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●  ●  , º  ● -  277

Berkeley e a confiança nos sentidos


 *

Resumo ● Berkeley defende que ser é ser percebido. É importante que essa tese seja vista como dizendo
respeito ao que é referido por ele, tecnicamente, por meio de “idéias”. Dessa forma, pode-se ver que a
concepção da existência independente, que é impugnada por Berkeley em um argumento famoso, tanto no
Tratado quanto nos Diálogos, não recebe de sua parte nenhum tratamento envolvendo uma falácia: essa de
fazer equivaler poder ser percebido com ser percebido. Neste artigo, (1) respondo a essa acusação e (2) mostro
que o termo técnico “idéia” é crucial para uma correta compreensão da articulação por parte de Berkeley da
doutrina da “confiança nos sentidos”: são eles que nos põem em contato com o que de fato existe.
Palavras-chave ● Berkeley, idéias, confiança nos sentidos, existência independente.

Title ● Berkeley and the Confidence in the Senses


Abstract ● Berkeley claims that being means being perceived. It is important that such thesis should be
regarded as concerning what he technically expresses through ‘ideas’. Thus, we can realize that the conception
of independent existence, which is confuted by Berkeley in a famous argument, both in the Treaty as in
the Dialogs, does not receive from him any treatment involving a fallacy: reducing to the same thing both
being able to be perceived with being perceived. In this paper 1) we answer this accusation, and 2) we show
that the technical term ‘ideal’ is crucial for a correct understanding of the Berkeley’s articulation of the
‘confidence in the senses’ theory: they are responsible for putting us into contact with what actually exists.
Keywords ● Berkeley, ideas, confidence in the senses, independent existence.

But can you think it no more than a philosophical paradox to say that
real sounds are never heard, and that the idea of them is obtained by
some other sense. And is there nothing in this contrary to nature and
the truth of things?
(Berkeley, Three Dialogues, p.183)

No man, in his senses, ever thought of applying his eyes to discover


what passes in his mind; far less of blaming his eyes for not seeing a
thought or idea.
(Lord Henry Homes Kames, Elements of Criticism, apud Adela Pinch:
Strange Fits of Passion, p. 6)

1. CONFIANÇA NOS SENTIDOS sentidos. Gostaria de apontar somente três delas,


a título de ilustração. No prefácio a Três diálogos,
O irlandês George Berkeley merece o epíteto de Berkeley lamenta que nos “estudos especulativos”
“patrono da confiança nos sentidos”. Essa avalia- os “filósofos” tenham “obscurecido as coisa mais
ção pode ser aceita tranqüilamente pro forma, claras”, tenham adotado “aquela desconfiança dos
pois basta notar as várias referências que Berkeley sentidos, aquelas dúvidas e escrúpulos, aquelas
faz à importância filosófica da confiança nos abstrações e refinamentos que ocorrem na entra-
da mesma das ciências” (D3, 167)1. Na última fala
de Hylas, no final do terceiro diálogo, há um re-
conhecimento cândido do que o animava e que o
Data de recebimento: 23/09/2005.
levou ao erro:
Data de aceitação: 31/03/2006.
* Professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul.
Eu tenho, por um longo tempo, duvidado dos meus
E-mail: klaudat@ufrgs.br. sentidos; parecia-me que via as coisas através de
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uma luz tênue, e através de óculos falsos. Agora alegado como uma prova para a existência de
os óculos foram removidos, e uma nova luz qualquer coisa que não é percebida pelos sentidos.
penetra meu entendimento. Eu estou claramente Nós não desejamos que ninguém se torne cético e
convencido de que eu vejo as coisas nas suas formas desacredite dos seus sentidos; pelo contrário, nós
nativas, e não estou mais sofrendo a respeito de lhes damos toda ênfase (stress) e segurança
suas naturezas desconhecidas ou existências imagináveis; nem há quaisquer princípios mais
absolutas (D3, 262). opostos ao ceticismo que estes que nós apresen-
tamos...
