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HUNTINGTON
gradiva
Título original inglês: The Clash of Civilizations - Remaking of World Onler
O 1996, by Samuel P Huntington
Tradução: Henrique M Lajes Ribeiro
Revisão do texto: José Soares de Almeida
Fotocomposição: Gradiva
Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, L.dª
Reservados os direitos para Portugal por: Gradiva - Publicações, L.dª
Rua Almeida e Sousa, 21, r/c, esq. - 1399-041 Lisboa
Telefs. 397 40 67/8 - 397 13 57 - 395 34 70
Fax 395 34 71 - Email: gradiva@ip.pt URL: http://wwwgradiva.pt
1.a edição: Janeiro de 1999
Depósito legal n.o 130 339/98
Prefácio 13
PARTE I
UM MUNDO DE CIVILIZAÇõES
1. A nova era da política mundial 19
Introdução: bandeiras e identidade cultural 19
Um mundo multipolar e multicivilizacional 21
Outros mundos? 30
Comparar mundos: realismo, parcimónia e previsões 38
2. Civilizações na história e hoje 44
A natureza das civilizações 44
Relações entre civilizações 54
3. Uma civilização universal Modernização e ocidentalização 63
Civilização universal: significados 63
Civilização universal: origens 75
O Ocidente e a modernização 77
Respostas ao Ocidente e à modernização 82
PARTE II
O EQUILíBRIO INSTÁVEL DAS CIVILIZAÇõES
4. O enfraquecimento do Ocidente: poder, cultura e indigenização 93
Poder ocidental: domínio e declínio 93
Indigenização: o ressurgimento das culturas não ocidentais 106
La revanche de Dieu 111
5. Economia, demografia e as civilizações em ascensão.119
afirmação asiática 120
Ressurgimento islâmico 128
Novos desafios 141
PARTE III
A NOVA ORDEM DAS CIVILIZAÇõES
6. A reconfiguração cultural da política global 145
Em busca de grupos: a política da identidade 145
Cultura e cooperação económica 151
A estrutura das civilizações 157
Países dilacerados: o insucesso das mudanças de civilização 162
7. Estados-núcleos, círculos concêntricos e ordem das civilizações 181
Civilizações e ordem 181
Europa e os seus laços 183
Rússia e o seu «estrangeiro próximo» 191
A grande China e a sua esfera de co-prosperidade 196
Islão: consciência comum sem coesão 204
PARTE IV
CHOQUES DE CIVILIZAÇõES
8. O Ocidente e o resto do mundo: problemas intercivilizacionais 213
O universalismo ocidental 213
Proliferação de armamentos 216
Direitos humanos e democracia 225
Imigração 232
9. A política global das civilizações 242
Estados-núcleos e conflitos nas fronteiras civilizacionais 242
Islão e o Ocidente 244
Ásia, a China e a América 255
Civilizações e Estados-núcleos: os novos alinhamentos 280
10. Das guerras de transição às guerras nas fronteiras civilizacionais 289
Guerras de transição: o Afganistão e o Golfo 289
Características das guerras civilizacionais 296
Incidência: as fronteiras sangrentas do islão 300
Causas: história, demografia, política 305
11. A dinâmica das guerras civilizacionais 313
identidade: a ascensão da consciência civilizacional 313
Reagrupamento de civilizações: países afins e diásporas 320
Parar as guerras civilizacionais 344
PARTE V
O FUTURO DAS CIVILIZAÇÕES
12. O Ocidente, as civilizações e a civilização 355
Renovação do ocidente? 355
O Ocidente no mundo 364
Guerra civilizacional e ordem civilizacional 369
A civilização como um bem comum 375
Prefácio
No Verão de 1993 a revista Foreign Affairs publicou um artigo meu intitulado «The clash of
civilizations?». De acordo com os editores da Foreign Affairs, aquele artigo provocou maior
polémica em três anos do que qualquer outro artigo que tenham publicado desde os anos 40.
Certamente provocou mais debate em três anos do que qualquer outro que eu tenha escrito
anteriormente. Chegaram reacções e comentários de todos os continentes e países. As pessoas
ficaram diferentemente impressionadas, intrigadas, ofendidas, assustadas e perplexas por a minha
tese do conflito entre grupos de civilizações diferentes ser a dimensão central e a mais perigosa da
nova política global. Seja como for, este artigo tocou num nervo sensível de pessoas de todas as
civilizações.
Dado o interesse, a deturpação e a controvérsia sobre o artigo, pareceu-me desejável explorar mais a
fundo as questões que ele suscitou. Um modo construtivo de colocar uma questão é formular uma
hipótese.O artigo, que tinha no título um ponto de interrogação, geralmente ignorado, era um
esforço nesse sentido. Este livro pretende fornecer uma resposta mais completa, profunda e
cuidadosamente documentada à pergunta do artigo. Nele tento desenvolver, aperfeiçoar, acrescentar
e, ocasionalmente, precisar os temas avançados no artigo e desenvolver muitas ideias e abordar
muitos tópicos não tratados e nem sequer aflorados no artigo. Nomeadamente: o conceito de
civilizações; a questão de haver uma civilização universal; a relação entre poder e cultura; a
evolução do equilíbrio de poderes entre as civilizações; a indigenização cultural nas sociedades
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não ocidentais; a estrutura política das civilizações; os conflitos gerados pelo universalismo
ocidental; a militância muçulmana e a afirmação chinesa; as reacções de contrapeso e de
alinhamento à ascensão do poder chinês; as causas e a dinâmica das guerras civilizacionais*; o
futuro do Ocidente e de um mundo de civilizações. Um dos principais temas ausen’ tes do artigo diz
respeito ao impacto crucial do crescimento da população sobre a instabilidade e o equilíbrio do
poder. Outro importante tema não tratado no artigo está resumido no título e na última frase do livro
- “Os choques de civilizações são a maior ameaça à paz mundial e uma ordem internacional assente
nas civilizações é a mais segura salvaguarda contra uma guerra mundial.”
Este livro não tem a intenção de ser uma obra de ciências sociais. Procura, em vez disso, ser uma
interpretação da evolução da política global depois da guerra fria. Pretende apresentar uma
estrutura, um paradigma, para observar a política global que tenha significado para os
investigadores e seja útil para os políticos. O teste destas qualidades é o de, obviamente, explicar
tudo o que acontece na política global. O teste a fazer consiste em saber se fornece uma lente
melhor e com mais utilidade do que a de outros paradigmas alternativos através da qual possam ser
observados os desenvolvimentos internacionais. Além disso, nenhum paradigma é eternamente
válido. Mesmo que uma abordagem civilizacional possa ser útil para compreender a política global
em finais do século XX e princípios do século XXI, tal não significa que possa ser igualmente útil
em meados do século XX e meados do século XXI.
As ideias que, finalmente, deram origem ao artigo e a este livro foram, primeira e publicamente,
expressas numa conferência Bradley no American Enterprise Institute, em Washington, em Outubro
de 1992, depois, apresentadas num documento preparado para o projecto do Olin Institute sobre
«The changing security environment and American nation interests», tornado possível pela Smith
Richardson Foundation. A seguir à publicação do artigo vi-me envolvido em inúmeros seminários e
encontros através dos Estados Unidos, centrados sobre o “choque”, com a participação de
académicos, funcionários governamentais, empresários e outros grupos de pessoas. Para além disso,
tive a sorte de poder participar em discussões sobre o artigo e a sua tese em muitos outros países,
incluindo a África do Sul, a Arábia Saudita, a Alemanha, a Argentina, a Bélgica, a China, a Coreia,
a Espanha, Taiwan, a França, a Grã-Bretanha, o Japão, o Luxemburgo, a Rússia, Singapura, a
Suécia e a Suíça. Estas discussões permitiram-me confrontar-me com todas as grandes civilizações,
exceptuando o hinduísmo, tendo beneficiado imenso dos conhecimentos e das perspectivas dos
participantes. Em 1994 e 1995 dirigi um seminário em Harvard sobre a natureza do mundo
pós-guerra fria e os sempre vigorosos e, por vezes, bastante críticos comentários dos estudantes
participantes constituíram um estímulo adicional. O meu trabalho neste livro também beneficiou
imenso do ambiente académico e propício do Institute for Strategic Studies e do Center for
International Affairs, de Harvard.
o manuscrito foi integralmente lido por Michael C. Desch, Robert jO. Keohane, Fareed Zakaria e R.
Scott Zimmerman e os seus comentários levaram a melhorias significativas, quer em substância,
quer em organização. Scott Zimmerman também forneceu o indispensável apoio de investigação
durante a redacção deste livro; sem a sua enérgica, competente e devotada ajuda este livro nunca
teria sido acabado tão rapidamente quanto o foi. Os nossos assistentes na Universidade, Peter Jun e
Christiana Briggs, também colaboraram nele entusiasticamente. Grace de Magistris dactilografou as
partes iniciais do manuscrito e Carol Edwards, com grande empenhamento e enorme paciência,
refez o manuscrito tantas vezes que já deve saber de cor grandes porções dele. Denise Shannon e
Lynn Coc, da Georges Borchardt, e Robert Asahina, Robert Bender e Johanna Li, da Siinon &
Schuster, acompanharam animada e profissionalmente o manuscrito em todo o processo de
publicação. Estou imensamente grato a todas estas pessoas pela sua ajuda na elaboração do livro.
Fizeram com que fosse muito melhor do que teria sido sem elas. As deficiências remanescentes são
da minha responsabilidade.
O meu trabalho neste livro tornou-se possível pelo apoio financeiro da John M. Olin Foundation e
da Smith Richardson Foundation. Sem a sua ajuda, a conclusão do livro ter-se-ia arrastado por
alguns anos, pelo que fico grato pelo seu generoso apoio. Enquanto outras fundações se têm
orientado, cada vez mais, para questões internas, a Olin e a Smith Richardson merecem ser
elogiadas por manterem interesses e os corresPondentes apoios em trabalhos sobre a guerra, a paz e
a segurança nacional e internacional.
S. P. H.
* Fault line wars no original.
PARTE 1
UM MUNDO DE CIVILIZAÇÕES
1
19
insígnias, em vez das da ONU, da NATO ou dos EUA, aqueles habitantes de Serajevo
identificavam-se com os seus amigos muçulmanos e diziam ao mundo quais eram os seus
verdadeiros e os não tão verdadeiros amigos.
Em 16 de Outubro de 1994, em Los Angeles, 70 000 pessoas marcharam no meio de «um mar de
bandeiras mexicanas» manifestando-se sobre a Proposta 187, uma medida referendária que negaria
muitos beneficios estatais aos imigrantes ilegais e aos seus filhos. Por que «desciam a rua com
bandeiras mexicanas e exigiam que os Estados Unidos lhes oferecessem educação gratuita?»,
perguntavam os observadores. «Deviam agitar a bandeira americana.» Decorridas duas semanas,
mais manifestantes marchariam pela rua empunhando uma bandeira americana - de cabeça para
baixo. Estas exibições de bandeiras garantiram a vitória à Proposta n.º 187, que foi aprovada por
59% dos votantes da Califórnia.
No mundo pós-guerra fria as bandeiras têm importância, tal como outros símbolos de identidade
cultural, como cruzes, crescentes e mesmo coberturas para a cabeça, porque a cultura conta e a
identidade cultural é o que tem mais significado para a maior parte das pessoas. Estas estão a
descobrir novas mas, frequentemente, velhas identidades e a desfilar atrás de novas mas, muitas
vezes, velhas bandeiras que as conduzem a guerras com novos mas, com frequência, velhos
inimigos.
Um ameaçador Weltanschauung para esta nova era foi bem expresso pelo demagogo nacionalista
veneziano na novela Dead Lagoon, de Michael Dibdin: «Não pode haver verdadeiros amigos sem
verdadeiros inimigos. Não podemos amar o que somos se não odiarmos o que não somos. Estas são
velhas verdades que, penosamente, redescobrimos decorrido um século ou mais de palavriado
sentimental. Aqueles que as negam, negam a família, a sua herança, a sua cultura, o seu património,
a própria personalidade! Não serão facilmente perdoados.» A lamentável verdade nestas velhas
verdades não pode ser ignorada por estadistas e intelectuais. Para povos que procuram uma
identidade e reinventam uma unidade étnica, os inimigos são essenciais e as inimizades
potencialmente mais perigosas surgem nas linhas de fractura entre as maiores civilizações mundiais.
O tema central deste livro consiste em que a cultura e as identidades culturais, que, a um nível mais
elevado, são identidades civilizacionais, estão a modelar os padrões de coesão, de desintegração e
de conflito no período pós-guerra fria. As cinco partes deste livro deduzem os corolários desta
questão principal.
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21
Obs - As páginas anteriores contêm mapas.
(mapa 1.1). Durante a guerra fria, a política global tornou-se bipolar e o mundo ficou dividido em
três partes. Um grupo das sociedades mais ricas e democráticas, liderado pelos Estados Unidos,
empenhou-se numa competição ideológica, política, económica e, por vezes, militar com um grupo
de sociedades comunistas mais pobres, associadas à União Soviética e por ela lideradas. Grande
parte deste conflito teve lugar fora destes dois campos, no Terceiro Mundo, composto por países
que eram, na sua maior parte, pobres, com falta de estabilidade política, recentemente
independentes e que se proclamavam não alinhados (mapa 1.2).
Em finais dos anos 80 o mundo comunista desmoronou-se e o sistema internacional da guerra fria
passou à história. No mundo pós-guerra fria as diferenças mais importantes entre os povos não são
ideológicas, políticas ou económicas. São culturais. Os povos e as nações estão a tentar responder à
mais básica questão que os seres humanos enfrentam: quem somos nós? E respondem a esta
pergunta da forma mais tradicional, tendo como referência o que mais conta para eles. As pessoas
definem-se em termos de ascendência, religião, língua, história, valores, costumes e instituições.
Identificam-se com grupos culturais: tribos, grupos étnicos, comunidades religiosas, nações e, a um
nível mais amplo, civilizações. As pessoas usam a política não só para promoverem os seus
interesses, mas também para definirem a sua identidade. Só sabemos quem somos quando sabemos
quem não somos e, frequentemente, contra quem somos.
Os Estados-nações continuam a ser os principais actores na cena internacional. Como no passado, o
seu comportamento é moldado não só pela busca de poder e riqueza, mas também por preferências,
afinidades e diferenças culturais. Os agrupamentos mais importantes de Estados já não são os três
blocos da guerra fria, mas as sete ou oito maiores civilizações mundiais (mapa 1.3). As sociedades
não ocidentais, principalmente no Extremo Oriente, estão a desenvolver a sua riqueza económica e
a criar a base para um poder militar e uma influência política reforçados. Enquanto o seu poder e a
sua autoconfiança aumentam, as sociedades não ocidentais reivindicam os seus próprios valores
culturais e rejeitam os que lhes são «impostos» pelo Ocidente. O “sistema internacional do século
XXI”, declarou Henry Kissinger, “[ ... ] compreenderá, pelo menos, seis grandes potências - os
Estados Unidos, a Europa, a China, o Japão, a Rússia e, provavelmente, a índia -, assim como um
grande número de médios e pequenos países”. As seis maiores potências referidas por Kissinger
pertencem a cinco civilizações muito diferentes e, além disso, há Estados islâmicos importantes
cujas posições estratégicas, grande dimensão populacional e/ou recursos petrolíferos os tornam
influentes nas questões mundiais. Neste novo mundo a política local é a da etnicidade, a política
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global é a das civilizações. A rivalidade das suPerpotências é substituída pelo choque das
civilizações.
Neste novo mundo os conflitos mais generalizados, mais fortes e mais perigosos não
ocorrerão entre classes sociais, entre ricos e pobres ou outros grupos economicamente definidos,
mas entre povos pertencentes a entidades culturais diferentes. As guerras tribais e os conflitos
étnicos terão lugar dentro das civilizações. No entanto, a violência entre Estados e grupos de
civilizações diferentes transportará consigo o potencial de uma escalada se outros Estados e grupos
dessas civilizações se juntarem para apoiarem os “países irmãoS”. Na Somália o choque sangrento
de clãs não representou uma ameaça de um conflito mais vasto. O choque sangrento de tribos no
Ruanda tem consequências para o Uganda, o Zaire e o Burundi, mas nada mais. Pelo contrário, os
choques sangrentos de civilizações na Bósnia, no Cáucaso, na Ásia central ou em Caxemira podem
transformar-se em guerras mais importantes. Nos conflitos na Jugoslávia, a Rússia assegurou apoio
diplomático aos Sérvios, enquanto a Arábia Saudita, a Turquia, o Irão e a Líbia forneceram fundos e
armas aos Bósnios, não por razões ideológicas, política de poder ou interesses económicos, mas
devido a uma afinidade cultural. «Os conflitos culturais», referiu Vaclav Havel, «estão a aumentar e
são hoje mais perigosos do que em qualquer outra época da história», e Jacques Delors está de
acordo em que «os futuros conflitos serão provocados por factores culturais, e não por razões
económicas ou ideológicas»’. Os conflitos culturais mais perigosos são os que se geram nas linhas
de fractura entre civilizações.
No mundo pós-guerra fria a cultura é, simultaneamente, uma força de divisão e de união. As
pessoas separadas pela ideologia, mas unidas pela cultura, juntam-se, como o fizeram as duas
Alemanhas e estão a começar a fazê-lo as duas Coreias e as várias Chinas. As sociedades unidas
pela ideologia ou por circunstâncias históricas, mas divididas pela civilização, ou se mantêm
separadas, como na União Soviética, na Jugoslávia e na Bósnia, ou são sujeitas a uma tensão
enorme, como são os casos da Ucrânia, da Nigéria, do Sudão, da índia, do Sri Lanka e de muitas
outras. Países com afinidades culturais cooperam económica e politicamente. As organizações
internacionais baseadas em Estados com um substrato cultural comum, como na União Europeia,
têm muito mais sucesso do que aquelas que tentam transcender as culturas. A cortina de ferro foi a
linha divisória central na Europa durante quarenta e cinco anos. Aquela linha deslocou-se várias
centenas de quilómetros para leste. É agora a linha que está a separar os povos cristãos ocidentais,
de um lado, dos povos muçulmanos e ortodoxos, do outro.
Os pressupostos filosóficos, os valores subjacentes, as relações sociais, os costumes e o modo de
encarar a vida diferem significativamente entre as
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civilizações. A revitalização da religião em grande parte do mundo está a reforçar estas diferenças
culturais. As culturas podem mudar e a natureza do seu impacto sobre a política e a economia pode
variar de um período para outro. No entanto, as maiores diferenças no desenvolvimento político e
económico entre as civilizações têm, claramente, raízes nas suas diferentes culturas. O sucesso
económico do Extremo Oriente tem origem na cultura da Ásia oriental. E as dificuldades das
sociedades existentes nessa área para alcançarem sistemas políticos democráticos estáveis têm a
mesma origem. A cultura islâmica explica, em grande parte, o insucesso da democracia em quase
todo o mundo islâmico. O desenvolvimento nas sociedades pós-comunistas da Europa de Leste e da
antiga União Soviética é moldado pelas suas identidades civilizacionais. As que têm uma herança
cristã ocidental estão a progredir no desenvolvimento económico e na política democrática; as
perspectivas de desenvolvimento económico e político nos países ortodoxos são incertas; nas
repúblicas muçulmanas são pouco encorajadoras.
O Ocidente é e continuará a ser durante anos, a civilização mais poderosa. Contudo, o seu poder
relativo face a outras civilizações está a diminuir. Enquanto o Ocidente tenta reafirmar os seus
valores e proteger os seus interesses, as sociedades não ocidentais enfrentam um dilema. Umas
tentam emular o Ocidente e alinhar com ele. Outras sociedades, confucionistas e islâmicas, tentam
expandir os seus poderes económico e militar e resistir ao Ocidente ou contrabalançá-lo. O eixo
central da política mundial pós-guerra fria reside na interacção entre o poder e a cultura ocidentais e
o poder e a cultura das civilizações não ocidentais.
Em resumo, o mundo pós-guerra fria é um mundo de sete ou oito civilizações maiores. As
afinidades e diferenças culturais moldam os interesses, os antagonismos e as associações de
Estados. Maioritariamente, os países mais importantes do mundo são produto de civilizações
diferentes. Os conflitos locais que, muito provavelmente, podem escalar até guerras mais vastas são
entre grupos e Estados de civilizações diferentes. Os padrões predominantes do desenvolvimento
político e económico diferem de civilização para civilização. As questões cruciais da agenda
internacional envolvem diferenças entre civilizações. O poder está a deslocar-se do Ocidente, que
há muito predomina, para civilizações não ocidentais. A política global está a tornar-se multipolar e
multicivilizacional.
Outros mundos?
Mapas e paradigmas. O quadro da política mundial pós-guerra fria, moldado por factores culturais e
implicando interacções entre Estados e grupos de
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civilizações diferentes, está enormemente simplificado. Omite muitos pontos, distorce alguns e
obscurece outros. Contudo, se quisermos pensar seriamente no mundo e agir sobre ele com eficácia, temos
necessidade de um determinado tipo de mapa simplificado da realidade, de alguma teoria, conceito, modelo
ou paradigma. Sem este tipo de construções intelectuais apenas existe, como disse William James, uma
confusão «ensurdecedora». O avanço intelectual e científico, como Thomas Kuhn provou no seu clássico The
Structure ofScientific Revolutions, consiste em passar de um paradigma que se tornou progressivamente
incapaz de explicar factos novos e recém-descobertos para um novo paradigma que explique estes factos de
um modo mais satisfatório. «Para ser aceite como paradigma», escreveu Kuhn, «uma teoria deve parecer
melhor do que as alternativas, mas não precisa, e de facto tal nunca acontece, de explicar todos os factos com
que possa ser confrontada.» «Encontrar um caminho através de terreno desconhecido», como também
sabiamente observou John Lewis Gaddis, «implica, geralmente, um mapa de qualquer espécie. A cartografia,
como o próprio conhecimento, é uma simplificação necessária que nos permite ver onde estamos e para onde
podemos estar a ir.» A imagem da guerra fria, de competição entre as superpotências, como observa, era um
modelo deste tipo, concebido primeiramente por Harry Truman como um «exercício de cartografia
geopolítica que captava o panorama internacional de modo que todos pudessem compreendê-lo e, tendo-o
conseguido, preparava a via para a sofisticada estratégia de contenção que, em breve, se lhe seguiria. Visões
mundiais e teorias causais são guias indispensáveis para a política internacionall.
Durante quarenta anos, estudantes e especialistas de relações internacionais pensaram e agiram tendo como
referência um paradigma da guerra fria altamente simplificado, mas extremamente útil. Este paradigma não
podia responder a tudo o que acontecesse na política mundial. Houve muitas anomalias, para usar o termo de
Kuhn, e, por vezes, o paradigma cegava professores e estadistas em relação a grandes alterações, como a cisão
sino-soviética. Todavia, embora fosse um modelo simples de política global, deu melhores respostas aos
fenómenos mais importantes do que qualquer outro dos seus rivais e foi um ponto de partida essencial para o
pensamento das relações internacionais, acabando por ser quase universalmente aceite, tendo moldado o
pensamento sobre a política mundial durante duas gerações.
São indispensáveis paradigmas ou mapas simplificados para o pensamento e acção dos homens. Por um lado,
podemos conceber, explicitamente, teorias e modelos e usá-los conscientemente para orientarmos o nosso
comportamento. A outra alternativa consiste em negarmos a necessidade de tais guias e decidirmos que só
agiremos em termos de factos «objectivos» específicos, tratando cada caso «pelos seus méritos». No
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entanto, se admitirmos esta opção, estaremos a enganar-nos, porque dentro de nós encontram-se escondidos
pressupostos, desconfianças e preconceitos que determinam o modo de captarmos a realidade, os factos que
observamos e como julgamos a sua importância e os respectivos méritos. Necessitamos de modelos explícitos
ou implícitos que sejam capazes de:
1 .Ordenar e generalizar a realidade;
2. Compreender as relações causais entre os fenómenos;
3. Antecipar e, se tivermos sorte, prever os acontecimentos futuros;
4. Distinguir o que é importante do que o não é;
5. Mostrar que caminhos devemos seguir para alcançarmos os novos objectivos.
Cada modelo ou mapa é uma abstracção e será mais útil para umas finalidades do que para outras. Um mapa
de estradas mostra-nos como podemos viajar de A para B, mas não será muito útil se estivermos a pilotar um
avião, situação em que pretenderemos um mapa que assinale as pistas de aviação, os rádio-faróis, os
corredores aéreos e a topografia. Sem um mapa deste tipo estaríamos perdidos. Quanto mais pormenorizado
for um mapa, mais completamente reflectirá a realidade. Contudo, um mapa demasiado pormenorizado não
será útil para muitas finalidades. Se desejarmos ir de uma grande cidade para outra por uma auto-estrada,
podemos considerar confuso um mapa que inclua muita informação não relacionada com o transporte
automóvel, em que as principais vias ficam perdidas num emaranhado de estradas secundárias. Em
contrapartida, um mapa que contivesse apenas uma auto-estrada eliminaria muita realidade e limitaria a nossa
capacidade de encontrar os caminhos alternativos se aquela grande via estivesse bloqueada por um grave
acidente. Resumindo, precisamos de um mapa que, simultaneamente, represente a realidade e a simplifique de
um modo que melhor sirva as nossas finalidades. No final da guerra fria foram apresentados vários mapas ou
paradigmas da política mundial.
Um único mundo: euforia e harmonia. Um paradigma claro, amplamente difundido, baseava-se no princípio
de que o final da guerra fria tinha representado o fim de um importante conflito na política global e a
emergência de um mundo relativamente harmonioso. A formulação mais discutida foi a do «fim da história»,
tese apresentada por Francis FukuYama*. “Podemos estar a assistir”, argumentava Fukuyama, “[ ... ] ao
* No capítulo 3 é discutida uma linha paralela de argumento baseada, não no fim da guerra fria, mas nas tendências
económicas e sociais de longo prazo.
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fim da história enquanto tal, isto é, aO POnto terminal da evolução ideológica da humanidade e à
universalização da democracia liberal ocidental enquanto forma final de governo humano.”
Certamente, disse ele, poderão surgir alguns conflitos em determinados lugares do Terceiro Mundo,
mas o conflito global está terminado, e não só na Europa. “Foi precisamente no mundo não
europeu» que Ocorreram as grandes mudanças, Particularmente na China e na União Soviética. A
guerra de ideias está no fim.Podem ainda existir crentes no marxismo-leninismo «em lugares como
Manágua, Pyongyang e Cambridge, Massachusetts mas, globalmente a democracia liberal triunfou.
O futuro será devotado, não a grandes e excitantes lutas sobre ideias, mas a resolver problemas
económicos e técnicos concretos.” E concluía, assaz tristemente, que tudo seria bastante enfadonho.
Muitos partilharam esta esperança de harmonia. Dirigentes políticos e intelectuais desenvolveram
pontos de vista análogos. O muro de Berlim fora derrubado, os regimes comunistas haviam ruído,
as Nações Unidas deviam adquirir uma nova importância, os antigos rivais da guerra fria
empenhar-se-iam numa «parceria» e num vasto processo de manutenção e de imposição da paz, que
constituiriam a ordem do dia. O presidente do país líder do mundo proclamou a “nova ordem
mundial”; o presidente da universidade que se pensa ser a mais importante do mundo vetou a
nomeação de um professor de estudos sobre segurança porque desaparecera a sua necessidade:
«Aleluia! Não estudaremos mais a guerra porque já não há guerra.»
