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ENTREVISTA INTERVIEW 533

Entrevista: Jaime Breilh

Interview: Jaime Breilh

Jaime Breilh é professor da Universidade Andina Jaime Breilh is a professor at Universidad An-
Simón Bolivar, no Equador. Entretanto, para a dina Simón Bolivar (Ecuador). However, for
saúde coletiva, o nome desse pesquisador equa- collective health, this Ecuadorian researcher’s
toriano se conecta diretamente com o pensamen- name is directly linked to the critical thought
to crítico em epidemiologia, que não se resume on epidemiology that is not limited to affirming
a afirmar a saúde como uma produção social, health as social production, rather investigates
mas investiga e adverte quanto aos modos pelos and warns about the extent to which the way
quais a sociedade capitalista consolida desigual- the capitalistic society consolidates inequalities
dades profundamente vinculadas a uma ‘eco- that are deeply connected to an ‘economics of
nomia da morte’. Nesta entrevista,1,2 concedida death.’ In this interview,1,2 granted in March,
em março, quando ele esteve no Brasil para par- when he was in Brazil to take part in the 5th
ticipar do V Seminário da Frente Nacional contra Seminar of the National Front against the Pri-
a Privatização da Saúde, Breilh faz uma análise vatization of Health, Breilh made a critical
crítica dos caminhos que a epidemiologia tem analysis of the paths epidemiology has followed
trilhado e propõe reposicioná-la como uma área and proposes to reposition it as an area of know-
de conhecimento comprometida com uma ‘eco- ledge committed to an “economics of life.” To
nomia da vida’. Para tanto, discute as relações this end, he discusses the relationships that
que se estabelecem entre opções teóricas e uma are established between theoretical options and
ação política e ética direcionada ao enfrenta- political and ethical action directed towards
mento das iniquidades sociais. facing social inequalities.

http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sip00071 Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 13 n. 2, p. 533-540, maio/ago. 2015


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mentos norte-americanos em um México que,


durante a revolução, praticamente tinha rompi-
do relações com os Estados Unidos. É um peque-
no exemplo histórico de um momento em que
as campanhas baseadas na epidemiologia tive-
ram um efeito político favorável ao poder impe-
rialista, nesse caso os Estados Unidos. Durante
os anos neoliberais, quando se tencionava dimi-
nuir ao máximo a presença do público e a saúde
foi privatizada, os elementos do pacto social co-
meçaram a se fechar, as populações de trabalha-
dores e do exército informal, por assim dizer,
foram ficando em uma situação cada vez pior.
Naquela época, a epidemiologia também parti-
cipou no cálculo daqueles mínimos, chamados
de ‘pacotes de cobertura’. Infelizmente, esses pa-
cotes foram baseados em muitos estudos epide-
miológicos. E agora parece que a epidemiologia
pode se utilizar do espaço cibernético e das in-
formações nas redes sociais. Toda essa enorme
informação sobre a nossa vida pessoal que está
na internet, facebook, twitter etc., essa informa-
ção está sendo utilizada comercialmente, por um
lado, e agora, com uma visão da epidemiologia con-
vencional, essas informações são utilizadas para
pesquisas sobre consumo de medicamentos, ati-
tudes dos pacientes etc., que finalmente acabam
tendo usos comerciais. Esses são três exemplos de
uma vinculação direta aos interesses comerciais.
Mas há também outra implicação. Uma epide-
miologia, mesmo feita com boas intenções, mas
a partir de um modelo convencional de fatores
de risco, acaba escondendo as profundas razões
pelas quais temos ou não problemas de saúde.
Revista Então, eu diria que, por um lado, há os usos
Admitindo-se que todo saber pode ser apropria- diretos da epidemiologia como ferramenta lu-
do pelo poder hegemônico, de que forma você crativa ou política. E, por outro, há esse modelo
vê a epidemiologia fortalecendo concretamente epidemiológico causalista, sustentado pela teo-
as características do capitalismo do século XXI? ria dos fatores de risco, que gera diagnósticos de
saúde não relacionados com as profundas con-
Jaime Breilh dições estruturais e de vida da população, mas
A epidemiologia tem uma história muito variada que falam desse mundo dos fenômenos que cer-
em tendências, em momentos históricos. Mudou cam a doença e justificam uma prática monopo-
muito. Esse aspecto da vinculação da epidemio- lista e uma ação de saúde funcionalista.
logia com o poder passou por etapas muito com-
plicadas, inclusive teve o que eu chamo de uma Revista
história non santa. Por exemplo, em momentos Pode-se então dizer que esse modelo epidemio-
de mudanças na América Latina, como foi o ca- lógico (Teoria dos Fatores de Risco) enfraquece a
so da Revolução Mexicana, há vários estudos ideia de determinação social? Ou seja, ao invés de
sobre o papel da epidemiologia, no caso da febre contribuir para desvelar processos de determi-
amarela, no controle da situação política da re- nação social, ele estaria contribuindo, por meio
volução, para viabilizar a entrada de investi- da fragmentação, para torná-los menos visíveis?