A terceira referência é uma manifestação do
próprio Philonous: “Eu tenho uma compleição Essa seção indica que, para Berkeley, a maneira
comum (vulgar cast), simples o bastante para acre- correta de articular e defender a “confiança nos sen-
ditar nos meus sentidos, e deixar as coisas como tidos” precisa dessa vinculação crucial entre existir
eu as encontro” (D3, 229). e ser percebido pelos sentidos, pois o apelo ou ale-
Mas, na suposição de que a “confiança nos senti- gação via “testemunho dos sentidos” para o que
dos” seja algo importante ou mesmo crucial na não pode ser percebido não é adequado a realizar
filosofia em geral, cabe perguntar se o elogio a a tarefa filosófica necessária. O que a seção 40 dei-
Berkeley é realmente merecido. Não será o com- xa suficientemente claro é que o assunto central é
prometimento de Berkeley com a “confiança nos o da relação da existência com o que é percebido
sentidos” somente da “boca para fora”? A resposta pelos sentidos. Esse tema é o que irei abordar na
definitiva, exaustiva, a essa pergunta, certamente seqüência com a análise de um argumento famoso
passa pela resposta à pergunta sobre a natureza de Berkeley.
do imaterialismo de Berkeley, e assim mais especi-
ficamente pela resposta à pergunta que, como pano 2. A CENTRALIDADE DA EXISTÊNCIA NO
de fundo, anima o presente escrito: é o imaterialis- ARGUMENTO FAMOSO
mo um realismo? No presente artigo pretendo, no
entanto, somente ter começado a trilhar o cami- Há um argumento famoso apresentado por
nho para uma resposta a essa última pergunta. Berkeley tanto no Tratado quanto nos Três diálo-
A maneira de Berkeley compreender a “confian- gos para o efeito de que não é possível conceber
ça nos sentidos” está, ao menos, implicada na seção objetos existindo fora da mente (without the
40 do Tratado (TPHK), que deixa claro que ele mind). Há algumas expressões que Berkeley utiliza
distingue a “confiança nos sentidos” de uma outra na formulação dessa tese que a deixam, à primeira
doutrina com a qual ela pode muito facilmente ser vista, menos chocante. Mas o argumento é famoso
confundida, a saber, a da “evidência dos sentidos” em parte porque Berkeley está disposto a “put the
ou a do “testemunho dos sentidos”. Diz a seção 40: whole upon this issue” (TPHK, 22; D3, 200). O
argumento ocorre no Tratado nas seções 22-4 e nos
Mas, diga-se o que se quiser, alguém ainda será Diálogos na página 200 da paginação de Luce e
capaz de replicar que ele ainda acreditará nos seus Jessop. Primeiramente apresentarei o argumento,
sentidos, e nunca aceitará (suffer) que qualquer destacando seus passos principais e a conclusão nos
argumento, não importando o quão plausível, termos dos textos de Berkeley, o que por certo não
prevaleça em relação à certeza deles. Que seja deixará claro à primeira aproximação por que
assim, afirme-se a evidência dos sentidos tão Berkeley tinha tanta confiança nesse argumento.
claro quanto se queira, nós estamos dispostos a Em segundo lugar, apresentarei uma interpretação
fazer o mesmo. Aquilo que eu vejo, ouço e sinto natural dos textos em questão, que também nos
existe, quer dizer, é percebido por mim, disso eu convida naturalmente a encontrar um erro grave
não duvido mais do que eu duvido da minha no argumento do bispo. Essa interpretação merece
própria existência (my own being). Mas eu não o nome de “interpretação mentalista”. Em tercei-
vejo como o testemunho dos sentidos possa ser ro, desejo oferecer uma interpretação alternativa
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dos textos de Berkeley, que dependerá essencial- ao que foi pedido, somente mostraste que
mente da determinação do objeto do argumento tens o poder de imaginar ou formar idéias
que está nesses textos. Com essa interpretação po- na tua mente. (Tratado).