O momento de euforia do fim da guerra fria gerou uma ilusão de harmonia que cedo se revelou ser
exactamente isso. O mundo tornou-se diferente em princípios dos anos 90, mas não
necessariamente pacífico. A mudança era inevitável; o progresso, não. Semelhantes ilusões de
harmonia floresceram fugazmente no final de cada um dos maiores conflitos do século XX. A
Primeira Guerra Mundial foi a «guerra para acabar com as guerras» e tornar o mundo pronto para a
democracia. A Segunda Guerra Mundial, como afirmou Franklin Roosevelt, seria o «fim do sistema
da acção unilateral, das alianças exclusivas, das balanças de poder e de todos os outros expedientes
que há séculos têm sido experimentados - e têm sempre falhado». Em vez disso, teremos uma
«organização universal» de «nações amantes da paz» e os primórdios de uma «estrutura permanente
de Paz»’. A Primeira Guerra Mundial gerou, no entanto, o comunismo, o fascismo e inverteu a
tendência centenária no sentido da democracia. A Segunda Guerra Mundial produziu uma guerra
fria que, verdadeiramente, foi global. A ilusão de harmonia no final da guerra fria cedo se dissipou
devido à multiplicação de conflitos e «limpezas» étnicas, pela rotura da lei e da ordem, pela
emergência de novos padrões de aliança e de
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conflito entre os Estados, pelo ressurgimento de movimentos neocomunistas e neofascistas, pela
intensificação do fundamentalismo religioso, pelo fim da «diplomacia do sorriso» e da «política do
sim» nas relações da Rússia com o Ocidente, pela incapacidade das Nações Unidas e dos Estados
Unidos em suprimirem os sangrentos conflitos locais e pela crescente afirmação de uma China
emergente. Nos cinco anos posteriores à queda do muro de Berlim a palavra genocídio foi ouvida
com mais frequência do que em quaisquer outros cinco anos do período da guerra fria. O paradigma
de um mundo em harmonia está excessivamente afastado da realidade para ser um guia útil para o
mundo pós-guerra fria.
Dois mundos: nós e eles. No final dos grandes conflitos sonha-se com
um mundo único. No entanto, a tendência para pensar em termos de dois mundos é recorrente ao
longo da história. Somos sempre tentados a dividir as pessoas em nós e eles, o nosso grupo e o
outro, a nossa civilização e a dos bárbaros. Os intelectuais dividiram o mundo em termos de Oriente
e Ocidente, Norte e Sul, centro e periferia. Os muçulmanos, tradicionalmente, têm dividido o
mundo em Dar al-Islam e Dar al-harb, a casa da paz e a casa da guerra. Esta diferença reflectiu-se e,
de certo modo, inverteu-se no final da guerra fria, quando os especialistas americanos dividiram o
mundo em «zonas de paz» e «zonas de perturbação». As primeiras incluem o Ocidente e o Japão,
com cerca de 15% da população mundial; as outras abrangem o resto.
Tudo dependendo da forma como seja feita a partição, o quadro, com um mundo dividido em duas
partes, pode, em certa medida, corresponder à realidade. A divisão mais vulgar, que aparece sob
vários nomes, é entre países ricos (modernos, desenvolvidos) e países pobres (tradicionais,
subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento). Historicamente correlacionada com esta divisão
económica está a divisão cultural entre Ocidente e Oriente, onde a ênfase se encontra menos nas
diferenças no bem-estar económico e mais nas diferenças na filosofia, nos valores e no modo de
vida subjacentes?. Cada uma destas imagens reflecte alguns elementos da realidade, embora
também contenha limitações. Os países ricos e modernos possuem características comuns que os
diferenciam dos países tradicionais e pobres, que também as possuem. As diferenças de riqueza
podem conduzir a conflitos entre sociedades, mas é evidente que tal acontece principalmente
quando as sociedades ricas e mais poderosas tentam conquistar e colonizar as sociedades pobres e
mais tradicionais. O Ocidente fez isto durante quatrocentos anos, mas, por fim, algumas das
colónias rebelaram-se e desencadearam guerras de libertação contra as potências coloniais. No
mundo actual a descolonização terminou, mas as
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guerras de libertação coloniais foram substituídas por conflitos entre povos libertados.
A um nível mais geral, os conflitos entre ricos e pobres são improváveis porque, excepto em
circunstâncias especiais, aos países pobres falta unidade política, poder económico e capacidade
militar para desafiarem os países ricos. O desenvolvimento económico na Ásia e na América Latina
contradiz a dicotomia simples entre os que possuem e os que não possuem. Os Estados ricos podem
travar guerras comerciais entre eles; os Estados pobres podem travar guerras violentas entre si; mas
uma guerra internacional entre o Sul pobre e o Norte rico está quase tão fora da realidade como um
mundo feliz e harmonioso.
A versão cultural da divisão do mundo é ainda menos útil. A um certo nível, o Ocidente é uma
entidade. Em contrapartida, o que têm em comum as sociedades não ocidentais, para além do facto
de serem não ocidentais? As civilizações japonesa, chinesa, hindu, muçulmana e africana pouco têm
em comum em termos de religião, estrutura social, instituições e valores dominantes. A unidade dos
não ocidentais e a dicotomia Leste-Oeste são mitos criados pelo Ocidente. Estes mitos sofrem dos
defeitos do orientalismo que Edward Said, com propriedade, criticou por promoverem a diferença
entre o familiar (a Europa, o Ocidente, “nós”) e o estrangeiro (o Oriente, o Leste, “eles”), admitindo
a superioridade dos primeiros em relação aos outros. Durante a guerra fria o mundo estava, em
considerável medida, polarizado segundo um espectro ideológico, e não segundo um espectro
cultural único. A polarização do “Leste” e do “Oeste” é, culturalmente, em parte, outra
consequência da generalizada, mas infeliz, prática de chamar civilização ocidental à civilização
europeia. Em vez de “Leste e Oeste”, será mais apropriado falar de “Ocidente e o resto”, que, pelo
menos, implica a existência de muitos não ocidentes. O mundo é demasiado complexo para, com
razoabilidade, ser dividido, para muitas finalidades, simplesmente em Norte e Sul, sob o aspecto
económico, e em Leste e Oeste, sob o ponto de vista cultural.
184 Estados, aproximadamente. Um terceiro mapa do mundo pós-guerra fria deriva da,
frequentemente, chamada teoria «realista» das relações internacionais. De acordo com esta teoria,
os Estados são os principais, na verdade, os únicos importantes actores das questões mundiais; a
relação entre Estados é uma anarquia, pois para garantirem a sua sobrevivência e segurança os
Estados, invariavelmente, tentam maximizar o seu poder. Se um Estado verificar que outro Estado
está a aumentar o seu poder e, como tal, a tornar-se uma ameaça potencial, procurará proteger a sua
própria segurança, reforçando o seu poder e/ou aliando-se a outros Estados.
35
Os interesses e acções de cerca de 184 Estados do mundo pós-guerra fria podem ser previstos a
partir destes pressupostos.
Este quadro «realista» do mundo é um ponto de partida muito útil para analisar as questões
internacionais e explicar uma boa parte do comportamento estatal. Os Estados são e continuarão a
ser as entidades dominantes nas questões mundiais. Conservam exércitos, dirigyem a diplomacia,
negoceiam tratados, travam guerras, controlam as organizações internacionais, influenciam e, de um
modo considerável, modelam a produção e o comércio. Os governos dão prioridade à garantia da
segurança externa dos próprios Estados (embora, frequentemente, possam dar prioridade
governamental às ameaças internas). Este paradigma estatal fornece, sobretudo, um quadro mais
realista e operacional da política global do que os paradigmas unitário e binário do mundo.
No entanto, também sofre de sérias limitações. Admite que todos os Estados têm uma percepção
semelhante dos seus interesses e que agem da mesma forma. Constitui um bom ponto de partida
para compreender o comportamento dos Estados considerar a hipótese segundo a qual «o poder é
tudo», mas não nos leva muito longe. Os Estados definem os seus interesses em termos de poder,
mas não só. Tentam, com frequência, contrabalançar o poder, mas, se apenas se limitassem a isso,
os países europeus ocidentais, em finais dos anos 40, ter-se-iam aliado à União Soviética contra os
Estados Unidos. Os Estados reagem primariamente a ameaças perceptíveis, e os Estados europeus
ocidentais viram, na época, uma ameaça política, ideológica e militar vinda de Leste. Viram os seus
interesses de um modo que não teria sido previsto pela teoria realista clássica. Os valores, a cultura
e as instituições influenciam enormemente a forma como os Estados definem os seus interesses.
Estes são também modelados não só pelas suas instituições e valores domésticos, como também
pelas normas e instituições internacionais. Acima e além da sua primordial preocupação com a
segurança, diferentes tipos de Estados definem os seus interesses de modos diversos. Os Estados
com culturas e instituições semelhantes encontrarão um interesse comum. Os Estados democráticos,
tendo muito em comum com outros Estados democráticos, não lutam entre si. O Canadá não tem de
aliar-se a outra potência para dissuadir uma invasão dos Estados Unidos.
A um nível elementar, os pressupostos do paradigma estatal têm-se revelado verdadeiros através da
história. Deste modo, não nos ajudam a compreender em que medida a política global pós-guerra
fria difere da política durante e antes dela. Existem, portanto, claramente, diferenças e os Estados
defendem os seus interesses de forma diferente consoante o período da história. No mundo
pós-guerra fria os Estados definem cada vez mais os seus interesses em termos civilizacionais.
Cooperam e aliam-se a Estados com culturas semelhantes ou comuns e entram mais frequentemente
em conflito com países de culturas diferentes. Os Estados definem as ameaças em termos das
intenções de outros Estados, sendo estas intenções e a forma como são entendidas poderosamente
influenciadas por considerações culturais. É menos provável que o público e os estadistas se sintam
ameaçados por pessoas que sentem, compreendem e em quem podem confiar por terem língua,
religião, valores, instituições e cultura comuns. É muito mais provável que vejam ameaças
provenientes de Estados cujas sociedades têm culturas diferentes e que, como tal, não compreendem
nem sentem que podem confiar nelas. Agora, que uma União Soviética marxista-leninista já não
constitui uma ameaça para o mundo livre e os Estados Unidos já não constituem uma ameaça de
sentido oposto para o mundo comunista, os países de ambos os mundos vêem crescentemente
ameaças vindas de sociedades que são culturalmente diferentes.
Embora os Estados continuem a ser os actores principais nas questões mundiais, estão, no entanto, a
sofrer perdas na sua soberania, nas funções e no poder. As instituições internacionais têm agora o
direito de julgar e de regular a acção dos Estados no interior dos seus próprios territórios. Nalguns
casos, principalmente na Europa, as instituições internacionais têm assumido funções importantes,
previamente desempenhadas pelos Estados, e têm sido criadas poderosas burocracias internacionais
que actuam directamente sobre a vida individual dos cidadãos. Globalmente, tem havido uma
tendência para os governos dos Estados perderem poder também por via da delegação em entidades
políticas subestatais, regionais, provinciais e locais. Em muitos Estados, incluindo alguns do mundo
desenvolvido, existem movimentos regionais que promovem uma autonomia substancial ou mesmo
a secessão. Os governos dos Estados estão a perder, em considerável medida, a capacidade de
controlarem a entrada e a saída dos fluxos de dinheiro e a ter uma dificuldade crescente para
controlarem os fluxos de ideias, de tecnologia, de bens e de pessoas. Em resumo, as fronteiras dos
Estados têm-se tornado cada vez mais permeáveis. Todos estes desenvolvimentos têm levado
muitos a verem o fim gradual do Estado sólido, tipo «bola de bilhar», que, significativamente, tem
sido a norma desde o Tratado de Vestefália, em 1648, e o surgimento de uma ordem variada,
complexa, em múltiplas camadas, que mais se assemelha à que existiu nos tempos medievais.
Um puro caos. O enfraquecimento dos Estados e, por vezes, o seu insucesso contribuem para uma
quarta imagem de um mundo em anarquia. Este paradigma realça: o colapso da autoridade
governamental; a
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separação ou divisão dos Estados; a intensificação dos cOnflitOs tribais, étnicos e religiosos; a
emergência de mafias criminosas internacionais; o facto de os refugiados atingirem números da
ordem das dezenas de milhões; a proliferação de armas nucleares e outras de destruiÇão maciça; a
expansão do terrorismo; a preponderância de massacres e de limpezas étnicas. Este quadro de um
mundo caótico foi convincentemente transmitido e resumido nos títulos de duas penetrantes obras
publicadas em 1993:
out of Control, de Zbigniew Brzezinski, e Pandaemonium, de Daniel Patrick Moynihan.
O paradigma do caos, tal como o paradigma dos Estados, está próximo da realidade. Fornece um
quadro gráfico e rigoroso de muito do que está a passar-se no mundo e, de um modo diferente do
paradigma dos Estados, sublinha as mudanças significativas que ocorreram na política mundial com
o fim da guerra fria. Em princípios de 1993, por exemplo, houve 48 conflitos étnicos a nível
mundial e 164 «reivindicações étnico-territoriais e conflitos relacionados com fronteiras» na antiga
União Soviética, dos quais 30 envolveram algum tipo de conflito armado. Contudo, este modelo
ressente-se ainda mais do que o paradigma estatal do facto de estar demasiado próximo da
realidade. O mundo pode estar num caos, mas não está totalmente sem ordem. Uma imagem de uma
anarquia universal e indiferenciada fornece poucas chaves para a compreensão do mundo, para
ordenar os acontecimentos e avaliar a sua importância, para prever tendências na anarquia, para
distinguir os diferentes tipos de caos e as suas possíveis causas e consequências e para criar
orientações para os responsáveis pelas políticas governamentais.
Cada um destes quatro paradigmas oferece uma combinação diferente de realismo e parcimónia.
Cada um deles tem também as suas deficiências e limitações. Estas poderiam ser compensadas, de
uma maneira concebível, combinando paradigmas e pressupondo, por exemplo, que o mundo está
empenhado em processos simultâneos de fragmentação e de integração. Ambas as tendências
existem de facto e um modelo mais complexo aproximar-se-á mais da realidade do que um mais
simples. Todavia, tal significaria sacrificar a parcimónia ao realismo e, se levado muito longe,
conduziria à rejeição de todos os paradigmas ou teorias. Além disso, abrangendo, simultaneamente,
duas tendências opostas, o modelo fragmentação/integração é omisso em dizer em que
circunstâncias prevalecerá uma ou outra tendência. O desafio consiste em desenvolver um
paradigma que
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39
durante quarenta anos, mas tornou-se obsoleto em finais dos anos 80 e, até certo ponto, o mesmo
destino terá o paradigma civilizacional. Para o período contemporâneo, todavia, fornece um guia
útil para distinguir o que é mais importante do que não o é tanto. Por exemplo, um pouco menos de
metade dos 48 conflitos étnicos verificados no mundo em princípios de 1993 ocorreu entre grupos
de civilizações diferentes. A perspectiva civilizacional levaria o secretário-geral da ONU e o
secretário de Estado dos EUA a concentrarem os seus esforços de imposição da paz nestes conflitos
por envolverem um potencial muito maior do que quaisquer outros de escalada para mais vastos
conflitos.
Os paradigmas também permitem previsões. Um teste crucial para a avaliação da validade e
utilidade do paradigma consiste em ver até que ponto as previsões dele resultantes são mais precisas
do que outras provenientes de paradigmas alternativos. Apoiando-se no paradigma estatal, por
exemplo, John Mearsheimer foi levado a prever que «a situação entre a Ucrânia e a Rússia cria as
condições para o deflagrar de uma competição entre ambas no campo da segurança. As grandes
potências que partilham uma fronteira comum longa e desprotegida, como a que existe entre a
Rússia e a Ucrânia, caem frequentemente numa rivalidade motivada por receios relativos à
segurança. A Rússia e a Ucrânia podem ultrapassar esta dinâmica e aprender a viver juntas em
harmonia, mas seria invulgar se o fizessem.» Uma abordagem civilizacional, por outro lado,
enfatizaria os apertados laços culturais, pessoais e históricos entre a Rússia e a Ucrânia, a mistura de
russos e ucranianos existentes em ambos os países, e focaria, isso sim, a falha civilizacional que
divide a Ucrânia Oriental ortodoxa da Ucrânia Ocidental uniata. Contudo, Mearsheimer, de acordo
com a concepção realista do Estado como entidade unificada e auto-identificada, ignora este dado
histórico duradouro. Enquanto uma abordagem estatal realça a possibilidade de uma guerra
russo-ucraniana, uma abordagem civilizacional minimiza-a e, em contrapartida, salienta a
possibilidade de a Ucrânia se dividir em duas, uma separação cujos factores culturais podem levar
alguém a prever que poderá ser mais violenta do que a da Checoslováquia, mas muito menos
sangrenta do que a da Jugoslávia. Estas previsões, por sua vez, darão lugar a diferentes prioridades
políticas. A previsão de Mearsheimer de uma possível guerra e da conquista da Ucrânia pela Rússia
leva-o a apoiar a posse de armas nucleares pela Ucrânia. Uma abordagem civilizacional encorajaria
a cooperação entre a Rússia e a Ucrânia, apressaria esta a desistir das suas armas nucleares,
promoveria uma assistência económica substancial e outras medidas que ajudassem a manter a
unidade e a independência ucranianas e patrocinaria planeamentos de contingência para a possível
divisão da Ucrânia.
40
Foram muitos os acontecimentos importantes depois do final da guerra fria compatíveis com o paradigma
civilizacional e que poderiam ter sido previstos a partir dele. Incluem: a divisão da União Soviética e da
jugoslávia; as guerras em curso nos seus antigos territórios; a ascensão do fundamentalismo religioso no
mundo; as lutas sobre a identidade na Rússia, na Turquia e no México; a intensidade dos conflitos comerciais
entre os Estados Unidos e o Japão; a resistência dos Estados islâmicos à pressão ocidental sobre o Iraque e a
Líbia; os esforços dos Estados islâmicos e confucionistas para a aquisição de armas nucleares e respectivos
meios de lançamento; a persistência da China como grande potência outsider,- a consolidação de novos
regimes democráticos nalguns países e não noutros; a corrida aos armamentos em curso no Extremo Oriente.
A pertinência do paradigma civilizacional em relação ao novo mundo emergente é ilustrada pelos
acontecimentos que ocorreram durante um período de seis meses em 1993:
A continuação e intensificação da luta entre croatas, muçulmanos e sérvios na antiga Jugoslávia;
• A incapacidade do Ocidente em fornecer um apoio considerável aos muçulmanos bósnios ou em denunciar
as atrocidades croatas, tal como foram denunciadas as sérvias;
• A falta de vontade da Rússia em juntar-se a outros membros do Conselho de Segurança das Nações
Unidas para forçar os sérvios, na Croácia, a fazer a paz com o governo croata e a oferta do Irão e de outras
nações muçulmanas de fornecimento de 18 000 soldados para proteger os muçulmanos bósnios;
• A intensificação da guerra entre arménios e azeris, as exigências turcas e iranianas para que os arménios
renunciem às suas conquistas, o posicionamento de tropas turcas na fronteira do Azerbaijão e a sua violação
por tropas iranianas, o aviso da Rússia de que a acção iraniana contribuiria «para a escalada do conflito» e
«empurraria a situação para limites perigosos de internacionalização»;
• A continuada luta na Ásia central entre tropas russas e guerrilhas mujahedin;
• Confrontação, na Conferência dos Direitos Humanos, em Viena, entre o Ocidente, liderado pelo secretário
de Estado dos EUA, Warren Christopher, denunciando o «relativismo cultural», e a coligação dos Estados
islâmicos e confucionistas, rejeitando o «universalismo ocidental»;
• Reformulação paralela efectuada pelos planificadores militares russos e da NATO em relação à ameaça
vinda do Sul;
41
• A votação, aparentemente por razões civilizacionais, que atribuiu a Sidney, e não a Pequim, as Olimpíadas
do ano 2000;
• A venda de componentes de mísseis da China ao Paquistão, a consequente imposição de sanções
norte-americanas contra a China e a confrontação entre este país e os Estados Unidos sobre a alegada
exportação de tecnologia nuclear para o Irão;
• A interrupção da moratória e o teste de uma arma nuclear pela China, apesar dos protestos vigorosos dos
EUA, e a recusa da Coreia do Norte em participar em mais conversações sobre o seu armamento nuclear;
• A revelação de que o Departamento de Estado dos EUA estava a seguir uma política de «dupla contenção»
relativamente ao Irão e ao Iraque;
• O apelo feito pelo presidente do Irão visando alianças com a China e a índia de modo que «possamos ter a
última palavra nos eventos internacionais»;
• A nova legislação alemã que reduz drasticamente a entrada de refugiados;
• O acordo entre o presidente russo, Boris Ieltsine, e o presidente ucraniano, Leonid Kravtchouk, sobre a
esquadra do mar Negro e outras questões;
• O bombardeamento de Bagdade pelos Estados Unidos, o apoio virtualmente unânime dos governos
ocidentais e a sua condenação por quase todos os governos muçulmanos, como outro exemplo ocidental de
«dois pesos, duas medidas»;
• A inclusão pelos Estados Unidos do Sudão na lista dos Estados terroristas e a acusação contra o xeque
Omar Abdel Rahman e os seus seguidores de conspiração «para o lançamento de uma campanha de
terrorismo urbano contra os Estados Unidos»;
• Perspectivas reforçadas da admissão eventual na NATO da Polónia, Hungria, República Checa e
Eslováquia;
• A eleição parlamentar russa de 1993, que demonstra que a Rússia é, de facto, um país «dilacerado», com a
sua população e as suas elites incertas sobre se devem juntar-se ao Ocidente ou desafiá-lo.
Uma lista comparável de eventos, demonstrando a aplicabilidade do paradigma civilizacional, poderia ser
quase compilada em qualquer outro período de seis meses em princípios dos anos 90.
Nos primeiros anos da guerra fria o estadista canadiano Lester Pearson, prescientemente, salientou o
ressurgimento e a vitalidade das sociedades não ocidentais. «Seria absurdo», avisou ele, «imaginar que estas
novas
42
sociedades políticas que estão a surgir no Oriente pudessem ser réplicas das que nos são familiares
no Ocidente. O renascimento destas antigas civilizações tomará novas formas.» Realçou que as
relações internacionais, «durante vários séculos», foram relações entre os Estados da Europa e
afirmou que «os problemas, a longo prazo, já não se colocam entre nações pertencentes a uma
mesma civilização, mas entre civilizações. A bipolaridade prolongada da guerra fria fez atrasar os
desenvolvimentos que Pearson viu estarem a chegar. O fim da guerra fria libertou as forças culturais
e civilizacionais que identificou em princípios dos anos 50 e um elevado número de intelectuais e
analistas têm reconhecido e salientado o novo papel destes factores na política global.* Como,
sabiamente, escreveu Fernand Braudel, «para todas as pessoas interessadas no mundo
contemporâneo e, por maioria de razão, para os que querem agir sobre ele, compensa saber
reconhecer num mapa do mundo que civilizações existem hoje, ser capaz de definir as suas
fronteiras, o seu centro e a sua periferia, as suas divisões e o ar que lá se respira, as ‘formas gerais e
particulares existentes e associá-las entre si. Caso contrário, que erros de perspectiva catastróficos
poderão verificar-se!
* Johan Galtung desenvolveu, independentemente, uma análise paralela à minha em que realça a
existência de sete ou oito grandes civilizações, e os respectivos estados núcleos, na política
mundial. Galtung considera sete agrupamentos regionais-culturais dominados por potências
hegemónicas: Estados Unidos, Comunidade Europeia, Japão, China, Rússia, Índia e um pólo
islâmico.
43
2
Civilizações na história e hoje
A natureza das civilizações
44
Em primeiro lugar, existe uma diferença entre civilização no singular e civilizações no plural. A ideia de
civilização foi desenvolvida pelos pensadores franceses do século xviii em oposição ao conceito de
«barbarismo». A sociedade civilizada distinguia-se das sociedades primitivas por ser sedentária, urbana e
conhecer a escrita. Ser civilizado era bom; ser incivilizado era mau. O conceito de civilização forneceu um
padrão pelo qual se ajuizavam as sociedades e no século XIX os Europeus devotaram muita energia
intelectual, diplomática e política à elaboração dos critérios pelos quais as sociedades não europeias seriam
julgadas suficientemente civilizadas para serem aceites como membros do sistema internacional dominado
pelos Europeus. No entanto, ao mesmo tempo, as pessoas falavam cada vez mais de civilizações no plural. Tal
significou «a renúncia a uma civilização definida como ideal, ou mesmo a ideal», e uma mudança em relação
ao pressuposto de que havia um padrão único para o que era civilizado, «confinado», na frase de Braudel, «a
um pequeno número de povos ou grupos privilegiados, a “elite” da humanidade». Em vez disso, existiriam
muitas civilizações, cada uma delas civilizada à sua maneira. A civilização no singular, em suma, «perdeu
algum prestígio» e a civilização no sentido plural podia, de facto, ser bastante incivilizada no sentido singular.
As civilizações no plural são a preocupação deste livro. Contudo, a distinção entre o singular e o plural
continua a ter importância, tendo a ideia de civilização no singular reaparecido no argumento de que há uma
civilização mundial universal. Este argumento não pode ser sustentado, mas será útil explorá-lo, como será
feito no capítulo final deste livro, quer as civilizações estejam, quer não, a tornar-se mais civilizadas.
Em segundo lugar, a civilização é uma entidade cultural, excepto na Alemanha. Os pensadores alemães do
século XIX traçaram uma clara distinção entre civilização, que implicava mecânica, tecnologia e factores
materiais, e cultura, que envolvia valores, ideias e características intelectuais e morais de uma sociedade. Esta
distinção persistiu no pensamento alemão, mas não foi aceite em qualquer outro lado. Alguns antropólogos
inverteram mesmo a relação. Para eles as sociedades primitivas, estáveis e não urbanas, caracterizavam-se
pela cultura, enquanto as sociedades mais complexas, desenvolvidas, urbanas e dinâmicas, formavam as
civilizações. No entanto, estes esforços para distinguir cultura de civilização não foram aceites e, exceptuando
a Alemanha, há um total acordo com Braudel em que é ilusório desejar, à moda alemã, separar a cultura da
sua base civilização.
A civilização e a cultura referem-se ambas ao modo de vida global de um povo, sendo uma civilização uma
cultura em sentido amplo. Ambas
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incluem os «valores, normas, instituições e modos de pensar a que sucessivas gerações de uma dada
sociedade deram importância primária. Uma civilização é, para Braudel, «um espaço, uma “área
cultural”, uma colecção de características e fenómenos culturais». Wallerstein define-a como «uma
concatenação particular de modos de ver o mundo, de costumes, estruturas e cultura (quer cultura
material, quer alta cultura) que forma um certo tipo do todo histórico e que coexiste (nem sempre
em simultaneidade) com outras variedades deste fenómeno». Uma civilização é, de acordo com
Dawson, o produto de «um processo particular e original de criatividade cultural que é o trabalho de
um determinado povo», enquanto para Durkheim e Mauss é «uma espécie de ambiente moral que
envolve um certo número de nações, sendo cada cultura nacional apenas a forma particular do
todo». Para Spengler uma civilização «é o inevitável destino da cultura [... 1 o estado mais exterior
e artificial de que uma espécie da humanidade desenvolvida é capaz [ ... 1 uma conclusão, o
produto que sucede à produção». Virtualmente, a cultura é o tema comum em todas as definições de
civilização’. Os elementos culturais essenciais que definem uma civilização foram enunciados de
uma forma clássica quando os Atenienses reafirmaram aos Espartanos que não os trairiam em
relação aos Persas:
Mesmo que estivéssemos tentados a fazê-lo, há muitas e poderosas considerações que no-lo
impediriam. A primeira e a mais importante: as imagens e as habitações dos deuses foram
queimadas e deixadas em ruínas: estes actos merecem vingança, com toda a nossa força, em vez de
um acordo com quem perpetrou tais actos. A segunda: a raça grega é do mesmo sangue, fala a
mesma língua, partilha os mesmos templos e faz os mesmos sacrificios; os nossos costumes são
semelhantes; para os Atenienses trair tudo isto não seria correcto.
Sangue, língua, religião, modo de vida, era o que os Gregos tinham em comum e que os distinguia
dos Persas e de outros não gregoS. No entanto, de todos os elementos objectivos que definem as
civilizações, o mais importante é, normalmente, a religião, como os Atenienses salientaram.
Em larga medida, as maiores civilizações na história humana têm estado intimamente identificadas
com as grandes religiões mundiais; pelo contrário, as pessoas que fazem parte da mesma etnia e têm
a mesma língua, mas não a mesma religião, podem massacrar-se mutuamente, como aconteceu no
Líbano, na antiga Jugoslávia e no subcontinente indiano’.
