-se tanto à de Bergson como à de
de saber se um movimento é uniforme em si é destituído de significado. De Mach: ele é fiel a Kant, se bem que num sentido muito restrito. Estando
igual modo, não se pode falar de 'tempo absoluto' (independente de toda a embora convencido de que o tempo é «uma forma pré-existente no nosso
mudança). Com efeito, este tempo absoluto não pode ser medido por nenhum espírito» [1904, trad. it. p. 50], identifica-o, contrariamente a Kant, com o
movimento, e por isso não tem valor nem prático nem científico. Ninguém tempo psicológico: o tempo é interno a uma consciência individual e
pode pretender saber alguma coisa a seu respeito. É, pois, um inútil conceito qualitativa. É a partir deste tempo, o único que nos é dado, que temos de «criar
'metafísico'» [Mach 1833, trad. it. pp. 241-242]. Como se pode constatar, o tempo científico e físico» [ibid., p. 51). Surgem assim dois problemas:
a posição de Mach é directamente oposta à de Bergson. A seu ver, e a este é possível transformar um tempo qualitativo num tempo quantitativo? É, além
propósito exprime uma opinião muito espalhada entre os físicos, só é real disso, possível «reduzir a uma mesma medida factos que têm lugar em mundos
aquilo que é mensurável; todo o resto não tem direito de cidadania numa diferentes?» [ibid.). Na origem da primeira questão está a constatação que
ciência que é preciso libertar das perigosas intrusões da metafísica. O tempo explica imediatamente por que motivo o tempo, enquanto forma a priori, é,
«absoluto» deve, pois, ser refutado. Para qualquer objecto, ser no tempo segundo Poincaré, necessariamente qualitativo: «Não temos a intuição directa
significa simplesmente depender de certo modo doutra coisa: «As oscilações da igualdade de dois tempos» [ibid., pp. 51-52]. Por conseguinte, o tempo,
dum pêndulo ocorrem no tempo, porquanto os seus desvios dependem da que, como uma forma, pré-existe no nosso espírito e que, em conformidade
posição da Terra. Dado, porém, que não é necessário tomar em conta esta com o que Kant ensina, deveria ser equivalente ao tempo «absoluto» de
dependência, e que podemos referir o pêndulo a qualquer outra coisa (cujos Newton, revela-se em Poincaré privado de uma métrica que lhe é constitutiva
estados dependem naturalmente da posição da Terra), cria-se a impressão enquanto é inelutavelmente dada junto com ele. Não existe, em suma, nenhum
errada de que todas estas coisas não são essenciais» [ibid., p. 241]. Quando intervalo temporal que se possa supor invariante através das suas repetições
se mede o tempo, mede-se portanto a relação entre dois fenómenos, aquele sucessivas e que se poderia considerar como um standard da congruência entre
que se estuda e aquele que foi escolhido como sistema de referência; neste os intervalos temporais. Será então possível definir um baseando-nos
sentido, o tempo é necessariamente relativo. O que significa que não tem uma unicamente na experiência? Poincaré trata amplamente este problema. Observa '""
realidade diferente da da «conexão das coisas» [ibid., p. 242], ou, mais que os físicos e os astrónomos começaram por admitir, por definição,
precisamente, da dependência recíproca entre os movimentos, entre as a igualdade de duração entre as oscilações do pêndulo utilizado para medir o j'
variações: é uma mera abstracção que permite pensar esta concatenação, tempo, e em seguida, por uma nova definição, admitiram que «duas rotações
comparar estes movimentos uns com os outros. Resta ver de que modo se completas da Terra em torno do seu eixo têm a mesma duração» [ibid., p. 53]:
distingue a dependência entre as coisas, que está na base da noção de tempo, esta definição, porém, foi contestada supondo que a rotação da Terra sofre um
da que funda a noção de espaço. Mach responde que «chegamos à repre- atraso devido às marés, hipótese esta que veio a ser confirmada. Se, portanto,
sentação do tempo pela relação existente entre o conteúdo da nossa memória a experiência não fornece um standard de congruência, não é por causa dos
e o conteúdo da nossa percepção actual. Quando dizemos que o tempo flui limites acidentais dos instrumentos, mas por razões de princípio. Com efeito,
numa direcção determinada, significa simplesmente que os processos físicos o postulado implícito a toda medida do tempo por meio dum pêndulo - «as
(e por conseguinte também os fisiológicos) se passam numa direcção mesmas causas levam o mesmo tempo a produzir os mesmos efeitos» [ibid.,
determinada» [ibid.]. Assim, por exemplo, se abandonadas a si mesmas, as pp. 53-54] - funda-se unicamente no princípio da razão suficiente, ou seja,
diferenças de nível diminuem em vez de aumentar; se se medir em dois numa garantia muito fraca (segundo Poincaré), tratando-se duma definição tão
momentos sucessivos a diferença de temperatura entre dois corpos postos em fundamental como a da unidade constante de tempo. Tudo somado, analisando
contacto, o número conservado na memória será maior que o indicado pelo os argumentos fornecidos pelos astrónomos ao constatar o atraso da rotação
termómetro. O tempo psicológico encontra-se, pois, reduzido ao tempo físico, terrestre, chega-se à conclusão de que a sua escolha da definição da unidade
enquanto a diferença entre memória e percepção depende em última análise constante de tempo, isto é, do standard de congruência para os intervalos
do facto de que o universo é regido pelo segundo princípio da termodinâmica temporais, é conforme com o seguinte princípio: «O tempo deve ser definido
a que Mach se refere implicitamente. A sua cautela deriva da vontade de não de tal modo que as equações da mecânica sejam o mais simples possível»
antecipar, como faria um filósofo especulativo, os resultados das futuras [ibid., p. 56).
investigações. O que se percebe é, contudo, suficiente para constatar que, com O standarâ de congruência não é fornecido nem pela intuição nem pela
Mach, estamos nos antípodas de Bergson: o tempo aqui não é a realidade experiência, e é decidido convencionalmente. Poincaré demonstra as mesmas
última, mas uma abstracção feita a partir do movimento, o único que é real; teses a propósito da simultaneidade; tão-pouco neste caso se tem uma intuição
TEMPO/fEMPORALIDADE 62 63 TEMPOrrEMPORALIDADE

directa, cuja ausência é remediada por um certo número de regras escolhidas, registasse um atraso análogo nos nossos relógios, nem sequer o notaríamos,
não enquanto verdadeiras, mas enquanto «mais cômodas». Resumindo, fosse qual fosse a lei deste atraso, contanto que fosse a mesma para todos os
«a simultaneidade de dois eventos, ou a ordem da sua sucessão, a igualdade fenómenos e todos os relógios. As propriedades do tempo são, pois,
de duas durações, devem ser definidas de maneira que o enunciado das leis unicamente as propriedades dos relógios, assim como as propriedades do
naturais seja o mais simples possível» [ibid., p. 67]. Esta tese de Poincaré espaço são as dos instrumentos de medida» [1912, ed. 1963 p. 101].
suscitou uma controvérsia que ainda continua [cf. em particular Grünbaum As propriedades do tempo psicológico são as da consciência, ao passo que
1962; 1963; North 1965, pp. 278-84]. Houve quem interpretasse o alcance das as do tempo físico são as dos relógios. Implícita há muito no pensamento de
suas propostas como uma banalização; é a opinião de Grünbaum, que neste Poincaré, esta distinção exprime-se, porém, com clareza na passagem citada,
ponto parece muito convincente, se lermos com um mínimo de atenção os sete anos posterior ao artigo de Einstein Sobre a Electrodinâmica dos Corpos
escritos de Poincaré: «A tese do carácter convencional da congruência é, em em Movimento [1905). Na primeira parte deste artigo, sobre a cinemática, há
primeira instância, uma asserção relativa a propriedades estruturais do espaço uma tentativa para dar um significado físico preciso à noção de tempo. «Se
e do tempo físicos; só o corolário desta tese se refere à linguagem da descrição quisermos descrever o movimento dum ponto material, damos os valores das
geocronométrica do mundo físico» [Grünbaum 1963, ed. 1973 p. 26]. Por coordenadas em função do tempo. Devemos ter agora bem presente que tal
outras palavras, Poincaré afirma que o tempo (como também o espaço, que descrição matemática só tem sentido físico quando se começou por esclarecer
não consideramos aqui) é metricamente amorfo. E acrescenta que a escolha o que se entende aqui por «tempo». Devemos considerar que todos os nossos
duma métrica, isto é, dum standard de congruência, é feita em função de uma juízos, nos quais o tempo tem um papel, são sempre juízos acerca de
exigência de simplicidade. Se bem que, contrariamente à descrição de acontecimentos contemporâneos. Se, por exemplo, digo: «Aquele comboio
Poincaré, na história da ciência contemporânea se acabasse por simplificar a chega aqui às 7 horas», isso equivale a: «A passagem do ponteiro mais
definição da congruência à custa duma complicação do «enunciado das leis pequeno do meu relógio e a chegada do comboio são acontecimento I i~li'