derei defender que o assunto central para ele é o Diálogos: enquanto pensava numa árvore
da relação do conceito de existência com o con- num lugar solitário, onde ninguém estava
ceito do que é percebido pelos sentidos. presente para vê-la, me pareceu (methought)
que isso era conceber uma árvore como
)      existindo não-percebida ou sobre a qual
 não se pensava (unthought of), não conside-
A apresentação do famoso argumento de rando que eu mesmo a concebia por todo
Berkeley conforme o que se encontra na letra dos o tempo. Tudo o que fazia era formar idéias
textos pode ser estruturada da maneira que se na minha própria mente.
segue. Há o desafio inicial em torno de uma tarefa 4. Conclusão: mostrar que se tem o poder de
considerada impossível (1º passo: a tarefa impos- imaginar ou formar idéias na própria men-
sível); há na seqüência a afirmação de que, ao te não mostra de maneira alguma que se está
contrário, a tarefa pode ser facilmente realizada concebendo como possível que os objetos
(2º passo: negação do que foi dito no 1º passo); há do pensamento existem fora da mente. Con-
a avaliação negativa do passo anterior (3º passo: ceber o solicitado exigiria necessariamente
errou-se o alvo no passo anterior); com o resultado conceber aqueles objetos como “existindo
de que a tarefa é de fato de realização impossível no inconcebidos” (existing unconceived) ou
contexto da tentativa ensaiada (conclusão). Então como aqueles sobre os quais não se pensa
temos: (unthought of). Isso é uma “manifesta repug-
nância” (Tratado).
1. Tenta conceber como possível para um som, Diálogos: posso de fato conceber nos meus
ou figura, ou movimento, ou cor, existir próprios pensamentos a idéia de uma árvo-
fora da mente (without) ou não-percebido re, ou de uma casa, ou de uma montanha,
(“para uma substância extensa movível”) mas isso é tudo. E isso está longe de provar
(Tratado). que eu possa concebê-las “existindo fora das
Diálogos: tenta conceber como possível para mentes de todos os espíritos”. Não é possível
qualquer mistura ou combinação de qua- conceber como uma coisa corporal sensível
lidades, ou qualquer objeto sensível, existir qualquer deva existir de outro modo do que
fora da mente. em uma mente.
2. Nada mais fácil: basta imaginar árvores
num parque ou livros existindo num closet  )    
e ninguém próximo a percebê-los (Tratado).  
Diálogos: basta conceber uma árvore ou Segundo uma interpretação natural do argu-
casa existindo por conta própria, indepen- mento de Berkeley, o ponto central está no passo
dentes da mente e não-percebidos por nenhu- 3, esse que desautoriza a tentativa do oponente
ma mente. de conceber algo existindo independentemente da
3. Não há dificuldade especial com o que fizes- mente. Nesse passo, Berkeley estaria sustentando
te, mas isso não atende ao desafio, pois o que uma tese mentalista segundo a qual pensar sobre
fizeste foi “formar (framing) na tua mente algo é inescapavelmente ocupar-se com as idéias
certas idéias que tu chamas livros e árvores, e desse algo, com a conseqüência de que o algo em
ao mesmo tempo omitir formar a idéia de questão é por isso mesmo tornado dependente da
qualquer um [uma pessoa] que possa per- mente ou transladado para dentro da mente. O que
cebê-los”. És tu mesmo que percebes ou pen- tornaria plausível o comprometimento de
sas neles todo o tempo. Assim, não atendes Berkeley com uma posição tão idealista seria a pre-
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sença de um deslize na argumentação do bispo “idéia” é o mesmo que perceber; portanto, não
(cometido mesmo por causa do objetivo de ad- perceber nada é, quando o assunto é “idéias”, não
vogar tal idealismo), esse de entender poder ser ter qualquer “idéia”.