Existe uma correspondência significativa entre a divisão das pessoas por civilizações, a partir de
características culturais, e a sua divisão por raças, com base em características fisicas. Contudo,
civilização e raça não
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são idênticas. As pessoas da mesma raça podem estar profundamente divididas pela civilização. As
grandes religiões missionárias, particularmente o cristianismo e o islão, agrupam sociedades de
várias raças. As diferenças cruciais entre grupos humanos dizem respeito aos seus valores, crenças,
instituições e estruturas sociais, e não à dimensão fisica, à forma das cabeças e à cor da pele.
Em terceiro lugar, as civilizações são globais, isto é, nenhuma das suas componentes pode ser
inteiramente compreendida sem se relacionar com a civilização envolvente. As civilizações,
argumentava Toynbee, «abrangem sem serem abrangidas por outras». Uma civilização é uma
“totalidade”. As civilizações, prossegue Melko, têm um certo grau de integração. As suas partes são
definidas pelo seu relacionamento entre si e com o todo. Se a civilização é composta por Estados,
estes terão mais relações entre si do que com Estados exteriores a essa civilização. Podem lutar
mais e empenhar-se mais frequentemente em relações diplomáticas. Serão mais interdependentes
economicamente. Serão atravessados pelas mesmas correntes estéticas e filosóficas’.
Uma civilização representa a mais ampla entidade cultural. Aldeias, regiões, grupos étnicos,
nacionalidades, grupos religiosos, todos têm culturas distintas em diferentes níveis de
heterogeneidade cultural. A cultura de uma aldeia na Itália meridional pode ser diferente da de uma
aldeia no Norte, mas ambas partilham uma cultura italiana comum que as distingue das aldeias
alemãs. As comunidades europeias, por seu lado, partilharão traços culturais que as distinguem das
comunidades chinesas ou hindus. Chineses, Hindus e Ocidentais, no entanto, não são parte de
qualquer entidade cultural mais ampla. Constituem civilizações. A civilização é, assim, o mais
elevado agrupamento cultural de pessoas e o nível mais amplo de identidade cultural que as pessoas
possuem e que as distingue das outras espécies. Ela define-se quer por elementos objectivos
comuns, como a língua, a história, a religião, costumes e instituições, quer pela auto-identificação
subjectiva das pessoas. As pessoas têm níveis diferentes de identidade: um residente em Roma pode
definir-se, em vários graus de intensidade, como romano, italiano, católico, cristão, europeu,
ocidental. A civilização a que pertence é o nível mais amplo de identificação a que se sente ligado.
As civilizações são os maiores «nós» dentro dos quais, culturalmente, nos sentimos «em casa» de
uma forma diferente de todos Os outros “eles”. As civilizações podem envolver um grande número
de pessoas, como a civilização chinesa, ou um pequeno número, como a das Caraíbas anglófonas.
Através da história existiram muitos pequenos gruPos de pessoas que possuíam uma cultura distinta
e a que faltava uma
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identificação cultural mais ampla. Têm sido feitas distinções, em termos de dimensão e importância,
entre civilizações grandes e periféricas (Bagby) ou entre civilizações grandes e bloqueadas ou
abortadas (Toynbee). Este livro diz respeito às que são geralmente consideradas as maiores
civilizações na história da humanidade.
As civilizações não têm fronteiras bem definidas nem princípios e fins precisos. As pessoas podem
e fazem redefinições das suas identidades e, consequentemente, a composição e as formas das
civilizações mudam com o tempo. As culturas dos povos interagem e sobrepõem-se. Variam
também consideravelmente as diferenças ou as semelhanças das culturas pertencentes a civilizações
diversas. As civilizações são, contudo, entidades importantes e reais, embora raramente sejam
nítidas as fronteiras entre elas.
Em quarto lugar, as civilizações são mortais, mas também de longa vida: evoluem, adaptam-se,
sendo as mais resistentes das associações humanas. São “realidades de extrema longue durée”. A
sua «essência
única e particular é «a sua longa continuidade histórica. A civilização é, de facto, a mais longa
história de todas.» Os impérios surgem e caem, os
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como consequência um controle acrescido sobre o meio envolvente produzido por uma minoria
criativa, seguido de um período de perturbações, da ascensão de um Estado universal e, finalmente,
da desintegração. Embora existam diferenças significativas, todas estas teorias vêem as civilizações
a evoluírem através de um período de dificuldades ou de conflito para um Estado universal até à
decadência e desintegração.
Em quinto lugar, dado que as civilizações são entidades culturais e não políticas, não podem,
enquanto tais, manter a ordem, administrar a justiça, cobrar impostos, travar guerras, negociar
tratados ou desempenhar outras tarefas próprias dos governos. Ao longo do tempo, a composição
política das civilizações varia não só entre elas como também em cada uma. Uma civilização pode,
assim, conter uma ou muitas unidades políticas. Estas podem ser cidades-estados, impérios,
federações, confederações, Estados-nações, Estados multinacionais, podendo todos ter variadas
formas de governo. À medida que a civilização evolui, ocorrem, normalmente, mudanças no
número e na natureza das suas unidades políticas constitutivas. Num caso extremo, uma civilização
e uma unidade política podem coincidir. A China, comentou Lucian Pye, é «uma civilização que
pretende ser um Estado» . O Japão é uma civilização que é um Estado. A maior parte das
civilizações, contudo, contêm mais do que um Estado ou outra entidade política. No mundo
moderno a maioria das civilizações contêm dois ou mais Estados.
Finalmente, os especialistas estão, em geral, de acordo com a identificação das grandes civilizações
da história e das que existem no mundo moderno. No entanto, discordam com frequência do
número total de civilizações que existiram na história. Quigley defende dezasseis casos históricos
claros e, muito provavelmente, oito adicionais. Toynbee atingiu, primeiro, o número de vinte e uma
e, depois, de vinte e três, enquanto Spengler menciona oito grandes culturas. McNeil defende nove
civilizaÇões em toda a história; Bagby também encontra nove civilizações, ou onze, se o Japão e a
ortodoxia forem distintos, respectivamente, da China e do Ocidente. Braudel identifica nove, e
Rostovanyi sete, como as maiores civilizações contemporâneas. Estas diferenças dependem, em
parte, de se considerar que determinados grupos culturais, como os Chineses e os Indianos, tiveram
uma única civilização ao longo da história, ou duas ou mais civilizações intimamente relacionadas,
das quais uma foi a origem das outras. Apesar destas diferenças, a identidade das grandes
civilizações não é contestada. «Existe um consenso razoável», conclui Melko, depois de ter revisto
a literatura sobre a matéria, sobre o facto de terem existido, pelo menos, doze grandes civilizações,
sete das quais já não existem (mesopotâmica, egípcia, cretense, clássica, bizantina,
centro-americana e
49
andina), enquanto cinco ainda subsistem (chinesa, japonesa, indiana, islâmica e ocidental). No
mundo contemporâneo é útil acrescentar a estas cinco civilizações a ortodoxa e, possivelmente, a
africana.
As grandes civilizações contemporâneas são, consequentemente, as seguintes:
Sínica. Todos os especialistas reconhecem a existência de uma única civilização chinesa distinta,
que remontaria, pelo menos, a 1500 a. C., ou mesmo a um milénio mais cedo, ou de duas
civilizações chinesas, uma a seguir à outra, nos primeiros séculos da era cristã. No meu artigo na
Foreign Affairs denominei esta civilização de confucionista. Será, no entanto, mais exacto utilizar o
termo sínica. Enquanto o confucionismo é uma importante componente da civilização chinesa, esta
é mais do que o confucionismo e também transcende a China como entidade política.
O termo sínica, que tem sido utilizado por muitos especialistas, descreve apropriadamente a cultura
comum da China, das comunidades chinesas do Sueste asiático e de outros lugares fora da China,
assim como as culturas afins do Vietname e da Coreia.
Japonesa. Alguns especialistas juntam as culturas japonesa e chinesa sob a única designação de
civilização do Extremo Oriente. Todavia, a maioria não o faz, reconhecendo antes o Japão como
possuidor de uma civilização distinta, descendente da civilização chinesa, que emergiu durante o
período entre 100 e 400 da nossa era.
Hindu. É universalmente reconhecido que uma ou mais civilizações sucessivas existiram no
subcontinente indiano desde, pelo menos, 1500 a. C. São, geralmente, referidas como indiana,
índica ou hindu, sendo o último termo o preferido para a mais recente civilização. Com formas
diferentes, o hinduísmo tem sido um elemento central na cultura do subcontinente indiano desde o
2º milénio a. C. “Mais do que uma religião ou um sistema social, é o âmago da civilização indiana.”
Continuou o seu papel através dos tempos modernos, muito embora a índia tenha uma importante
comunidade muçulmana, assim como várias minorias culturais menores.
Como «sínica», o termo «hindu» também separa o nome da civilização do nome do seu
Estado-núcleo, o que é desejável quando, como sucede nestes casos, a cultura ligada à civilização se
expande para além dos limites desse Estado.
islâmica. Todos os grandes especialistas reconhecem a existência de uma civilização islâmica
distinta. Nascido na Península Arábica no século vii, o islão rapidamente se espalhou pelo Norte de
África, Península Ibérica e também em direcção à Ásia central, ao subcontinente indiano e ao
Sueste asiático. Em resultado disso, existem muitas culturas ou subcivilizações distintas dentro do
islão, incluindo a arábica, a turca, a persa e a malaia.
50
Ortodoxa. Vários especialistas distinguem uma civilização ortodoxa distinta, centrada na Rússia e
separada da cristandade ocidental em resultado da sua linhagem bizantina, religião diferente,
duzentos anos de domínio tártaro, despotismo burocrático e limitada exposição ao Renascimento, à
Reforma, ao século das luzes e a outras experiências centrais ocidentais.
OcidentaL. A civilização ocidental é normalmente considerada emergente entre 700 e 800 da nossa
era. É geralmente aceite pelos estudiosos como tendo três grandes componentes: Europa, América
do Norte e América Latina.
Latino-americana. A América Latina, no entanto, tem uma identidade distinta que a diferencia do
Ocidente. Embora descendente da civilização europeia, a América Latina seguiu percursos
diferentes a partir da Europa e da América do Norte. Teve uma cultura corporativista, autoritária,
que a Europa teve em muito menor grau e que a América do Norte não conheceu. A Europa e a
América do Norte sentiram ambas os efeitos da Reforma e misturaram as culturas católica e
protestante. Historicamente, a América Latina tem sido apenas católica, embora tal situação possa
estar a mudar. A civilização latino-americana incorpora culturas indígenas que não existiam na
Europa, que foram eficazmente aniquiladas na América do Norte e que variam em importância, por
um lado, no México, América Central, Peru e Bolívia e, por outro, na Argentina e no Chile. A
evolução latino-americana e o desenvolvimento económico têm diferido profundamente dos
padrões prevalecentes nos países norte-atlânticos. Os próprios Latino-Americanos estão,
subjectivamente, divididos na sua auto-identificação. Alguns dizem «sim, somos parte do
Ocidente», enquanto outros reivindiCam «não, temos a nossa própria cultura», e uma vasta
literatura escrita por latinos e norte-americanos aprofunda as suas diferenças culturais. A América
Latina podia ser considerada quer uma subcivilização dentro da civilização ocidental, quer uma
civilização distinta intimamente ligada ao Ocidente e dividida como se pertencesse ao Ocidente.
Para uma análise centrada nas implicações políticas internacionais, incluindo as relações entre a
América Latina, por um lado, e a América do Norte e a Europa, por Outro, a segunda designação é
a mais apropriada e útil.
Assim sendo, o Ocidente inclui a Europa, a América do Norte e outros países, como a Austrália e a
Nova Zelândia. A relação entre as duas maiores componentes do Ocidente tem, no entanto, mudado
ao longo do tempo. Durante a maior parte da sua história, os Americanos definiram a sua Sociedade
em oposição à Europa. A América era a terra da liberdade, da igualdade, da oportunidade, do
futuro; a Europa representava a opressão, o conflito de classes, a hierarquia, o retrógrado.
Chegavam mesmo a
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argumentar que a América era uma civilização distinta. Esta questão da oposição entre a América e
a Europa foi, em grande medida, resultado do facto de, pelo menos até finais do século XIX, só ter
havido contactos reduzidos com civilizações não ocidentais. À medida que os Estados Unidos
foram surgindo na cena mundial, começou a desenvolver-se um sentimento de maior identidade
com a Europa. * Enquanto a América do século XIX se definia como diferente da Europa e até sua
opositora, a América do século XX define-se como parte e, de facto, líder de uma entidade mais
ampla, o Ocidente, que inclui a Europa.
O termo Ocidente é agora usado universalmente para referir o que costumava ser designado por
cristandade ocidental. O Ocidente é, assim, a única civilização identificada por uma direcção da
bússola, e não pelo nome de um povo, religião ou área geográfica.** Esta identificação retira a
civilização do seu contexto histórico, geográfico e cultural. Historicamente, a civilização ocidental é
uma civilização europeia. Na era moderna a civilização ocidental é euro-americana ou
norte-atlântica. A Europa, a América e o Atlântico Norte podem ser encontrados no mapa; o
Ocidente não. O termo Ocidente deu também lugar ao conceito de «ocidentalização» e promoveu a
enganadora fusão de ocidentalização e modernização: é mais fácil imaginar o Japão
«ocidentalizado» do que «euro-americanizado». A civilização euro-americana é, no entanto,
universalmente referida como civilização ocidental, sendo este termo, apesar das suas sérias
deficiências, empregado neste livro.
* Com um entusiasmo muito patriótico, Lerner defende que, bem ou mal, a América é o que é - uma
cultura distinta, com linhas de força e significado próprios, ao nível da Grécia e de Roma, com uma
das grandes civilizações distintas da História. Entretanto, também reconhece que, quase sem
excepção, as teorias da história não encontram um lugar para a América como uma civilização
distinta.
** A utilização de «Oriente» e «Ocidente» para identificar áreas geográficas é confusa e etnocêntrica. «Norte» e «Sul»
aceitaram, universalmente, pontos de referência fixos nos pólos. «Oriente» e «Ocidente» não têm tais pontos de
referência. A questão que se põe é esta: a leste ou a oeste de quê? Tudo depende do sítio onde estejamos. “Ocidente” e
«Oriente», presumivelmente, referiam-se, inicialmente, às partes ocidental e oriental da Eurásia. Numa perspectiva
americana, no entanto, o Extremo Oriente é, de facto, o Extremo Ocidente [no original, «Farwest»]. Durante grande parte
da história chinesa, o Ocidente significava a Índia, ao passo que «no Japão ‘o Ocidente’ queria significar, normalmente, a
China» [William E. Naff, «Reflections on the question of ‘East’ and ‘Wes from the point of view of Japan», in
Comparative Civilizations Review, 13-14 (Outub de 1985 e Primavera de 1986), 228].
Africana (possivelmente). A maior parte dos mais reputados estudiosos das civilizações, com excepção de Braudel, não
reconhecem uma civili zação africana específica. A parte norte do continente africano e a costa oriental pertencem à
civilização islâmica. A Etiópia constituiu, historicamente, uma civilização própria. Em qualquer outra parte o
imperialismo e as colónias europeias trouxeram elementos da civilização ocidental. Na África austral os colonos
holandeses, franceses e, depois, ingleses criaram
52
uma cultura europeia multifragmentada . O imperialismo europeu trouxe, muito significativamente, a
cristianização à maior parte do continente a sul do Sara. Através de toda a África, as identidades tribais estão
presentes e são intensas, mas os Africanos também estão a desenvolver, crescentemente, um sentimento de
identidade africana e é concebível que a África subsariana possa fundir-se numa civilização distinta, tendo
como Estado-núcleo, possivelmente, a África do Sul.
A religião é uma característica central definidora das civilizações e, como Christopher Dawson disse, «as
grandes religiões são os alicerces em que assentam as grandes civilizações». Das cinco «religiões mundiais»
de Weber, quatro - cristianismo, islamismo, hinduísmo e confucionismo - estão associadas a grandes
civilizações. A quinta, a budista, não está. Porquê? O budismo, tal como o islão e o cristianismo, cedo se
separou em duas subdivisões principais e, como o cristianismo, não sobreviveu na terra do seu nascimento. O
budismo maaiano* foi exportado para a China e, subsequentemente, para a Coreia, o Vietname e o Japão.
Adaptado a estas sociedades, assimilado à cultura indígena (na China, por exemplo, ao confucionismo e ao
tauísmo), foi suprimido. A partir de então, embora se tenha tornado uma componente importante das suas
culturas, estas sociedades não constituem nem se identificam como parte de uma civilização budista. O que
pode, legitimamente, ser descrito como a civilização budista Therevada não existe, porém, no Sri Lanka,
Birmânia, Tailândia, Laos e Camboja. Além disso, historicamente, as populações do Tibete, Mongólia e
Butão aderiram à variante lamaísta do budismo maaiano, constituindo estas sociedades uma segunda área da
civilização budista. Podemos, assim, concluir que a virtual extinção do budismo na índia e a sua adaptação e
incorporação nas culturas existentes na China e no Japão significam que o budismo, embora sendo uma
grande religião, não esteve na base de uma grande civilização.
É a mais importante forma dissidente do budismo. (N. do T) ** E quanto à civilização judaica? A maior parte dos
especialistas de civilizações raramente a mencionam. Em termos quantitativos, o judaísmo não é, claramente, uma grande
civilização. Toynbee descreve-a como uma civilização «presa» que evoluiu a Partir da anterior civilização siríaca. Está,
historicamente, relacionada com o cristianismo e com o islão e, durante vários séculos, os Judeus mantiveram a sua
identidade cultural dentro das civilizações ocidental, ortodoxa e islâmica. Com a criação do Estado de Israel, Os Judeus
têm todos os requisitos de uma civilização: religião, língua, costumes, literatura, instituições e uma base territorial e
política. Mas quanto à identificação subjectiva? Os judeus que vivem noutras culturas distribuem-se por um contínuo que
vai desde a total identificação com o judaísmo e Israel até um judaísmo nominal e à completa identificação com a
civilização dentro da qual residem, o que ocorre, principalmente, com os judeus que vivem no Ocidente (v. Mordecai M.
Kaplan, Judaism w a Civilization, Filadélfia, Reconstructionnist Press, 1981; publicado originalmente em 1934, pp.
173-208).
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Relações entre civilizações Encontros: as civilizações antes de 1500. As relações entre
civilizações evoluíram em duas fases e encontram-se agora numa terceira. Durante mais de 3000
anos após o aparecimento das primeiras civilizações, os contactos entre elas foram, com algumas
excepções, ou inexistentes ou intermitentes e intensos. A natureza destes contactos está bem
expressa na palavra que os historiadores usam para os descrever: “encontros”. As civilizações
estavam separadas pelo tempo e pelo espaço. Só um pequeno número coexistiu e verifica-se uma
diferença significativa, como argumentaram Benjamin Schwartz e Shmuel Eisenstadt, entre as
civilizações da idade axial e as da pré-axial no que respeita a reconhecerem uma distinção entre «as
ordens transcendental e mundana». As civilizações da idade axial, ao contrário das que as
antecederam, possuíam mitos transcendentais propagados por uma classe intelectual distinta: «os
profetas e sacerdotes judeus, os filósofos e sofistas gregos, os letrados chineses, os brâmanes
hindus, os monges budistas e os ulemás iSlâMiCOS». Certas regiões testemunharam duas ou três
gerações de civilizações afins, com a morte de uma civilização e um interregno seguido da ascensão
de outra geração sua sucessora. A figura 2.1 é uma carta simplificada (reproduzida de Carroll
Quigley) das relações entre as principais civilizações euro-asiáticas através dos tempos.
As civilizações também estavam separadas geograficamente. Até 1500 as civilizações andinas e
meso-americanas não tinham contacto com quaisquer outras civilizações nem mesmo entre si. As
primeiras civilizações nos vales dos rios Nilo, Tigre-Eufrates, Indo e Amarelo também não
interagiram. Multiplicaram-se, casualmente, contactos entre civilizações no Mediterrâneo oriental,
no Sudoeste asiático e no Norte da índia. As comunicações e as relações comerciais eram limitadas
pelas distâncias que mediavam entre elas e pelos débeis meios de transporte disponíveis para as
vencer. O comércio marítimo era frequente no Mediterrâneo e no oceano Índico, mas «os cavalos
que percorriam a estepe, mais do que os navios que cruzavam os mares, eram os meios
privilegiados graças aos quais as grandes civilizações estavam ligadas entre si no mundo anterior a
1500 - na reduzida expressão que esses contactos tinham na época.
As ideias e a tecnologia passam de civilização para civilização com uma demora, por vezes, de
séculos. A mais importante difusão cultural não
* Sangha no original. (N. do T)
54
resultante de conquista talvez tenha sido a expansão do budismo à China, que ocorreu cerca de seis
séculos depois do seu aparecimento no Norte da índia. A imprensa foi inventada na China no século
VIII, e os caracteres móveis no século XI, mas esta tecnologia só chegou à Europa no século XV.
O papel foi introduzido na China no século II, chegou ao Japão no século VII e foi difundido na
parte ocidental da Ásia central no século VIII, no Norte de África no século X, na Espanha no
século XII e no Norte da Europa no século XIII. Outra invenção chinesa, a pólvora, descoberta no
século IX e disseminada pelos Árabes algumas centenas de anos mais tarde, só chegou à Europa no
século XIV.*
* Braudel: On History, p. 14 [...] a influência cultural chegou em pequenas doses, atrasada pela distância e pela lentidão das viagens que tiveram de fazer. Se
acreditarmos nos historiadores, as modas chinesas do período de Tang [618-907] viajaram tão lentamente que não chegaram à ilha de Chipre e à brilhante
corte de Lusignan antes do século XV. Daí espalharam-se, à velocidade mais veloz do comércio do Mediterrâneo, pela França e pela excêntrica corte de
Carlos VI, onde os sapatos com um enorme salto alto se tornaram imensamente populares - tal como a luz que nos atinge vinda de estrelas há muito extintas.
Os contactos mais dramáticos e significativos entre civilizações ocorriam quando povos de uma
civilização conquistavam e eliminavam ou subjugavam Povos pertencentes a outra. Estes contactos
eram, normalmente, não só violentos, como também breves e intermitentes. A partir do século VII
desenvolveram-se contactos intercivilizacionais relativamente continuados e, por vezes, intensos
entre o islão e o Ocidente e entre o islão e a índia. No entanto, a maior parte das relações
comerciais, culturais e militares tiveram lugar no interior das próprias civilizações. Enquanto a índia
e a China, por exemplo, foram, ocasionalmente, invadidas e subjugadas por outros povos (Hunos,
55
Mongóis), ambas as civilizações passaram por longos períodos de «estado de guerra» dentro das
próprias civilizações. Analogamente, os Gregos lutaram e fizeram comércio mais frequentemente
uns com os outros do que com os Persas ou outros povos não gregos.
Impacto: a ascensão do Ocidente. A cristandade europeia começou a surgir como civilização
distinta nos séculos VIII e IX. Contudo, durante várias centenas de anos manteve-se num nível
inferior ao de muitas outras civilizações. A China, sob as dinastias T'ang, Sung e Ming, o mundo
islâmico, entre os séculos VIII e XII, e Bizâncio, entre os séculos VIII e XI, ultrapassavam a Europa
em riqueza, território, poder militar e realizações artísticas, literárias e científicas. A cultura
europeia começou a desenvolver-se entre os séculos XI e XIII, ajudada pela «apropriação
entusiástica» e sistemática de elementos das civilizações mais avançadas do islão e de Bizâncio,
concomitantemente com a adaptação deste património às condições e interesses especiais do
Ocidente». Durante o mesmo período, a Hungria, a Polónia, a Escandinávia e a costa do Báltico
converteram-se à cristandade ocidental e adoptaram o direito romano e outros aspectos da
civilização ocidental. A fronteira oriental da civilização ocidental ficou estabilizada onde, daí em
diante, iria permanecer sem alterações significativas. Nos séculos XII e XIII os Ocidentais
conseguiram expandir o seu controle à Espanha e conquistar um domínio eficaz do Mediterrâneo.
Todavia, a subsequente ascensão do poder turco originou o colapso do «primeiro império
ultramarino da Europa ocidental. Contudo, em 1500 o renascimento da cultura europeia estava em
curso e o pluralismo social, a expansão comercial e o progresso tecnológico forneceram a base para
uma nova era de política global.
Aos encontros multidireccionais, intermitentes ou limitados, entre civilizações sucedeu o impacto
sustentado, desproporcionadamente poderoso e unidireccional, do Ocidente sobre todas as outras
civilizações. O final do século XV testemunhou a conclusão da reconquista aos mouros da
Península Ibérica e o início da penetração portuguesa na Ásia e espanhola nas Américas. Nos
duzentos e cinquenta anos seguintes todo o hemisfério ocidental e porções significativas da Ásia
ficaram sob o poder ou domínio europeu. O final do século XVIII assistiu a uma retracção do
controle europeu directo, primeiro, com as independências dos Estados Unidos, depois, do Haiti e,
seguidamente, da América Latina, em revolta contra o domínio europeu. No entanto, na parte final
do século XIX um imperialismo ocidental renovado estendeu o seu domínio a quase toda a África,
consolidou o controle ocidental no subcontinente indiano e noutros lugares da Ásia e em princípios
do século XX sujeitou, praticamente, todo o
56
57
Por volta de 1910 o mundo era, política e economicamente, mais uno do que o fora em qualquer
outro período da história da humanidade. O comércio internacional, proporcional ao produto
mundial bruto, era mais elevado do que alguma vez o tinha sido anteriormente e não voltaria a
aproximar-se desse nível antes dos anos 70 e 80. O investimento internacional, em percentagem do
investimento total, foi mais elevado do que em qualquer outro período. Civilização significava a
civilização ocidental. O direito internacional era o do Ocidente, na esteira da tradição de Grotius. O
sistema internacional era o sistema vestefaliano ocidental, dos Estados-nações soberanos mas
«civilizados» e dos territórios coloniais que controlavam.
A emergência de um sistema internacional definido pelo Ocidente foi a segunda maior evolução na
política global nos séculos a seguir a 1500. Além de interagirem num modelo de
dominação-subordinação com as sociedades não ocidentais, as sociedades ocidentais também
interagiam entre si numa base de maior igualdade. Estas interacções entre entidades políticas no
interior de uma mesma civilização têm uma grande semelhança com as que ocorreram nas
civilizações chinesa, indiana e grega. Baseavam-se numa homogeneidade cultural que englobava «a
língua, o direito, a religião, a prática administrativa, a agricultura, a propriedade da terra e,
possivelmente, também o parentesco». Os povos europeus «partilhavam uma cultura comum e
mantinham vastos contactos através de uma rede activa de comércio, de um movimento constante
de pessoas e de um tremendo cruzamento de famílias reinantes». Também lutavam entre si
praticamente sem cessar. Embora em grande parte do período o Império Otomano controlasse quase
um quarto do que é agora considerado como Europa, não era considerado um membro do sistema
internacional europeu.
Durante cento e cinquenta anos, a política intracivilizacional do Ocidente foi dominada pelo grande
cisma religioso e por guerras religiosas e dinásticas. Por mais de um século e meio a seguir ao
Tratado de Vestefália os conflitos do mundo ocidental foram, em grande parte, entre príncipes
- imperadores, monarcas absolutos e monarcas constitucionais - que tentavam expandir as suas
burocracias, os seus exércitos, os seus poderes económicos mercantilistas e, mais importante ainda,
o território que governavam. Como, neste processo, criaram Estados-nações, a partir da revolução
francesa, os principais conflitos foram mais entre nações do que entre príncipes. Em 1793, como
escreveu R. R. Palmer, «acabaram as guerras entre príncipes; começaram as guerras dos povos».
Este padrão do século XIX durou até à Primeira Guerra Mundial.
Em 1917, em consequência da revolução russa, o conflito dos Estados-nações foi complementado
pelo conflito de ideologias, primeiro, entre o
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fascismo, o comunismo e as democracias liberais e, mais tarde, entre estas duas últimas. Na guerra fria
estas ideologias estavam corporizadas nas duas superpotências, cada uma das quais definia a sua identidade
pela ideologia e nenhuma delas era um Estado-nação no sentido tradicional europeu.
A chegada ao poder do marxismo, primeiro, na Rússia e, depois, na China e no Vietname representou uma
fase de transição de um sistema internacional europeu para um sistema multicivilizacional pós-europeu.