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Jaime Breilh valor." Então, se estamos vivendo em um mun-


Sim, exatamente. Eu acho que nós fragmentamos do onde o interesse econômico e o interesse em-
a realidade e assumimos uma conceitualização presarial pressionam sobre os conteúdos e o que
estatística, probabilística. Começamos pergun- é admitido ou não nas revistas, se nós temos
tando se há uma lista de fatores de risco, qual apenas essas evidências como evidências para a
explica uma maior proporção de variação da nossa reflexão, então estamos partindo de um
variável em estudo; e transformamos isso em ponto de vista errado.
uma política pública ou em uma política de Por outro lado, por mais bem intencionadas
saúde. Ou seja, esse fragmento. Portanto, é um que sejam, se as evidências estão construídas a
recurso para focalizar em vez de transformar. partir de uma epidemiologia convencional, que
Em vez de agir em um processo integral, agimos não integra processos nas múltiplas dimensões
de acordo com fatores de risco específicos. e não relaciona as questões com a estrutura so-
cioeconômica, política, e com os grandes con-
Revista dicionamentos culturais, elas serão obviamente
Hoje, um gestor da saúde, ao dizer que elabora po- focalizantes, reducionistas e, evidentemente, as
líticas baseadas na produção de evidências cien- ações serão igualmente reducionistas. Essa é a
tíficas, acredita estar fazendo um discurso de sequência observada, e, consequentemente, é
compromisso social. Para ele, isto equivale a di- muito importante que na construção das evi-
zer que não está correndo riscos com os recursos dências, a partir da epidemiologia crítica, elas
públicos, ao optar por investir no que, compro- se tornem evidências para serem usadas na re-
vadamente, produz resultados. Mas sabe-se que flexão sobre os programas.
a produção de evidência científica ocorre a par-
tir de modelos de estudos que não são capazes de Revista
abordar problemas de diversas naturezas. Eles são Você diria que houve, por parte da epidemiolo-
limitados. Poderia falar um pouco sobre o tema? gia hegemônica, um abandono do conceito de
totalidade, um desinvestimento na compreensão
Jaime Breilh dos fenômenos sociais em sua relação com os
Concordo com o que você acabou de dizer, mas processos de adoecimento e de saúde?
também concordo que as evidências são impor-
tantes para o conhecimento e para a ação. Mas, Jaime Breilh
como você disse: Quem constrói a evidência? E É um abandono do conceito de totalidade, mas
a partir de qual modelo? Porque, se as evidên- acho também que é uma maneira errada de en-
cias são feitas por aqueles que detêm interesses tender a totalidade. Porque a totalidade, na vi-
econômicos, ou seja, se são evidências ligadas são positivista, é o somatório dos fragmentos. A
aos interesses, logo, essas evidências estarão natu- epidemiologia convencional diz: o centro lógico
ralmente enviesadas, e serão adequadas a esses de tudo é um indivíduo afetado por fatores. Lo-
interesses e não à realidade. Portanto, devemos go, este é o indivíduo e esses são os fatores de
refletir sobre quem produziu as evidências e risco. Fator de risco um, fator de risco dois etc.
onde são publicadas. Há também agora uma Isto é: primeiro, o assunto é individualizado; se-
consciência crescente sobre revistas, jornais, re- gundo, os fatores externos são identificados, e
vistas de peer review, que sofrem influência e tenho que agir sobre cada um deles para corri-
controle dos boards [diretores de empresas do gir o problema. Essa visão pode ser bem inten-
ramo editorial], que são os que decidem os cionada. Nessa visão, essa seria a totalidade. A
leitores, e o leitor, finalmente, decide qual tra- totalidade é a suma soma das relações deste in-
balho vai para a revista e qual o trabalho que divíduo, desse outro e daquele outro. Eu faço a
não se enquadra. Recentemente, vi um interes- soma de toda a estatística e digo: eis a minha to-
sante trabalho de David Backet, que diz: "Eu talidade. Essa é uma visão cartesiana em que as
confesso, quero tirar este peso da minha cons- partes são fundamentais, e as partes, quando so-
ciência, porque eu sei que essa questão do peer madas, oferecem uma ideia da generalidade.
review tem se prestado para uma série de ar- Acho que nós partimos de uma visão diferente,
madilhas e há definitivamente coisas que não porque trabalhamos processos que combinam
entram na revista, e não é porque não tenham a estrutura, os modos de vida dos grupos e as