percebido para um objeto independente com ser A resposta à acusação de erro por parte de
efetivamente percebido pela mente. Trata-se de Berkeley começa, então, por lembrar que essa é a
uma falácia de composição, um erro que consiste compreensão dele do que são “idéias”, é como ele
em confundir duas afirmações de fato distintas, as entende para efeitos de argumentação. Em
como: segundo lugar, devemos notar que, de fato, o argu-
mento famoso diz respeito exclusivamente a “idéi-
(1) Ele é capaz-de-ler quando não está lendo. as” como ele as entende. Ou seja, o argumento não
(2) Ele é capaz de ler-quando-não-está-lendo. é sobre, não diz respeito ao que não pode em
Berkeley ser confundido com “idéias”, a saber, a
Ora, (2) não é aceitável: ninguém é capaz disso, mente. Para a resposta, então, o argumento de
a saber, de ler-quando-não-está-lendo. Seria exa- Berkeley não se pronuncia sobre uma capacidade,
tamente essa confusão que permitira a Berkeley um poder, da mente, essa de ser capaz de perceber/
impugnar a tentativa do seu oponente. Ele não pensar quando não se está, de modo a absurdamen-
seria, segundo Berkeley, capaz-de-perceber (ou te não atribuí-la, a capacidade, à mente quando ela
capaz-de-pensar) quando não está percebendo não está efetivamente percebendo ou pensando.
(ou pensando) porque ele não seria capaz – como Berkeley não cometeu esse erro, como o teor de
ninguém de fato é – de perceber-quando-não-está- suas preocupações com a “existência não-perce-
percebendo (ou capaz de pensar-quando-não- bida” indica. Quanto à mesa da seção 3, “se eu
está-pensando)2. estivesse fora do meu estúdio eu diria que ela existiu
(existed)”, querendo Berkeley dizer que “eu diria
 )       que ela existe”. Ora, pensa-se nela, portanto. Vol-
  tarei a esse assunto na continuação.
É claro que Berkeley apresenta sua posição filo- O ponto central da resposta consiste em fazer
sófica – o imaterialismo – de um modo que causa ver que o argumento famoso diz respeito a “idéias”
espanto: a seção 7 do Tratado diz que em razão do como Berkeley as compreende, e não a mentes como
que veio antes, nas seis primeiras seções, podemos nós (e ele também, assim parece) as compreende-
concluir que o imaterialismo está assentado, e diz mos, ao menos quanto à capacidade mencionada.
isso da seguinte maneira: “Do que foi dito, segue-se É notório que os textos do argumento particulari-
que não há qualquer outra substância que espíri- zam o objeto a respeito do qual se deseja entreter
to, ou aquilo que percebe”. A seção 2 deixa claro a concepção da existência independente. Trata-se
que existem somente espíritos ou mentes e idéias que de um som etc., de uma substância extensa
pertencem às mentes3, e também esclarece o que tec- movível (os Diálogos falam de “qualquer objeto
nicamente deve ser entendido com a afirmação da sensível”). O que isso indica é que o objeto dessa
existência de uma idéia, o que é crucial para a res- concepção é um objeto particular para a mente,
posta. Diz a seção 2: “Por essas palavras [mente, claro que na sua concepção dele. Mas exatamente
espírito, alma ou meu eu] eu não denoto qualquer por isso é uma “idéia”, e – conseqüentemente –
uma de minhas idéias, mas uma coisa completa- para uma “idéia” existir é preciso que seja perce-
mente distinta delas, na qual existem, ou, o que é a bida pela mente. Ou seja, os “objetos do pensa-
mesma coisa, por meio da qual elas são percebidas; mento” envolvidos na disputa são “idéias” e para
pois a existência de uma idéia consiste em ser perce- elas existir é ser percebido.
bida”. Registre-se essa dimensão da compreensão Assim, se quisermos fazer esse ponto ter im-
técnica de Berkeley das “idéias”: uma “idéia” somen- plicações para a concepção de Berkeley de certas
te existe ao ser percebida, ou enquanto é percebida. capacidades da mente, então deveríamos enten-
A seção 7 afirma, na mesma direção, que ter uma der corretamente o que ele deseja sustentar no seu
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argumento famoso. Ele não está impugnando (3) ele do qual ele tratava no seu argumento famoso, na
é capaz-de-perceber quando não está percebendo continuação imediata do texto do Tratado, a
porque (4) ele é capaz de perceber-quando-não- seção 24, que diz:
está-percebendo é inaceitável; mas,
alternativamente, Berkeley está impugnando (3) É muito fácil, após uma pequena investigação dos
ele é capaz-de-perceber quando não está perce- nossos pensamentos, saber se é possível para nós
bendo porque o que está em jogo nessa capacida- entendermos o que se quer dizer (meant) com a
de é a capacidade de perceber uma idéia, ou seja, existência absoluta de objetos sensíveis neles mes-
não é possível para Berkeley (5) ele é capaz-de- mos, ou fora da mente. Para mim é evidente que
perceber uma idéia quando ele não está perceben- essas palavras assinalam ou uma contradição
do a ela. O que a constatação de que o argumento direta ou nada absolutamente.