O marxismo era um produto da civilização europeia, mas não criou raízes nem teve sucesso na Europa. Em
vez disso, elites modernas e revolucionárias importaram-no para as sociedades não ocidentais; Lenine, Mao e
Ho adaptaram-no aos seus objectivos e usaram-no para desafiar o poder ocidental, mobilizar os seus povos e
reivindicar a identidade nacional e a autonomia dos seus países contra o Ocidente. O colapso desta ideologia
na União Soviética e a sua considerável adaptação na China e no Vietname não significam, no entanto, que
estas sociedades importem, necessariamente, a democracia liberal - a outra ideologia ocidental. É provável
que os ocidentais que julgam que tal acontecerá sejam surpreendidos pela criatividade, resiliência e
individualidade das culturas não ocidentais.
Interacções: um sistema multicivilizacional. No século XX as relações entre civilizações mudaram, assim, de
uma fase dominada pelo impacto unidireccional de uma civilização sobre as restantes para uma outra de
interacções intensas, continuadas e multidireccionais entre todas as civilizações. As duas características
centrais das relações intercivilizacionais da era anterior começaram a desaparecer.
Primeiro, na terminologia favorita dos historiadores: acabou «a expansão do Ocidente» e começou «a revolta
contra o Ocidente». O poder ocidental, de uma forma irregular, com pausas e recuos, declinou em relação ao
poder das outras civilizações. O mapa do mundo de 1990 tem poucas semelhanças com o mesmo mapa
referido a 1920. As relações dos poderes militar e económico e de influência política alteraram-se (esta
questão será desenvolvida com mais pormenor num capítulo posterior).
O Ocidente continuou a ter um impacto significativo sobre as outras sociedades, mas as relações entre o
Ocidente e as outras civilizações foram crescentemente dominadas pelas reacções do Ocidente aos
desenvolviinentos verificados naquelas civilizações. As sociedades não ocidentais, longe de serem
simplesmente os objectos da história escrita no Ocidente, foram-se tornando, cada vez mais, os motores e os
modeladores da sua Própria história e da história ocidental.
Em segundo lugar, como resultado destes desenvolvimentos, o sistema internacional expandiu-se para além
do Ocidente e tornou-se multicivilizacional.
59
Simultaneamente, os conflitos entre os Estados ocidentais - que dominaram aquele sistema durante
séculos - desapareceram. No final do século esta fase está ainda incompleta, dado que os
Estados-nações do Ocidente se agrupam em dois Estados semiuniversais, na Europa e na América
do Norte. Estas duas entidades e as suas unidades constituintes encontram-se, no entanto, ligadas
por uma rede extraordinariamente complexa de laços institucionais, formais e informais. Os Estados
universais das civilizações anteriores eram impérios. Contudo, desde que a democracia se tornou a
forma política da civilização ocidental, o Estado universal dela emergente já não é um império, mas
um composto formado por federações, confederações e regimes e organizações internacionais.
As grandes ideologias políticas do século XX incluem o liberalismo, o socialismo, o anarquismo, o
corporativismo, o marxismo, o comunismo, a social-democracia, o conservadorismo, o
nacionalismo, o fascismo e a democracia cristã. Todas gozam de uma coisa em comum: são
produtos da civilização ocidental. Nenhuma outra civilização gerou uma ideologia política com
importância. Em contrapartida, o Ocidente nunca gerou uma grande religião. As grandes religiões
mundiais são todas produto de civilizações não ocidentais e, na maioria dos casos, anteriores à
civilização ocidental. Quando o mundo termina a sua fase ocidental, as ideologias, que tipificaram o
período final da civilização ocidental, declinam e o seu lugar é tomado por religiões e outras formas
de identidade e de empenhamento de base cultural. A separação vestefaliana da religião e da
política internacional, um produto idiossincrásico da civilização ocidental, está a chegar ao fim e,
como sugere Edward Mortimer, «é cada vez mais provável que a religião se intrometa nas questões
internacionais.
O choque intracivilizacional de ideias políticas, geradas em abundância pelo Ocidente, está a ser
suplantado por um choque intercivilizacional de cultura e de religião.
A geografia política global passou do mundo uno dos anos 20 para o mundo triplo dos anos 60 e a
meia dúzia de mundos, ou mais, dos anos
90. Concomitantemente, os impérios ocidentais globais de 1920 foram reduzidos ao muito mais
limitado «mundo livre» dos anos 60 (que incluía muitos Estados não ocidentais opostos ao
comunismo) e, depois, ao ainda mais limitado «Ocidente» dos anos 90. Esta mudança reflectiu-se,
semanticamente, entre 1988 e 1993 no declínio do uso do termo civilizacional Ocidente (v. quadro
2.1). Também se nota nas cada vez mais frequentes referências ao islão como um fenómeno político
cultural, à «Grande China», à Rússia e «países vizinhos» e à União Europeia, todos estes termos
com um conteúdo civilizacional. Nesta terceira fase as relações intercivilizacionais são bem mais
frequentes e intensas do que na primeira
60
fase e mais equilibradas e recíprocas do que na segunda fase. Não há também, ao contrário do que
acontecia durante a guerra fria, uma clivagem única que domine, existindo antes clivagens múltiplas
entre o Ocidente e outras civilizações e entre as muitas não ocidentais.
Existe um sistema internacional, argumentou Hedley Bull, «quando dois ou mais Estados têm
suficiente contacto entre si e suficiente impacto sobre as decisões recíprocas que os obrigam a
comportar-se - pelo menos em parte - como partes de um todo». Existe, porém, uma sociedade
internacional quando os Estados de um sistema internacional têm «interesses e valores comuns»,
«aceitam ser sujeitos a um conjunto comum de regras», «partilham o trabalho em instituições
comuns» e têm uma cultura ou civilização comum». Como os seus antepassados Sumérios, Gregos,
Helenos, Chineses, Indianos e islâmicos, o sistema internacional europeu do século XVII ao século
XIX era também uma sociedade internacional. Nos séculos XIX e XX o sistema internacional
europeu expandiu-se para abranger, virtualmente, todas as sociedades das outras civilizações.
Algumas instituições e práticas europeias foram também exportadas para estes países. Contudo, a
estas sociedades ainda falta a cultura comum, que constitui a base da sociedade internacional
europeia. Em termos da teoria britânica das relações internacionais, o mundo é, assim, um sistema
internacional
61
bem desenvolvido e, na melhor das hipóteses, uma sociedade internacional ainda muito primitiva.
Cada civilização vê-se como o centro do mundo e escreve a sua história como o drama central da
história humana, o que se tem constatado ser talvez ainda mais verdadeiro no Ocidente do que nas
outras culturas. No entanto, cada ponto de vista monocivilizacional diminui de importância e de
utilidade num mundo multicivilizacional. Os especialistas das civilizações reconheceram há muito
esta evidência. Em 1918 Spengler denunciou o ponto de vista histórico míope prevalecente no
Ocidente com a sua clara divisão entre as Idades Clássica, Média e Moderna, que só tem relevância
no Ocidente. É necessário, disse ele, passar desta «abordagem ptolomaica da história» a uma outra
copérnica e substituir a «vazia ficção de uma história linear pelo drama vivido por várias culturas
poderosas. Algumas décadas depois, Toynbee criticou duramente o «paroquialismo e a
impertinência» do Ocidente manifestado nas «ilusões egocêntricas» de que o mundo gira à sua
volta, de que havia um «Oriente imutável» e de que «o progresso» era inevitável. Como Spengler,
negava-se a admitir a unidade da história, a hipótese de que há «um só rio da civilização, o nosso, e
de que todos os outros são ou tributários ou se perdem nas areias do deserto». Analogamente,
cinquenta anos depois de Toynbee, Braudel insistia na necessidade de procurar uma perspectiva
mais ampla e de compreender «os grandes conflitos culturais no mundo e a multiplicidade das suas
civilizações. Contudo, as ilusões e os preconceitos para que estes especialistas alertaram
permanecem e em finais do século XX desabrocharam num conceito muito difundido mas
coloquial: a civilização europeia é agora a civilização universal mundial.
62
63
humano, mas não pode esclarecer ou explicar a história, que consiste em mudanças no
comportamento humano. Além disso, se existe uma civilização universal comum para toda a
humanidade, que termo devemos então usar para identificar os principais grupos culturais da
humanidade enquanto subgrupos da raça humana? A humanidade está dividida em subgrupos -
tribos, nações e entidades culturais mais amplas, normalmente chamadas civilizações. Se
valorizarmos o termo civilização e o restringirmos ao que é comum à humanidade como um todo,
ou teremos de inventar um novo termo para designar os principais grupos culturais de povos,
enquanto subgrupos da humanidade como um todo, ou teremos de admitir que estes grandes grupos,
que não atingem a dimensão da humanidade, desaparecerão. Vaclav Havel, por exemplo, afirmou
que «agora vivemos numa única civilização global» e que isto «não é mais do que uma fina camada
superficial» que «cobre ou esconde a imensa variedade de culturas, de povos, de mundos religiosos,
de tradições históricas e atitude historicamente formadas que, em certo sentido, jazem “por debaixo
dela”. No entanto, apenas a confusão semântica ganhará se limitarmos o termo civilização ao nível
global e designarmos por “culturas” ou “subcivilizações” aquelas entidades culturais mais vastas a
que, historicamente, sempre chamámos civilizações*.»
* Hayward observou com justeza que no meu artigo na Foreign Affairs «não sancionei a ideia de
uma civilização mundial por defmir civilização como «o mais elevado gruPO cultural de povos e o
mais vasto nível de identidade cultural de povos antes daquele que distingue os seres humanos das
outras espécies». Este é, de facto, o modo como o termo tem sido usado pela maior parte dos
especialistas em civilizações. Neste capítulo, no entanto, mitigo aquela definição para permitir a
possibilidade de as pessoas se identificarem com uma cultura global distinta que suplemente ou
suplante as civilizações no sentido ocidental, islâmico ou sínico.
Em segundo lugar, a expressão civilização ocidental pode ser empregada para designar aquilo que
as sociedades civilizadas têm em comum, como as cidades e a cultura escrita, que as distinguem das
sociedades primitivas e bárbaras. Este é, claro está, o significado do século XVIII e é neste sentido
que está a surgir uma civilização universal para horror dos antropólogos e de todos os que vêem
com tristeza o desaparecimento das populações primitivas. A civilização, neste sentido, tem-se
expandido ao longo da história humana, sendo a expansão da civilização no singular bastante
compatível com a existência de muitas civilizações no plural.
Em terceiro lugar, o termo civilização ocidental pode referir-se a pressupostos, valores e doutrinas
normalmente defendidos por muitas pessoas na civilização ocidental e por algumas pessoas noutras
civilizações. Esta pode ser chamada a cultura Davos. Em cada ano cerca de um milhar de
empresários, banqueiros, funcionários governamentais, intelectuais e jornalistas de vários países
encontram-se no Fórum Económico Mundial, em Davos, Suíça. Quase todas estas pessoas possuem
graus universitários em ciências fisicas, ciências sociais, gestão de empresas ou direito, lidam com
palavras e/ou com números, são razoavelmente fluentes em inglês, são empregados de governos,
multinacionais e instituições académicas com um extenso envolvimento internacional e viajam,
frequentemente, para fora dos seus países. Geralmente, têm em comum crenças no individualismo,
na economia de mercado e na democracia política, que são também comuns entre as pessoas na
civilização ocidental. As pessoas de Davos controlam, praticamente, todas as instituições
internacionais, muitos dos governos e a maior parte das capacidades económicas e militares do
mundo. A cultura Davos é, assim, tremendamente importante. A nível mundial, porém, quantas
pessoas partilham esta cultura? Fora do Ocidente, provavelmente, é partilhada por menos de 50
milhões de pessoas, ou seja, 1% da população mundial, ou mesmo por tão poucas como um décimo
de 1% da população mundial. Está longe de ser uma cultura universal e os dirigentes que partilham
a cultura Davos não têm, necessariamente, um domínio garantido sobre as próprias sociedades. Esta
«cultura intelectual comum existe», como observou Hedley Bull, «só ao nível da elite: as suas
raízes são pouco profundas em muitas sociedades [ ... 1 [e] é duvidoso que, mesmo ao nível
diplomático, abarque o que se designa por uma cultura moral comum ou um conjunto de valores
comuns, tão diferente de uma cultura intelectual Comum.
Em quarto lugar, é avançada a ideia de que a expansão pelo mundo de padrões de consumo e de
cultura popular ocidentais estão a criar uma civilização universal. Este argumento não é profundo
nem relevante. Através da história têm sido transmitidas modas culturais de civilização para
civilização. As inovações de uma civilização são regularmente apreendidas por outras civilizações.
Estas são, no entanto, ou técnicas, de que não resultam consequências culturais significativas, ou
modas, que vêm e vão sem alterarem a cultura subjacente da civilização recipiente. Estas
importações «alojam-se» na civilização recipiente, quer por serem exóticas, quer por serem
impostas. Em séculos anteriores o mundo ocidental foi periodicamente invadido pelo entusiasmo
por vários artigos de cultura chinesa ou hindu. No século XIX tornaram-se populares na China e na
índia importações do Ocidente porque tal parecia reflectir o poder ocidental. O argumento de que a
difusão pop e de bens de consumo pelo mundo representa o triunfo da civilização ocidental
trivializa a cultura ocidental. A essência da civilização ocidental é a magna carta, e não o magna
mac. O facto de
65
não ocidentais poderem trincar este último não implica que aceitem a primeira.
Também não tem implicações nas suas atitudes em relação ao Ocidente. Algures no Médio Oriente
meia dúzia de jovens podem muito bem vestirjeans, beber Coca-cola, ouvir rap e, entre as suas
vénias voltadas para Meca, colocar uma bomba para fazerem explodir um avião de passageiros
americano. Nos anos 70 e 80 os Americanos consumiram milhões de carros, aparelhos de televisão,
máquinas fotográficas e acessórios electrónicos japoneses sem ficarem «niponizados»; de facto,
nesse período tornaram-se consideravelmente antagónicos em relação ao Japão. Só uma arrogância
ingénua pode levar os Ocidentais a pensarem que os não ocidentais se «ocidentalizarão» por
adquirirem artigos ocidentais. O que estamos, de facto, a transmitir ao mundo acerca do Ocidente
quando os Ocidentais identificam a sua civilização com líquidos gasosos, calças desbotadas e
comidas gordurosas?
Uma versão ligeiramente mais sofisticada do argumento de uma cultura popular universal destaca,
não os bens de consumo, mas os media, Hollywood, mais do que a Coca-cola. O controle mundial
americano das indústrias de cinema, televisão e vídeo excede mesmo o seu domínio sobre a
indústria aeronáutica.
8 8 dos 100 filmes mais vistos no mundo inteiro em
1993 eram americanos e duas organizações americanas e duas europeias dominam a recolha e a
disseminação das notícias numa base global. Esta situação reflecte dois fenómenos: o primeiro é a
universalidade do interesse humano pelo amor, sexo, violência, mistério, heroísmo e riqueza e a
capacidade das companhias, motivadas pelo lucro, principalmente americanas, de explorarem estes
interesses em seu beneficio. Todavia, existem poucas ou nenhumas provas que apoiem a hipótese de
que as comunicações globais alargadas estejam a produzir uma convergência nas atitudes e nas
crenças. “O entretenimento», como disse Michael Vlahos, «não se equipara à conversão cultural.”
Em segundo lugar, as pessoas interpretam as comunicações em termos dos seus valores e
perspectivas. «As mesmas imagens visuais transmitidas, simultaneamente, para as salas de estar
através do mundo», observa Kishore Mahbubani, «provocam percepções opostas. As salas de estar
ocidentais aplaudem quando os mísseis de cruzeiro atingem Bagdade. Grande parte do resto do
mundo vê como um sinal inquietante que o Ocidente retalie imediatamente contra os Iraquianos
ouSomalis, não brancos, mas não contra os Sérvios, brancoS. »
As comunicações globais são uma das mais importantes manifestações do poder ocidental. Esta
hegemonia do Ocidente, porém, encoraja os políticos populistas das sociedades não ocidentais a
denunciarem o imperialismo cultural ocidental e a congregarem os seus públicos no sentido
66
67
decréscimo na percentagem dos falantes de mandarim e que ocorreram aumentos nas percentagens
das pessoas que falam hindi, malaico-indonésio, árabe, bengali, espanhol, português e outras
línguas. O número de falantes de inglês no mundo desceu de 9,8% das pessoas que em 1958
falavam uma língua usada, pelo menos, por 1 milhão de pessoas para 7,6% em 1992 (v. quadro 3.
1). A percentagem da população mundial que fala as cinco maiores línguas ocidentais (inglês,
francês, alemão, português e espanhol) desceu de 24,1% em 1958 para 20,8% em 1992. Neste ano
havia, aproximadamente, o dobro de pessoas a falar mandarim, 15,2% da população mundial, em
relação às que falavam inglês e mais 3,6% a falar outras variantes da língua chinesa (v. quadro 3.2)
Em princípio, uma língua que é estranha a 92% da população mundial não pode ser uma língua
mundial. Contudo, por outro lado, poderia ser assim denominada se fosse uma língua que as pessoas
de grupos linguísticos e culturas diferentes utilizassem para comunicar entre si, se fosse a língua
franca do mundo, ou, em termos linguísticos, a principal language of wider communication (LWC)
do mundo. As pessoas que precisam de comunicar entre si têm de encontrar meios de o fazerem. A
um certo nível, podem contar com profissionais especialmente treinados e fluentes em duas ou mais
línguas para servir como intérpretes ou tradutores. Tal é, porém, incómodo, demorado e
dispendioso. Daí que tenham aparecido, ao longo da história, as línguas francas, o latim nos mundos
clássico e medieval, o francês durante o século no Ocidente, o suaíli em muitas partes de África e o
inglês em grande parte do mundo na última metade do século XX. Os diplomatas, empresários,
cientistas, turistas e os serviços que lhes são fornecidos, pilotos de companhias aéreas e
controladores aéreos precisam de alguns meios de comunicação eficiente entre si e fazem-no agora
maioritariamente em inglês.
Neste sentido, o inglês é o meio mundial de comunicação intercultural, tal como o calendário
cristão é o meio de registar o tempo, os algarismos árabes são o meio mundial de contar, o sistema
métrico é, para a maioria, o meio mundial de medir. O uso do inglês é, desta forma, comunicação
intercultural; pressupõe a existência de culturas separadas. A língua franca é uma forma de lidar
com as diferenças linguísticas e culturais, mas não um meio de as eliminar. É um instrumento para a
comunicação, não uma fonte de identidade e de comunidade. Porque um banqueiro japonês e um
empresário indonésio falam em inglês, tal não significa que qualquer deles seja inglesado ou
ocidentalizado. O mesmo pode ser dito dos suíços, francófonos
69
ou germanófonos, que é provável que falem entre si em inglês, em vez de o fazerem numa outra das suas
línguas nacionais. Analogamente, a permanência na índia do inglês como língua nacional associada, apesar
dos planos de Nehru para a contrariar, atesta os desejos intensos dos povos da União Indiana que não falam
hindi de preservarem as próprias línguas e culturas e a necessidade de a índia permanecer numa sociedade
multilinguística.
Como observou o notável linguista Joshua Fishman, uma língua é mais provável que seja aceite como língua
franca, ou LWC, se não for identificada com um grupo étnico particular, religião ou ideologia. No passado o
inglês teve muitas destas identificações. Mais recentemente, tem sido «desetnicizado» (ou minimamente
etnicizado), «como aconteceu no passado com o acadiano, o aramaico, o grego e o latim». O destino do inglês
como língua adicional explica-se, em parte, devido ao facto de as suas fontes britânica ou americana não
terem sido consideradas num contexto étnico ou ideológico durante o último quarto de século» (itálico seu). O
uso do inglês para a comunicação intercultural ajuda, assim, a manter e mesmo a reforçar as identidades
culturais separadas dos povos. Precisamente porque as pessoas querem preservar as suas culturas, utilizam o
inglês para comunicar com os povos de outras culturas.
As pessoas que no mundo falam inglês também falam crescentemente diferentes «ingleses». O inglês é
indigenizado e toma colorações locais que o distinguem do britânico e do inglês-americano, o que, em casos
extremos, torna estes «ingleses» quase ininteligíveis, como foi o caso que também se verificou com as
variedades do chinês. O adulterado* inglês nigeriano, o inglês indiano e outras formas de inglês estão a ser
incorporados nas respectivas culturas hospedeiras e, presumivelmente, continuarão a diferenciar-se de tal
modo que se tornam línguas aparentadas, mas distintas, como as línguas românicas, que evoluíram a partir do
latim.
* Pidgin no original. (N. do T.)
Todavia, estas línguas derivadas do inglês, diferentemente do italiano, do francês e do espanhol, ou serão
faladas por uma pequena parte das pessoas na sociedade ou serão utilizadas principalmente para comunicação
entre determinados grupos linguísticos.
Todos estes processos podem ser observados na Índia. Em 1983 existiam, por exemplo, significativamente, 18
milhões de falantes de inglês numa população de 733 milhões e em 1991 20 milhões numa população de 867
milhões. A percentagem dos que falam inglês em relação à população indiana tem permanecido, assim,
relativamente estável, entre 2% e
70
4%. Para além de uma relativamente pequena elite, o inglês nem mesmo serve como língua franca. «A crua
realidade», alegam dois professores de inglês da Universidade de Nova Deli, «é que, quando se viaja de
Caxemira para o extremo sul, para Kanyakumari, o elo de comunicação é melhor garantido através de
qualquer forma de hindi do que por meio do inglês.» Além disso, o inglês indiano está a assumir muitas
características próprias: está a ser indianizado, ou melhor, está a ser localizado quando as diferenças se
desenvolvem entre os vários falantes de inglês com diferentes idiomas locais. O inglês está a ser absorvido na
cultura indiana, tal como o foi, em tempos antigos, o sânscrito ou o persa.
Através da história, a distribuição das línguas no mundo tem reflectido a distribuição do poder nesse mesmo
mundo. As línguas mais amplamente faladas - inglês, mandarim, espanhol, francês, árabe e russo - são ou
eram as línguas dos Estados imperiais que promoveram activamente a utilização das suas línguas pelos outros
povos. Mudanças na distribuição do poder produzem mudanças na utilização da língua. «Dois séculos de
poder colonial, comercial, industrial, científico e fiscal britânico e americano deixaram um legado importante
numa educação, governo, comércio e tecnologia» mais elevados. Os Britânicos e os Franceses insistiram no
uso das suas línguas nas colónias. No entanto, a seguir à independência, a maior parte das antigas colónias
tentaram, em graus diferentes e também com sucesso diferente, substituir a língua imperial por línguas
indígenas.
O russo era a língua franca, de Praga a Hanói, durante o apogeu da União Soviética. O declínio do poder
soviético foi acompanhado por um declínio paralelo do uso do russo como segunda língua. Tal como acontece
com outras formas de culturas, o poder crescente gera segurança linguística nos falantes nativos e incentivos
para outros aprenderem a língua. Nos dias arrebatados imediatamente a seguir ao derrube do muro de Berlim
e que fez parecer a Alemanha unida como um novo papão notou-se uma tendência dos Alemães, fluentes em
inglês, para falarem alemão em encontros internacionais. O poder económico nipónico estimulou a
aprendizagem do japonês por não japoneses e o desenvolvimento económico da China está a Produzir um
boom semelhante nos Chineses. O chinês está a substituir rapidamente o inglês como língua predominante em
Hong-Kong e, tendo em atenção o papel dos chineses ultramarinos no Sueste asiático, tem-se tornado a língua
em que é transaccionado grande parte do negócio internacional da região.
Como o poder do Ocidente declina gradualmente em relação ao de outras civilizações, o uso do inglês e de
outras línguas ocidentais noutras sociedades também irá sendo lentamente afectado. Se, num dado momento
num futuro distante, a China substituir o Ocidente como a civilização
71
dominante no mundo, o inglês dará lugar ao mandarim como a língua franca mundial.
Quando as antigas colónias caminharam para a independência e se tornaram independentes, a
promoção,ou o uso das línguas indígenas e a supressão das línguas imperiais eram uma forma de as
elites nacionalistas se distinguirem dos colonialistas ocidentais e definirem a sua própria identidade.
Contudo, a seguir à independência, as elites destas sociedades precisaram de se distinguir do
homem comum das respectivas sociedades. A fluência em inglês, francês ou em qualquer outra
língua tinha esse efeito. Consequentemente, as elites das sociedades não ocidentais estão em
melhores condições de comunicarem com ocidentais e entre si do que com os povos das próprias
sociedades (uma situação semelhante a esta ocorreu no Ocidente nos séculos XVII e XVIII, quando
os aristocratas de diferentes países podiam mais facilmente falar em francês uns com os outros, mas
não podiam falar o vernáculo dos próprios países). Nas sociedades não ocidentais parecem estar em
curso duas tendências opostas. Por um lado, o inglês é cada vez mais utilizado a nível universitário
para permitir que os licenciados actuem, eficazmente, na competição global em busca de capital e
fregueses. Por outro lado, as pressões sociais e políticas levam crescentemente a uma mais
generalizada utilização das línguas indígenas, estando o árabe a substituir o francês na África do
Norte, o urdu a suplantar o inglês como língua de governo e de educação no Paquistão e os media
com línguas indígenas na índia a substituir os media de língua inglesa. Este desenvolvimento foi
previsto pela Comissão de Educação Indiana em 1948, quando afirmou que “o uso do inglês [ ...
]divide o povo em duas nações: os poucos que governam e os muitos que são governados, um
incapaz de falar a língua do outro e, como tal, sem capacidade para se compreenderem
mutuamente”. Quarenta anos depois a persistência do inglês como língua da elite confirmou esta
previsão e tem criado “uma situação anormal numa democracia em marcha, baseada no sufrágio
adulto [... ] A índia de língua inglesa e a índia politicamente consciente divergem cada vez mais»,
estimulando «tensões entre a minoria, no topo, que sabe inglês e os muitos milhões - armados com
o voto - que não sabem”. À medida que as sociedades não ocidentais estabelecem instituições
democráticas e o povo dessas sociedades participa mais extensamente no governo, a utilização das
línguas ocidentais diminui e as línguas indígenas tornam-se prevalecentes.
O fim do império soviético e da guerra fria promoveu a proliferação e o rejuvenescimento de
línguas que tinham sido suprimidas ou esquecidas. Estão em curso grandes esforços, a maior parte
nas antigas repúblicas soviéticas, para fazer reviver as línguas tradicionais: estónico, letónico,
72
lituânico, ucraniano, geórgico e arménico são agora as línguas nacionais dos Estados independentes. Nas
repúblicas muçulmanas têm ocorrido semelhantes reivindicações linguísticas e no Azerbaijão, Quirguistão,
Turcomenistão e Usbequistão têm mudado da escrita cirílica dos antigos senhores russos para a escrita
ocidental dos parentes turcos, enquanto o Tajiquistão, de expressão persa, adoptou a escrita árabe. Os Sérvios,
por outro lado, chamam agora sérvia à sua língua, em vez de servo-croata, e mudaram a escrita ocidental dos
inimigos católicos para a escrita cirílica dos irmãos russos. Os Croatas, num movimento paralelo, chamam
agora croata à sua língua e tentam expurgá-la de palavras turcas e de outras estrangeiras, enquanto «os
empréstimos turcos e árabes, sedimentos linguísticos deixados pelos 450 anos de presença nos Balcãs do
Império Otomano, estão a voltar a ser moda» na Bósnia’. A língua é realinhada e reconstruída de acordo com
as identidades e os contornos da civilização. Quando o poder se difunde, a “babelização” progride.