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condições individuais de vida, e também os Revista


efeitos finais nas pessoas, mas articulando sem- A crítica ao conhecimento de base positivista
pre as três dimensões, compreendendo que essa é bastante frequente, mas você sinaliza clara-
unidade em movimento é a realizada, sem atomi- mente alguns de seus desdobramentos na epi-
zá-la, mas mostrando os vínculos. E é por isso demiologia.
que o conceito de determinação social da doença
é diferente do conceito de determinantes sociais Jaime Breilh
da doença. Sobre esta questão, esta diferença, há Acho que devemos reconhecer a riqueza dos
três livros escritos na América Latina, e acredi- modelos estatísticos incubados no Positivismo,
to que isso é importante. mas entendendo que uma coisa é a utilização da
estatística, e outra é assumir, por exemplo, que
Revista o princípio básico da verdade é o experimento.
A epidemiologia incorporou uma série de instru- Todos os modelos epidemiológicos transversais,
mentos modernos das tecnologias da informação casos e controles, longitudinais; todos os mode-
para pensar a questão do espaço, a questão da los da epidemiologia estão baseados na ideia de
distribuição espacial dos problemas do terri- que o mais perfeito da ciência é o experimento.
tório. Mas parece que essa ação também não Isto é, quando posso controlar as variáveis e
produziu ainda um salto para aprofundar uma contrastar grupos randomizados. Ou seja, eu
reflexão sobre as relações sociais no espaço e as tenho grupo A, grupo B, grupo C; faço três trata-
condições que definem o bem-viver ou o mal-vi- mentos e obtenho efeitos, que observo e com-
ver, “uma economia da morte ou uma economia paro. Se a realidade A for diferente da B, então
da vida”, como você diz. eu tenho um efeito diferente. O experimento é o
princípio básico do pensamento positivista. E é
Jaime Breilh por isso que os textos clássicos de epidemio-
Bem, você sabe que quando um curso de epi- logia dizem que o estudo exploratório é trans-
demiologia convencional começa, normalmente versal; que estudo caso-controle é interessante;
afirma-se que há três categorias básicas: lugar, mas que o longitudinal é o mais demonstra-
pessoa e tempo. A epidemiologia estuda o lugar, a tivo porque é o mais parecido com o experi-
pessoa e o tempo. Nesses três conceitos está um mento, porque é a visão experimental a que
dos eixos da concepção convencional. Porque estabelece a pureza da observação empírico-ana-
nós temos: individual, em vez de coletivo; lu- lítica em um estudo. Essa estatística, gerada a
gar como lugar físico e não como uma geografia partir dessas bases, não pode ser descartada,
crítica do processo; e tempo como uma foto con- mas sim identificado o que é útil nela, quais os
gelada e não como uma história das coisas. A elementos, onde estou me apoiando, quais os as-
crítica é para essa visão de lugar, tempo e pes- pectos que posso resgatar da estatística, que é
soa. Acho que a epidemiologia crítica tem tra- uma ferramenta muito poderosa e importante.
balhado para proporcionar uma visão diferen- Agora, esse mesmo instrumento visto a partir de
te e isso significa repensar a noção de espaço. um paradigma diferente tem outros usos, tem
Acredito que aí temos muito que assimilar da implicações diferentes. A análise é conduzida de
geografia crítica, da história do pensamento forma diferente, as variáveis são concebidas e
crítico da geografia, onde estão os textos teóri- trabalhadas de maneira diferente, ou seja, o pa-
cos de Lefèbvre, David Harvey, Milton Santos, radigma é que determinará como é que eu vou
que são pilares da visão de uma geografia dife- usar a técnica. A estatística é uma técnica. O
rente, integral, uma geografia não física, não de mesmo eu diria da geografia. Se a geografia é
localizações empíricas, mas uma geografia em utilizada por um epidemiologista positivista,
movimento e ligada ao sistema social que a con- vai usá-la de uma forma. Se for trabalhada a par-
diciona. São visões diferentes da geografia. A tir de uma perspectiva crítica, será utilizada
epidemiologia convencional utiliza a geografia e de outra maneira. E talvez acabemos usando o
a estatística, e não podemos dizer que por terem ArcGIS, um software de geografia, mas como é
sido mal utilizadas não servem ou têm de ser que vamos usá-lo? Eu uso SPSC e ArcGIS o tem-
descartadas, não é? A estatística foi concebida a po todo, mas o que faço com esse instrumento?
partir de uma epistemologia positivista. O que procuro? Como articulo a minha cons-