famoso de Berkeley diz respeito a “idéias” como
ele as compreende permite ver é que não é possível .      
conceber uma “idéia” existindo quando não estão Por que, porém, o uso técnico de “idéias” é tão
satisfeitas as condições para que ela exista. Em importante para Berkeley? Essa pergunta deve ser
termos da posição de Berkeley, uma “idéia” “ausen- compreendida da seguinte maneira: por que
te” para ou da mente não é uma “idéia” in absentia, Berkeley procura fazer o seu argumento a respei-
mas, de fato, simplesmente não é “idéia” alguma. to da existência independente depender de uma
Conseqüentemente, é certo que há algo de insa- acepção do termo “idéias” que vincula para elas
tisfatório no modo de Berkeley proceder na apre- “existir” com “ser percebido”?
sentação do seu argumento, pois é quase inevitável A minha resposta é: porque Berkeley deseja
que compreendamos a referência à concepção “em articular filosoficamente a doutrina da “confiança
meus próprios pensamentos” da idéia de uma nos sentidos”, que diz que são os sentidos que nos
árvore ou de uma casa de um modo mentalista, põem via percepção em contato com o que de fato
isto é, de um modo que conduz a posição a um existe. A importância para Berkeley de serem “idéi-
idealismo ao extremo. E falar em existir “em uma as” aquilo do que estamos falando quando que-
mente” ou “na mente”, por oposição à “fora da men- remos falar de existências não está no fato de que
te”, também suger esse idealismo. Mas, se as “idéias” isso facultaria a ele sustentar um idealismo segun-
forem compreendidas do modo em que Berkeley do o qual existir é estar dentro da mente. Ou, sim-
introduz o conceito, então, parece que o que ele plesmente, ser mental (sobre o que incidiria a
afirma no seu argumento famoso não precisa ser crítica de Kant nos Prolegomena: a de ser o idealis-
claramente inconsistente. O que estou procu- mo de Berkeley um idealismo místico e visionário
rando mostrar é que não há – ao menos isso – sobre a forma da existência das coisas, enquanto
nenhuma inconsistência da parte de Berkeley na Kant não se ocuparia com a existência de coisa
apresentação de seu argumento. Ora, porque ele alguma). A importância das “idéias” para Berkeley
diz respeito às “idéias”, e nele o ponto crucial é o da é que a acepção-chave do termo permite a ele a
existência das “idéias”. Mas de interesse neste articulação da doutrina da “confiança nos sentidos”
momento passa a ser a vinculação da existência justamente em relação à concepção aceitável da exis-
das “idéias” com o ser percebido pelos sentidos. tência das coisas. É que a acepção-chave permite a
A negligência dessa vinculação, me parece, é preci- Berkeley (1) a certeza em relação ao existir de algo
samente o que dá ensejo à queixa de Berkeley na e (2) a certeza quanto àquilo que assim existe.