Religião. É só ligeiramente mais provável que surja uma língua universal do que uma religião universal. No
final do século XX observou-se um recrudescimento global das religiões por todo o mundo. Aquele
recrudescimento envolveu a intensificação da consciência religiosa e a ascensão dos movimentos
fundamentalistas. Reforçou, assim, as diferenças entre as religiões. Não significa, necessariamente, que
provoque alterações percentuais nos crentes no mundo que aderem às diferentes religiões. Os dados
disponíveis sobre os aderentes religiosos são ainda mais fragmentados e menos fidedignos do que os dos
falantes das diversas línguas. O quadro
3.3 apresenta números provenientes de uma fonte amplamente usada. Estes e outros dados sugerem que o
poder numérico relativo das religiões no mundo não mudou drasticamente neste século. A maior mudança
registada por esta fonte foi o aumento na percentagem das pessoas classificadas como «não religiosas» e
«ateias»: de 0,2%, em 1900 passou para 20,9%, em 1980. É concebível que tal possa reflectir um abandono da
religião e que em 1980 o renascimento religioso fosse só pressão acumulada. Este aumento de 20,7% dos não
crentes está compensado por 19% de descida dos considerados fiéis das «religiões populares chinesas», que
passaram de 23,5% em 1900 para 4,5% em 1980. Estes acréscimos e decréscimos são praticamente iguais e
sugerem que, com o advento do comunismo, o grosso da população da China foi, simplesmente,
reclassificado de seguidor de uma religião popular para o grupo de não crentes.
Os dados mostram aumentos nas percentagens da população mundial aderente às duas religiões mais
prosélitas nos últimos oitenta anos: o islão e o cristianismo. Os cristãos ocidentais estavam estimados, em
1900, em
73
26,9% da população mundial e em 30% em 1980. Os muçulmanos aumentaram mais
dramaticamente, de 12,4% em 1900 para 16,5% e, por outras estimativas, para 18% em 1980. Nas
últimas décadas do século XX, quer o islão, quer o cristianismo, expandiram-se, consideravelmente,
em África, tendo a maior viragem em direcção ao cristianismo ocorrido na Coreia do Sul. Nas
sociedades rapidamente modeRNizadas, se a religião tradicional é incapaz de se adaptar às
exigências da modeRNização, existe o potencial para a expansão do cristianismo ocidental e do
islão. Nestas sociedades os protagonistas da cultura ocidental com maior sucesso não são os
economistas neoclássicos, nem os democratas militantes, nem os executivos de empresas
multinacionais. São, e muito provavelmente continuarão a ser, os missionários cristãos. Nem Adam
Smith nem Thomas Jefferson satisfarão as necessidades psicológicas, emocionais, morais e sociais
dos imigrantes urbanos e da primeira geração dos graduados das escolas secundárias. Pode Jesus
taMbém não os satisfazer, mas é provável que tenha melhor sorte.
A longo prazo, no entanto, Maomé vencerá. A cristandade espalha-se principalmente pela
conversão; o islão por conversão e reprodução. A percentagem de cristãos no mundo atingiu o
máximo, cerca de 30%, nos anos 80, depois estabilizou, está agora a diminuir e, provavelmente,
atingirá cerca de 25% da população mundial cerca do ano 2025. Como resultado das taxas de
crescimento demográfico extremamente elevadas (v. cap. 5), a percentagem de muçulmanos no
mundo continuará a aumentar dramaTICAMENTE,
74
atingindo 20% da população mundial na viragem do século, ultrapassando o número de cristãos alguns anos
mais tarde e chegando, provavelmente, a cerca de 30% da população mundial perto do ano 2025.
75
o Ocidente ganhou o mundo para sempre e que os muçulmanos, os Chineses, os Indianos e outros
têm de correr a abraçar o liberalismo ocidental como a única alteRNativa. A divisão da humanidade
da época da guerra fria terminou. As divisões mais fundamentais da humanidade em terMos de
etnicidade, religião e civilização perManecem e oRIginarão novos conflitos.
Segundo, há a hipótese de que a interacção crescente entre os povos geralmente, comércio,
investimento, turismo, media e comunicação electrónica - esteja a gerar uma cultura mundial
comum. As melhorias na tecnologia dos transportes e comunicações têm, de facto, toRNado mais
fácil e barato movimentar à volta do mundo dinheiro, mercadorias, pessoas, conhecimento, ideias e
imagens. Existe, sem dúvida, um tráfico inteRNacional acrescido em todos estes grupos. o comércio
faz aumentar ou diminuir a probabilidade de conflito? o pressuposto que faz reduzir a probabilidade
de guerra entre as nações não está, no mínimo, provado e existem indícios em sentido contrário. o
comércio inteRNacional expandiu-se significativamente nos anos 60 e 70 e na década seguinte
terminou a guerra fria. Em 1913, no entanto, o comércio inteRNacional atingiu níveis máximos e
nos anos seguintes as nações chacinaram-se mutuamente, atingindo um número de baixas sem
precedentES. Se aquele nível de comércio inteRNacional foi incapaz de impedir a guerra, quando o
conseguirá? As provas existentes não apoiam a tese liberal inteRNacionalista de que o comércio
promove a paz. As análises feitas nos anos 90 colocam ainda mais em questão esta tese. Um estudo
concluiu que é improvável que “o elevado nível de comércio no sistema internacional, por si só,
faça diminuir as tensões inteRNacionais ou promova uma maior estabilidade inteRNacional”. Outro
estudo argumentou que os altos níveis de interdependência económica «podem ser indutores de paz
ou de guerra, dependendo das expectativas do comércio futuro». A interdependência económica só
ajuda à paz «quando os Estados esperam que os níveis elevados de comércio se mantenham num
futuro previsível.» Quando os Estados não esperam que se mantenham níveis elevados de
interdependência, é provável que surja a guerra?.
o insucesso do comércio e das comunicações em produzir paz ou um sentimento comum está
consonante com as conclusões das ciências sociais. Na psicologia social, a teoria da distinção
mostra que as pessoas, num contexto particular, definem-se pelo que as faz diferentes das outras:
«Percebe-se por meio das características que as distinguem dos outros homens, em particular dos
que pertencem ao mesmo meio. Uma mulher psicóloga na companhia de doze mulheres que
trabalham nas suas profissões vê-se como psicóloga; quando estiver com doze psicólogos,
76
considera-se mulher.» As pessoas definem a sua identidade pelo que não são. Quando o aumento
das comunicações, do comércio e das viagens multiplica as interacções entre civilizações, as
pessoas concedem, crescentemente, uma maior importância à sua identidade civilizacional. Dois
europeus, um alemão e um francês, interagindo entre si, identificar-se-ão um ao outro como alemão
e francês. Dois europeus, um alemão e um francês, interagindo com dois árabes, um saudita e um
egípcio, definir-se-ão como europeus e árabes. A imigração norte-africana para a França gera
hostilidade entre os Franceses e, simultaneamente, aumenta a receptividade à imigração de polacos
católicos europeus. Os Americanos reagem bastante mais negativamente ao investimento japonês
do que a outros mais elevados oriundos do Canadá e de países europeus. Da mesma forma, como
observou Donald Horowitz, «um ibo pode ser [ ... ] um ibo owerri ou um ibo onitsha na região
leste da Nigéria. Em Lagos é, simplesmente, ibo. Em Londres é nigeriano. Em Nova Iorque é
africano. A teoria da globalização da sociologia produz uma conclusão semelhante: «Num mundo
crescentemente globalizado - caracterizado por um alto grau de interdependência, principalmente
civilizacional e social e de outros tipos, e pela consciência generalizada deste fenómeno - há uma
exacerbação da autoconsciência civilizacional, social e étnica.» o renascimento religioso global, «o
regresso ao sagrado», é uma resposta a esta percepção das pessoas de um mundo como «um único
lugar».
o Ocidente e a modernização
o terceiro argumento, e o mais geral, a favor da emergência de uma civilização universal é visto
como resultado de vastos processos de modernização em curso desde o século XVIII. A
modernização inclui a industrialização, a urbanização, os níveis crescentes de educação, a
prosperidade, a mobilidade social e as estruturas ocupacionais mais complexas e diversificadas. Foi
o produto da tremenda expansão do conhecimento da ciência e da engenharia no século XVIII que
tornou possível que os seres humanos controlem e modelem o seu ambiente de uma forma até agora
inconcebível. A modernização é um processo revolucionário, só comparável à mudança das
sociedades primitivas para civilizadas, isto é, à emergência da civilização no singular, que começou
nos vales do Tigre e do Eufrates, no Nilo e no Indo cerca de 5000 a. C.. As atitudes, valores,
conhecimento e culturas das pessoas numa sociedade moderna diferem grandemente dos de uma
sociedade tradicional. o Ocidente, como a primeira civilização a modernizar-se, lidera a aquisição
da cultura da
77
modernidade. Como as outras sociedades adquirem padrões semelhantes de educação, trabalho,
riqueza e estrutura de classes, prossegue o argumento, esta cultura ocidental moderna tornar-se-á a
cultura universal do mundo.
Está fora de questão que existem diferenças significativas entre as culturas moderna e tradicional.
Contudo, não podemos concluir que as sociedades com culturas modernas se assemelham mais
umas às outras do que as sociedades com culturas tradicionais. Obviamente, que um mundo em que
algumas sociedades são ultramodernas e outras ainda tradicionais será menos homogéneo do que
outro em que todas as sociedades estão a níveis elevados comparáveis de modernidade. E um
mundo em que todas as sociedades sejam tradicionais? Este mundo existiu há uns séculos atrás.
Teria sido ele menos homogéneo do que provavelmente será um mundo futuro de modernidade
universal? Possivelmente, não. «A China Ming [...] estava, seguramente, mais próxima da França de
Valois», argumenta Braudel, «do que a China de Mao Tse-tung está da França da V República.»
Entretanto, as sociedades modernas podem assemelhar-se mais entre si do que as sociedades
tradicionais, por duas razões: primeira, a acrescida interacção entre as sociedades modernas pode
não gerar uma cultura comum, mas facilita a transferência de técnicas, invenções e práticas de uma
sociedade para a outra a uma velocidade e num grau impossíveis no mundo tradicional. Segunda, a
sociedade tradicional baseava-se na agricultura; a sociedade moderna baseia-se na indústria, que
evoluiu do artesanato, passou pela indústria pesada clássica até chegar à alta tecnologia baseada no
conhecimento. Os padrões da agricultura e a estrutura social que os acompanha estão muito mais
dependentes do ambiente natural do que os padrões da indústria. Variam com o solo e o clima e
podem, assim, dar origem a diferentes tipos de propriedade da terra, de estrutura social e de
governo. Quaisquer que sejam os méritos globais da tese da civilização hidráulica de Wittfogel, a
agricultura que depende da construção e da operação de sistemas de irrigação pesados ajuda ao
surgimento de autoridades políticas centralizadas e burocráticas. Dificilmente seria de outra forma.
O solo rico e um bom clima, provavelmente, contribuirão para o aparecimento de uma agricultura
de grandes plantações e de uma estrutura social correspondente tendo como consequência uma
pequena classe de ricos proprietários de terra e uma numerosa classe de camponeses, escravos ou
servos que trabalham nas plantações. Condições inóspitas para uma agricultura em grande escala
podem encorajar o aparecimento de uma sociedade de agricultores independentes. A indústria, em
contrapartida, está muito menos dependente do ambiente natural local. É provável
78
que as diferenças na organização industrial resultem mais de diferenças na estrutura cultural e social
do que da geografia; enquanto é concebível que as primeiras convirjam, a última não.
As sociedades modernas têm, assim, muito em comum. Mas será que se amalgamarão,
obrigatoriamente, numa homogeneidade total? O argumento favorável ao sim assenta no
pressuposto de que a sociedade moderna deve aproximar-se de um tipo único, o tipo ocidental: a
civilização moderna é a civilização ocidental e a civilização ocidental é a civilização moderna. Esta,
contudo, é uma identificação totalmente falsa. A civilização ocidental surgiu nos séculos VIII e IX e
desenvolveu as suas características distintas nos séculos seguintes. O processo de modernização só
teve início nos séculos XVII e XVIII. O Ocidente era o Ocidente antes de ser moderno. As
características centrais do Ocidente, as que o distinguem das outras civilizações, são anteriores à sua
modernização.
Quais eram estas características distintivas da sociedade ocidental, durante vários séculos, antes de
se modernizar? Vários especialistas têm dado respostas a esta questão que diferem nalguns
pormenores, mas que estão de acordo no que respeita às principais instituições, práticas e crenças e
que podem, com legitimidade, ser identificadas como o âmago da civilização ocidental. Incluem o
que se segue.
O legado clássico. Como civilização de terceira geração, o Ocidente herdou muito das civilizações
anteriores, especialmente da civilização clássica. São muitos os legados do Ocidente oriundos da
civilização clássica, incluindo a filosofia grega e o racionalismo, o direito romano, o latim e o
cristianismo. As civilizações islâmica e ortodoxa também herdaram muitas coisas da civilização
clássica, mas de modo algum no mesmo grau que o Ocidente.
Catolicismo e protestantismo. O cristianismo ocidental, primeiro sob a forma de catolicismo e
depois de catolicismo e de protestantismo, é, historicamente, a característica singular mais
importante da civilização ocidental. Durante o seu primeiro milénio de existência, o que de facto é
agora conhecido por civilização ocidental era designado por cristandade ocidental; entre os povos
cristãos ocidentais existia um sentimento de comunidade bem desenvolvido, muito diferente do dos
Turcos, Mouros, Bizantinos e outros; e foi por Deus, e também pelo ouro, que os Ocidentais
Partiram à conquista do mundo no século XVI. A Reforma e a Contra-Reforma e a divisão da
cristandade ocidental, Norte protestante e Sul católiCO, são características próprias da história
ocidental, totalmente ausentes da ortodoxia oriental e muito afastadas da experiência
latino-americana.
Línguas europeias. A língua, tal como a religião, é o factor distintivo de pessoas de uma cultura em
relação às de outra. O Ocidente distingue-se
79
da maior parte das outras civilizações pela sua multiplicidade de línguas. O japonês, o hindi, o
mandarim, o russo e mesmo o árabe são reconhecidos como as línguas nucleares das respectivas
civilizações.
O Ocidente herdou o latim, mas emergiu uma variedade de nações e, com elas, as línguas nacionais
agruparam-se, sem grande rigor, nas categorias abrangentes de românicas e germânicas. Estas
línguas assumiram, geralmente no século XVI, a forma contemporânea.
Separação da autoridade espiritual da temporal. Ao longo da história ocidental, primeiro, a Igreja e,
depois, muitas igrejas existiram independentemente do Estado. Deus e César, Igreja e Estado,
autoridade espiritual e autoridade temporal, têm sido um dualismo predominante na cultura
ocidental. Só na civilização hindu estavam separadas tão nitidamente a religião e a política. No
islão, Deus é César; na China e no Japão, César é Deus; no mundo ortodoxo, Deus é um parceiro
subalterno de César. A separação e os choques recorrentes entre a Igreja e o Estado, que tipificam a
civilização ocidental, não se verificaram em qualquer outra civilização. Esta separação de poderes
contribuiu imenso para o desenvolvimento das liberdades no Ocidente.
Primado da lei. A ideia segundo a qual a lei desempenha um papel central numa existência
civilizada foi herdada dos Romanos. Os pensadores medievais desenvolveram o conceito de lei
natural, de acordo com o qual os monarcas devem exercer o seu poder, e na Inglaterra
desenvolveu-se uma tradição de common law. Durante a fase do absolutismo, nos séculos XVI e
XVII, o primado da lei era mais uma ficção do que uma realidade, mas persistia a ideia da
subordinação do poder humano a um certo tipo de constrangimento externo: Non sub homine sed
sub Deo et lege. A tradição do primado da lei lançou a base do constitucionalismo e da protecção
dos direitos humanos, incluindo o direito de propriedade, contra o exercício do poder arbitrário. Na
maior parte das outras civilizações a lei foi um factor muito menos importante na formação do
pensamento e do comportamento.
Pluralismo social. A sociedade ocidental tem sido altamente pluralista ao longo da história. Como
Deutsch notou, o que é distintivo do Ocidente “é a ascensão e persistência de diversos grupos
autónomos não baseados em laços sanguíneos ou de casamento”. Com início nos séculos VI e VII,
estes grupos incluíam mosteiros, ordens monásticas e corporações, mas depois expandiram-se e em
muitas áreas da Europa passaram a incluir uma variedade de outras associações e sociedades. O
pluralismo associativo foi suplementado pelo pluralismo de classe. A maior parte das sociedades
europeias ocidentais possuíam uma aristocracia relativamente forte e autónoma, um campesinato
numeroso e uma pequena, mas significativa
80
82
85
têm, no entanto, movido realmente as sociedades? Obviamente, cada sociedade não ocidental tem
seguido o próprio curso, que pode diferir, substancialmente, destes três percursos padronizados.
Mazrui argumenta mesmo que o Egipto e a África se moveram em direcção ao ponto D através de
um «doloroso processo de ocidentalização cultural sem modernização técnica». Se existe algum
padrão geral de modernização e de ocidentalização nas respostas ao Ocidente das sociedades não
ocidentais, deverá situar-se ao longo da curva A-E. Inicialmente, a ocidentalização e a
modernização estão intimamente ligadas, com a sociedade não ocidental a absorver elementos
substanciais da cultura ocidental e a fazer progressos lentos em direcção à modernização. Todavia,
quando o ritmo da modernização aumenta, a taxa de ocidentalização diminui e a cultura indígena
entra num processo de renascimento. Mais modernização altera então o equilíbrio de poder
civilizacional entre o Ocidente e a sociedade não ocidental e reforça o empenhamento na cultura
indígena.
Nas primeiras fases da mudança, a ocidentalização promove a modernização. Nas fases mais
avançadas, a modernização promove a desocidentalização e o ressurgimento da cultura indígena de
duas formas. Ao nível da sociedade, a modernização aumenta o poder económico, militar e político
da sociedade como um todo e encoraja as pessoas daquela sociedade a terem confiança na
86
sua cultura e a tornarem-se culturalmente afirmativas. Ao nível individual, a modernização gera sentimentos
de alienação e anomia quando os laços tradicionais e as relações sociais se quebram, provocando crises de
identidade, às quais a religião dá uma resposta. Este fluxo causal está representado, numa forma simplificada,
na figura 3.2.
Este modelo geral hipotético é coerente com a teoria das ciências sociais e a experiência histórica.
Rainer Baum, revendo em profundidade as provas disponíveis respeitantes à «hipótese da
invariância», conclui que «a contínua busca humana de autoridade e de autonomia individual
assume formas culturalmente distintas. Nesta matéria não se observa convergência para um mundo
transculturalmente homogéneo. Antes parece verificar-se invariância nos padrões que foram
desenvolvidos de formas diferentes durante as fases históricas e as primeiras fases modernas do
desenvolvimento.» A teoria do empréstimo, desenvolvida, entre outros, por Frobenius, Spengler e
Bozeman, acentua a dimensão em que as civilizações recipientes recebem selectivamente por
empréstimo artigos de outras civilizações e os adaptam, transformam e assimilam de forma a
fortalecerem e a garantirem a sobrevivência dos valores nucleares da sua cultura, ou paideuma .
Quase todas as civilizações não ocidentais existem no mundo há, pelo menos, um milénio e nalguns
casos há vários. Têm um registo confirmado de empréstimos feitos por outras civilizações que lhes
permitiu garantir a sua própria sobrevivência. A absorção do budismo pela China, concordam os
especialistas, falhou em produzir a «indianização» da China. Os Chineses adaptaram o budismo aos
seus objectivos e necessidades. A cultura chinesa permaneceu chinesa. Até à data os Chineses têm
derrotado firmemente os intensos esforços do Ocidente para os cristianizar. Se, até certo POnto,
importaram o cristianismo, podemos esperar que este venha a ser absorvido e adaptado de tal
maneira que seja compatível com os elementos básicos da cultura chinesa. Do mesmo modo, os
árabes muçulmanos receberam, valorizaram e utilizaram a sua «herança helénica por razões
unicamente Utilitárias. Estando, principalmente, interessados em receber, por empréstimo, certas
formas externas ou aspectos técnicos, sabiam como ignorar todos os
87
elementos do pensamento grego que entrassem em conflito com a “verdade” que estava
estabelecida nas normas e preceitos fundamentais corânicos.
O Japão seguiu o mesmo padrão. No século XVII, para valorizar a sua civilização, o Japão
importou a cultura chinesa e fez «as transformações por sua iniciativa, livre de pressões económicas
e militares». «Nos séculos que se seguiram houve períodos de relativo isolamento face às
influências continentais - durante os quais os empréstimos anteriores eram sujeitos a uma triagem,
sendo assimilados os úteis - que alternaram com períodos de renovado contacto e de empréstimos
culturaiS. » Durante todas estas fases a cultura japonesa manteve o seu carácter distinto.
A forma moderada da tese kemalista, que as sociedades não ocidentais podem modernizar-se
ocidentalizando-se, está ainda por provar. A forma extrema, que as sociedades não ocidentais
devem ocidentalizar-se para se modernizarem, não é válida como tese universal. Levanta, no
entanto, uma questão: será que existem algumas sociedades não ocidentais em que os obstáculos
que a cultura indígena ergue sejam tão grandes que deva ser substancialmente substituída pela
cultura ocidental, se se pretende que haja modernização? Em teoria, isto seria mais provável com
culturas fechadas* do que com as instrumentais.
* Consummatory no original; a versão francesa utiliza o termo culture close. (N. do T)
Estas últimas «caracterizam-se por um vasto conjunto de fins intermédios separados e
independentes dos fins últimos». Estes sistemas «inovam facilmente, estendendo a cobertura da
tradição à própria mudança [ ... ] Tais sistemas podem inovar sem que as suas instituições sociais
pareçam alteradas no que é fundamental. De facto, a inovação está ao serviço da persistência.» Os
sistemas fechados, pelo contrário, «caracterizam-se por uma íntima relação entre os fins intermédios
e os últimos [... 1 a sociedade, o Estado, a autoridade, etc., fazem parte de um sistema denso no qual
a religião domina como um guia cognitivo. Tais sistemas têm sido hostis à inovação. » Apter usa
estas categorias para analisar as mudanças nas tribos africanas. Eisenstadt utiliza uma análise
paralela para as grandes civilizações asiáticas e chega a uma conclusão semelhante. A
transformação interna está “muito facilitada pela autonomia das instituições sociais, culturais e
políticas”. Por esta razão, as sociedades japonesa e hindu, mais instrumentais, progridem mais cedo
e mais facilmente em direcção à modernização do que as sociedades confucionista e islâmica. São
mais capazes de importar a tecnologia moderna e de a utilizar para apoiar a sua cultura. Significa
isto que as sociedades chinesa e islâmica devem renunciar à modernização e à ocidentalização ou
adoptar ambas? As opções não surgem assim tão restritas. Para além do Japão, Singapura, Taiwan,
a Arábia Saudita e, em menor grau, o Irão tornaram-se
88
sociedades modernas sem se tornarem ocidentais. De facto, o esforço do xá para seguir uma via
kemalista gerou uma reacção antiocidental intensa, mas não antimoderna. A China encetou,
claramente, uma via reformista.
Como as sociedades islâmicas têm tido dificuldades com a modernização, Pipes sustenta a sua
afirmação de que a ocidentalização é um pré-requisito que realça os conflitos entre o islão e a
modernidade em questões económicas, como o interesse, o jejum, a legislação em questões de
heranças e a participação feminina na força de trabalho. Entretanto, concordando com ele, cita
Maxine Rodinson, o qual diz que «nada indica de forma convincente que a religião muçulmana
tenha impedido o mundo muçulmano de se desenvolver na via que conduz ao capitalismo
moderno», e apoia-se em muitos argumentos, para além dos económicos.
O islão e a modernização não se chocam. Os muçulmanos devotos podem cultivar as ciências,
trabalhar eficientemente em fábricas ou utilizar armas sofisticadas. A modernização não requer uma
ideologia política ou um conjunto de instituições: não são necessárias eleições, fronteiras nacionais,
associações civicas e outras marcas características da vida ocidental para o crescimento económico.
O islão paga, religiosamente, tanto aos consultores económicos como aos camponeses. A charia
nada diz sobre as mudanças que acompanham a modernização, como a mudança da agricultura para
a indústria, do campo para a cidade, ou da estabilidade social para a mobilidade social, nem colide
com questões como a educação de massas, comunicações rápidas e novas formas de transporte ou
de cuidados de saúde.
Mesmo os adeptos mais extremistas do antiocidentalismo e da revitalização das culturas indígenas
não hesitam em utilizar técnicas modernas, como o e-mail, cassetes e televisão, para promoverem a
sua causa.
Em resumo, modernização não significa ocidentalização. As sociedades não ocidentais podem
modernizar-se, e têm-se modernizado, sem abandonarem as próprias culturas e sem adoptarem os
valores, as instituições e as práticas ocidentais dominantes. A ocidentalização pode, de facto, ser
considerada quase impossível: sejam quais forem os obstáculos que as culturas não ocidentais
coloquem à modernização, nada são quando comParados com os que são erguidos em relação à
ocidentalização. Como dizia Fernand Braudel, seria «infantil» pensar que a modernização, ou o
“triunfo da civilização no singular”, levaria ao fim da pluralidade das Culturas históricas moldadas
durante séculos nas grandes civilizações mundiaiS. Em vez disso, a modernização fortalece aquelas
culturas e reduz o poder relativo do Ocidente. Fundamentalmente, o mundo está a tornar-se mais
moderno e menos ocidental.
89
PARTE II
96
na América do Norte, na Austrália e na Nova Zelândia. Em contrapartida, o território das sociedades islâmicas
independentes passou de 2,5 milhões de quilómetros quadrados em 1920 para mais de 15 milhões em 1993.
Mudanças semelhantes ocorreram no controle da população. Em 1900 os Ocidentais constituíam,
aproximadamente, 30% da população mundial e os governos ocidentais dominavam então 45% daquela
população e 48% em 1920. Em 1993, se exceptuarmos um pequeno número de resíduos imperiais, como
Hong-Kong, os governos ocidentais apenas governavam populações ocidentais. Os ocidentais equivalem a um
pouco mais de 13% da humanidade e prevê-se que esta percentagem desça para 11% no princípio do próximo
século e para 10% cerca do ano 2025. Em termos de população total, o ocidente, em 1993, estava colocado
em quarto lugar, a seguir às civilizações sínica, islâmica e hindu.
Os ocidentais constituem, assim, uma minoria quantitativamente decrescente da população mundial. O
equilíbrio entre o ocidente e as outras civilizações está também a alterar-se qualitativamente. Os povos não
ocidentais estão a tornar-se mais saudáveis, urbanos, escolarizados e mais
97
instruídos. Em princípios da década de 90 as taxas de mortalidade infantil na América Latina, em
África, no Médio Oriente, na Ásia meridional, no Sueste asiático e no Extremo Oriente eram de um
terço a metade do que eram trinta anos antes. A esperança de vida nestas regiões tinha aumentado
significativamente, com ganhos que variavam entre onze anos em África e vinte e três anos no
Extremo Oriente. Em princípios da década de 60, em quase todo o Terceiro Mundo, menos de um
terço da população adulta sabia ler e escrever, tendo passado para metade em princípios da década
de 90, com excepção da África e de raros outros países. Cerca de 50% de
98
indianos e 75% de chineses sabem ler e escrever. Em 1970 a taxa de instrução nos países em vias de
desenvolvimento era, em média, de 41% da dos países desenvolvidos; em 1992 a média subiu para
71%. Em princípios da década de 90, em todas as regiões, com excepção da África, praticamente
toda a faixa etária em idade escolar estava matriculada na instrução primária. Mais
significativamente ainda: em princípios da década de 60, na Ásia, América Latina, Médio Oriente e
África, menos de um terço do universo em idade escolar estava matriculado no ensino secundário;
em princípios da década de 90 metade desse universo estava agora matriculada, com excepção da
África. Em 1960 os residentes urbanos constituíam menos de um quarto da população do mundo
subdesenvolvido. No entanto, entre 1960 e 1992 a percentagem urbana da população subiu de 49%
para 73% na América Latina, de 34% para 55% nos países árabes, de 14% para 29% em África, de
18% para 27% na China e de 19% para 26% na índia.
Estas alterações na escolarização, educação e urbanização criaram populações socialmente
mobilizadas, com capacidades acrescidas e com maiores expectativas, que podiam ser activadas
para fins políticos de formas que seriam impossíveis com camponeses analfabetos. As sociedades
socialmente mobilizadas são sociedades mais poderosas. Em 1953, quando menos de 15% dos
iranianos sabiam ler e escrever e menos de 17% eram urbanos, Kermit Roosevelt e alguns agentes
operacionais da CIA suprimiram facilmente uma sublevação e repuseram o xá no trono. Em
1979, quando 50% dos iranianos sabiam ler e escrever e 47% viviam em cidades, nenhum poder
militar americano poderia manter o xá no trono. Uma distância considerável separa ainda os
Chineses, Indianos, Árabes e Africanos dos Ocidentais, Japoneses e Russos. Todavia, a distância
está a reduzir-se rapidamente. Ao mesmo tempo, está a aumentar uma distância diferente: as idades
médias dos Ocidentais, Japoneses e Russos são mais altas e é cada vez maior a percentagem da
população inactiva que impõe um fardo cada vez mais pesado aos que ainda estão activos. As outras
civilizações estão sobrecarregadas com um excessivo número de crianças, mas estas são futuros
trabalhadores e soldados.