naturais», existe pelo menos um exemplo que é conforme com esta descrição, contemporâneos» (trad. it. p. 480). Daqui a importância de uma definição da ,,
e que vê o standard de congruência sacrificado à simplicidade da teoria [ibid., simultaneidade. Einstein imagina dois relógios A e B, distantes um do outro,
pp. 131-32]. Resta perguntar no que consiste a simplicidade das leis da e observa' «que não é possível, sem ulteriores convenções, comparar
natureza; se bem que já não sejam sustentáveis as opiniões de Poincaré a este temporalmente um acontecimento em A com um acontecimento em B» [ibid.,
respeito, o problema (que não abordamos aqui) merece ser pelo menos p. 481). Para obter «um tempo comum a A e B», Einstein estabelece «por
assinalado. definição que o "tempo" que a luz leva para ir de A a B é igual ao "tempo"
É talvez inútil observar que o pensamento de Poincaré nada concede ao que ela leva para ir de B a A» [ibid.). Sublinhe-se [reenviando para uma análise
tempo «absoluto», cuja única justificação é psicológica. Incapazes de chegar mais pormenorizada a Grünbaum 1963, ed. 1973 pp. 342 segs.] que é a este
a uma representação do mundo externo, «queremos ao menos que se possa respeito que Einstein refuta o tempo «absoluto» newtoniano, servindo-se duma
conceber uma inteligência finita para a qual esta representação seja possível, convenção no sentido de Poincaré, a qual se funda, embora ele não o diga
uma espécie de grande consciência que tudo visse, e que tudo classificasse explicitamente, no princípio da razão suficiente. Uma vez admitida esta
no seu tempo, como nós classificamos no nosso tempo o pouco que vemos» convenção, os dois relógios são, por definição, síncronos se tB - tA = tA.- tB
[Poincaré 1904, trad. it. pp. 58-59]. Se bem que o nome de Newton não seja onde tA é o instante em que é emitido um raio luminoso de A para B; tB, o
pronunciado, é a sua ideia do tempo, tão semelhante à duração divina que instante da sua reflexão em B e r; o instante do seu regresso a A; a relação
quase mal se consegue distinguir, que é refutada como uma «hipótese muito «serem síncronos» é simética e transitiva. Einstein chega assim a uma defini-
grosseira e incompleta» [ibid., p. 59]. Se, para Poincaré, o problema qualitativo ção do «tempo» e da «contemporaneidade» (as aspas são suas): «O "tempo"
da simultaneidade se põe como inseparável do problema quantitativo da de um acontecimento é a indicação contemporânea ao acontecimento de um
medida do tempo [cf. ibid., pp. 65-66], é porque já não é possível recorrer à relógio em repouso, que se encontra no local do acontecimento, o qual é
inteligência universal e, portanto, à definição metafísica da simultaneidade. síncrono com um determinado relógio em repouso e precisamente para todas
A crítica do tempo newtoniano em Poincaré vai mais longe que a de Mach, as determinações de tempo, com o mesmo relógio» [1905, trad. it. p. 481).
pois torna explícitos os seus pressupostos, privados de fundamento do ponto Mas isto apenas define o «tempo do sistema em repouso»; trata-se então de
de vista da física: a crença num dado standard de congruência e na estabelecer se os dois relógios síncronos em repouso continuam a sê-lo quando
possibilidade de definir a simultaneidade referindo-se a um absoluto. Disto observados de um sistema em movimento. Einstein imagina uma haste que
resulta logicamente uma fiscalização completa do tempo da ciência. Opondo tem nas suas duas extremidades dois relógios A e B, síncronos com os relógios
este último à duração bergsoniana, Poincaré constata: «O que não é men- do sistema em repouso; perto de cada relógio encontra-se um observador.
surável não pode ser objecto da ciência. Ora, o tempo mensurável é também SUpondo que a haste se encontra em movimento e baseando-se no princípio
essencialmente relativo. Se todos os fenómenos se atrasassem, e se se de relatividade e no da constância da velocidade da luz, Einstein mostra que
TEMPOrrEMPORALIDADE 64 TEMPOrrEMPORALIDADE
65

«observadores em movimento com a haste em movimento verificariam ... os alterada. Em particular, o tempo dos filósofos, único e universal, com-
dois relógios dessincronizados, ao passo que observadores no sistema em preendendo todas as regiões do ser, de que a duração bergsoniana constitui a
repouso declarariam síncronos estes relógios. Vemos, pois, que não podemos última metamorfose, aparece agora como uma ficção: «Não existe um tempo
atribuir nenhum significado absoluto ao conceito de contemporaneidade, mas dos filósofos~ existe apenas um tempo psicológico diferente do tempo dos
que, pelo contrário, dois acontecimentos que, vistos de um sistema de coorde- físicos» [Einstein in Einstein e outros 1922, ed. 1980 p. 25]. De um lado,
nadas, são contemporâneos, vistos de um sistema em movimento relativamente as consciências, do outro, os relógios. É lícito supor que esta inversão
ao primeiro, já não são acontecimentos contemporâneos» [ibid., p. 483]. conceptual foi permitida pelo acabamento, nos finais do século XIX, de uma
O tempo da física pré-einsteiniana era, como vimos, um objecto nova arquitectura temporal, que para nós ainda subsiste essencialmente, e,
mensurável e transcendente. E era-o não só para Newton mas também para sobretudo, pela penetração do tempo quantitativo, do tempo dos relógios, na
aqueles que tinham sucessivamente refutado, por motivos muito diversos, vida quotidiana, pelo seu prolongamento, com a descoberta da radioactividade,
o tempo «absoluto». Com efeito, a eliminação deste último não bastava para num passado muito remoto, e pela sua orientação para o futuro, encarregado
fazer do tempo da física um objecto mensurável e nada mais, pelo menos de dar-lhe um sentido.
enquanto a simultaneidade era concebida, por exemplo, como a compenetração
de dois estados de consciência ou de qualquer outro modo onde, porém, se 5. Ordenar os acontecimentos segundo a sua sucessão temporal,
mantinha a referência a conceitos psicológicos ou filosóficos. Assim é para estabelecer a igualdade de duas durações síncronas, acrescentar uma duração
Bergson no seu debate com Einstein: «É evidente que a simultaneidade implica a outra e a sua soma a uma terceira, dividir a duração em unidades de tempo
duas coisas: 1.0 uma percepção instantânea; 2.° a possibilidade, para a nossa susceptíveis de serem repetidas e aplicadas a qualquer intervalo temporal: tudo
atenção, de repartir-se sem se dividir. Abro os olhos por um momento: vejo isto constitui o objecto de uma aprendizagem que ocupa todo o período da
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dois relâmpagos instantâneos que provêm de dois pontos. Chamo-lhes infância [Piaget 1946; Fraisse 1967, pp. 267 segs.]. Conjunto coerente de
simultâneos porquanto são ao mesmo tempo um e dois: um, porque o meu acto operações que consistem em coordenar os movimentos dotados de velocidade,
de atenção é indivisível, dois porque, no entanto, a minha atenção se reparte tanto dos objectos externos como dos estados internos ao sujeito, o tempo não :11
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entre elas e se desdobra sem se dividir. .. É esta a simultaneidade no sentido é, pois, inato; ainda que seja uma forma ou um esquema no sentido de Kant
corrente do termo. Ela é-nos dada intuitivamente. Além disso, é absoluta, ou uma estrutura [cf. Piaget 1946, ed. 1973 pp. 35, 53, 293], nem por isso
porquanto não depende de nenhuma convenção matemática, de nenhuma precede todaa experiência. Por outro lado, o tempo não é abstracto como um
operação física como, por exemplo, um acerto de relógios. Nunca é cons- conceito. O tempo elabora-se gradualmente, a partir da organização temporal
tatável, há que reconhecer, senão entre acontecimentos próximos. Mas o senso senso-motora, primeiro paralelamente à aquisição da linguagem, e depois
comum não hesita em atribuí-Ia também a acontecimentos muito afastados um graças ao domínio das noções temporais [cf. ibid., pp. 270-72]. Durante o
do outro», e nisto, segundo Bergson, não se engana [in Einstein e outros 1922, primeiro estádio do pensamento temporal, o tempo é local: varia segundo os
ed. 1980 p. 22]. movimentos e confunde-se com «a ordem espacial própria de cada deslocação
Para conferir definitivamente ao tempo físico o estatuto de objecto no sentido positivo do percurso» é, pois, um tempo heterogéneo - enquanto
mensurável, era, pois, necessário definir a simultaneidade referindo-se a coisas local não poderia ser outra coisa -, egocêntrico e irreversível. Egocentrismo
e a relações puramente físicas, a relógios, distâncias, sinais que se propagam e irreversibilidade são «os dois aspectos complementares da mesma
com uma determinada velocidade, ao movimento e ao repouso. É exactamente incoordenação, que explica por si o carácter do tempo primitivo, ou seja,
este o sentido da primeira parte do artigo de Einstein de 1905. Começa por a indiferenciação da ordem temporal e da ordem espacial» ambas submetidas
introduzir os relógios, depois distingue entre a situação em que dois relógios «às limitações da perspectiva imediata» [ibid., pp. 273 e 275]. Após o segundo
estão próximos Um do outro e a situação em que estão afastados, o que obriga estádio no qual começa a descentralização [ibid., pp. 273 e 275], passa-se ao
a utilizar um sinal (um raio luminoso) e a admitir por convenção a congruência terceiro, no qual o tempo, mantendo-se embora qualitativo, torna-se já
de dois intervalos temporais que correspondem respectivamente ao percurso operatório: homogéneo, ou seja, comum a todos os fenómenos, é contínuo.
deste sinal à ida e à volta, e mostra finalmente que a simultaneidade de dois Com efeito, a aquisição da reversibilidade permite ao sujeito subir o curso da
acontecimentos é relativa ao sistema de referência do observador. Deste modo acção, separando dela o tempo e tornando-a homogénea; leva assim a substituir
Einstein faz depender a própria existência das relações temporais entre o ponto de vista egocêntrico pela reciprocidade dos pontos de vista; «donde
dois acontecimentos distantes da sua relação física. Dá assim novo vigor, no o desenvolvimento da sincronização e da coordenação das durações próprias
âmbito da física, à teoria relacional do tempo [cf. Grünbaum 1963, ed. 1973 aos movimentos com velocidades diversas» [ibid., pp. 291-92]. Uma vez
pp. 345-46] e mesmo à teoria causal que reduz a ordem de sucessão adquirida a reversibilidade, torna-se possível a constituição unitária da ideia
à relação de causalidade [sobre esta teoria e a sua história, cf. Mehlberg 1935- de velocidade uniforme e da ideia de uniformidade do fluxo da duração. Ainda
-37, ed. 1980 pp. 39 segs.]. Toda a problemática do tempo é profundamente que o isocronismo dos movimentos sucessivos de um mesmo objecto seja já
TEMPOfTEMPORALIDADE TEMPOfTEMPORALIDADE
66 67