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trução explicativa? Que perguntas eu fiz à reali- dos valores, da ciência independente, da ciência
dade? O que articulei na realidade? É diferente, universal, que procurava grandes princípios ex-
e, portanto, a ferramenta me ajuda a fazer coisas plicativos, tornou-se uma universidade onde se
diferentes daquelas que eu faria a partir de uma utiliza uma ciência pós-acadêmica, que definitiva-
visão com outro paradigma. mente é uma ciência burocratizada, instrumental
para o poder. São universidades que perguntam:
Revista qual a produção, como apoiar a produção, como
A lógica de pensar a saúde coletiva de forma resolver as questões do poder institucional. É
vinculada aos requisitos do sistema capitalista e, uma ciência por contrato, a la carte. É uma ciência
consequentemente, à mercantilização da vida por demanda institucional do poder. No campo
tem impactos diretos sobre a formação. Aqui me da saúde pública isso é uma tragédia. Eu disse
refiro especificamente à formação do trabalhador isso anteriormente em um congresso de epide-
da saúde. Sobre esse tema, o que você observa miologia no Brasil. Eu me preocupei muito por-
de resultado mais imediato quanto à formação que há um grande contingente de pessoas que
de sujeitos que poderiam aderir a uma perspec- está fazendo epidemiologia nesse modelo, o velho
tiva mais crítica do campo da saúde? modelo, e ainda convencidas de que estão na
fronteira da ciência!
Jaime Breilh
Bem, eu fui um dos que insistiu muito em que Revista
uma ciência crítica não pode ser feita com uma O que a epidemiologia ganha por aderir? Algu-
ferramenta tradicional. Isto é, não é pelo fato de ma coisa ganha, não?
ter boas intenções e clareza política que vou
usar a velha epidemiologia, porque posso do- Jaime Breilh
mesticá-la com base nas minhas ideias. Porque É claro que ganha, porque se os cursos acadêmi-
não há coerência entre o modelo teórico epide- cos aderem a um modelo convencional, quando
miológico e uma visão crítica da realidade. É por você publica, se você agir direito, consegue pu-
isso que começamos o movimento da epidemio- blicar, e os seus artigos são acolhidos. E se você
logia crítica. Porque muitas pessoas pensavam acumular artigos com peer review você ganha
que era suficiente ter boas ideias. Por que mu- pontos, tem prestígio, vai a congressos, obtém
dar a epidemiologia se com a epidemiologia tra- projetos de pesquisa, ou seja, você está na re-
dicional se poderia trabalhar? produção social dessa linha.
Mas há uma contradição entre o modelo epi-
demiológico tradicional e uma construção teóri- Revista
co-política diferente. Daí a necessidade. Agora, São benefícios individuais, compatíveis com
o que você está dizendo é a grande tragédia da uma sociedade profundamente individualista.
América Latina, porque há muitas universida-
des onde a maioria utiliza um modelo antigo de Jaime Breilh
saúde pública. Tudo é positivismo. Então, como É um modelo academicista, funcional, muito com-
construir um ponto de vista diferente dos pro- petitivo, muito individualista. Não é um modelo
fissionais nesse tipo de cenário? de uma ciência comprometida, contra-hegemô-
nica. Esta não vai ser publicada ou, pelo menos,
Revista terá maiores dificuldades para ser publicada no
Embora as universidades tenham mudado bas- que é o mainstream da ciência.
tante, pouco tem sido acrescentado para posi-
cioná-la como espaço de contestação. Revista
Na sua produção teórica, você tem tratado dos
Jaime Breilh 4S (sustentabilidade, solidariedade, soberania e
Sim, é isso do que se está falando agora. Inclu- seguridade integral) compreendidos como prin-
sive há quem defenda que a universidade se cípios para a sociedade da vida e de sua relação
transformou no que é chamado de ‘universidade com cinco dimensões da saúde. Poderia retomar
pós-acadêmica’. Ou seja, a universidade basea- essa articulação (entre os 4S e as cinco dimen-
da nos clássicos princípios de Merton, da ciência sões da saúde)?