Produto económico. O quinhão ocidental do produto económico mundial também atingiu o seu
máximo nos anos 20 e tem estado a diminuir desde a Segunda Guerra Mundial. Em 1750 a China
era responsável por quase um terço, a índia por quase um quarto e o Ocidente por menos de um
quinto do produto manufacturado mundial. Em 1830 o Ocidente tinha-se colocado ligeiramente à
frente da China. Nas décadas seguintes, observa Paul Bairoch, a industrialização do Ocidente levou
à desindustrialização
99
do resto do mundo. Em 1913 o produto manufacturado dos países nao ocidentais era,
grosseiramente, dois terços do que fora em 1800. A partir de meados do século XIX, a parte do
Ocidente aumentou dramaticamente, atingindo 84,2% do produto manufacturado mundial em 1928.
Depois disso, o quinhão correspondente ao Ocidente diminuiu, enquanto a sua taxa de crescimento
se manteve modesta e os paises menos industrializados aumentaram rapidamente o seu produto
depois da Segunda Guerra Mundial. Em 1980 o Ocidente era responsável por 57,8% do produto
manufacturado mundial, aproximadamente a parte que tivera cento e vinte anos antes, ou seja, na
década de 60 do século passado.
Não há disponíveis dados seguros sobre o produto económico bruto do período anterior à Segunda
Guerra Mundial. No entanto, em 1950 o Ocidente era responsável por, aproximadamente, 64% do
produto mundial bruto; na década de 80 esta percentagem tinha caído para 49% (v. quadro
4.5). Em 2013, de acordo com uma estimativa, o Ocidente será responsável por apenas 30% do
produto mundial. Em 1991, de acordo com uma outra estimativa, quatro das sete mais importantes
economias mundiais pertenciam a países não ocidentais: o Japão (em segundo lugar), a China (em
terceiro), a Rússia (em sexto) e a índia (em sétimo). Em 1992 os Estados Unidos eram a maior
economia do mundo e as dez maiores economias incluíam as de cinco países ocidentais juntamente
com as dos Estados que lideram as outras cinco civilizações: China, Japão, índia, Rússia e Brasil.
Em 2020 projecções plausíveis indicam que as cinco maiores economias estarão em cinco
civilizações diferentes e que as dez maiores economias incluirão apenas três países ocidentais. O
declínio
100
relativo do Ocidente é, com certeza, em grande parte, uma consequência da rápida ascensão do
Extremo Oriente.
As frias estatísticas sobre o produto económico escondem, parcialmente, a vantagem qualitativa
ocidental. O Ocidente e o Japão dominam quase na totalidade as indústrias de tecnologia avançada.
No entanto, as tecnologias estão a disseminar-se e, se o Ocidente deseja manter a sua superioridade,
terá de fazer o que estiver ao seu alcance para minimizar essa disseminação. Todavia, graças ao
mundo interligado que o Ocidente criou, é cada vez mais dificil diminuir a difusão da tecnologia a
outras civilizações; é mais dificil agora, na ausência de uma ameaça, esmagadora e bem
identificada, como a que existia durante a guerra fria e que originou medidas de controle da
tecnologia, aliás de eficácia modesta.
Parece provável que, durante a maior parte da história, a China terá sido a maior economia do
mundo. A difusão da tecnologia e o desenvolvimento económico das sociedades não ocidentais na
segunda metade do século XX estão a originar um regresso ao padrão histórico. Será um processo
lento, mas é provável que em meados do século XXI, se não antes, a distribuição do produto
económico e de artigos manufacturados entre as principais civilizações se assemelhe à de 1800. Os
duzentos anos de blip* ocidental na economia mundial terminarão.
*Manteve-se o termo inglês, que significa o fugaz ponto luminoso assinalado num painel de radar. (N. do T)101
Capacidade militar. O poder militar tem quatro dimensões: quantitativa - o número de homens, de
armas, de equipamentos e de recursos tecnológicos - a eficácia e a sofisticação das armas e dos
equipamentos; organizativa - a coerência, a disciplina, o treino e o moral das tropas, bem como a
eficácia das relações de comando e controle; social* - a capacidade e a vontade de a sociedade
aplicar eficazmente a força militar.*Societal, no original. (N. do T.)
Nos anos 20 o Ocidente estava na dianteira em qualquer destas dimensões. Nos anos seguintes o
poder militar do Ocidente diminuiu em relação ao de outras civilizações, um decréscimo que está
reflectido no desequilíbrio que se verifica no pessoal, uma das dimensões da capacidade militar,
embora, claramente, não a mais importante. A modernização e o desenvol’ vimento económico
geram os recursos e o desejo dos Estados de desenvolverem as respectivas capacidades militares, o
que poucos deixaram de fazer. Nos anos 30 o Japão e a União Soviética criaram forças militares
muito poderosas, como ficou demonstrado na Segunda Guerra Mundial. Durante a guerra fria, a
União Soviética tinha uma das duas mais poderosas forças militares do mundo. Geralmente, o
Ocidente monopoliza a capacidade de projectar forças convencionais substanciais para qualquer
parte do mundo. É duvidoso se continuará a manter essa capacidade .Contudo, parece
razoavelmente seguro afirmar que nenhum Estado ou
102
grupo de estados não ocidentais criará nas próximas décadas uma capacidade comparável.
Globalmente, os anos a seguir à guerra fria têm sido dominados por cinco tendências principais na
evolução das capacidades militares globais.
Primeira: as forças armadas da União Soviética deixaram de existir depois do fim daquela União.
Para além da Rússia, só a Ucrânia herdou capacidades militares significativas. As forças russas
foram drasticamente reduzidas em dimensão e retiraram da Europa central e dos Estados bálticos. O
Pacto de Varsóvia deixou de existir. Foi abandonado o objectivo de rivalizar com a marinha dos
Estados Unidos. O equipamento militar ou foi destruído ou autorizado a ficar ao abandono,
tornando-se desse modo inoperacional. Foram reduzidas drasticamente as verbas do orçamento para
a defesa. A desmoralização invadiu as classes de oficiais e de praças. Ao mesmo tempo foram
redefinidas as missões e a doutrina do exército russo, tendo este sido reestruturado para novas
tarefas: proteger os Russos e intervir nos conflitos regionais dos países vizinhos.
Segunda: a redução precipitada das capacidades militares russas estimulou um lento, mas
significativo, decréscimo nas despesas, forças e capacidades militares do Ocidente. De acordo com
os planos das administrações Bush e Clinton, estava previsto que as despesas militares dos EUA
diininuíssem 35%, de 342,3 mil milhões de dólares (dólares de 1994) em 1990 para 222,3 mil
milhões em 1998. A estrutura de forças deste ano seria de metade a dois terços do que era no final
da guerra fria. Os efectivos militares desceriam de 2,1 para 1,4 milhões de homens. Muitos dos
principais programas de armamento foram e estão a ser cancelados. Entre 1985 e 1995 as aquisições
anuais dos sistemas de armas mais importantes diminuíram de 29 para 6 navios, de 943 para 127
aviões, de 720 para O carros blindados e de 48 para 18 mísseis estratégicos. Com início nos finais
da década de 80, a Grã-Bretanha, a Alemanha e, em menor grau, a França iniciaram reduções
semelhantes nas despesas de defesa e nas capacidades militares. Estava programada a redução das
forças armadas alemãs, em meados da década de 90, de 370 000 para 340 000 e, provavelmente,
para
1320 000 homens; o exército francês devia descer os seus efectivos de
290 000 em 1990 para 225 000 homens em 1997. O pessoal militar britânico desceu de 377 100
homens em 1985 para 274 800 em 1993. Os membros continentais da NATO também reduziram os
períodos do serviço militar obrigatório e debateram o seu abandono.
Terceira: as tendências no Extremo Oriente diferiam significativamente das da Rússia e das do
Ocidente. Estava na ordem do dia o aumento das despesas militares e a melhoria das forças; a China
marcava o compasso. Estimulados quer pelo aumento da riqueza económica, quer pelo crescimento
103
militar chinês, os outros países do Extremo Oriente modernizaram e expandiram as suas forças
armadas. O Japão continuou a melhorar a sua já altamente sofisticada capacidade militar. A Taiwan,
a Coreia do Sul, a Tailândia, a Malásia, Singapura e a Indonésia gastaram todos mais comprando
aviões, carros blindados e navios da Rússia, dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, da França, da
Alemanha e de outros países. Enquanto as despesas com a defesa da NATO desceram,
aproximadamente, 10% entre 1985 e 1993 (passaram de 593,6 para 485 mil milhões de dólares, a
dólares constantes de 1993), as despesas na Ásia subiram 50%, de 89,8 para 143,8 mil milhões de
dólares durante o mesmo período.
Quarta: as capacidades militares, incluindo as armas de destruição maciça, estavam a proliferar
amplamente por todo o mundo. Enquanto os países se desenvolviam economicamente, geravam
capacidade de produzir armas. Entre os anos 80 e 90, por exemplo, o número de países do Terceiro
Mundo produtores de aviões de combate aumentou de um para oito; de um para seis, os de carros de
combate; de um para seis, os de helicópteros; e de um para sete, os de mísseis tácticos. Os anos 90
têm assistido a uma forte tendência para a globalização da indústria de defesa, que é muito provável
que venha a afectar as vantagens militares ocidentais. Muitas das sociedades não ocidentais ou têm
armas nucleares (Rússia, China, Israel, índia, Paquistão e, possivelmente, a Coreia do Norte), ou
têm feito intensos esforços para as adquirirem (Irão, Iraque, Líbia e, possivelmente, a Argélia), ou
estão a colocar-se numa posição de as adquirirem rapidamente, caso sintam necessidade de o
fazerem.
Finalmente, todos estes desenvolvimentos fazem da regionalização a tendência central da estratégia
e do poder militar no mundo pós-guerra fria. A regionalização fornece a fundamentação para as
reduções das forças militares russas e ocidentais e para os aumentos nas de outros Estados. A
Rússia não tem já uma capacidade militar global, mas está a focar a sua estratégia e a organizar as
suas forças tendo em atenção os países vizinhos. A China tem reorientado a sua estratégia e as suas
forças realçando a projecção local do poder e a defesa dos interesses chineses no Extremo Oriente.
Os países europeus estão, analogamente, a redireccionar as suas forças, através da NATO ou da
União Europeia Ocidental, para fazerem face à instabilidade na periferia da Europa ocidental. Os
Estados Unidos mudaram, explicitamente, o seu planeamento militar, que permitiu a estratégia de
dissuasão e o combate contra a União Soviética, numa base global, para se prepararem para fazer
face a contingências regionais no golfo Pérsico e no Nordeste asiático. No entanto, não é provável
que os
104
Estados Unidos tenham a capacidade militar para alcançarem estes objectivos. Os Estados Unidos,
para derrotarem o Iraque, posicionaram no golfo Pérsico 75% dos seus aviões tácticos activos, 42%
dos seus carros blindados modernos, 46% dos seus porta-aviões, 37% do seu pessoal do exército e
46% dos seus fuzileiros. No futuro, com forças significativamente reduzidas, os Estados Unidos
dificilmente levarão a efeito uma intervenção, muito menos duas, contra potências regionais fortes
no exterior do hemisfério ocidental. A segurança militar no mundo depende, crescentemente, não da
distribuição global do poder e das acções das superpotências, mas da distribuição do poder em cada
região do mundo e das acções dos Estados dominantes das diferentes civilizações.
Em resumo, globalmente, o Ocidente permanecerá a mais poderosa civilização nas primeiras
décadas do século XXI. Além disso, continuará a ter a liderança forte, provavelmente, na
inteligência, na capacidade científica de investigação e de desenvolvimento e na inovação
tecnológica, civil e militar. No entanto, o controle sobre os recursos das outras potências está a
tornar-se, progressivamente, mais disperso entre os Estados que lideram as civilizações não
ocidentais. O controle do Ocidente sobre estes recursos atingiu o seu máximo nos anos 20 e desde
então tem diminuído irregular, mas significativamente. Em 2020, um século depois de ter atingido o
seu máximo, o Ocidente, provavelmente, controlará cerca de 24% do território mundial (em vez de
49 %, que foi o seu máximo), 10% da população mundial total (em vez de 48 %) e talvez 15% a
20% da população socialmente mobilizada, cerca de 30% do produto económico bruto (em lugar de
um máximo já atingido de 70 %), talvez 25% dos produtos manufacturados (em vez de 84 %) e
menos de 10% dos efectivos militares globais (abaixo do máximo de 45 %).
Em 1919 Woodrow Wilson, Lloyd George e Georges Clemenceau controlaram juntos virtualmente
o mundo. Sentados em Paris, determinaram que países podiam ou não existir, que novos países
seriam criados, como seriam as suas fronteiras e quem as controlava e como é que o Médio Oriente
e outros pedaços do mundo seriam divididos entre as Potências vencedoras. Também decidiram a
intervenção militar na Rússia e as concessões económicas a serem extraídas da China. Um século
depois nenhum pequeno grupo de estadistas seria capaz de exercer um poder comparável; e, a
existir um tal grupo, não seria já constituído por três ocidentais, mas pelos dirigentes dos
Estados-núcleos ou líderes das sete ou oito maiores civilizações do mundo. Os sucessores de
Reagan, Thatcher, Miterrand e Kohl terão de competir COm os sucessores de Deng Xiaoping,
Nakasone, Indira Gandhi,
105
Ieltsine, Khomeini e Suharto. O período do domínio ocidental terminou. Entretanto, o
enfraquecimento do Ocidente e a ascensão de outros centros de poder estão a promover os
processos globais de indigenização e o ressurgimento de culturas não ocidentais.
Indigenização: o ressurgimento de culturas não ocidentais
A distribuição das culturas no mundo reflecte a distribuição do poder.
O comércio pode ou não seguir a bandeira, mas a cultura segue quase sempre o poder. Ao longo da
história, a expansão do poder de uma civilização tem, normalmente, ocorrido em simultâneo com o
florescimento da sua cultura e tem, quase sempre, envolvido o uso do seu poder para expandir os
seus valores, práticas e instituições a outras sociedades. Uma civilização universal necessita de um
poder universal. O poder romano criou uma civilização quase universal no interior dos limites do
mundo antigo. O poder ocidental, sob a forma do colonialismo europeu, no século XIX, e da
hegemonia americana, no século XX, expandiu a cultura ocidental por grande parte do mundo
contemporâneo. O colonialismo europeu acabou; a hegemonia americana está em retrocesso.
Segue-se a erosão da cultura ocidental, enquanto os costumes historicamente enraizados, as línguas,
as crenças e as instituições indígenas se reafirmam.
O poder crescente das sociedades não ocidentais, produzido pela modernização, está a originar o
renascimento de culturas não ocidentais através do mundo*.
* O elo entre o poder e a cultura é quase universalmente ignorado por aqueles que defendem que
uma civilização universal está, e devia estar, a emergir, bem como pelos que argumentam que a
ocidentalização é um pré-requisito da modernização. Ambos recusam reconhecer que a lógica dos
seus argumentos os inclina a apoiar a expansão e a consolidação do domínio do Ocidente sobre o
mundo e que, se as outras sociedades fossem livres de talhar os seus próprios destinos, revigorariam
velhos credos, hábitos e práticas que, de acordo com os universalistas, são inimigos do progresso.
No entanto, os que discutem as virtudes de uma civilização universal não discutem, normalmente,
as virtudes de um império universal.
Existe uma diferença, como argumenta Joseph Nye, entre «poder duro», que é a capacidade de
mandar apoiada nos poderes económico e militar, e o «poder suave», que é a capacidade de um
Estado levar «os outros Estados a quererem o que pretende» através da atracção exercida pela sua
cultura e ideologia. Como reconhece Nye, está a verificar-se uma larga difusão do «poder duro» e
os Estados mais
106
importantes «são menos capazes de utilizar os seus recursos de poder tradicional para atingirem os
seus objectivos do que no passado». Nye prossegue dizendo que, se a “cultura e a ideologia de um
Estado são atraentes, os outros Estados serão mais levados a seguir» a sua liderança, sendo,
consequentemente, o “poder suave” «tão importante como o “poder duro” para mandar»”. O que
torna, todavia, uma cultura e uma ideologia atraentes? Tornam-se atraentes quando são entendidas
como radicadas no sucesso e na influência materiais. O “poder suave” só é poder quando assenta
numa base de “poder duro”. Os acréscimos no “poder duro” - de natureza económica e militar -
produzem acrescida autoconfiança, arrogância e crença na superioridade da própria cultura ou do
seu “poder suave” quando comparados com os de outros povos, fazendo aumentar enormemente a
sua capacidade de atracção. Os decréscimos no poder económico e militar conduzem à dúvida, a
crises de identidade e a esforços para encontrar nas outras culturas as chaves dos sucessos
económico, militar e político. Quando as sociedades não ocidentais melhoram constantemente as
suas capacidades económica, militar e política, proclamam as virtudes dos próprios valores,
instituições e cultura.
A ideologia comunista atraía as pessoas em todo o mundo nos anos 50 e 60, quando estava
associada ao sucesso económico e ao poder militar da União Soviética. Esta atracção desvaneceu-se
quando a economia nacional estagnou e se tornou incapaz de manter o poder militar soviético. Os
valores e as instituições ocidentais têm atraído as pessoas de outras culturas porque são vistos como
fonte do poder e da prosperidade ocidentais. Este processo está em curso há séculos. Entre 1000 e
1300, como observa William McNeill, o cristianismo, o direito romano e outros elementos da
cultura ocidental foram adoptados pelos Húngaros, Polacos e Lituanos, tendo esta «aceitação da
civilização ocidental sido estimulada por um misto de medo e admiração pela coragem militar dos
príncipes ocidentais». Quando o poder ocidental declina, também diminui a capacidade do Ocidente
para impor os conceitos de direitos humanos, de liberalismo e de democracia às outras civilizações,
bem como o poder de atracção destes valores.
Já está a acontecer. Durante séculos, os povos não ocidentais invejaram a prosperidade económica,
a sofisticação tecnológica, o poder militar e a coesão política das sociedades ocidentais. Procuraram
o segredo deste sucesso nos valores e nas instituições ocidentais e, quando descobriram o que
pensavam que pudesse ser a chave, tentaram utilizá-la nas próprias sociedades. Para se tornarem
ricos e poderosos tinham de imitar o Ocidente. Actualmente, porém, estas atitudes kemalistas
desapareceram
107
do Extremo Oriente. Os asiáticos dessa região atribuíram o seu surpreendente desenvolvimento
económico, não à importação que fizeram da cultura ocidental, mas antes à fidelidade à própria
cultura. Argumentam que tiveram sucesso exactamente porque são diferentes do Ocidente.
Analogamente, quando as sociedades não ocidentais se sentiam fracas em relação ao Ocidente,
invocavam os valores ocidentais de autodeterminação, liberalismo, democracia e independência
para justificarem a sua oposição ao domínio ocidental. Agora, que já não são mais fracas, mas, pelo
contrário, crescentemente poderosas, não hesitam em atacar aqueles mesmos valores que
anteriormente utilizaram para promover os seus interesses. A revolta contra o Ocidente foi,
originalmente, legitimada pela reivindicação da universalidade dos valores ocidentais; é agora
legitimada pela reivindicação da superioridade de valores não ocidentais.
O aparecimento destas atitudes é uma manifestação do que Ronald Dore denominou de «fenómeno
de indigenização da segunda geração». Nas antigas colónias ocidentais e em países independentes,
como a China e o Japão, «a primeira geração “modernizadora” ou ‘pós-independência’ recebeu,
frequentemente, treino em universidades estrangeiras (ocidentais) numa língua cosmopolita
ocidental. Em parte, porque vão para o estrangeiro como adolescentes impressionáveis, a sua
absorção dos valores ocidentais e do estilo de vida pode bem ser profunda». Pelo contrário, como a
maior parte da muito mais vasta segunda geração recebeu educação no país, em universidades
criadas pela primeira geração, a língua local foi sendo, progressivamente, mais utilizada na
educação do que a língua colonial. Estas universidades «fornecem um muito mais diluído contacto
com a cultura mundial metropolitana» e «o conhecimento é indigenizado por intermédio de
traduções - normalmente de âmbito limitado e de fraca qualidade». Os licenciados por estas
universidades ficam ressentidos com o domínio da geração anterior educada no Ocidente e daí
«sucumbirem aos apelos dos movimentos de oposição nativos». À medida que a influência
ocidental diminui, os jovens aspirantes a dirigentes não podem olhar para o Ocidente para lhes
fornecer poder e riqueza. Têm de encontrar as formas de sucesso dentro da própria sociedade e, por
isso, têm de se acomodar aos valores e à cultura dessa mesma sociedade.
O processo de indigenização não necessita de esperar pela segunda geração. Os dirigentes da
primeira geração que são capazes, clarividentes e adaptáveis indigenizam-se eles próprios. Três
casos notáveis foram Mohammad Ali Jinnah, Harry Lee e Solomon Bandaranaike. Foram
licenciados brilhantes, respectivamente em Oxford, Cambridge e Lincoln's Inn, juristas formidáveis
e membros ilustres da gema ocidentalizada das respectivas sociedades. Jinnah era um secularista
empenhado. Lee era, nas
108
palavras de um ministro do gabinete britânico, «o mais perfeito inglês a leste do Suez».
Bandaranaike foi educado como cristão. Todavia, para dirigirem os seus países para a
independência, e depois dela, tiveram de se indigenizar. Voltaram às suas culturas ancestrais e,
durante este processo, mudaram por vezes de identidade, de nome, de trajo e de crença. o advogado
inglês M. A. Jinnah tornou-se Quaid-i-Azam, do Paquistão; Harry Lee tornou-se Lee Kuan Yew. O
secularista Jinnah tornou-se o fervoroso apóstolo do islão que foi a base do Estado paquistanês. O
anglicizado Lee aprendeu mandarim e transformou-se num distinto promotor do confucionismo. O
cristão Bandaranaike converteu-se ao budismo e apelou ao nacionalismo cingalês.
A indigenização tem estado na ordem do dia em todo o mundo não ocidental nos anos 80 e 90. O
Ressurgimento do islão e a «reislamização» são os temas centrais nas sociedades muçulmanas. Na
índia, a tendência prevalecente é a rejeição das formas e dos valores ocidentais e a «hinduização»
da política e da sociedade. No Extremo Oriente, os governos estão a promover o confucionismo e os
dirigentes políticos e intelectuais falam de «asianização» dos seus países. Em meados da década de
80 o Japão tornou-se obcecado com a “Nihonjinron, ou a teoria do Japão e dos Japoneses”.
Subsequentemente, um proeminente intelectual japonês argumentou que o Japão, historicamente,
tem progredido em «círculos de importação de culturas exteriores» e de «indigenização» daquelas
culturas através de réplica, aperfeiçoamento e perturbação resultantes da exaustão do que fora
importado, impulso criativo e eventual reabertura ao mundo exterior». Actualmente, o Japão está
«embarcado na segunda fase deste círculo». Com o final da guerra fria, a Rússia tormou-se, de novo, um
país «dilacerado», com o reinício do clássico afrontamento entre os partidários do Ocidente e os
eslavófilos. No entanto, durante uma década, a tendência foi no sentido dos primeiros para os
segundos, quando o ocidentalizado Gorbatchev cedeu o lugar a Ieltsine, russo no estilo, ocidental
nas crenças expressas, que, por sua vez, era ameaçado pelos nacionalistas, bons exemplos da
indigenização ortodoxa russa.
A indigenização é estimulada pelo paradoxo democrático: a adopção por sociedades não ocidentais
de instituições democráticas ocidentais encoraja e dá acesso ao poder a movimentos políticos
nativos e antiocidentais. Nas décadas de 60 e 70 alguns governos ocidentalizados e pró-ocidentais
em países em vias de desenvolvimento foram ameaçados por golpes de Estado e Por revoluções;
nos anos 80 e 90 estiveram em perigo de serem afastados por eleições. A democratização entra em
conflito com a ocidentalização; a democracia é, inerentemente, um processo interno e não
internacional. Os políticos nas sociedades não ocidentais não vencem eleições mostrando quanto
são
109
ocidentais. Pelo contrário, a competição eleitoral estimula-os a adoptarem o que julgam ser os
apelos mais populares, sendo estes, normalmente, de carácter étnico, nacionalista e religioso.
O resultado é a mobilização popular contra as elites educadas no Ocidente e que estão orientadas
para ele. Os grupos fundamentalistas islâmicos têm tido bons resultados nas poucas eleições que se
realizaram nos países muçulmanos e teriam chegado ao poder na Argélia se os militares não
tivessem anulado as eleições de 1992. Na índia a competição eleitoral tem encorajado a violência.
Em 1956 a democracia no Sri Lanka possibilitou que o Partido da Liberdade substituísse outro de
orientação ocidental, o elitista Partido Nacional Unido, e nos anos 80 abrisse caminho para a
ascensão do movimento nacionalista Pathika Chintanaya Sihalese. Antes de 1949, quer as elites
sul-africanas, quer as ocidentais, viam a África do Sul como um Estado ocidental. Depois de o
regime do apartheid se ter instalado, as elites ocidentais foram afastando, progressivamente, a
África do Sul do campo ocidental, embora os sul-africanos brancos continuassem a considerar-se
ocidentais. No entanto, para conseguirem o seu lugar na ordem internacional ocidental tiveram de
estabelecer instituições democráticas ocidentais, que deram origem à chegada ao poder de elites
negras profundamente ocidentalizadas. Todavia, se operar o factor de indigenização da segunda
geração, os seus sucessores serão mais xhosas, zulus e africanos de aspecto e a África do Sul
definir-se-á cada vez mais como um Estado africano.
Em várias épocas, antes do século XIX, os Bizantinos, os Árabes, os Chineses, os Otomanos, os
Mongóis e os Russos foram povos com uma enorme confiança no seu poder e nas suas realizações
quando comparados com o Ocidente. Nesses tempos mostravam desprezo pela inferioridade
cultural, atraso institucional, corrupção e decadência do Ocidente. Quando o sucesso ocidental se
atenua, tais atitudes reaparecem. As pessoas sentem que o Ocidente já não lhes serve de exemplo. O
Irão é um caso extremo, mas, como observou um analista, «os valores ocidentais são rejeitados de
modos diferentes, mas não com menor firmeza na Malásia, Indonésia, Singapura, China e Japão.
Estamos a ser testemunhas «do final da era progressista» dominada pelas ideologias ocidentais e a
caminhar para uma outra em que múltiplas e diversas civilizações interagirão, competirão,
coexistirão e acomodar-se-ão umas às outras. Este processo global de indigenização está a
manifestar-se largamente no renascimento da religião, que se verifica em muitas partes do mundo, e
muito principalmente no ressurgimento cultural nos países asiáticos e islâmicos, gerado, em grande
parte, pelo seu dinamismo económico e demográfico.
110
La revanche de Dieu*
* Em francês no original. (N do T)
A afirmação asiática
O Ressurgimento islâmico
Também tem sido discutido se o renascimento islâmico foi «um produto do declínio do poder e do
prestígio do Ocidente [ ... ] À medida que o Ocidente renunciava à sua supremacia, os seus ideais e
instituições perdiam brilho.» Mais particularmente, o Ressurgimento foi estimulado e alimentado
pelo boom do petróleo dos anos 70, que aumentou enormemente a riqueza e o poder de muitos
países muçulmanos e lhes permitiu inverter as relações de domínio e subordinação existentes com o
Ocidente. Como notou John B. Kelly nessa época, «os Sauditas podem, inquestionavelmente, ter
uma dupla satisfação pelo facto de infligirem punições humilhantes ao Ocidente: não é só uma
manifestação de poder e de independência da Arábia Saudita; são também provas do desprezo pelo
cristianismo e da proeminência do islão». As acções dos Estados ricos em petróleo, «se colocadas
nos seus contextos histórico, religioso, racial e cultural, nada menos são do que uma ousada
tentativa de colocar o Ocidente cristão sob a dependência do Oriente muçulmano. Os governos
saudita, líbio e de outros países usaram as suas riquezas petrolíferas para estimularem e financiarem
a renovação muçulmana. A riqueza dos muçulmanos levou-os a transferirem a fascinação que
tinham pela cultura ocidental para um profundo envolvimento com a sua própria cultura, com
vontade de reivindicarem o lugar e a importância do islão nas sociedades não islâmicas. Tal como a
riqueza ocidental era vista, anteriormente, como
136
prova da superioridade da cultura ocidental, a riqueza do petróleo passou a ser vista como a prova
da superioridade do islão.