admitido no segundo estádio, é a reversibilidade que, permitindo sincronizar organização temporal senso-motora, à qual se sobrepõe por sua vez o
os diversos movimentos, permite a transformação das unidades do espaço pensamento temporal que, em certos casos, pode tornar-se objecto de uma
percorrido a uma velocidade constante em unidades temporais [ibid., pp. 203 reflexão discursiva sobre o tempo. Mesmo o indivíduo humano revela assim
e 293]: assim se completa a construção de um tempo não mais qualitativo, uma aniuitectura temporal cujos estados correspondem grosso modo aos
mas quantitativo ou métrico. Tudo isto é válido tanto para o tempo que fornece grandes níveis da evolução biológica.
o quadro aos movimentos dos objectos externos como ao dos estados do Mas esta correspondência parece igualmente válida para a história, como
sujeito. «Pode, pois, afirmar-se a generalidade das operações que caracterizam demonstra uma análise mais fina. Com efeito, na nossa sociedade, quase todos
o tempo em todas as suas formas e a afinidade fundamental entre o tempo os indivíduos revivem à sua maneira o conflito histórico entre tempo
psicológico e o tempo físico: ambos são coordenações de movimentos com quantitativo e tempo qualitativo. O primeiro consiste essencialmente no tempo
velocidades diversas, quer se trate de percursos no espaço externo quer de solar com a sua alternância dos dias e das noites, e com o regresso das
acções na parte interna... Isto é aliás evidente enquanto eles têm a mesma estações: o tempo solar imprime os seus ritmos ao funcionamento biológico
origem, derivando um e outro do tempo prático ou senso-motor, que se baseia do organismo, a ponto de se tornar para este último o seu tempo próprio. Ele
tanto nas relações entre os objectos como na acção própria. À medida que é também o tempo litúrgico com a oposição entre os dias de trabalho e os
se dá a diferenciação entre universo externo e mundo interno, eles diferen- domingos que se configura na semana, a qual está tão profundamente
ciam-se de novo, mas referindo-se um ao outro numa interacção contínua e enraizada que os regimes que tentaram substituí-Ia por sistemas decadários ou
necessária» [ibid., p. 296]. doutro género viram-se obrigados a restaurar a semana tradicional. Pelo
Estes resultados da psicologia genética revestem-se de grande interesse contrário, o tempo qualitativo é claramente o tempo dos relógios, que, devido
para a presente abordagem, em particular pela importância concedida à à sua uniformidade, não conhece por definição nem os dias nem as noites,
aquisição da reversibilidade, de que voltaremos a falar, e pela evidenciação nem as estações nem as festividades. Omnipresente, o conflito entre os dois 'I .llE; j
do papel essencial da velocidade na construção do tempo como esquema ou
estrutura mental [sobre este último ponto, cf. também Papert e Voyat 1967].
tempos desenrola-se com uma intensidade muito variável: os professores
vivem-no de maneira diferente dos vinhateiros, e os operários pagos à hora
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Com efeito, a arquitectura temporal da civilização industrial contemporânea, de maneira diferente daqueles cujo salário é calculado sobre o rendimento do '11
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como aliás qualquer outra arquitectura temporal, articula ou coordena trabalho [cf. Grossin 1974, pp. 87 segs.]; a este respeito, as mulheres são " I
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movimentos que diferem qualitativamente e também pela sua velocidade; os diferentes dos homens, como também os habitantes das grandes metrópoles, :; J
dois aspectos são em todo o caso difíceis de isolar um do outro. Na primeira das populações dos campos. É naqueles que trabalham com horários
parte deste artigo insistimos principalmente nas diferenças qualitativas desfasados, durante a noite, aos domingos ou nos dias festivos, e que : IUII
, I

entre os componentes desta arquitectura e assinalámos alguns problemas constituem uma fracção consistente da população assalariada [cf. Volkoff e
criados pela sua coexistência. Podemos abordá-los agora numa perspectiva Molinié 1980], e também naqueles que trabalham sob fortes imposições de
diferente, recordando em primeiro lugar um facto fundamental que ainda não tempo [cf. Molinié e Volkoff 1981], que mais claramente se manifestam os
sublinhámos suficientemente: como todos os organismos vivos, também o efeitos nocivos da discordâncía entre o tempo qualitativo interiorizado pelo
homem apresenta uma organização temporal: é um relógio biológico organismo e o tempo quantitativo imposto pelos relógios e as máquinas:
[Pittendrigh 1961; Reinberg 1974; 1976; Quieroz 1978; Winfree 1979]. doenças, fadiga, perturbações de vária ordem actualmente estudadas pelos
Sabe-se actualmente que as variações de alguns parâmetros, como, por exem- psicólogos e os cronobiólogos [cf. Blatt e Quinlan 1970; Reinberg 1979]. Por
plo, a temperatura, a secreção de certas hormonas, o nível de certos elementos ?utro lado, o contraste entre os dois tempos é sentido pelos próprios
no sangue, no plasma ou nas urinas, etc. [cf. Reinberg 1974], manifestam uma lllteressados; é o que nos revela um recente inquérito, em França, segundo o
estrutura temporal circadiana. As recentes investigações sobre o funciona- qual as férias, tempo livre por excelência, são um período durante o qual as
mento hormonal da mulher mostram que este depende inteiramente de um pessoas se emancipam precisamente do tempo quantitativo: apenas 4 por cento
ritmo horário [Escoffier-Lambiotte 1980]. Sabe-se ainda que diversas funções ~os assalariados programa as férias de modo a sujeitar-se a horários, enquanto
fisiológicas estão sincronizadas com o ciclo «luz/escuridão» quase certamente 5
d por cento conserva apenas alguns hábitos, em particular as horas regulares
por obra da hormona melatonina, cuja síntese por parte da glândula pineal é as refeições' , 40 por cento evrta. to di'a a regu andade e 20 por cento VIve .
inibida pela luz [Wurtman 1975; Binkley 1979]. Resumindo, as descobertas totalmente se h ,. [
m oranos cf. Doyelle 1980, p. 11]. O único tempo verdadei-
ramente 1', . .
da cronobiologia mostram que, carácter constitutivo dos Seres vivos já ao nível ivre e o tempo qualitativo,
da célula, a coordenação entre interno e externo, a adaptação das oscilações Ai ~ conflito, entr~ os dois tipos de tempo não é, pois, um facto do passado.
endógenas às variações periódicas do ambiente, não precisa da consciência e n a que, ha mais de um século, tenha sido o segundo a alcançar a vitória
que o homem não é uma excepção a esta regra. A organização temporal das encarnando se '" - d . , . ,
- em insutuíções uradouras, a resistencia que lhe e oposta
reproduz
próprias funções vitais parece ser, pois, o fundamento a que se sobrepõe a -se constantemente tanto nos locais de trabalho como, em geral, na
TEMPOlfEMPORALIDADE 69 TEMPOtrEMPORALIDADE
68

vida quotidiana [cf. Grossin 1974, pp. 137 segs., e sobretudo 165 segs.], onde a construção do tempo quantitativo é comparável, não à aprendizagem, por
quer que os indivíduos sejam obrigados a adaptar às suas exigências a parte de uma criança, da língua que ouve falar desde que nasceu, mas à
organização temporal das funções fisiológicas e das actividades senso- aprendizagem desta mesma língua por parte dum adulto estrangeiro.
-motoras, a subordinar os seus ritmos espontâneos, personalizados e variáveis, A partir do século XIV tem início o longo processo em que se adquire
às velocidades uniformes das máquinas, iguais para todos e em qualquer o domínio do tempo quantitativo descido do céu à terra: o domínio técnico
momento. A solução deste conflito, como muitas vezes em casos semelhantes, e intelectual da velocidade uniforme e, o que é talvez ainda mais importante,
é a alternância ao longo do ano entre o tempo quantitativo, programado, da reversibilidade. Com efeito, «o relógio tem uma qualidade que é teorica-
essencialmente urbano e industrial e dominado pelo trabalho, e o tempo mente mais importante que a sua velocidade constante: trata-se da possi-
qualitativo, entregue a si próprio, ligado à natureza ou àquilo que a substitui bilidade de repercutir esta última ao contrário: isto é, de fazer que ela se
e afasta das preocupações práticas. Donde a dupla morfologia das nossas encontre no momento tI exactamente no mesmo estado físico em que se
sociedades, evocada na primeira parte deste artigo e que, na forma em que encontrava num momento to que precede tI [Papert e Voyat 1967, p. 110]. Por
se apresenta nos nossos dias, é um fenómeno muito recente. A organização diversos séculos, este processo permanecerá limitado a um grupo restrito
temporal dos comportamentos somáticos dos indivíduos - mas também da de adultos, os quais detêm um saber de difícil acesso e têm que ver com
vida social - reproduz, pois, um traço essencial da história do tempo, relógios mecânicos e corpos celestes, que, a partir de Galileu e sobretudo de
a descontinuidade entre o qualitativo e o quantitativo, que ela projecta no Newton, são considerados sujeitos às mesmas leis. Por outras palavras,
âmbito de uma vida, de um ano, de um dia, materializando-a em diversas o tempo quantitativo só é aprendido deliberadamente, sob o controlo da refle-
fronteiras no espaço. Não é exagerado dizer que a história se inscreve xão e com o auxílio da escrita. Mas, grande inovação deste período, ele já não
literalmente na trama mais íntima dos indivíduos humanos, moldando os dados se liga a um suporte material, uma vez que o aparecimento dos relógios priva
da biologia de modo a coordenar a marcha dos relógios vivos que nós próprios os corpos celestes da sua posição privilegiada. Com Gassendi e Newton, ele
somos com o ritmo artificial do nosso ambiente tecnicizado. é, pois, assimilado ao puro movimento uniforme, à pura regularidade de :;iI
Ela inscreve-se também - e aqui reaparece a psicologia genética - na sucessão, e atribuído, após a eliminação de todo o suporte material, a um
sujeito absoluto identificado primeiro com Deus e depois, com Kant, com as ; li!
construção do pensamento temporal, e sobretudo no percurso que conduz do
estruturas transcendentais do ser humano. O que, em termos psicológicos, : I'II!
tempo qualitativo ao tempo quantitativo. Com efeito, se a passagem do j'ii,
significa que a ideia da velocidade uniforme está agora adquirida. O mesmo ,, Illil
primeiro destes tempos ao segundo é inseparável da constituição da ideia de
não acontece no que se refere à reversibilidade, como se pode deduzir
velocidade uniforme, isso não se poderia realizar espontaneamente e nas
da permanência dum ponto de vista (sistema de referência) privilegiado.
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dimensões de uma sociedade se tais velocidades não tivessem sido dominadas
tecnicamente e não pudessem ser encontradas quotidianamente por qualquer Criticado por muitos (sobretudo por Mach e Poincaré), este último só será :1
indivíduo e desde a infância. Ora, a primeira destas condições só começa a eliminado por Einstein, o qual, como vimos, mostrará que não é preciso
atribuir à noção de simultaneidade um significado absoluto. Por outro lado,
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ser satisfeita a partir do século XIV, que assiste à invenção dos relógios I
mecânicos, ao passo que a segunda só o é quando eles se tornam artigos de no século XIX, com a difusão dos relógios, a escolarização e a introdução de
velocidades múltiplas nas práticas mais quotidianas, a construção do tempo ' ,
uso corrente, meio milénio mais tarde. Estas duas datas assinalam, pois, I,
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viragens não só na história das técnicas para medir o tempo, e da indústria, quantitativo de tipo newtoniano tende a tornar-se, nas sociedades indus-
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mas também na história do psiquismo humano. Até à primeira, o tempo trializadas, um processo psicológico interiorizado, espontâneo e geral, que ~i