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Jaime Breilh lo teórico que foi utilizado para entender essa


De uma forma resumida, eu diria que a saúde in- realidade. Para alguns, pode ser eficaz um mo-
dividual está ligada à saúde coletiva, e saúde delo que simplesmente se reduza a níveis mí-
coletiva depende da validade desses princípios. nimos de cobertura. Ou um modelo que atinja
Se a vida não é sustentável, se a sociedade não é uma meta de uma redução percentual de mor-
solidária, se não há soberania, controle sobre a bidade ou mortalidade etc. Esse é um modelo
vida, e finalmente, se não há segurança, biosse- de avaliação, mas se eu pretendo, por exemplo,
gurança na natureza e no ser humano, não po- avaliar o grau de desenvolvimento da sustenta-
demos ter modos de vida saudáveis. bilidade, da soberania, da solidariedade e da con-
E esses princípios precisam ser expressos em dição de biossegurança ecossistêmica integral,
tudo o que é modo de vida. No meu trabalho, vou precisar construir outro tipo de relações e
argumento que o modo de vida ocorre em vários outros indicadores. Agora estamos fazendo no
espaços, em vários momentos de reprodução so- Equador um estudo comparativo de três cená-
cial. Um deles é o espaço do trabalho, onde a rios na zona de produção de banana.
gente desenvolve a atividade produtiva. Outro
é o espaço de consumo, doméstico, da mobili- Revista
dade, onde se dá a reprodução da condição de Na zona de produção de banana...
sujeito social. Uma terceira dimensão seria o es-
paço organizacional, político, os suportes comu- Jaime Breilh
nitários e familiares que existem, que é toda a O Equador é o maior produtor de banana do
vida política, de vinculação ao redor de inte- mundo. Temos muitos anos de trabalho com as
resses e projetos históricos que um grupo possa organizações de agricultores que lutam para de-
ter. Um quarto espaço seria o da cultura, onde a senvolver uma produção agroecológica de ba-
identidade, a subjetividade e as visões de mun- nana. Eles trabalham sem produtos químicos, ou
do são construídas. E, finalmente, o espaço eco- seja, são sustentáveis, são solidários, protegem a
lógico, o espaço ecossistêmico onde nos movi- biodiversidade, protegem os ecossistemas e têm
mentamos. Essas são as cinco dimensões, cada um nível de suporte organizacional. Ou seja, es-
uma das quais deve cumprir com os 4S. tão atendendo melhor os 4S, mas dizem que são
20% menos produtivos do que a empresa ba-
Revista naneira de agroexportação, que usa produtos
Um termo que não aparece na sua fala é ‘ava- químicos, que opera de forma convencional.
liação’, que, do meu ponto de vista, pode ser Então, debatendo com os colegas, chegamos à
entendida como uma tecnologia de gestão am- seguinte conclusão: as organizações de agricul-
plamente difundida. O que poderia nos dizer tores produzem 20% menos caixas de bananas
para ajudar a refletir sobre o lugar dos indica- por semana do que a empresa bananeira de
dores e sobre o cenário no qual a avaliação apa- agroexportação, mas para produzir 20% mais
rece não como uma possibilidade de reflexão, caixas de banana por semana, esta empresa usa
mas como um modelo de resposta aos enca- produtos químicos, utiliza sistemas de produção
minhamentos que são dados à política, em par- perigosos, contamina a água, prejudica a saúde
ticular na saúde? de trabalhadores desprotegidos etc. Quanto cus-
ta isso? Não custa nada? Essas externalidades não
Jaime Breilh têm custo? Têm, sim. Então, vamos ver quanto
O problema não é a avaliação. O problema está custam, incorporar esse dado na contabilidade e
no modelo de avaliação. Posso avaliar um povo, ver se ela ainda é 20% mais eficiente, mais efe-
em um momento histórico. Por exemplo, pos- tiva. Estamos criando o indicador produtivida-
so dizer qual a condição da saúde no Brasil no de líquida e efetividade real e desempenho real
novo milênio. Mas como é que eu vou avaliar? para confrontar essa visão.
Quais os critérios? Critérios clássicos, por exem- Essa é a base sobre a qual espero, algum dia,
plo, são: eficácia, eficiência e efetividade, ok? começar uma negociação de políticas públicas
A construção da eficácia, da eficiência e da efeti- de apoio aos trabalhadores. É uma visão dife-
vidade depende do modelo conceitual, do mode- rente de construir a avaliação.