O ímpeto provocado pelo elevado preço do petróleo perdeu o seu vigor nos anos 80, mas o aumento
da população continuou a ter um papel de força motriz. Enquanto a ascensão do Extremo Oriente
tem sido alimentada por taxas espectaculares de crescimento económico, o Ressurgimento do islão
tem sido alimentado por taxas de crescimento demográfico igualmente espectaculares. A expansão
da população nos países islâmicos, especialmente nos Balcãs, no Norte de África e na Ásia central,
tem sido significativamente maior do que nos países vizinhos e no mundo em geral. Entre 1965 e
1990, a população mundial subiu de 3,3 para 5,3 mil milhões de pessoas, uma taxa de crescimento
anual de 1,85%. As taxas de crescimento nas sociedades muçulmanas foram quase sempre
superiores a 2%, frequentemente excedendo 2,5%, e em certos períodos atingiram mais de
3%. Entre 1965 e 1990, por exemplo, a população do Magrebe aumentou a uma taxa anual de
2,65%, tendo passado de 29,8 para 59 milhões, com os Argelinos a multiplicarem-se a uma taxa
anual de 3%. Durante o mesmo período, o número de egípcios cresceu a uma taxa de 2,3%, tendo
passado de 29,4 para 52,4 milhões. Na Ásia central, entre 1970 e 1993, as populações cresceram a
taxas de 2,9% no Tajiquistão, 2,6% no Usbequistão, 2,5% no Turcomenistão, 1,9% no Quirguistão,
mas apenas 1,1% no Cazaquistão, cuja população é quase metade russa. O Paquistão e o
Bangladesh tiveram taxas anuais de crescimento da população que excederam 2,5%, enquanto a da
Indonésia foi superior a 2%. Na globalidade, como já mencionei, os muçulmanos constituem, em
1980, talvez 18% da população mundial e é provável que sejam mais de 20% no ano 2000 e
30% em 2025.
O aumento das taxas de crescimento da população no Magrebe e noutras regiões atingiu o seu
máximo e está a começar a diminuir. Contudo, o crescimento em valores absolutos continuará a ser
grande e o impacto daquele crescimento será sentido durante a primeira parte do século XXI. Nos
próximos anos as populações muçulmanas serão desproporcionadamente jovens, com uma saliência
demográfica nas idades adolescentes e na faixa etária dos 20 anos (figura 5.2). Além disso, as
pessoas destas idades serão predominantemente urbanas e terão, pelo menos, estudos secundários.
Esta combinação de dimensão e mobilidade social tem três consequências políticas significativas.
Em primeiro lugar, os jovens são os protagonistas do protesto, da instabilidade, da reforma e da
revolução. Historicamente, a existência de grandes sectores de juventude tem mostrado tendência
para coincidir com tais movimentos. «A Reforma protestante», tem-se afirmado, «é um bom
137
exemplo de um dos mais notáveis movimentos de juventude na história.»
O crescimento demográfico, tem argumentado persuasivamente Jack Goldstone, foi um factor
fundamental nas duas vagas de revoluções que ocorreram na Eurásia em meados do século XVII e
finais do século XVIII.
O notável aumento da percentagem da juventude nos países ocidentais coincidiu com a “idade da
revolução democrática” nas últimas décadas do século XVIII. No século XIX o êxito da
industrialização e a emigração reduziram o impacto político da população jovem nas sociedades
europeias. A percentagem da juventude subiu de novo nos anos 20, fornecendo, contudo, recrutas
para os movimentos fascistas e outros de natureza extremista. Quatro décadas mais tarde, depois da
Segunda Guerra Mundial, a geração do babyboom revelou-se, politicamente, nas demonstrações e
protestos dos anos 60.
A juventude do islão tem estado a revelar-se no Ressurgimento islâmico. Enquanto este se
desenvolve nos anos 70 e atinge o seu máximo nos anos 80, a percentagem da juventude (isto é, os
que têm entre 15 e 24 anos de idade)
138
nos maiores países muçulmanos cresceu significativamente e começou a ultrapassar 20% da
população. Em muitos países muçulmanos a faixa etária juvenil atingiu o seu máximo nos anos 70 e
80; nos outros países tal acontecerá no princípio do próximo século (quadro 5. 1). Este extremo, real
ou projectado, é superior a 20% em todos os países, com uma excepção: para a primeira década do
século XXI, a estimativa feita para a Arábia Saudita será um pouco inferior. Esta juventude fornece
o recrutamento para as organizações e os movimentos políticos islamitas. Não é certamente por
acaso que a percentagem da juventude na população iraniana subiu claramente nos anos 70,
atingindo 20% na segunda metade daquela década, que a revolução iraniana ocorreu em 1979 ou
que este patamar foi atingido na Argélia nos anos 90, precisamente no momento em que a FIS
islamita estava a conquistar apoio popular e a registar vitórias eleitorais. Também ocorreram
variações regionais potencialmente significativas no crescimento da juventude muçulmana (figura
5.3). Embora os dados devam ser tratados com prudência, as projecções sugerem que descerão
precipitadamente as percentagens dos Bósnios e Albaneses na viragem do século. No entanto, nos
Estados do Golfo o crescimento da juventude permanecerá elevado. Em 1988 o príncipe reinante
Abdulah da Arábia Saudita disse que a maior ameaça existente no seu país era o crescimento do
fundamentalismo islâmico entre a juventude. De acordo
139
com estas projecções, aquela ameaça persistirá durante um período considerável no século XXI.
Nos maiores países árabes (Argélia, Egipto, Marrocos, Síria e Tunísia) a quantidade de jovens com
menos de 30 anos à procura de emprego aumentará até cerca do ano 2010. Os candidatos ao
mercado de trabalho aumentarão 30%, em relação a 1990, na Tunísia, cerca de 50% na Argélia,
Egipto e Marrocos e mais de 100% na Síria. A rápida expansão da escolaridade nas sociedades
árabes também cria um fosso entre uma geração mais jovem instruída e uma geração mais velha
analfabeta. Esta «dissociação entre conhecimento e poder arrisca-se a “ser uma pressão sobre os
sistemas polítiCOS”.
Quanto maiores forem as populações, mais recursos são necessários e, por esse motivo, as pessoas
pertencentes a sociedades com populações com grande densidade e/ou de rápido crescimento
tendem a fazer um esforço para o exterior, para ocupar território e exercer pressão sobre povos
demograficamente
140
menos dinâmicos. O crescimento da população islâmica é, assim, um factor que contribui para
conflitos nas fronteiras do mundo islâmico entre muçulmanos e outros povos. A pressão
demográfica combinada com a estagnação económica promove a emigração muçulmana para o
Ocidente e para outras sociedades não muçulmanas, fazendo da imigração um problema nestas
sociedades. A justaposição de pessoas de uma cultura com um rápido crescimento com pessoas de
outra cultura, mas com uma baixa taxa de crescimento ou até de estagnação, gera pressões para
ajustamentos económicos e/ ou políticos em ambas as sociedades. Nos anos 70, por exemplo, o
equilíbrio demográfico na antiga União Soviética alterou-se drasticamente, com os muçulmanos a
crescerem 24%, enquanto os Russos aumentaram 6,5%, causando grande preocupação entre os
dirigentes comunistas na Ásia central. Analogamente, o crescimento rápido do número de albaneses
não tranquiliza os Sérvios, os Gregos ou os Italianos. Os Israelitas estão preocupados com as
elevadas taxas de crescimento demográfico dos Palestinianos e a Espanha, com uma população a
crescer em menos de um quinto por cento ao ano, está inquieta quando se confronta com os
vizinhos do Magrebe, com populações a crescer com uma velocidade dez vezes superior, com um
PNB per capita um décimo do seu.
Novos desafios
Nenhuma sociedade pode manter indefinidamente um crescimento económico com dois dígitos. O
boom económico asiático cessará em princípios do século XXI. As taxas de crescimento económico
japonês caíram consideravelmente em meados dos anos 70 e posteriormente não foram
significativamente mais elevadas do que as dos Estados Unidos e dos países europeus. Os Estados
“milagres económicos” da Ásia, um após outro, verão diminuir as suas taxas de crescimento e
aproximar-se-ão dos níveis «normais» mantidos nas economias complexas. De modo semelhante,
nenhuma renovação religiosa ou movimento cultural dura eternamente e, em determinada altura, o
Ressurgimento islâmico abrandará e esbater-se-á na história. É mais provável que tal aconteça
quando a pressão demográfica que o alimenta enfraqueça na segunda e terceira décadas do século
XXI. Nesse período o número de militantes, de guerreiros e de migrantes diminuirá e os elevados
níveis de conflito dentro do islão e entre os países muçulmanos e os outros países diminuirão (v.
capítulo 10). As relações entre o islão e o Ocidente não se tornarão mais íntimas, mas tornar-se-ão
menos conflituosas e é provável que a quase-guerra actual (v. capítulo 9) dê lugar a uma guerra fria
ou, talvez, a uma paz fria.
141
O desenvolvimento económico na Ásia deixará uma herança de economias mais ricas e complexas,
com maior abertura internacional, com burguesias prósperas e uma classe média com um razoável
bem-estar. É provável que este processo encaminhe a Ásia para uma política mais pluralista e,
possivelmente, mais democrática, o que não quer dizer, necessariamente, mais pró-ocidental. O
poder engrandecido incitará, pelo contrário, a uma permanente afirmação asiática nas questões
internacionais, a actuar para que as tendências globais vão em sentido não favorável ao Ocidente e a
modificar as instituições internacionais para as afastar dos modelos e normas ocidentais. O
Ressurgimento islâmico, tal como os movimentos comparáveis, como a Reforma, também deixará
heranças importantes. Os muçulmanos ficarão com uma maior consciência do que têm em comum e
do que os distingue dos não muçulmanos. A nova geração de dirigentes que aparecerá com o
crescimento dos actuais jovens não será necessariamente fundamentalista, mas estará mais
empenhada no islão do que a que a precede. A indigenização reforçar-se-á.
O Ressurgimento deixará uma rede de organizações sociais, culturais, económicas e políticas dentro
das sociedades e para além delas. Também terá mostrado que «o islão é a solução» para os
problemas da moralidade, identidade, sentido e fé, mas que não o é para os problemas da injustiça
social, repressão política, atraso económico e fraqueza militar. Estes insucessos poderão gerar uma
desilusão generalizada com o islão político, uma reacção contra ele e uma procura de «soluções»
alternativas para estes problemas. Pode mesmo pensar-se que poderão surgir nacionalismos
antiocidentais mais virulentos, culpando o Ocidente pelos insucessos do islão. Pelo contrário, se a
Malásia e a Indonésia continuarem a ter o seu progresso económico, poderão fornecer um «modelo
islâmico» para o desenvolvimento que possa competir com o Ocidente e os modelos asiáticos.
Em qualquer dos casos, nas próximas décadas o crescimento económico asiático terá efeitos
profundamente desestabilizadores sobre a ordem internacional estabelecida e dominada pelo
Ocidente, produzindo o crescimento da China, caso continue, uma vigorosa mudança de poder entre
civilizações. Além disso, a índia pode entrar num desenvolvimento económico rápido e emergir
como um forte rival pela influência nas questões mundiais. Entretanto, o aumento da população
muçulmana será uma força desestabilizadora, quer para as sociedades muçulmanas, quer para os
seus vizinhos. O grande número de jovens com educação secundária continuará a alimentar o
Ressurgimento islâmico e a promover a militância, o militarismo e a migração islâmicos. Como
resultado, é provável que os primeiros anos do século XXI assistam à continuação do ressurgimento
de poder e de cultura não ocidentais e ao choque dos povos das civilizações não ocidentais com o
Ocidente e entre si.
142
PARTE III
Acicatada pela modernização, a política global está a ser reconfigurada segundo linhas culturais. Os
povos e os países com culturas análogas aproximam-se. Os que têm culturas diferentes afastam-se.
Os alinhamentos definidos pela ideologia e pelas relações com as superpotências estão a ceder o
lugar a alinhamentos definidos pela cultura e pela civilização. As fronteiras políticas são
redesenhadas para coincidirem cada vez mais com as fronteiras culturais, isto é, étnicas, religiosas e
civilizacionais. As comunidades culturais estão a substituir os blocos da guerra fria e as linhas de
divisão entre civilizações estão a tornar-se as principais linhas de conflito na política global.
Durante a guerra fria, um país podia ser não alinhado, como o eram muitos, ou podia, como alguns
o fizeram, mudar o seu alinhamento de um lado para o outro. Os dirigentes de um país podiam
tomar estas opções face às suas percepções sobre os interesses de segurança, os cálculos sobre o
equilíbrio de poder e as preferências ideológicas. Todavia, no mundo moderno a identidade cultural
é o factor decisivo para determinar as associações e os antagonismos de um país. Enquanto um país
podia evitar um
145
alinhamento durante a guerra fria, ele não pode existir sem identidade. A questão “de que lado
estás?” foi substituída por uma outra, muito mais profunda, “quem és?”. Cada Estado tem de ter
uma resposta. Esta resposta, a sua identidade cultural, define o lugar dos Estados na política
mundial, os seus amigos e os seus inimigos.
Os anos 90 têm assistido à erupção de uma crise de identidade global. Quase por todo o lado as
pessoas interrogam-se: «Quem somos? Com quem estamos? O que nos distingue?» Estas questões
são essenciais não só para os povos que tentam forjar novos Estados-nações, caso da antiga
Jugoslávia, como também de um modo geral. Em meados dos anos 90 os países onde se colocavam
questões de identidade nacional eram, principalmente, os seguintes: a África do Sul, a Argélia, a
Alemanha, o Canadá, a China, os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a índia, o Irão, o Japão,
Marrocos, o México, a Rússia, a Síria, a Tunísia, a Turquia e a Ucrânia. Os problemas de
identidade, claro está, são particularmente intensos em países onde vivem grupos consideráveis da
população pertencentes a civilizações diferentes. Para fazer face à crise de identidade o que conta
para as pessoas são o sangue e a crença, a fé e a família. As pessoas juntam-se aos que têm
antepassados, religião, língua, valores e instituições semelhantes e distanciam-se dos que as têm
diferentes. Na Europa, a Áustria, a Finlândia e a Suécia, culturalmente parte do Ocidente, tiveram
de se manter divorciados do Ocidente e permanecer neutrais durante a guerra fria. Não foram
capazes de se juntar à sua irmandade cultural na União Europeia. Os países católicos e protestantes
do antigo Pacto de Varsóvia, como a Hungria, a Polónia, a República Checa e a Eslováquia, vão
fazer parte da União e da NATO, estando na mesma via os países bálticos. As potências europeias
tornaram claro que não pretendem um Estado muçulmano, a Turquia, na União Europeia e que não
estão satisfeitas por terem um segundo Estado muçulmano, a Bósnia, no continente europeu. No
Norte, o fim da União Soviética favoreceu a emergência de novos (e velhos) padrões de associação
entre as repúblicas bálticas e entre estas e a Suécia e a Finlândia.
O primeiro-ministro sueco lembra frequentemente à Rússia que as repúblicas bálticas fazem parte
dos «países vizinhos» da Suécia e que esta não ficaria neutra no caso de uma agressão russa contra
elas.
Semelhantes realinhamentos ocorrem nos Balcãs. Durante a guerra fria, a Grécia e a Turquia
pertenciam à NATO, a Bulgária e a Roménia pertenciam ao Pacto de Varsóvia, a Jugoslávia era um
país não alinhado e a Albânia estava isolada e, por vezes, ligada à China comunista. Actualmente,
estes alinhamentos da guerra fria estão a dar lugar a outros de natureza civilizacional, radicados no
islão e na ortodoxia. Os dirigentes
146
balcânicos evocam uma possível aliança ortodoxa greco-servo-búlgara. As «guerras balcânicas»,
alega o primeiro-ministro grego, «trouxeram à superficie o eco dos velhos laços entre os ortodoxos [
... ] que estavam adormecidos, mas com os desenvolvimentos nos Balcãs estão a tomar corpo. Num
mundo muito fluido as pessoas procuram a identidade e a segurança. Procuram raízes e relações que
as defendam do desconhecido.» Estes pontos de vista tiveram eco no dirigente do principal partido
da oposição na Sérvia: “A situação no Sueste da Europa exigirá a formação de uma nova aliança
balcânica dos países ortodoxos, incluindo a Sérvia, a Bulgária e a Grécia, de modo a resistir à
progressão do islão.” No Norte, a Sérvia e a Roménia ortodoxas cooperam intimamente para
resolverem os seus problemas comuns com a católica Hungria. Com o desaparecimento da ameaça
soviética, a aliança contra natura entre a Grécia e a Turquia perdeu todo o sentido, quando os
conflitos se intensificam entre esses países no mar Egeu, em Chipre, no seu equilíbrio de forças, no
seu papel na União Europeia e na NATO e também no seu relacionamento com os Estados Unidos.
A Turquia reafirma o seu papel de protectora dos muçulmanos nos Balcãs e apoia a Bósnia. Na
antiga Jugoslávia, a Rússia está por detrás dos Sérvios ortodoxos, a Alemanha ajuda os Croatas
católicos, os países muçulmanos aliam-se para defenderem o governo bósnio e os Sérvios lutam
contra os Croatas, os muçulmanos Bósnios e os muçulmanos Albaneses. De um modo geral, os
Balcãs estão, uma vez mais, a ser balcanizados em bases religiosas. «Estão a surgir dois eixos»,
segundo Misha Glenny, «a mitra ortodoxa e o véu muçulmano.» E existe a possibilidade «de uma
grande luta de influências entre os eixos Belgrado-Atenas e a aliança albano-turca»’.
Enquanto, na antiga União Soviética, a ortodoxa Bielorrússia, a Moldávia e a Ucrânia gravitavam
em relação à Rússia, os Arménios e os Azeris lutam entre si, esforçando-se os seus irmãos Russos e
Turcos por apoiá-los e conter o conflito. O exército russo luta contra os fundamentalistas
muçulmanos no Tajiquistão e os nacionalistas muçulmanos na Chechénia. As antigas repúblicas
soviéticas muçulmanas trabalham para desenvolverem várias formas de associação económica e
política entre si e para alargarem os seus laços com os países muçulmanos vizinhos, enquanto a
Turquia, o Irão e a Arábia Saudita desenvolvem grandes esforços para cultivarem relações com
estes novos Estados. No subcontinente indiano, a índia e o Paquistão permanecem em conflito sobre
Caxemira, esforçam-se por manter o equilíbrio militar, intensificam as lutas em Caxemira, e na
própria Índia surgem novas rivalidades entre fundamentalistas muçulmanos e hindus.
No Extremo Oriente, região onde vivem pessoas de seis civilizações diferentes, desenvolve-se a
corrida aos armamentos e vêm a primeiro
147
plano as disputas territoriais. As três pequenas Chinas - Taiwan, Hong-Kong e Singapura -, assim como as
comunidades chinesas ultramarinas no Sueste da Ásia, estão cada vez mais voltadas para o continente,
envolvidas nos seus negócios e dependentes da China. As duas Coreias evoluem de modo hesitante mas
significativo em direcção à unificação. No Sueste asiático as relações entre muçulmanos, por um lado, e
chineses e cristãos, por outro, tornam-se crescentemente tensas e, por vezes, violentas.
Na América Latina as associações económicas - MERCOSUL, Pacto Andino e o pacto tripartido (México,
Colômbia e Venezuela), o Mercado Comum da América Central - conhecem um novo fôlego, reafirmando o
princípio, já exemplificado pela União Europeia, de que a integração económica é mais rápida e profunda
quando assenta numa comunidade cultural. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos e o Canadá tentam absorver
o México no North American Free Trade Area, num processo cujo sucesso a longo prazo depende largamente
da capacidade do México de passar de uma cultura latino-americana para outra norte-americana.
Com o fim da ordem estabelecida com a guerra fria, os países do mundo inteiro começaram a desenvolver
novos antagonismos e novas afinidades ou a reavivar outras antigas. Estão a tentar agrupar-se e a fazê-lo com
países com uma cultura semelhante e a mesma civilização. Os políticos invocam as «grandes» comunidades
culturais que transcendem as fronteiras dos Estados-nações: a «Grande Sérvia», a «Grande China», a «Grande
Turquia», a «Grande Hungria», a «Grande Croácia», o «Grande Azerbaijão», a «Grande Rússia», a «Grande
Albânia», o «Grande Irão» e o «Grande Usbequistão».
Coincidirão sempre os alinhamentos políticos e económicos com os da cultura e da civilização? Certamente
que não. Considerações de balança de poder conduzirão, por vezes, a alianças transculturais, como a realizada
por Francisco 1 quando se juntou aos Turcos contra os Habsburgos. Por outro lado, as associações concebidas
para servir os interesses de certos Estados num determinado período perdurarão para além dele. No entanto, é
provável que se tornem mais fracas e com menos significado e que tenham de ser adaptadas à nova
conjuntura. A Grécia e a Turquia continuarão, sem dúvida, membros da NATO, mas os seus laços com os
outros Estados membros, provavelmente, atenuar-se-ão; o mesmo acontecerá em relação às alianças dos
Estados Unidos com o Japão e a Coreia, à aliança de facto com Israel, assim como com o Paquistão em
questões de defesa. Organizações internacionais multicivilizacionais, como é o caso da ASEAN, podem vir a
enfrentar dificuldades crescentes para manterem a sua coerência. Países como a índia e o Paquistão, parceiros
de superpotências
148
diferentes durante a guerra fria, redefinem agora os seus interesses e procuram novas associações,
reflectindo as realidades da política cultural. Os países africanos, que dependiam do apoio do
Ocidente para contrariarem a influência soviética, olharão cada vez mais para a África do Sul à
procura de liderança e de socorro.
Qual a razão por que as afinidades culturais devem facilitar a cooperação e a coesão entre as
pessoas enquanto as diferenças culturais acentuam as clivagens e os conflitos?
Em primeiro lugar, cada um tem múltiplas identidades, que podem competir ou reforçar-se umas às
outras: de parentesco, ocupacionais, culturais, institucionais, territoriais, educacionais, partidárias,
ideológicas e outras. Identificações numa só dimensão podem chocar-se com as de outras
dimensões: é o exemplo clássico dos operários alemães em 1914, que deveriam optar entre a sua
identificação de classe com o proletariado internacional e a sua identificação nacional com o povo e
o império alemães. No mundo contemporâneo a identificação cultural ganha cada vez mais
importância em comparação com outras dimensões de identidade.
Limitada a uma dimensão, a identidade tem, normalmente, mais significado a um nível mais
próximo. No entanto, identidades mais limitadas não conflituam com outras mais amplas. Um
oficial pode identificar-se, institucionalmente, com a sua companhia, regimento, divisão e ramo.
Analogamente, uma pessoa pode identificar-se, culturalmente, com o seu clã, grupo étnico,
nacionalidade, religião e civilização. A crescente importância da identidade cultural a um nível mais
baixo pode reforçar a sua importância a um nível superior. Como sugeria Burke, «o amor ao todo
não se extingue por esta parcialidade subordinada Estar ligado à subdivisão, amar a
pequena secçao a que se pertence na sociedade, é o primeiro princípio (quase o germe) das afeições
públicas.» Num mundo em que a cultura conta, as secções são tribos e grupos étnicos, os
regimentos são nações e os exércitos são civilizações. A crescente dimensão em que as pessoas no
mundo se distinguem segundo linhas culturais significa que os conflitos entre grupos culturais são
crescentemente importantes; as civilizações são a mais ampla entidade cultural; daí que os conflitos
entre grupos de civilizações diferentes se tornem centrais na política global.
Em segundo lugar, a crescente importância da identidade cultural é, em grande parte, como se
discutiu nos capítulos 3 e 4, o resultado da modernização ao nível individual, onde a deslocação e a
alienação criam a necessidade de identidades mais ricas de sentido e onde ao nível da sociedade as
capacidades e o poder engrandecidos das sociedades não ocidentais estimulam a revitalização das
identidades e culturas indígenas.
149
Em terceiro lugar, a identidade a qualquer nível - pessoal, tribal, racial e civilizacional - pode ser
apenas definida em relação a um «outro», a uma diferente pessoa, tribo, raça ou civilização.
Historicamente, as relações entre Estados ou outras entidades da mesma civilização têm diferido das
relações entre Estados ou entidades de civilizações diferentes. Códigos separados governavam os
comportamentos em relação àqueles que eram «como nós» e aos «bárbaros» que não eram. As
regras que regem as relações entre as nações cristãs eram diferentes das que ditavam as atitudes
com os Turcos e outros «infiéis». Da mesma forma, os muçulmanos actuavam diferentemente em
relação aos de Dar al-Islam e aos de Dar al-harb. Os Chineses tratavam de forma diferente os
estrangeiros chineses e não chineses. O «nós» civilizacional e o «eles» extracivilizacional são uma
constante na história humana. Estas diferenças de comportamento intra e extra-civilizacional
derivam de:
1 .Sentimentos de superioridade (e, por vezes, de inferioridade) face a pessoas que são
entendidas como muito diferentes;
2. Receio e falta de confiança em tais pessoas;
3. Dificuldade de comunicação com elas em resultado de diferenças na língua e de comportamento
social;4. Falta de familiaridade com os princípios, motivações, estruturas e práticas sociais dos
outros.
No mundo contemporâneo o progresso nos transportes e nas comunicações dá lugar a interacções
mais frequentes, mais intensas, mais simétricas e mais íntimas entre pessoas de diferentes
civilizações. Consequentemente, as suas identidades culturais tornam-se cada vez mais consistentes.
Os Franceses, os Alemães, os Belgas e os Holandeses consideram-se cada vez mais europeus. Os
muçulmanos do Médio Oriente identificam-se com os Bósnios e os Chechenos. Em todo o Extremo
Oriente os Chineses identificam os seus interesses com os da metrópole. Os Russos identificam-se
com e apoiam os Sérvios e outros povos ortodoxos. Estes níveis mais amplos de identidade
civilizacional significam uma consciência mais profunda das diferenças civilizacionais e da
necessidade de proteger o que distingue o «nós» do «eles».
Em quarto lugar, as fontes de conflito entre Estados e grupos de civilizações diferentes são, em
grande medida, as que sempre têm gerado conflitos entre grupos: controle sobre a população,
território, riqueza, recursos e relações de poder, que é a capacidade de impor os valores, a cultura e
as instituições a outro grupo quando comparada com a capacidade desse grupo de fazer o
equivalente em relação a outro. No entanto, os conflitos
150
entre grupos culturais podem também envolver questões culturais. As diferenças na ideologia entre
o marxismo-leninismo e a democracia liberal podem, pelo menos, ser debatidas, ainda que não
resolvidas. As diferenças em questões de interesse material podem ser negociadas, atingindo-se,
frequentemente, um compromisso de uma forma que as questões culturais não permitem. Não é
provável que os hindus e os muçulmanos resolvam a questão de saber se devia ser construído um
templo ou uma mesquita em Ayodhya, construindo ambos, ou nenhum, ou um edificio sincrético
que fosse, simultaneamente, mesquita e templo. O mesmo se passa relativamente a problemas
territoriais complexos entre Albaneses muçulmanos e Sérvios ortodoxos no Cossovo, ou entre
Judeus e Árabes em Jerusalém, visto que cada lugar tem para cada parte um significado histórico
profundo, cultural e afectivo. Analogamente, não é provável que as autoridades francesas e os pais
muçulmanos aceitem um compromisso que permita que as raparigas usem o trajo muçulmano, dia
sim, dia não, durante o ano escolar. Estas questões culturais implicam um sim ou um não, uma
opção de soma zero.