quantitativo podia ser construído unicamente por aqueles que estudavam os ocupa os anos da infância. É este tempo que é hoje o tempo quantitativo do
corpos celestes, os únicos a apresentar velocidades aparentemente uniformes, senso comum, ao passo que a aquisição do domínio dos tempos mais recentes
sendo preciso coordenar umas com as outras; é o que ilustram os textos de e mais sofisticados - por exemplo, da teoria relativista ou da mecânica
Pia tão e Aristóteles. Mas esta construção do tempo quantitativo era então quântica - constitui o objecto de um ensino especializado e, portanto, de uma
psicologicamente diferente da que hoje, nos países desenvolvidos, é realizada aprendizagem deliberada, sujeita ao controlo da reflexão e que exige o
por qualquer criança que cresça em condições normais: era obra de adultos, conhecimento duma escrita particular como a matemática. Resumindo, o pen-
e de adultos excepcionais; não era realizada espontaneamente, mas delibe- samento temporal de cada indivíduo revela-se como um produto da história;
radamente, não de modo irreflectido, mas sob o controlo da reflexão e com o nada é dado, tudo é conquista que ele realiza ao longo do seu desen-
auxílio da escrita. Por outro lado, o tempo quantitativo não podia tornar-se volvimento. Isto é indúbio tratando-se do tempo quantitativo. Mas também é
um esquema; abstraído dos dados da percepção, era ao menos em parte um válido para o tempo qualitativo, cuja acção histórica se poderia estudar
conceito, aquilo que manifesta a ligação, necessária por hipótese, entre o remontando a um passado muito remoto, o dos documentos escritos mais
tempo e os corpos celestes, privilegiados por causa dos seus caracteres antigos e dos artefactos ainda mais antigos. Ao aprender a construir o tempo,
qualitativos. Resumindo, ao longo de todo este período e até muito mais tarde, uma criança de hoje redescobre, pois, e domina uma trajectória que os homens
TEMPOfTEMPORALIDADE 70 71 TEMPOfTEMPORALIDADE

levaram inilénios a percorrer e que, a partir dum tempo local, heterogéneo, um por parte do outro. Mas, como acabamos de constatar, tal representação
egocêntrico e irreversível, conduz a um tempo universal, homogéneo, da história não é aplicável ao tempo, facto psicológico e realidade objectiva,
reversível e quantitativo, e mesmo mais além. que de resto não constitui a este respeito algo de excepcional [cf. Pomian
Isto só acontece, evidentemente, na hipótese mais optimista, porque são 1980b]. Efectivamente, as relações entre todo o presente sucessivo e o seu
muitos os que param ao longo do caminho ou que regridem relativamente às passado não consistem, neste caso ou mesmo sempre, numa pura e simples
suas condições de vida; em compensação, os que dominam os tempos de ponta supressão do segundo por parte do primeiro, mas no facto de que um recupera
constituem sempre uma minoria. Como todos, também estes lidam parcialmente o outro, embora deformando-o, e neste sentido contém-no,
quotidianamente com os tempos mais arcaicos (solar, litúrgico, político, preserva-o; não poderia, por conseguinte, ser separado dele sem tornar-se mais
qualitativo) e são perfeitamente capazes quer de agir neste âmbito quer de ou menos inteligível. Uma descrição teórica não pode, pois, deixar de conduzir
pensar e achar soluções aos problemas postos pela sua coexistência. Assim à história, a única capaz de estudar o processo de sobreposição e substituição
como a aquisição do domínio dos tempos quantitativos extremamente selectiva de que resulta toda a arquitectura temporal; a única, ainda, capaz de
sofisticados não priva, de facto, das capacidades de dominar os tempos mostrar como os estratos anteriores tornam possíveis os posteriores e como
quantitativos mais banais, também esta última não impede de fazer uso, se estes sofrem por sua vez modificações; a única, enfim, capaz de desenterrar
for esse o caso, do tempo qualitativo reversível, nem tão-pouco de perceber as raízes dos problemas que há que resolver para fazer concordar os elementos
o tempo como um fluxo de sentido único, que arrasta para o desfalecimento de uma mesma arquitectura temporal, os quais diferem pela sua origem e
e a morte. Provisoriamente assimilado a um fluxo deste género no início do natureza. Podemos ilustrar rapidamente tudo isto sem sair do tempo
presente artigo, o tempo psicológico, como se pode constatar, é muito mais quantitativo recordando a existência de duas escalas do tempo, astronómico
complexo: manifesta uma estrutura estratificada, produzida pela história, e atómico, UTC e TAl, a primeira das quais atrasa em relação à outra um
e que corresponde grosso modo à da arquitectura temporal da civilização número inteiro de segundos (dez no 1.0 de Janeiro de 1972, dezoito no 1.0 de
industrial contemporânea. Esta - e a conclusão pode ser alargada de modo Janeiro de 1979). O Bureau international de l'heure está encarregado de decidir
convincente a qualquer outra arquitectura temporal - apresenta, pois, duas que será acrescentado um segundo intercalar ao fim de um mês e de anunciá-
vertentes ou duas faces: por um lado, os objectos, seres vivos e coisas, cujos 10 antecipadamente [Kartaschoff 1978, pp. 101-3; Terrien 1978]. Esta
comportamentos temporais - movimentos, mudanças, metamorfoses _ dualidade só se explica claramente pela história acima esboçada nas suas
diferem tanto pelos seus caracteres topológicos como do ponto de vista grandes linhas e que conduz, em 1956, à substituição da definição tradicional
qualitativo; por outro lado, os estados dos próprios indivíduos: experiências do segundo por outra em termos de tempo das Efemérides, depois abolida em
do próprio corpo, percepções, acções, operações. Estruturadas segundo os 1967 a favor de uma em termos de frequências atómicas. Série de
mesmos princípios, se bem que a sua conexão nunca seja perfeita, estas duas anulamentos, a história a que nos referimos é também a sobreposição de uma
faces dividem-se em estádios ou estratos que, analogamente aos dos sedimen- escala de tempo a uma outra; daí a necessidade de as coordenar. Resumindo,
tos, são marcados pelas épocas da sua origem, sofrendo cada um deles trans- uma vez que o passado não se esbate completamente mas faz parte, de diversas
formações sob o influxo dos estratos superiores, formados mais tarde, e que formas, do presente, a abordagem histórica contribui de modo insubstituível
os estratos ântero-inferiores tornaram possíveis antes de serem integrados neles para tornar este último inteligível.
e deles receberem a sua forma actual. O mesmo modelo encontra-se realizado Assim sendo, as antigas reflexões sobre os modos de viver o tempo, de
na organização do cérebro. Toda a arquitectura temporal é, pois, tanto pensá-Io ou de medi-lo, conservam também uma certa validade: Einstein não
«objectiva» como «subjectiva», se bem que o grau de separação destes dois elimina Newton, os filósofos contemporâneos não eliminam Kant, Hume, São
aspectos seja histórica e psicologicamente variável: com efeito, esta separação Tomás, Santo Agostinho ou Aristóteles. Mal se tenta descrever o tempo do
nunca é dada, mas sempre adquirida e reproduzida. E toda a arquitectura tem- universo visível, tal como ele se oferece à percepção, aos sentidos que não
poral contém no seu estado presente aquilo que foi no passado, naturalmente utilizam nenhum instrumento e não conhecem ou não esquecem a sua
não na sua forma originária mas na que recebeu ao longo de reintegrações existência, descobre-se a pertinência das descrições aristotélicas [cf. Miller e
sucessivas em conjuntos formados posteriormente: cada uma destas provocava Johnson-Laird 1976, p. 36, nota], assim como se descobre a profundidade das
uma nova deformação do passado e o seu efeito de acumulação é tanto mais análises agostinianas quando se procura descrever o tempo da vida psíquica
importante quanto mais antigo for o passado e, portanto, recoberto por um tal como aparece à introspecção; Husserl tinha plenamente razão ao afirmar
maior número de estratos mais recentes. que «ainda hoje quem quer que se ocupe do problema do tempo deve estudar
Resulta de tudo isto que uma descrição teórica da arquitectura temporal a fundo os capítulos 14-28 do XI livro das Confessiones» [1928, trad. it.
contemporânea não pode prescindir legitimamente da história. De facto, só se p. 43]. Mas isto não significa absolutamente que se tem o direito de ler as
teria o direito de descurá-la se as relações entre o presente e o passado se reflexões sobre o tempo destes dois autores, ou de qualquer outro, como se
reduzissem, de modo geral, a um anulamento, uma abolição ou eliminação de não dependessem das suas posições filosóficas gerais e não tivessem as marcas
TEMPOrrEMPORALIDADE 72 73 TEMPOffEMPORALIDADE