seção 40 do Tratado, já citada, de que de nada Esse segundo ponto está presente na seção 25 do
adianta enaltecer os sentidos como “testemunhas”, Tratado, quando Berkeley esclarece que, quanto às
pois tal enaltecimento é impróprio quando eles “idéias”, por ser o caso que “elas e todas as partes
são “testemunhas” da existência de algo que não é delas existem somente na mente, segue-se que não
percebido por eles. Essa vinculação é também o que há nada nelas senão o que é percebido”. O rationale
confere propriedade à identificação do assunto, do uso de “idéias” por parte de Berkeley é, portanto,
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em termos completamente anacrônicos, a exten- Philonous: Eu desejaria que nossas opiniões fos-
são da autoridade da primeira pessoa em relação sem expostas imparcialmente (fairly stated) e sub-
ao conteúdo da representação dos objetos dos metidas ao julgamento de homens que têm um
sentidos4. Bem, certamente, pelo uso técnico de senso comum simples, sem os preconceitos de
“idéias” para falar desses objetos. Esse elemento da uma educação versada (learned education). Que
certeza está presente em várias partes do texto de me representem como alguém que confia nos seus
Berkeley, e sempre com ressonâncias cartesianas sentidos (who trustes his senses), que pensa que
quanto ao ponto arquimediano, ou seja, a certeza conhece as coisas que vê e sente e que não entre-
fundamental. Algumas passagens são as seguintes, têm dúvidas sobre suas existências; e tu serás apre-
e mais pode ser depreendido delas para o meu pro- sentado imparcialmente com todas as tuas dúvidas
pósito neste texto, embora eu não vá explicitar os e paradoxos, e com todo esse ceticismo à tua vol-
assuntos. ta, e eu de boa vontade aceitarei a resolução (in
A própria seção 40: “Aquilo que eu vejo, ouço the determination) de qualquer pessoa indiferen-
e sinto existe, quer dizer, é percebido por mim, eu te ao assunto (indifferent) (...) Se há qualquer
não duvido mais [disso] do que eu duvido da mi- coisa que faça a generalidade da humanidade re-
nha própria existência (my own being)”. pelir as noções que esposo, trata-se da compre-
No terceiro diálogo (D3, 229-30), lemos: ensão incorreta de que eu nego a realidade das
coisas sensíveis: mas como és tu que és culpado
Philonous: Que uma coisa deva ser realmente per- disso e não eu se segue que na verdade a aversão
cebida pelos meus sentidos, e ao mesmo tempo [da humanidade] é contra as tuas noções, não as
não existir realmente, é para mim uma clara minhas. Eu portanto afirmo que estou tão certo
contradição; pois eu não posso eliminar (prescind) a respeito de existirem corpos ou substâncias
ou abstrair, mesmo em pensamento, a existência corpóreas (querendo significar as coisa que per-
de uma coisa sensível de ela ser percebida. Madeira cebo pelos meus sentidos) quanto da minha pró-
(wood), pedras, fogo, água, carne, ferro e coisas pria existência.
similares, que eu nomeio e sobre as quais discor-
ro são coisas que conheço. E eu não haveria de E na fala seguinte Hylas resume assim a posi-
conhecê-las a não ser por eu percebê-las pelos meus ção de Philonous: “De acordo contigo, os homens
sentidos; e coisas percebidas pelos meus sentidos julgam a realidade das coisas por meio dos seus
são imediatamente percebidas; e coisas imediata- sentidos”.
mente percebidas são idéias; e idéias não podem
existir fora da mente; sua existência portanto con- . :   ,
siste em ser percebida; quando então elas são ,   
efetivamente percebidas, não pode haver qual- 
quer dúvida da sua existência. Fora então com todo
aquele ceticismo, todas aquelas dúvidas filosóficas A doutrina da “confiança nos sentidos” é, então, em
ridículas. Que chiste (jest) é para um filósofo ques- Berkeley, a posição que diz que são os nossos sen-
tionar a existência das coisas sensíveis até que ela tidos que nos põem em contato com o que de fato
tenha sido provada para ele a partir da veracida- existe, ao menos em relação a tudo o que é sensí-
de de Deus: ou pretender que nosso conhecimen- vel ou dessa natureza: mentes não são assim. Mas
to nesse assunto está aquém da intuição ou como compreender exatamente a existência em
demonstração? Eu poderia tanto duvidar na mi- relação aos objetos sensíveis de um modo, diga-
nha própria existência quanto da existência da- mos, geral? O que é a existência para esses objetos
quelas coisas que eu efetivamente vejo e sinto. que existem ao “serem percebidos”? Esgota-se o
sentido geral da existência em Berkeley na atesta-
Um pouco mais adiante no mesmo terceiro ção efetiva de que algo se apresenta aos sentidos?