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Revista Jaime Breilh


(Pergunta de Larissa Jatobá) O que nós, como es- Bem, eu não sei o suficiente sobre a realidade do
tudantes, podemos falar para um professor de Brasil. Sempre tive a ideia de que os conselhos
epidemiologia quando nos deparamos com esse do SUS eram um avanço, e acho que de alguma
modelo tradicional que está presente mesmo na forma eles são, embora haja muita variação de
universidade pública? Como abordar esse pro- uma cidade para outra, de um estado para ou-
fessor e colocar em questão essa forma de pen- tro. Mas, por exemplo, na área de Porto Alegre,
sar a epidemiologia? o orçamento participativo e as experiências de
decisão coletivas das políticas dos orçamentos
Jaime Breilh têm sido importantes. Não conheço o suficiente
É terrível, porque o professor tem o poder de para dizer se há uma burocratização desses con-
dar a nota e tem controle sobre a disciplina. Por- selhos ou não. Talvez a realidade seja muito
tanto, você está em desvantagem. É complicado. heterogênea e haja áreas onde eles estejam buro-
É uma pergunta muito difícil porque implica cratizados, instrumentalizados por algum par-
que, se há um ensinamento baseado em um mo- tido político, e outras áreas onde sejam mais
delo antigo, enquanto não receber as suas notas, independentes, mais críticos. Não sei. Em ou-
eu não sei... Eu vou dar um conselho, um pouco tras realidades, no entanto, percebe-se que é
cínico talvez, mas se há uma chance de conver- muito claro. No Equador, a mudança foi feita
sar e a pessoa tem uma abertura científica míni- para, em vez de ter uma representação natural
ma, você pode dizer: O que o senhor acha? Eu orgânica, formar um poder de pessoas mediante
tenho essas ideias, essas perguntas, essas dúvi- um concurso de méritos. O concurso de méritos
das. Eu não acho que isso explica isto ou aquilo, é para o conselho de participação. Cada pessoa
o que o senhor acha? O senhor concordaria se apresenta o seu expediente, o seu currículo, e
no meu trabalho, no meu ensaio ou no meu pro- aqueles com a melhor pontuação fazem um
jeto, eu abordasse essas questões? Se ele disser teste, daí saem os conselheiros. Pode tratar-se de
que sim, você trabalha em uma linha diferente. gente de valor inestimável, pessoas muito in-
O importante é que você compreenda onde es- teligentes, mas o problema é que são pessoas.
tão os equívocos do professor. Em uma situação Então, a quem eles devem? Porque, além disso,
de doutorado, por exemplo, quando você tiver o Governo lhes paga um salário, e um bom
que apresentar suas ideias, vai ser mais fácil ne- salário. Se você é uma pessoa e tem um salário,
gociar e não poderão prejudicá-la. Entretanto, tende a fazer o que é preciso para mantê-lo.
é preciso elaborar uma estratégia e, principal-
mente, entender que essa solução nunca será Revista
pessoal. Você sozinha não vai resolver nada. Ou Existem determinados modos de atuar que po-
a instituição muda porque as pessoas se organi- dem futuramente ser apresentados como mode-
zam e reclamam mudanças nessa disciplina ou los a seguir. É possível que, sob uma bandeira
você sozinha só terá a perder. de ‘qualificação’, se esvazie a mobilização social
mais autêntica?
Revista
Aproveitando seu comentário, gostaria de discu- Jaime Breilh
tir o processo de conversão da participação po- A participação popular tem que ser nos conse-
pular em representação individual. Na saúde, lhos, mas também tem que ser forte, indepen-
movimentos sociais das décadas de 1970 e 1980 dente, autônoma e soberana, do lado de fora.
possibilitaram a criação dos conselhos de saúde, Em outras palavras, somos parte do Estado, mas
que deveriam ser espaços para promover a par- não do sistema público. O Estado é o conjunto,
ticipação popular. Mas parece que, em vários mas a participação não pode ser instrumenta-
contextos, tem se dado mais no modelo de re- lizada e burocratizada. Mas, obviamente, você
presentação individual do que no de efetiva vai ter que conversar e discutir as políticas com
participação popular. os ministros, governadores e prefeitos. Em al-
gum momento você tem que falar, não pode