do mundo histórico dentro do qual eles viveram e pensaram, do mundo em atribuir legitimamente às de Aristóteles e Santo Agostinho. Só após sofrer em
que os relógios mecânicos eram inimagináveis e se considerava que a fronteira uma reinterpretação que tenha em conta a sua posição histórica determinada
essencial do ser era a que dividia o visível do invisível. Com efeito, enquanto pela «revolução científica», as ideias destes últimos, reduzidas à sua parcial
tributárias deste mundo e enquanto não podiam deixar de reconduzir o tempo validade, se revelam incompatíveis com as afirmações dos seus sucessores,
ou ao movimento dos corpos celestes visíveis ou ao fluxo invisível dos estados as quais, por seu lado, foram objecto de uma operação análoga. E o processo
de consciência, excluindo qualquer outra possibilidade, as descrições de continua; os que hoje pretendem ter dito a última palavra a respeito do tempo,
Aristóteles e Santo Agostinho foram desmentidas primeiro pela invenção dos e que proclamam a sua validade ilimitada, relegando todos os predecessores
relógios, depois pela descoberta dos objectos observáveis, das leis do para o nada do erro, ver-se-ão mais cedo ou mais tarde colocados no lugar
movimento destes últimos e, em conexão com tudo isto, do tempo qualitativo. deles. É inútil observar que isto se aplica igualmente ao autor deste artigo,
As descrições que Newton e Kant, entre outros, fizeram do novo tempo são se bem que os juízos aqui formulados não pressuponham uma posição
manifestamente incompatíveis com as de Aristóteles, de Santo Agostinho e epistemologicamente privilegiada, mas sim uma perspectiva determinada da
dos seus continuadores. Mas só o são se se admitir que umas e outras história passada e de que a história futura revelará certamente as zonas cegas
concernem a mesma coisa, um tempo único, dado de uma vez para sempre, e os limites.
de que só uma descrição pode ser verdadeira, ao passo que as outras se Podemos deixar agora a diacronia e mostrar que a abordagem estratigráfica
dividem entre as variantes estilísticas desta última e as descrições falsas. do tempo e da história aqui preconizada permite compreender, servindo-nos
Vê-se facilmente como semelhante ideia do tempo (e da verdade) nega à de uma análise puramente sincrónica, as razões profundas da conhecida
história todo o alcance ontológico, dando-lhe por matéria quer as diferenças polissem ia do termo 'tempo' no discurso filosófico e científico, para não falar
acidentais entre os enunciados de uma mesma verdade quer uma sucessão de da linguagem quotidiana e da diversidade entre as doutrinas que tratam o
erros, mas nunca a verdade mesma, que permanece fora do seu alcance. Isto, objecto que este termo é suposto designar; é evidente que não vamos t ~I:,_~
de resto, não constitui um argumento válido contra tal ideia, uma vez que considerar aqui os factores responsáveis em geral pelo carácter plural e , r
ninguém tem como certo que a história deve ter um alcance ontológico. Os intrinsecamente conflituoso da filosofia (vide o artigo «Filosofia/filosofias»
argumentos de fundo que lhe foram contrapostos neste artigo resumem-se à nesta mesma Enciclopédia). lI;
, 1'1111
afirmação do carácter plural do tempo, que constitui uma arquitectura, um Em pouco mais de um ano, e num único país, a Alemanha, foram publi-
sistema estratificado cujos estratos, diversos tanto pelas suas propriedades cados três livros, cada um dos quais forneceu ao presente tema um contributo
topo lógicas como do ponto de vista quantitativo, provêm de épocas diversas, de enorme importância: Ser e Tempo, de Heidegger [1927], Sobre a Feno-
ao passo que as respectivas posições traduzem a sua ordem de emergência. menologia da Consciência Interna do Tempo, de Husserl [1928], Filosofia do
Assim, durante os primeiros decénios do século xx, a antiga categoria de Espaço e do Tempo, de Reichenbach [1928]. Já os títulos indicam claramente
objectos observáveis, tal como se constituíra a partir de Galileu, sofre uma a diversidade das atitudes dos autores: em Heidegger, a associação do tempo
dupla cisão; a primeira passa entre os que se movem com velocidades e do ser situa imediatamente a problemática na esfera da ontologia; em
próximas da da luz e os que dela estão muito distantes; a segunda separa Reichenbach, o tempo é acompanhado do espaço, e define a sua perspectiva
os que são perturbados pelo acto de serem observados e os que o não são. como a da física relativista; em Husserl, enfim, o tempo, inseparável da
Este novo modo de conhecer os objectos observáveis levou a contestar as consciência, é abordado do ponto de vista da psicologia fenomenológica.
descrições do tempo quantitativo fornecidas por Newton ou por Kant, enquanto É verdade que o sincronismo das três obras está longe de ser perfeito,
se arrogavam de uma validade ilimitada. Considera-se agora que apenas se porquanto o texto de Husserl contém as suas aulas de 1904-905 com
aplicam ao tempo dos objectos observáveis cujas velocidades são afastadas suplementos que remontam ao período de 1905 a 1910. Mas pode replicar-se
da da luz e que não são modificados pelo acto de serem observados, no caso que Husserl, cuja severidade com as próprias investigações é bem conhecida,
do primeiro; e ao tempo do sujeito suposto conhecer tais objectos, no caso não teria autorizado em 1928 a publicação de lições dadas mais de vinte anos
do segundo. Tal como as de Aristóteles ou de Santo Agostinho, as descrições antes se estas não lhe tivessem parecido válidas e actuais. Podemos, pois,
newtonianas e kantianas revelam-se, pois, pertinentes, não no que se refere admitir que as três obras são efectivamente contemporâneas, como o foram
ao tempo enquanto tal, mas tão-somente no que se refere a um estrato deste, no momento da sua publicação para um leitor com interesses filosóficos. Que
o tempo quantitativo dos objectos observáveis «clássicos» (em contraposição têm elas em comum além do facto de a palavra 'tempo' aparecer nos seus
aos objectos relativistas e/ou quânticos); uma vez que eles falam de estratos títulos como nos seus textos? Acaso esta palavra reenvia nos três casos para
diversos do tempo, não é possível que venham a contradizer-se. Mas, como o mesmo objecto?
os novos estratos da arquitectura temporal se sobrepõem aos antigos
produzindo efeitos retroactivos, assim também o aparecimento das descrições É em primeiro lugar comum aos três livros uma problemática - difícil de
newtoniana e kantiana do tempo se repercute no significado que se pode enunciar de modo que seja satisfatório para Heidegger, Husserl e Reichenbach
TEMPOfTEMPORALIDADE 74 75 TEMPOfTEMPORALIDADE