diálogo (D3, 237-8): E a existência do que não-tecnicamente não está
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sendo presentemente percebido, a assim chamada Mas, se isso é assim, então a existência precisa
“existência não-percebida”? ser uma idéia que pode acompanhar a concepção
O caso da mesa na seção 3 do Tratado nos per- ou pensamento de um objeto não-percebido pre-
mite dizer algo sobre esse tipo de existência. É certo sentemente, e como se trata da concepção ou pen-
que o caso é apresentado como uma ilustração do samento de um mesmo objeto, a mesma mesa,
que Berkeley deseja sustentar a respeito da existên- disso se segue que a existência não pertence a ne-
cia das “idéias nas mentes”, mas o ponto que me nhuma determinação do objeto. Que se note bem,
interessa é apresentado via o apelo a um “conheci- a existência efetiva e o estabelecimento dela não
mento intuitivo”, para nós também (ou seja, até está em jogo agora8. Só queremos entender o que é
mesmo hoje em dia), em relação à existência da mesa. pensar na mesa como existente sem ser percebida
Diz Berkeley: “Eu penso que um conhecimento presentemente, e isso parece ser pensar nela como
intuitivo disso pode ser obtido por qualquer um existindo simpliciter, sem que isso a distinga na
que preste atenção ao que se quer dizer com o sua natureza em relação a quando efetivamente a
termo existe quando aplicado a coisas sensíveis. percebemos com as suas propriedades. Há uma
A mesa sobre a qual escrevo, eu digo, existe, isto é, maneira não-berkeleyana de dizer isso: a existên-
eu a vejo e a sinto”. cia não é um predicado, ou podemos dizer o mes-
É exatamente nesse ponto que Berkeley introduz mo de um modo peculiar: a existência não é um
o problema da existência do que não está sendo predicado real (Kant). Hume sabia disso, e, se ele
percebido do ponto de vista de uma preocupação qua- sabia, Berkeley também sabia (cf. AYERS, 1994).
se que ordinária sobre a existência desses objetos. Con- Com a qualificação de que para Hume uma carac-
tinua ele: “E se eu estivesse fora do meu estúdio eu terização tal como “predicado real” era irrelevan-
diria que ela existiu [e existe] querendo dizer com te, pois uma afirmação como “Deus existe” só
isso que se eu estivesse no meu estúdio eu poderia contém uma idéia mesmo, é uma concepção, que
percebê-la”. Essa é uma explicação do que significa como tal pode ser o conteúdo de uma crença ou não,
dizer que uma mesa existe quando ela está fora do que será para a mente algo para além desse conteú-
campo de minha visão. Essa é a “existência não- do (cf. HUME, 1978, pp. 66, 94, 96-7 – nota 1).
percebida”. Penso que a compreensão correta da
afirmação – de que a mesa existe quando não é Referências bibliográficas
percebida é algo que pode ser correto – é essa em
termos de uma atribuição hipotética de existência AYERS, M. Berkeley and Hume: a Question of Influence.
a uma “coisa sensível”, e não essa em termos da In: RORTY, S. (ed.) Philosophy in History. Cambridge:
atribuição categórica de existência a uma Cambridge University Press, 1994. pp. 303-27.
BERKELEY, G. A Treatise Concerning the Principles of Human
“potencialidade de sensação”. Há uma seção dos
Knowledge. Oxford: Oxford University Press, 1998 (ed.
Philosophical Commentaries (293a, Notebook B Jonathan Dancy, Coleção “Oxford Philosophical Texts”).
[1707-8]) em que Berkeley escreve que “corpos __________. Three Dialogues between Hylas and Philonous.
tomados por poderes existem quando não perce- Oxford: Oxford University Press, 1998 (ed. Jonathan
bidos mas essa existência não é efetiva (actual) [para Dancy, Coleção “Oxford Philosophical Texts”).