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dizer: não falo com ninguém do Governo para Notas


não me contaminar. Você precisa debater. Mas se
você tem força, se tem uma organização inde-
pendente, a discussão transforma isso no que 1 Entrevistaconcedida a Angélica Ferreira Fonseca,
chamo de ‘condução pública-social’, uma vez editora científica de Trabalho, Educação e Saúde e
que essa burocratização, no fundo, interpreta professora-pesquisadora da Escola Politécnica de
erradamente que tudo deve ser regido pelo Es- Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo
tado. Então, o Estado é o reitor e nada fora do Cruz, que contou com a colaboração de Larissa
Estado. É um erro, porque a sociedade civil or- Jatobá, estudante de Medicina da Universidade
ganizada fora do Estado tem que entrar no de- Federal do Rio de Janeiro e membro da Direção
bate da condução pública-social da gestão. Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina.
Traduzida do espanhol por Andrea Moll.
Revista
Já há um conjunto interessante de discussões 2 A versão da entrevista de Jaime Breilh em língua es-
nesta entrevista, mas gostaria de encerrar abrin- panhola está disponível em: <http://scielo.br/tes>.
do espaço para que você fale livremente sobre
algo que possa complementar o que já foi dito.

Jaime Breilh
Toda vez que eu venho ao Brasil fico emociona-
do, fico motivado porque é um país grande,
maravilhoso, cheio de gente fazendo coisas num
turbilhão de ideias, de debates. Isso me faz sen-
tir bem e a gente pensa que este país, como eu
dizia outro dia, é um país-continente e o que
acontece no Brasil é muito importante, não só
para o Brasil, mas para o resto da América do
Sul. O Brasil enfrenta um dilema: ou se torna um
dos grandes irmãos do Sul da América ou se tor-
na uma nova opção imperial. E da solução desse
dilema vai depender tudo, a saúde brasileira es-
pecialmente. Então, tomara que o povo tenha a
sabedoria para se organizar e manter um Brasil
do Sul e não um projeto de Norte no Brasil.

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