conjuntamente - que concerne o estatuto do tempo. É «psicológico» ou de consciência» [1928, trad. it. p. 44; cf. Granel 1968, pp. 23-38], em resumo,
«físico»? «Subjectivo» ou «objectivo»? «Interno» ou «externo»? Os três pares ao que há de mais subjectivo na subjectividade. Compreende-se a importância
de contrários, que não coincidem, recebem nestes autores significados que Husserl dá a Santo Agostinho. E compreende-se como a análise
parcialmente concordantes; é, pois, possível ler as suas obras como fenomenológica, uma vez que não pretende ser uma variante da introspecção,
respostas a um mesmo leque de problemas. Reichenbach, cuja posição não deve descrever os vividos tal como se apresentam, mas exprimir os
é mais clara e mais simples, será examinado primeiro. Ele descura caracteres essenciais da consciência do tempo, pôr em evidência o que ela
deliberadamente o carácter psicológico da experiência do tempo para se comporta de necessário, enunciar as leis a priori que a governam [cf. Husserl
concentrar no sentido que lhe é conferido pela física. E justifica o seu 1928, trad. it. pp. 48 e 99-100]. Que o tempo objectivo tenha como condição
modo de proceder, em polémica com os filósofos que pretendem que a de possibilidade o «tempo pré-objectivado» e que se constitua neste e a partir
experiência psicológica do tempo, em nada influenciada pelo tempo físico, deste último, tudo isto pertence, segundo Husserl, à essência a priori do tempo
conserva o seu carácter a priori e obedece a leis próprias. Mas, afirma, os [ibid., p. 100]. Ora, o tempo objectivo de que falamos aqui é «o uno e infinito
pretensos juízos a prior i são, de facto, determinados pela experiência física tempo objectivo em que todas as coisas e os eventos, os corpos e as suas
quotidiana; admitindo isto, erige-se esta experiência como norma a que deve propriedades físicas, as almas e os seus estados psíquicos, têm os seus lugares
conformar-se a física científica, ao passo que é à luz desta última que se deve temporais determinados e determináveis por meio dum cronómetro» [ibid.,
ajuizar a experiência quotidiana. Por outras palavras, há que corrigir a pp. 46-47 e pp. 98-99]. Quanto ao tempo «pré-objectivado», é um «fluxo das
experiência intuitiva do tempo a partir da análise do conceito relativista modificações de passado» e um «contínuo brotar de um "agora"» [ibid.,
do tempo físico, que, melhor que a análise fenomenológica, permite p. 100], um fluxo de vivências onde se sucedem as impressões originárias,
estabelecer o que significa realmente para nós a experiência do tempo cada uma delas com o seu horizonte de pretensões vazias e com as retenções ;'1
[Reichenbach 1928, trad. it. p. P6]. A oposição pertinente passa, pois, neste que arrastam, um pouco como a cauda dum cometa, e que continuamente se " •• 11
I
caso, entre a psicologia e a física.scom uma desvalorização sem reserva da ofuscam, se esfumam, perdem a sua qualidade de recordações primárias; em I'
primeira em benefício exclusivó 'da segunda. Como Reichenbach dirá num que aparecem igualmente recordações, que reproduzem antigas percepções, e I'I
livro sucessivo sobre a direcção do tempo, «a única via para resolver o esperas abertas às percepções futuras. Não nos é possível abordar aqui a
problema do tempo é a que passá através da física» [1956, p. 16], pois só a problemática da objectivação do tempo imanente, fenomenológico, isto é, da
física pode dizer o que é o tempo e descobrir se é objectivo ou se, pelo constituição do tempo objectivo; densas, precisas e subtis, as análises de
contrário, o ser é atemporal. Mas este método fisicalista está já presente no Husserl não se podem resumir em poucas linhas [cf. ibid., pp. 91-99, 114-18
livro de 1928 e a sua doutrina sobre o tempo aparece já formulada nas linhas e 145-48]. De resto, o que acabamos de dizer basta para mostrar como o tempo
essenciais. A sua resposta ao problema da objectividade é clara: se bem que físico de Reichenbach é um caso particular do tempo objectivo de Husserl,
a métrica do tempo seja logicamente indeterminada enquanto não forem ao passo que o tempo pré-objectivo ou fenomenológico deste último é,
introduzidas as definições coordenativas da unidade de tempo, da segundo os critérios dos dois autores, um tempo subjectivo. Por conseguinte,
uniformidade dos intervalos sucessivos e da simultaneidade [1928, trad. it. eles ocupavam-se efectivamente do mesmo problema e as suas soluções são
p. 157] - encontram-se. aqui unidos os ensinamentos de Einstein e de deci,didamente incompatíveis.
Poincaré -, as propriedades topológicas essenciais do tempo, e sobretudo a E sabido que para Heidegger, em Ser e Tempo, a preocupação, ser do
sua direccionalidade imposta pela orientação das cadeias causais de que Dasein, coloca este último num movimento de transcendência, fazendo-o sair
constitui uma dimensão [ibid., p. 291] são um facto natural, irredutível a de si; esta transcendência originária é a temporalidade. O Dasein existe na
qualquer fundamento subjectivo ligado às propriedades do observador [ibid., temporalização. E, se existe no modo originário e autêntico,projecta-se para
pp. 305-8]. o f~t~ro, para um futuro assumido como finito, fechado pela morte. O carácter
Não admira que Reichenbach tenha explicitamente posto em causa a estahco da existência só é possível porque o Dasein, aberto para o passado,
análise fenomenológica; com efeito, a posição de Husserl parece estar nos o presente e o futuro, se move no interior duma abertura cujas fronteiras se
antípodas da sua. Fazer uma análise fenomenológica da consciência do deslocam com ele, formando um horizonte para além do qual não poderia
tempo - da consciência do tempo e não do próprio tempo - significa, com penetrar, que não poderia deixar para se achar no exterior, e que por
efeito, segundo Husserl, suspender toda a afirmação, hipótese ou interrogação, ~onse~ui~te determina a sua compreensão do ser. Este horizonte é o tempo.
que pressuponham um tempo objectivo, e sobretudo o tempo do mundo, das «obJechvo» ou «subj ectivo»? Heidegger aborda explicitamente o problema
coisas e da natureza no sentido das ciências naturais, inclusive a psicologia. no últi '
. I.mo capItulo de Ser e Tempo e a ele se devem as aspas entre as quais
Fazer tal análise significa, pois, não se voltar para o tempo psicológico, aq~I. fIguram os termos 'objectivo' e 'subjectivo', que nunca utiliza sem
inconcebível sem pessoas empíricas, sem sujeitos psicofísicos, mas somente su linha- graficamente o seu carácter de citações extraídas de uma linguagem
para o tempo tal como aparece à consciência, ao «tempo imanente do fluxo que não é a sua. Trata-se mais precisamente do tempo público, tempo
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77

quotidiano, instrumental e mensurável, com as suas datas e as suas horas, problemática não basta, porém, para que a palavra 'tempo' reenvie nos três
a propósito do qual se pretende saber se é «simplesmente subjectivo» ou casos para o mesmo objecto. Ultrapassando todo o presente, dirigindo-se para
«dotado de "realidade objectiva"» ou ainda se escapa às duas determinações um futuro que se supõe dar-lhe um sentido e conduzindo à morte que se perfila
[1927, trad. it. p. 585-86]. A solução de Heidegger é a terceira. O tempo como sua meta, e que nos esforçamos por não olhar cara a cara, a tem-
público, derivado da coexistência do Dasein com os outros e do seu estar- poralidade heideggeriana corresponde muito bem ao que descrevemos no
-no-mundo, e que nós conhecemos como o tempo do mundo, não é início deste artigo como tempo psicológico da vida quotidiana; é, aliás,
«objectivo», no sentido em que seria tributário de qualquer ente intramundano, o próprio Heidegger quem estabelece explicitamente uma ligação entre a
sem contudo ser «subjectivo», no sentido em que precisaria da existência ou temporalidade e o quotidiano. O tempo, linha móvel que limita o alcance do
da presença de um «sujeito». «Mais "objectivo" que qualquer objecto olhar do Ser, fechado na finitude, assemelha-se ao tempo qualitativo da
possível», posto que é «condição da possibilidade do ente intramundano», história, com a diferença de que é errático, uma vez que a sua direcção não é
e «mais subjectivo que qualquer sujeito possível», posto que só graças a ele previamente determinada nem determinável. Com efeito, o tempo não pode
a preocupação é «o ser de si-Mesmo efectivamente existente», o tempo «não ser apreendido do exterior por parte do Dasein abandonado, por assim dizer,
está no "sujeito" nem no "objecto", nem "dentro" nem "fora" e está "antes" no seu ambiente e ao qual a história mais fundamental, a história do ser,
de toda a subjectividade e de toda a objectividade» [ibid., p. 596]. Heidegger aparece inevitavelmente com o rosto do destino. Finalmente, o tempo público,
contrapõe-se, pois, tanto aos que atribuem ao tempo público o estatuto de um mensurável e reversível, deixa-se assimilar ao tempo quantitativo da vida
facto natural, físico, como aos que, analogamente ao seu mestre, Husserl, de social, ao tempo dos relógios. Heidegger toma, pois, em consideração pelo
quem ele publicou Sobre a Fenomenologia da Consciência Interna do Tempo menos três estádios da arquitectura temporal da civilização contemporânea;
e a quem dedicou o seu livro, o consideram indissoluvelmente ligado à grande parte do seu livro descreve-os e explicita as suas relações. Outros
consciência. Opõe-se ainda a todos quantos identificam o tempo público estratos da mesma arquitectura constituem o objecto das descrições e análises lillil-

com o tempo. Com efeito, o primeiro é o horizonte da existência factual de Husserl; ele estuda unicamente o tempo psicológico, não enquanto vivido I
e quotidiana de um Eu empírico (ôntico). O segundo é o horizonte da quotidiano, mas enquanto fluxo que arrasta os estados de consciência e forma I'I
compreensão do ser por parte do Dasein, e depende da ontologia. Se o que os enquadra. O fluxo, com a sua multiplicidade, a sua variabilidade, a sua
primeiro se situa aquém da divisão entre «objectivo» e «subjectivo», isso é irreversibilidade, é o tempo fenomenológico, ao passo que o tempo objectivo
ainda mais válido para o segundo. Mas eles são em todo o caso diversos e :'111
é uma forma que acompanha a unidade, a identidade, a reversibilidade.
importa perceber como se dá a sua identificação no conceito vulgar de tempo, O primeiro, qualitativo e heterogéneo, opõe-se, pois, ao segundo, homogêneo
onde este último assume caracteres que não lhe competem. Não podemos e quantitativo; por outras palavras, o primeiro é relacional; o segundo,
reproduzir aqui em pormenor os argumentos de que Heidegger se serve para «absoluto». A constituição do tempo objectivo no e a partir do tempo :11111
, !,
mostrar que «a definição ordinária do tempo como uma série infinita, fenomenológico, pré-objectivado, é pensada por Husserl como uma espécie
~JII j!
transcorrente e irreversível de "agoras" provém da temporalidade do Ser de génese puramente lógica e intemporal, fundada em leis a priori da essência I