__________. Philosophical Commentaries. In: BERKELEY,
nós no momento, é claro]. Quando eu digo que
G. Philosophical Works, Including the Works on Vision
um poder existe, não é dito mais do que se, à luz, (Introduction and notes by M.R. Ayers). Londres: J. M.
eu abro meus olhos e olho naquela direção eu o Dent & Sons, 1975 (Everyman´s Library).
vejo, isto é, o corpo, etc.”5. Ou seja, em tais circuns- HUME, D. A Treatise of Human Nature. Oxford: Oxford
tâncias “minha mesa existe” quer dizer “minha mesa University Press, 1978 (ed. por Selby-Bigge e Nidditch).
PARK, D. Prior and Williams on Berkeley. In: CREERY, W.
existiria (isto é, seria percebida) se alguém a estives-
(ed.). George Berkeley, Critical Assessments. Londres:
se olhando6. Continua, não obstante, sendo o caso Routledge, 1991. p.151-61.
que, não percebida, minha mesa não existe efeti- PRIOR, A. N. Berkeley in Logical Form. In: ___. Papers in
vamente7 – o ponto doutrinário de Berkeley, e não Logic and Ethics. Amherst: University of Massachusetts
o ordinário. Press, 1976. pp. 33-8.
284   ● Berkeley e a confiança nos sentidos

WILLIAMS, B. Imagination and the Self. In: ___. Problems 4 Nos Diálogos (D3, 236), Philonous (Berkeley) afirma que
of the Self. Cambridge: Cambridge University Press, a razão fundamental para ele ter usado a palavra “idéia” para
1973. pp. 26-45. “coisa”, não sendo isso algo usual, era indicar “uma relação
necessária com a mente”, o que certamente é compreendido
como estando implicado por “idéia”.
Notas
5 Op .cit., pp. 277 da edição de Michael Ayers para a
Everyman´s Library.
1 Three Dialogues between Hylas and Philonous, Diálogo 3, 6 “– Pergunta ao jardineiro por que ele pensa que aquela
p.167 (do Volume 2 da edição das obras completas de cerejeira existe no jardim, e ele te dirá que é porque ele a vê
Berkeley por A. Luce e T.E. Jessop [Londres: Nelson & Sons, e a sente; numa palavra, porque ele a percebe com os seus
1948; em 9 volumes]). Essa paginação se encontra em várias sentidos. Pergunta a ele por que ele pensa que não há uma
edições das obras de Berkeley em língua inglesa, entre elas, laranjeira lá, e ele te dirá que é porque ele não a percebe. O
esta que utilizo, que é da Oxford University Press (Série que ele percebe pelos sentidos, isso ele chama uma existên-
Oxford Philosophical Texts, editada por Jonathan Dancy). A cia real (real being), e diz que é ou existe; mas aquilo que
Treatise Concerning the Principles of Human Knowledge se não é perceptível, o mesmo, ele diz, não tem existência (no
encontra nesse mesmo volume 2 (Luce e Jessop) e também being). – Sim, Philonous, eu concedo que a existência de
foi editado por Dancy para a referida série e é citado como uma coisa sensível consiste em ser perceptível, mas não em
TPHK seguido pelo número da seção. As traduções são ser de fato percebida. – E o que é perceptível senão uma
minhas. idéia? E pode uma idéia existir sem ser de fato percebida?”
2 Essa acusação é feita, entre outros, por A. N. Prior e B. (D3, 234). O que eu diria sobre a última resposta de
Williams (cf. as referência bibliográficas), e a resposta a ela Philonous a Hylas é que ele nesse momento não deveria
que apresento no texto se deve fundamentalmente a Desirée voltar ao uso técnico de “idéia”.
Park (“Prior and Williams on Berkeley”). 7 Cf. Michael Ayers, “Introduction”, p. XII (Everyman´s
3 “Não importa o quão estranho a proposição possa soar em Library), a quem essa discussão é em grande parte devida
palavras, pois ela não contém nada muito estranho ou (especialmente a referência à entrada nos Philosophical
chocante no seu sentido, que de fato importa em nada mais Commetaries).
do que isto, a saber, que há somente coisas que percebem, e 8 Cf. loc. cit.
coisas percebidas” (D3, 236).

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