deietivo» [ibid., p. 605], isto é, do Dasein que existe no modo da inau- do tempo. Ela deixa-se contudo interpretar em termos de psicologia genética
tenticidade. Note-se que é refutada aqui como «vulgar» a ideia do tempo em de tipo piagetiano, como formação do tempo reversível a partir do tempo
tudo análoga à que se encontra em Husserl, entre outros; quanto à irreversível elucidado pela explicitação dos mecanismos que permitem a
incompatibilidade entre as posições de Heidegger e de Reichenbach, é tão reprodução do segundo a partir do primeiro. É também interpretável em
flagrante que não nos parece necessário insistir nela. termos de história como passagem, reconduzida à escala de uma consciência
Os três livros, rapidamente passados em revista, apresentam, pois, uma individual, do tempo qualitativo ao tempo quantitativo newtoniano-kantiano,
problemática comum, que é a do estatuto do tempo: a definição deste estatuto do tempo que surge na percepção [cf. Granel 1968] ao tempo ligado à
constitui um pressuposto necessário a qualquer investigação que se refira ao representação. Os dois estratos da arquitectura temporal estudada por
tempo, porquanto legitima certas questões e leva a eliminar outras como Husserl não coincidem, como se vê, com os que interessam a Heidegger.
privadas de sentido. Na perspectiva de Husserl ou de Heidegger, os problemas Por outro lado, também o segundo é histórica e logicamente diferente do
da construção duma métrica do espaço-tempo têm tão pouca importância ~u: Reichenbach investiga, do tempo da física relativista que, segundo este
como, para Reichenbach, as diferenças entre retenção e reprodução ou as ultImo, não faz parte de uma arquitectura temporal; identificado com o
relações da historicidade com a temporalidade. As divergências dependem em t,e~po objectivo, com o tempo do universo físico, ele é para Reichenbach o
grande medida do facto de que foram dadas soluções incompatíveis aos UllICO tempo real. Como já dissemos, a palavra 'tempo' nos autores de que
mesmos problemas; a sua evidenciação permite apreender, para além das nos ocupámos não reenvia para o mesmo objecto. Para uns, o tempo é
diferenças terminológicas, o conflito de filosofias mutuamente exclusivas que ~tratificado, é uma arquitectura; para os outros, tem apenas uma dimensão.
esta divergência exprime e ao mesmo tempo esconde. Uma certa comunidade as nem mesmo entre os primeiros parece reinar o acordo nem quanto
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ao número dos estratos nem quanto às suas características. Por isso a equivalia logicamente à da criação do mundo visível e, portanto, temporal por
palavra 'tempo' - como outras palavras que designam objectos análogos, em obra de um Deus eterno e absolutamente simétrico.
particular 'ser', 'conhecimento', 'verdade' - é notoriamente polissémica; pelo A descoberta do segundo princípio da termodinâmica, segundo o qual em
que, ao ler obras dedicadas ao «tempo», temos muitas vezes a impressão de . todo o sistema isolado uma. certa grandeza chamada «entropia» nunca diminui
assistir a um diálogo cujos participantes não se compreendem, uma vez (antes tende a crescer, a menos que nada aconteça no sistema solar), fez do
que não conseguem fazer corresponder os mesmos objectos aos mesmos tempo dos objectos observáveis o centro de uma controvérsia filosófica e
vocábulos. No entanto, às vezes sem o saber, eles falam frequentemente de física; apenas nos interessa aqui o primeiro dos dois aspectos [para o que
diversos estratos da mesma arquitectura temporal, de tal modo que os concerne o aspecto físico, cf. Davies 1974]. Segundo Boltzmann, o segundo
intuitos de uns nem sempre são incompatíveis com os dos outros. A enorme princípio impõe ao tempo observável uma direcção que vai do mínimo ao
e sempre crescente literatura dedicada ao «tempo» ganharia um pouco mais máximo da entropia: este último coincide com o equilíbrio termodinâmico,
de legibilidade e valor se cada autor, descrevendo de modo compreensível a «morte térmica». A irreversibilidade do tempo visível vê-se assim recon-
o objecto que designa com tal palavra e justificando as razões por que duzida à do tempo observável, mas com duas consequências muito
considera real este objecto, permitisse às numerosas divergências filosóficas desagradáveis. Em primeiro lugar, é agora necessário explicar a irrever-
manifestar-se claramente. sibilidade do tempo observável, uma vez que não constitui algo de óbvio. Em
segundo lugar, há que aceitar a perspectiva de um fim do universo, o que é
o tempo do mundo visível tem uma direcção que nunca se inverte; todos pelo menos tão dificilmente inteligível como o seu nascimento. Por outro lado,
os seres e todas as coisas, à excepção dos corpos celestes, avançam diante dos a ideia da irreversibilidade do tempo observável deparou com objecções
substanciais e, em particular, com o teorema da recorrência de Poincaré,
nossos olhos para a desintegração. Para conceber os objectos invariantes, um
segundo o qual a proximidade de todo o estado de um sistema isolado será
tempo circular ou um tempo progressivo, há que recorrer ao invisível. Neste
revisitada um número infinito de vezes; o intervalo entre duas passagens na
sentido, de visível só o temporal, que vai do nascimento à morte, do
proximidade do mesmo estado, «tempo de recorrência», tem no caso dos
aparecimento ao desaparecimento, da criação à destruição, à excepção dos
sistemas macroscópicos um comprimento que ultrapassa as nossas capacidades
corpos celestes. Durante dois séculos e meio parecia que as coisas eram
de compreensão: 101023 segundos, mas isto basta para que uma diminuição da
diferentes no caso dos objectos observáveis; como as leis que governam as
entropia não deva ser considerada como impossível; significa isto que o
suas interacções não mudam quando se substitui t por -t, podia pensar-se que
segundo princípio pode ser alvo de qualquer desmentido [ibid., pp. 56 segs.J.
nesta região do ser o tempo não tinha uma direcção; nada impedia, pois, de
Na controvérsia em torno da «flecha do tempo», para retomar a imagem de
assimilá-lo a um quadro vazio no qual a cada movimento e a cada processo
Eddington, já em pleno desenvolvimento nos finais do século passado, vieram
podia corresponder um movimento ou um processo simétrico, mas orientado
enxertar-se divergências suplementares relacionadas com as consequências
no sentido contrário. Ora, toda a simetria é inteligível enquanto tal e só a que se têm o direito de tirar, caracterizando o tempo observável, da dúplice
simetria é inteligível enquanto tal; pelo contrário, toda a assimetria deve ter divisão dos objectos observáveis em nâo-relativistas e relativistas, «clássicos»
uma razão suficiente ou uma causa que compense o seu desvio em relação à e quânticos. E a controvérsia prossegue ainda, envolvendo os cosmólogos, os
simetria inicial. É o que ensinam os metafísicos (cf. a posição acima citada físicos, os matemáticos, os filósofos.
de Leibniz). É o que ensinam também os físicos: «Quando certas causas Segundo Mehlberg, não haveria matéria para controvérsia pelo menos
produzem certos efeitos, os elementos da simetria das causas devem ser no terreno da ciência, a qual concede um estatuto privilegiado à isotropia, à
verificáveis nos efeitos produzidos. - Quando certos efeitos revelam uma simetria, à reversibilidade. O motivo é muito simples: «Nenhuma das
certa dissimetria, esta última deve verificar-se nas causas que estão na sua principais teorias físicas, aquelas que constituem o grosso dos nossos
origem. - A recíproca destas duas proposições não é verdadeira, pelo menos conhecimentos do universo em geral, e do tempo em particular, oferece
na prática, quer dizer, os efeitos produzidos podem ser mais simétricos que explicação para a flecha do tempo. Se o tempo tivesse realmente uma
as causas» [Curie 1894, ed. 1908 p. 127]. E é o que ensina a propósito do flecha, esta conjura, urdida pelas nossas teorias fundamentais, e destinada a
tempo a psicologia genética, para a qual compreender o tempo significa poder esconder-nos a flecha do tempo, seria um milagre, ou um acaso com poucas
descê-lo e subi-lo em pensamento [Piaget 1946, ed. 1973 pp. 274-75]. Por possibilidades de verificar-se ... Com efeito, o único modo plausível de dar
outras palavras, para que o tempo seja inteligível, é preciso que seja reversível, razão ao facto de que um tão grande número de leis naturais, aceitas por todos
isto é, simétrico. Enquanto o domínio do observável coincidiu com o do tempo e de vasto alcance, esconde de certo modo a flecha do tempo consiste
reversível, ele era também o lugar da inteligibilidade. Mas havia então que simplesmente em admitir que não há nada a esconder. O tempo não tem
resolver o problema do aparecimento da irreversibilidade temporal do mundo flecha» [1961 e 1969, ed. 1980 p. 157; cf, ainda Mehlberg 1962 e outros
visível, e em geral da assimetria, a partir da reversibilidade observáve1, que artigos retomados em Mehlberg 1980]. Para justificar a sua tese, Mehlberg
\
TEMPOrrEMPORALIDADE 80 81 TEMPOrrEMPORALIDADE

faz uma resenha das teorias físicas fundamentais, mostrando que não água em que se derrete um cubo de gelo constitui um exemplo disso, pois
comportam nenhuma lei que confira ao tempo uma direcção irreversível. manifesta-se no momento da queda do gelo na água; o processo de fusão pode
Nesta perspectiva, apresenta uma interpretação do segundo princípio da ser perfeitamente descrito sem que seja necessário ter em conta as interacções
termodinâmica, atribuída a Ehrenfest e Smoluchowski, segundo a qual, num com o exterior, e, uma vez bebido, o seu isolamento terminou. Os sistemas
sistema isolado, a entropia pode crescer mas também pode diminuir [cf. 1961 deste tipo, que podem ser subsistemas doutros sistemas e podem ter os seus
e 1969, ed. 1980 p. 170]. Em substância, todas as leis da física, ciência subsistemas, foram denominados por Reichenbach [1956, pp. 110 segs.]
epistemologicamente privilegiada segundo Mehlberg assim como o era para «sistemas ramificados» (branch systems). Mas a existência dos sistemas
Reichenbach, são invariantes em relação à inversão da direcção do tempo ramificados é um facto e não uma lei da natureza; ela pertence às condições
(substituição de t por -t); a anisotropia que se verifica na natureza, exceptuando iniciais da lei de crescimento da entropia. Segundo Reichenbach, esta última
a cosmologia, puramente local e portanto sem alcance filosófico, revela assim é uma condição necessária mas não suficiente da anisotropia do tempo [ibid.,
um carácter não nomológico mas simplesmente factual enquanto pressupõe p. 131], a qual, se bem que não tenha um carácter nomológico, nem por isso
certas condições iniciais que podiam ter sido diferentes, dado que nenhuma é meramente factual. Para Grünbaum, esta lei não é sequer uma condição
lei a isso se opõe [cf. ibid., pp. 191, 196]. A distinção entre as leis e necessária da anisotropia do tempo, uma vez que esta última é suficiente-
as condições iniciais, que se encontra no cerne da física moderna e mente assegurada pela irreversibilidade factual não-termodinâmica [1963,
contemporânea [cf. Wigner 1949; 1964a, b, c], é aqui interpretada de tal ed. 1973 pp. 264 segs., em particular p. 278). No entanto a insistência da
maneira que não só tudo o que é regular e global é temporalmente isótropo Grünbaum no carácter factual da direcção do tempo não o aproxima das
(pois o tempo dotado de uma direcção é simplesmente um dado da experiência, posições de Mehlberg: «Não vejo», replica a este último, «como se pode fugir
variável e particular), mas também um tempo deste género é por isso reduzido à conclusão de que, se de facto a irreversibilidade prevalece realmente em
à insignificância, como se o real coincidisse com o racional no sentido de uma toda a parte e para sempre, tal irreversibilidade confere a anisotropia ao tempo.
submissão às leis. Mehlberg escorrega aqui imperceptivelmente da física E esta anisotropia prevalece nem um iota a menos de quanto prevaleceria se
para a metafísica. Por outro lado, queria saber-se donde vem e do que depende a sua existência fosse garantida por leis fundamentais temporalmente
o contraste flagrante entre as condições iniciais e as leis, a experiência e a assimétricas de alcence cósmico. Porque o que é decisivo para a anisotropia
teoria, e mais precisamente entre o visível e o observável; infelizmente, do tempo não é se a não-existência dos inversos temporais de certos processos
Mehlberg não põe estas questões na discussão, um tanto decepcionante, sobre está ligada aos factos ou às leis; o que, pelo contrário, é pertinente para a
o alcance filosófico do tempo privado da «flecha» [cf, 1961 e 1969, ed. 1980 anisotropia temporal é se os inversos se verificam efectivamente ou não, seja
pp. 200-2). qual for a razão disso» [ibib., pp. 272-73). A uma espécie de racionalismo
Defensores de um tempo intrinsecamente anisótropo, Reichenbach e segundo o qual tudo o que não deriva das leis fundamentais da física é fortuito
Grünbaum retomam a interpretação boltzmanniana do segundo princípio da e insignificante, Grünbaum opõe, portanto, uma posição empirista: uma
termodinâmica. «A direcção dos processos físicos, e com ela a direcção do constatação de facto devidamente estabelecida vale uma lei. Por outras
tempo, é pois explicada como uma tendência estatística; a acção do devir é a palavras, a realidade não consiste unicamente nas regularidades mas também
transição de uma configuração de moléculas improvável para uma provável ... nas condições iniciais. E tal realidade não é apenas uma estrutura mas é
Esta interpretação da direcção do tempo... representa, de facto, o núcleo da também o tempo.
teoria do fluxo do tempo» [Reichenbach 1956, p. 55]. Grünbaum não Como se pode tornar inteligível o tempo? Em particular, como pode ser
subscreveria esta passagem, uma vez que está em desacordo com Reichenbach tornado inteligível o tempo no momento em que se admite que ele implica
sobretudo no que concerne a realidade do «devir» temporal [cf. Grünbaum uma «flecha», uma direcção irreversível, que é anisótropo, assimétrico? Tais
1963, ed. 1973 pp. 314 segs.). Mas partilha a ideia de que o segundo princípio são as questões centrais da controvérsia de que apresentámos aqui alguns
não poderia fundar a anisotropia do tempo enquanto se considera a evolução dos protagonistas representativos, e que, embora versando sobre o tempo
da entropia num único sistema constantemente isolado [cf. ibid., p. 244). As observável, «clássico» e quântico, tem um alcance filosófico geral, uma vez
coisas são diferentes e várias objecções (inclusive a que reproduzimos a título que falar do tempo significa falar também da realidade física. No ponto a
de exemplo) deixam de ter razão de ser se se considera este princípio como que chegámos, parece que a posição racionalista, com a sua refutação da
uma asserção que diz respeito pelo menos a dois sistemas temporariamente «flecha do tempo», sai enfraquecida, sobretudo pela sua incapacidade de
isolados [ibid., pp. 254 segs.]. Sistemas deste género, que se afastam duma assimilar os resultados da cosmologia do big bang. Como observa Davies
origem comum num estado de baixa entropia devida à sua interacção com esta [1974, pp. 197 segs.], a assimetria do tempo é agora geralmente reconduzida
última, mantêm-se isolados durante um período limitado e depois reúnem-se a condições iniciais à escala cósmica, a uma origem do universo. Por
ao sistema que deixaram ou a outro, com uma entropia maior que a inicial, conseguinte, observa, «pode concluir-se que uma vastíssima gama de
aparecem constantemente tanto na vida como na ciência. Qualquer copo de condições iniciais concordam com a observada assimetria do tempo, de tal
TEMPOrrEMPORALIDADE 83 TEMPOffEMPORALIDADE
82

modo que o universo se comporta como se tivesse sido constituído de maneira Barney, G. O.
1979 The Global Two Thousand Report to the President of the 01 U.S. Entering the
fortuita. Por outras palavras, não precisamos de buscar algo de especial acerca
21st Century, Pergamon Press, New York.
do mundo para explicar a sua assimetria temporal. Antes deveríamos buscar
algo de especial se não houvesse nenhuma assimetria!» [ibid., p. 198]. É uma Barrow, J. D., e Silk, J.
posição muito satisfatória para o espírito, posto que permite não buscar as 1980 The structure of the early universe, in «Scientific American», CCXLII, 4, pp. 98-
-108 (trad. it. in «Le Scienze», XXIV (1980), 142, pp. 92-104).
razões ou as causas por que se verificaram justamente aquelas condições,
e não outras, entre as muitas possíveis; coisa que, pelo contrário, teria feito Bartky, I. R., e Harrison, E.
quem situasse no ponto de partida do tempo circunstâncias muito particulares. 1979 Standard and daylight-saving time, in «Scientific American», CCXL, 5, pp. 36-43.
Mas a dificuldade essencial é apenas deslocada e não resolvida. Com efeito, Bec, Ch.
uma vez admitida a origem do universo e do tempo, seja ela qual for, somos 1967 Les marchands écrivains. Affaires et humanisme à Florence, 1375-1434, Mouton,
reenviados para o velho problema da criação, mas com esta circunstância Paris-La Haye.
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agravante: que já não é permitido, pelo menos aos homens de ciência, recorrer
Sevpen, Paris.
a Deus, inteligibilidade feita ser e, portanto, capaz de dar à criação a sua razão
suficiente. Resta perguntar como se pôde formar a dissemetria a partir da Berger, R.
simetria não sujeita à influência do mínimo factor externo; e porque a esfera 1975 Advances and results in radiocarbon dating: early man in America, in «World
Archaeology», VII, 2, pp. 174-84.
do fogo originário explodiu de repente, dando origem ao universo em que
vivemos. Compreende-se a atitude dos que quereriam tornar impossível Bergson, H.-L.
o aparecimento destas questões no âmbito da ciência. Não é talvez 1889 Essai sur les données immédiates de Ia conscience, Alcan, Paris; agora in tEuvres,
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faceret coelum et terram»? Ou, com Leibniz, porque existe o ser e não o 1907 L 'Evolution créatrice, Alcan, Paris; agora ibid., pp. 487-809 (trad. it. parcial Laterza,
nada'[-Questôes ociosas, vagas. Porque não podemos deixar de procurar Bari 1949).
uma conciliação entre a inteligibilidade e o tempo, sabendo embora que
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antes que consigamos dar conta disso, ele, por brincadeira, dará conta de
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Université de Fribourg, Fribourg. fá-Ias intervir não só na filosofia (cf. filosofia/filosofias) mas também na ciência (cf. ainda
Weinberg, S. método, repetição, reprodução/reprodutibilidade, estrutura, variação), na política (cf. ainda
1976 The First Three Minutes: A Modern View of the Origin of the Universe, Basic utopia), nas artes (cf. vanguarda, clássico, ruína/restauro), na vida quotidiana (cf. ante-
Books, New York (trad. it. Mondadori, Milano 1977). cipação, calendário, gerações, mem6ria, vida/morte).
Weiss, R.
1969 The Renaissance Discovery of Classical Antiquity, Blackwell, Oxford.

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1962 Medieval Technology and Social Change, Oxford University Press, London
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1949 1nvariance in Physical Theory, in «Proceedings of the American Philosophical
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1964a Symmetry and conservation laws, in «Physics Today», XVI; agora ibid., pp. 14-27.
1964b The Role of Invariance Principies in Natural Philosophy, in «Proceedings of the
International School "Enrico Fermi"», XXIX; agora ibid., pp. 28-37.
1964c Events, Laws of Nature, and 1nvariance Principies, in The Nobel Prize Lectures,
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Zaleski, C. P.
1980 Breeder reactors in France, in «Science», CCVIII, pp. 137-44.

o O tempo é elemento constantemente presente. Numerosas disciplinas (cf. disciplina/


/disciplinas) estudam o passado (cf. passado/presente), seja ele o das culturas (cf. cultural
/culturas), sociedades, economias (cf. economia) e civilizações (cf. selvagem/bárbaro/
/civilizado) - conhecido através de documentos e monumentos (cf. documento/monumento)
ou objectos (cf. objecto) de colecção - ou pelo contrário da natureza (cf. ainda génese),
cognoscível (cf. conhecimento) graças a fósseis (cf. f6ssil) ou a restos inorgânicos
(cf. orgânicolinorgãnicoi. Por outro lado, procura conhecer-se antecipadamente o futuro
praticando a advinhação ou a planificação, perscrutando o sentido em direcção ao qual se
supõe que se dirija a hist6ria (cf. escatologia), estudando os períodos (cf. periodização) já
decorridos para estabelecer se ela se desenrola linear ou ciclicamente (cf. ciclo), se é
contínua (cf. contínuo/discreto), marcada por eventos (cf. evento) ou interrompida por
catástrofes. De modo geral, ocupar-se do tempo ou do espaço-tempo significa de certa forma
ocupar-se do universo (cf. ainda cosmologias) ou mesmo da totalidade do ser (cf.
existência); significa, além disso, interessar-se por todas as modalidades do devir, pelo
movimento, pelas transformações da energia e pelas variações da entropia (cf. também

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