Em quinto e último lugar, é a ubiquidade do conflito. É humano odiar. Temos necessidade de
inimigos para nos definirmos e motivarmos: concorrentes nos negócios, rivais na carreira,
adversários na política. Naturalmente há desconfiança e vêem-se os que são diferentes como
ameaças com capacidade de nos prejudicarem. A resolução de um conflito e o desaparecimento de
um inimigo originam forças pessoais, sociais e políticas que fazem surgir outros inimigos. «Em
política, a tendência para opor “nós” a “eles”, dizia Ali Mazrui, “é quase universal”. » No mundo
contemporâneo é cada vez mais provável que «eles» sejam pessoas de outra civilização. O fim da
guerra fria não fez desaparecer os conflitos; deu antes lugar ao aparecimento de novas identidades
baseadas na cultura e de novos padrões de conflitos entre grupos de diferentes culturas que, a um
nível mais amplo, são civilizações. Simultaneamente, a cultura comum também encoraja a
cooperação entre Estados e grupos que partilham a mesma cultura, o que pode ser verificado
observando as estruturas regionais de associação que surgem entre países, principalmente na área
económica.
Durante a guerra fria, os países estavam relacionados com as duas superpotências como aliados,
satélites, clientes, neutros e não alinhados. No mundo pós-guerra fria os países relacionam-se com
as civilizações como Estados membros, Estados-núcleos (ou Estados dominantes), países solitários,
países divididos e países dilacerados. Como as tribos e as nações, as civilizações têm estruturas
políticas. Um Estado membro é um país totalmente identificado culturalmente com uma civilização,
como o Egipto o é com a civilização árabe-islâmica e a Itália o é com a civilização europeia
ocidental. Uma civilização pode também incluir pessoas que partilham e se identificam com a sua
cultura, mas que vivem em Estados dominados por representantes de outra civilização. As
civilizações têm, geralmente, um ou mais lugares considerados pelos seus membros como a
principal fonte ou fontes da cultura da sua civilização. Estas fontes estão frequentemente situadas
dentro dos Estados-núcleos, ou Estados-civilizações, isto é, o Estado ou Estados mais poderosos ou
centrais sob o ponto de vista cultural.
O número e o papel dos Estados-núcleos variam de civilização para civilização e podem mudar com
o tempo. A civilização japonesa é praticamente equivalente ao Estado único e nuclear japonês. As
civilizações sínica, ortodoxa e hindu têm todas um Estado-núcleo esmagadoramente dominante,
outros Estados membros e pessoas filiadas nas suas civilizações,
157
mas que vivem em Estados dominados por pessoas de civilizações diferentes (chineses
ultramarinos, russos expatriados em países vizinhos e os Tâmiles no Sri Lanka). O Ocidente tem,
historicamente, vários Estados-núcleos; actualmente, tem dois núcleos, os Estados Unidos e o
núcleo franco-germânico, na Europa, com a Grã-Bretanha como núcleo adicional «flutuante» entre
aqueles. Ao islão, à América Latina e à África faltam Estados-núcleos. Isto resulta, em parte, do
imperialismo das potências ocidentais, que dividiram entre si a África, o Médio Oriente e, em
séculos anteriores e menos decididamente, a América Latina.
A ausência de um Estado-núcleo islâmico coloca grandes problemas quer às sociedades islâmicas,
quer às não islâmicas, o que será discutido no capítulo 7. No que diz respeito à América Latina,
teria sido concebível que a Espanha se tivesse tornado o Estado-núcleo dos falantes de espanhol, ou
mesmo de uma civilização ibérica, se os seus dirigentes não tivessem optado, conscientemente, por
serem Estados membros da civilização europeia, mantendo laços culturais com as antigas colónias.
A dimensão, os recursos, a população e as capacidades militar e económica qualificam o Brasil para
país director da América Latina, o que poderá vir a acontecer. Contudo, o Brasil é para a América
Latina o que o Irão é para o islão. Embora estejam bem qualificados para serem Estados-núcleos, as
diferenças subcivilizacionais que possuem (religiosas, com o Irão; linguísticas, com o Brasil)
tornam dificil a assunção desse papel. A América Latina tem, assim, vários Estados - Brasil,
México, Venezuela e Argentina - que cooperam e competem pela liderança. A situação na América
Latina complicou-se devido a o México ter tentado romper com a identidade latino-americana para
se aproximar da América do Norte, podendo o Chile e outros Estados segui-lo. No final, a
civilização latino-americana poderá fundir-se com a civilização ocidental, tornando-se uma de três
subvariantes desta.
A capacidade de qualquer Estado liderar a África subsariana está limitada pela sua divisão entre
países francófonos e anglófonos. A Costa do Marfim foi o Estado-núcleo da África francófona. No
entanto, em grande medida, o Estado-núcleo da África francesa tem sido a França, que, depois da
independência, tem mantido íntimas relações económicas, militares e políticas com as antigas
colónias. Os dois países africanos que estão em melhores condições para se tornarem
Estados-núcleos são ambos anglófonos. Pela sua dimensão, recursos e situação, a Nigéria poderia
desempenhar esse papel. Contudo, as suas divisões intercivilizacionais, a sua corrupção
generalizada, a sua instabilidade política, o seu governo repressivo e os seus problemas económicos
reduzem drasticamente a sua capacidade de desempenhar esse papel, se bem que já
158
o tenha, ocasionalmente, desempenhado. A transição pacífica e negociada da África do Sul do
regime de apartheid, o seu poder industrial, o seu alto nível de desenvolvimento económico,
comparado com o de outros países africanos, o seu poder militar, os seus recursos naturais e a sua
sofisticada liderança política, branca e negra, tudo aponta claramente a África do Sul como o líder
da África meridional, provavelmente, líder da África anglófona e, possivelmente, o país líder de
toda a África subsariana.
Um Estado solitário tem falta de afinidades culturais com outras sociedades. A Etiópia, por
exemplo, está culturalmente isolada devido à sua língua predominante, o amárico, escrito em
caracteres etíopes, pela sua religião predominante, copta ortodoxa, pela sua história imperial e pela
sua diferenciação religiosa com os povos maioritariamente muçulmanos que a rodeiam. As elites do
Haiti estavam tradicionalmente ligadas à França, mas a língua crioula, a religião vodu, as
revolucionárias origens escravas e a sua história brutal fazem desta ilha um país solitário. «Todas as
nações são únicas», disse Sidney Mintz, mas «o Haiti é verdadeiramente um caso à parte». Durante
a crise de 1994, os países latino-americanos não consideraram o Haiti um problema
latino-americano e não aceitaram os refugiados, embora tenham recebido cubanos. «Na América
Latina», como dizia o presidente eleito do Panamá, «o Haiti não é reconhecido como país
latino-americano. Os Haitianos falam uma língua diferente. Têm raízes étnicas e uma cultura
diferentes. São em tudo muito diferentes.» O Haiti está também separado dos países negros
anglófonos das Caraíbas. «Para um habitante de Granada ou da Jamaica», como notava um
comentador, «os Haitianos são tão estranhos como alguém de Iowa ou de Montana.» O Haiti, «o
vizinho que ninguém quer, é, verdadeiramente, um país «sem família».
O país solitário mais importante é o Japão. Não partilha com qualquer outro país a sua cultura
singular e os emigrantes japoneses ou não são em número significativo ou assimilaram as culturas
dos países onde habitam (por exemplo, os japoneses-americanos). A solidão do Japão é ainda
acrescida pelo facto de a sua cultura ser muito particularista e não possuir uma religião
potencialmente universal (como o cristianismo ou o islamismo) ou uma ideologia (como o
liberalismo ou o comunismo) que possa ser exportada para outras sociedades e estabelecer, assim,
uma ligação cultural com as pessoas dessas sociedades.
Quase todos os países são heterogéneos, visto que incluem dois ou mais grupos étnicos, raciais ou
religiosos. Existem muitos países divididos’ em que as diferenças e os conflitos entre estes grupos
desempenham um papel importante na política do país. A profundidade desta divisão varia,
159
normalmente, ao longo do tempo. Divisões profundas no interior de um país podem levar a
violência generalizada ou ameaçar a própria existência do país. É mais provável que esta última
ameaça e movimentos para a autonomia ou separação ocorram quando as diferenças culturais
coincidem com diferenças de localização geográfica. Se a cultura e a geografia não coincidem, pode
forçar-se esta coincidência quer pelo genocídio, quer por migração forçada.
Os países que possuem agrupamentos culturais distintos pertencentes ‘à mesma civilização podem
tornar-se profundamente divididos, o que efectivamente já aconteceu (Checoslováquia) ou é uma
possibilidade (Canadá). No entanto, é mais provável que ocorram divisões profundas dentro de um
país dividido*, onde grandes grupos pertencem a diferentes civilizações.
* Cleft country no original. (N. do T)
Tais divisões e tensões resultantes desenvolvem-se, frequentemente, quando um grupo maioritário
pertencente a uma civilização tenta definir o Estado como o seu instrumento político e adopta a sua
língua, a sua religião e os seus símbolos como os do Estado. Foi o que tentaram fazer os hindus, os
Cingaleses e os muçulmanos, respectivamente, na índia, no Sri Lanka e na Malásia.
Os países divididos cujos territórios são atravessados por fronteiras entre civilizações são
confrontados com o dificil problema de preservarem a sua unidade. Desde há décadas que a guerra
civil prossegue no Sudão entre o Norte, muçulmano, e o Sul, maioritariamente cristão. A mesma
divisão civilizacional tem atormentado a política nigeriana durante um período equivalente de
tempo e favorecido uma guerra de secessão importante, para além de golpes de Estado, revoltas e
outras violências. Na Tanzânia, o continente, que é cristão animista, e Zanzibar, habitado por árabes
muçulmanos, afastaram-se e, em muitos aspectos, tornaram-se dois países separados, com Zanzibar
a aderir, secretamente, em 1992, à Organização da Conferência Islâmica, que a Tanzânia forçou a
abandonar no ano seguinte. A mesma divisão muçulmano-cristã gerou tensões e conflitos no
Quénia. No corno de África, a Etiópia, que é sobretudo cristã, e a Eritreia, maioritariamente
muçulmana, separaram-se em 1993. Permanece, entretanto, na Etiópia uma importante minoria
muçulmana no meio da população oromo. Os outros países divididos por fronteiras civilizacionais
incluem a índia (muçulmanos e hindus), o Sri Lanka (Cingaleses budistas e Tâmiles hindus), a
Malásia e Singapura (Chineses e Malaios muçulmanos), a China (Chineses han, Tibetanos budistas
e «Turkic» muçulmanos), as Filipinas (cristãos e muçulmanos) e a Indonésia (muçulmanos e
Timorenses cristãos).
160
O efeito divisor produzido pelas fronteiras civilizacionais foi especialmente notório nos países
divididos cuja coesão foi assegurada durante a guerra fria pelos regimes autoritários comunistas
legitimados pela ideologia marxista-leninista. Com o colapso do comunismo, a cultura substituiu a
ideologia como factor de atracção e repulsão e a Jugoslávia e a União Soviética fenderam-se e
dividiram-se em novas entidades segundo linhas civilizacionais: as repúblicas do Báltico
(protestantes e católicas), ortodoxas e muçulmanas da ex-União Soviética; a Eslovénia e a Croácia
católicas; a Bósnia-Herzegovina, parcialmente muçulmana; a Sérvia-Montenegro e a Macedónia,
ortodoxas, na antiga Jugoslávia. Onde estas novas entidades ainda incluem grupos
multicivilizacionais manifestam-se divisões de segunda ordem. A Bósnia-Herzegovina foi dividida
pela guerra entre sérvios, muçulmanos e croatas, e os sérvios e os croatas lutaram entre si na
Croácia. A contida posição pacífica do Cossovo, muçulmano e albanês, dentro de uma Sérvia
ortodoxa e eslava é altamente incerta e, na Macedónia, as tensões sobem dentro da minoria
muçulmana albanesa em relação à maioria ortodoxa eslava. Muitas antigas repúblicas soviéticas são
atravessadas por fronteiras civilizacionais, em parte porque o governo soviético traçou fronteiras de
modo a criar repúblicas divididas, indo a Crimeia russa para a Ucrânia e o arménio
Nagomo-Karabakh para o Azerbaijão. A Rússia tem várias minorias muçulmanas, relativamente
pequenas, sobretudo no Norte do Cáucaso e na região do Volga. A Estónia, a Letónia e o
Cazaquistão têm minorias russas consideráveis, também produzidas, em grande parte, pela política
soviética. A Ucrânia está dividida entre os nacionalistas uniatas, que falam ucraniano, a ocidente, e
os ortodoxos, que falam russo, a leste.
Num país dividido, os grupos importantes pertencentes, pelo menos, a duas civilizações dizem:
«Somos povos diferentes e pertencemos a lugares diferentes.» As forças repulsivas separam-nos e
gravitam em relação a magnetos de outras sociedades. Um país dilacerado*, contrariamente, tem
uma única cultura dominante que determina a sua pertença a uma civilização, mas cujos dirigentes
políticos querem que passe para outra civilização.
* Torn country no original. (N do T)
Com efeito, dizem: «Somos um único povo e queremos viver num lugar bem nosso, mas queremos
transformar este lugar.» A diferença que fazem dos habitantes dos países divididos é que os
pertencentes a países dilacerados concordam sobre quem são, mas não estão de acordo sobre qual é
propriamente a sua civilização. Um caso típico é quando uma parte significativa dos seus dirigentes
adopta uma estratégia kemalista e decide que a sua sociedade devia rejeitar a cultura e as
instituições não ocidentais,
161
devia juntar-se ao Ocidente e, simultaneamente, modernizar-se e ocidentalizar-se. A Rússia tem
sido um país dilacerado desde Pedro, o Grande, dividida sobre a questão fundamental se é parte da
civilização ocidental ou o núcleo de uma civilização ortodoxa euro-asiática distinta. O país de
Mustafa Kemal é seguramente o clássico país dilacerado que desde os anos 20 tem tentado
modernizar-se, ocidentalizar-se e tornar-se parte do Ocidente. Decorridos quase dois séculos após o
México se ter definido como país latino-americano em oposição aos Estados Unidos, os seus
dirigentes, nos anos 80, transformaram o seu país num país dilacerado quando tentaram redefini-lo
como uma sociedade norte-americana. Em contrapartida, os dirigentes políticos da Austrália, nos
anos 90, estão a tentar desligar o seu país do Ocidente e torná-lo parte da Ásia, criando, assim, um
país-dilacerado-inverso. Os países dilacerados são identificáveis por dois fenómenos. Os seus
líderes referem-nos como uma «ponte» entre duas culturas e os observadores descrevem-nos como
Janus, com duas faces. «A Rússia a olhar para o Ocidente - e para o Oriente»; «a Turquia: Oriente,
Ocidente, o que é melhor?»; «o nacionalismo australiano: lealdades divididas»; estes são os títulos
típicos que ilustram os problemas de identidade dos países dilacerados.
Para redefinir a identidade civilizacional de um país dilacerado é preciso satisfazer, pelo menos, três
condições. Primeira: a elite política e económica do país deve apoiar este movimento com
entusiasmo. Segunda: a opinião pública deve, pelo menos, estar com vontade de redefinir a
identidade. Terceira: os elementos dominantes da nova civilização, na maior parte dos casos o
Ocidente, devem estar dispostos a acolher os convertidos. O processo de redefinição da identidade
será demorado, terá interrupções e será política, social, institucional e culturalmente doloroso. Até
ao presente tem falhado sempre.
A Rússia. Nos anos 90 o México é um país dilacerado desde há anos e a Turquia desde há décadas.
Contrariamente, a Rússia tem sido um país dilacerado desde há séculos e é também o Estado-núcleo
de uma grande civilização, o que não é o caso do México ou da republicana Turquia. Se o México
ou a Turquia tivessem tido sucesso na sua redefinição como membros da civilização ocidental, o
efeito sobre a civilização islâmica ou latino-americana seria menor ou moderado. Se a Rússia se
tivesse tornado
162
ocidental, a civilização ortodoxa teria deixado de existir. O colapso da União Soviética reacendeu o
debate entre os Russos sobre a questão central da Rússia e o Ocidente.
As relações da Rússia com a civilização ocidental atravessaram quatro fases. A primeira durou o
reinado de Pedro, o Grande (1689-1725). A Rússia de Quieve e de Moscovo vivia separada do
Ocidente e tinha poucos contactos com as sociedades europeias ocidentais. A civilização russa
desenvolvia-se como um derivado da civilização bizantina e, durante duzentos anos, de meados do
século XIII a meados do século XV, a Rússia foi dominada pela suserania mongol. Quase não foi
exposta aos fenómenos históricos da civilização ocidental: o catolicismo romano, o feudalismo, o
Renascimento, a Reforma, a expansão ultramarina e a colonização, o século das luzes e o
aparecimento do Estado-nação. Sete das oito características da civilização ocidental identificadas
anteriormente - religião, línguas, separação da Igreja do Estado, Estado de direito, pluralismo social,
instituições representativas, individualismo - estiveram quase totalmente ausentes da experiência
russa. A única excepção foi a herança clássica que, entretanto, transitou para a Rússia, via Bizâncio,
sendo, assim, tão diferente da que veio directamente de Roma para o Ocidente. A civilização russa
foi um produto das próprias raízes - Rússia de Quieve e de Moscovo -, da importante influência
bizantina e do prolongado domínio mongol. Estas influências modelaram uma sociedade e uma
cultura que têm poucas semelhanças com as desenvolvidas na Europa ocidental sob a influência de
forças muito diferentes.
Em finais do século XVII a Rússia era não só diferente da Europa, como estava muito atrasada
quando comparada com ela, do que Pedro, o Grande, se deu conta aquando da sua viagem à Europa
em 1697-1698. Essa a razão da sua determinação em modernizar e ocidentalizar o país. A primeira
acção de Pedro ao regressar a Moscovo para conseguir que o seu povo parecesse europeu foi rapar
as barbas dos seus nobres e proibir os seus longos mantos e chapéus cónicos. Embora Pedro não
tivesse abolido o alfabeto cirílico, reformou-o, simplificou-o e introduziu-lhe palavras e frases
ocidentais. No entanto, atribuiu alta prioridade ao desenvolvimento e modernização das forças
militares russas: criando uma marinha de guerra, organizando o serviço militar obrigatório, criando
as indústrias de defesa e as escolas técnicas, enviando pessoas para o estrangeiro para estudar e
importando do Ocidente os conhecimentos mais modernos sobre armamento, navios e sua
construção, navegação, administração e outras matérias essenciais para a eficácia militar. Para
permitir estas inovações reformou profundamente e alargou o sistema fiscal e, no final do seu
reinado, reorganizou a estrutura do governo. Determinado a fazer da
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Rússia não só uma potência europeia, mas também um poder na Europa, abandonou Moscovo,
criou uma nova capital em Sampetersburgo e desencadeou a guerra contra a Suécia a fim de colocar
a Rússia como a potência dominante no Báltico e impor a sua presença na Europa.
Entretanto, ao tentar transformar o seu país em moderno e ocidental, Pedro, o Grande, também
reforçou as características asiáticas da Rússia, refinando o despotismo e eliminando qualquer
eventual fonte de pluralismo social ou político. A nobreza russa nunca tinha sido poderosa. Pedro
reduziu ainda mais o seu poder, aumentando-lhe os deveres e estabelecendo um quadro de
hierarquias baseadas no mérito e não no nascimento ou posição social. Os nobres, tal como os
camponeses, eram convocados para o serviço do Estado, transformando-se numa aristocracia servil
que, mais tarde, enfureceu Custine. A autonomia dos servos foi ainda mais limitada: ficavam mais
firmemente ligados à terra e aos seus senhores. A Igreja ortodoxa, que até essa altura estivera sob
um controle distante do Estado, foi reorganizada e colocada sob a égide de um sínodo directamente
nomeado pelo czar. A este foi dado o poder de indicar o seu sucessor sem respeitar as normas
dinásticas existentes. Com estas mudanças, Pedro iniciou e simbolizou a íntima relação existente na
Rússia, por um lado, entre modernização e ocidentalização e, por outro, o despotismo. A seguir a
este modelo, Lenine, Estaline e, num grau menor, Catarina II e Alexandre II também tentaram de
diversos modos modernizar e ocidentalizar a Rússia e aumentar o poder autocrático. Pelo menos até
aos anos 80, os adeptos da democracia na Rússia eram, normalmente, favoráveis ao Ocidente, mas
nem todos os adeptos do Ocidente eram democratas. A lição a retirar da história da Rússia é a de
que a centralização do poder é uma condição necessária para a reforma social e económica. Em
finais dos anos 80, considerando os obstáculos à liberalização criados pela glasnost, os partidários
de Gorbatchev deram-se conta, com tristeza, de que ele esquecera essa lição.
Pedro teve mais sucesso ao tornar a Rússia parte da Europa do que a Europa parte da Rússia. Em
contraste com o Império Otomano, o império russo veio a ser aceite como um parceiro importante e
legítimo do sistema internacional europeu. As reformas internas trouxeram algumas mudanças, mas
a sociedade permaneceu híbrida: salvo para um pequeno escol, as instituições, as crenças e os
modos de vida asiáticos e bizantinos predominavam na sociedade russa e eram aceites por europeus
e russos. «Raspa um russo», dizia de Maistre, «e ferirás um tatar.» Pedro criou um país dilacerado e,
durante o século XIX, tanto os eslavófilos como os partidários do Ocidente lamentavam este infeliz
estado sem nunca, contudo, se terem entendido sobre se era necessário europeizar ou, muito pelo
contrário,
164
eliminar as influências europeias e regressar ao verdadeiro espírito da Rússia. Um pró-ocidental
como Chaadayev defendia que o «Sol é o Sol do Ocidente» e que a Rússia devia usar a sua luz para
iluminar e mudar as suas instituições herdadas. Um eslavófilo como Danilevskiy, com palavras que
foram também ouvidas nos anos 90, denunciava os esforços europeizantes por «distorcerem a vida
do povo e substituírem as suas formas por outras estrangeiras», «pedindo emprestadas instituições
estrangeiras e transplantando-as para solo russo» e «analisando as relações internas e externas e as
questões ligadas à vida dos russos, sob um ponto de vista estrangeiro, europeu, ou seja, através de
um prisma concebido para um ângulo de refracção europeu». Na história posterior Pedro tornou-se
o herói dos ocidentalistas e o Satã dos seus opositores, dos quais os mais ferozes foram os
euro-asiáticos dos anos 20, que o denunciaram como traidor e incitaram os bolcheviques a
rejeitarem a ocidentalização e a Europa e a transferirem de novo a capital para Moscovo.
A revolução bolchevique iniciou uma terceira fase na relação entre a Rússia e o Ocidente muito
diferente da ambivalente que existira durante dois séculos. Criou um sistema político-económico
que não existia no Ocidente em nome de uma ideologia que tinha aí sido criada. Os eslavófilos e os
ocidentalistas discutiam a questão de saber se a Rússia podia ser diferente do Ocidente sem ser
retrógrada quando comparada com ele.
O comunismo resolveu brilhantemente esta questão: a Rússia era diferente do Ocidente, e
fundamentalmente sua opositora, porque estava mais avançada do que ele. Estava à frente da
revolução proletária, que, mais cedo ou mais tarde, varreria todo o mundo. A Rússia não encarnava
um passado asiático retrógrado, mas um futuro soviético progressista. Com efeito, a revolução
permitiria à Rússia ultrapassar o Ocidente, diferenciando-se, não porque, como defendiam os
eslavófilos, «sois diferentes e não nos tornaremos como vós», mas porque «somos diferentes e,
finalmente, tornar-vos-eis como nós», de acordo com a mensagem da Internacional Comunista.
Entretanto, ao mesmo tempo que o comunismo permitiu aos dirigentes soviéticos distinguirem-se
do Ocidente, também criou laços poderosos com o Ocidente. Marx e Engels eram alemães; em
finais do século XIX e princípios do século XX a maior parte dos principais apoiantes dos seus
pontos de vista eram europeus ocidentais; em 1910 muitos dos sindicatos, dos partidos
sociais-democratas e dos operários das sociedades ocidentais estavam empenhados na sua ideologia
e tinham-se tornado cada vez mais influentes na política europeia. Depois da revolução
bolchevique, os partidos de esquerda cindiram-se em comunista e socialista e ambos constituíram,
frequentemente, forças poderosas nos países europeus. As perspectivas
165
marxistas prevaleceram em quase todo o Ocidente: o comunismo e o socialismo eram considerados
a vaga do futuro e foram abraçados, de uma maneira ou de outra, pelas elites política e intelectual.
O debate na Rússia entre eslavófilos e ocidentalistas sobre o futuro do país foi substituído, assim,
por um debate entre a esquerda e a direita sobre o futuro do Ocidente e a questão de saber se a
União Soviética representava ou não esse futuro. Depois da Segunda Guerra Mundial, o poder da
União Soviética reforçou a capacidade de atracção do comunismo, quer sobre o Ocidente, quer,
mais significativamente, sobre as civilizações não ocidentais, que nessa época estavam a reagir
contra o Ocidente. As elites não ocidentais dominadas pelo Ocidente que queriam seduzi-lo falavam
em autodeterminação e em democracia; as que queriam afrontá-lo invocavam a revolução e a
libertação nacional.
Adoptando uma ideologia ocidental e usando-a para desafiar o Ocidente, os Russos tornaram-se
mais próximos e mais íntimos do Ocidente do que em qualquer outra época da sua história. Embora
as ideologias comunista e liberal-democrata diferissem imenso, ambos os campos falavam, de certo
modo, a mesma língua. O colapso do comunismo e da União Soviética fez terminar esta relação
político-ideológica entre o Ocidente e a Rússia. O Ocidente tinha esperança e acreditava que o
resultado final seria o triunfo da democracia liberal em todo o antigo império soviético. No entanto,
tal não estava predestinado. Em 1995 o futuro da democracia liberal na Rússia e nas outras
repúblicas ortodoxas era incerto. Além disso, como os Russos cessaram de se comportar como
marxistas e começaram a agir como russos, o fosso entre a Rússia e o Ocidente aumentou. O
conflito entre a democracia liberal e o marxismo-leninismo era entre ideologias que, apesar das suas
grandes diferenças, eram ambas modernas e seculares e, ostensivamente, partilhavam objectivos
finais de liberdade, igualdade e bem-estar material. Um democrata ocidental podia travar um debate
com um marxista-leninista. Seria impossível fazê-lo com um russo nacionalista ortodoxo.
Durante a era soviética a luta entre eslavófilos e ocidentalistas cessou quando os Solzhenitsyns e os
Sakharovs desafiaram a síntese comunista. Com o colapso daquela síntese, o debate sobre a
verdadeira identidade da Rússia recomeçou com todo o vigor. Deveria a Rússia adoptar os valores,
as instituições e as práticas ocidentais e tornar-se parte do Ocidente? Ou deveria corporizar uma
civilização ortodoxa e euro-asiática diferente da do Ocidente cujo destino seria ligar a Europa e a
Ásia? As elites intelectuais e políticas e o público em geral estavam profundamente divididos sobre
estas questões. De um lado, estavam os ocidentalistas, os «cosmopolitas», os «atlantistas»; do outro,
os sucessores dos eslavófilos, qualificados como «nacionalistas», «euro-asianistas» ou derzhavniki,
apoiantes de um Estado forte.
166
As principais diferenças entre estes grupos eram sobre política externa e, em menor grau, sobre a
reforma económica e a estrutura do Estado. As opiniões distribuíam-se num continuum que ia de
um extremo ao outro. Agrupados num extremo, estavam os que apoiavam o «novo pensamento»,
defendido por Gorbatchev, sintetizado no seu objectivo da «casa comum europeia», e também
muitos dos principais conselheiros de Ieltsine que exprimiam o desejo de a Rússia se tornar o oitavo
membro do clube G-7, que reúne as principais democracias industrializadas. Os nacionalistas mais
moderados, como Sergei Stankevich, pensam que a Rússia devia rejeitar a via «atlantista» e dar
prioridade à protecção dos russos no estrangeiro, desenvolver as suas ligações turcas e muçulmanas
e promover «uma apreciável distribuição dos nossos recursos, das nossas opções, dos nossos laços e
dos nossos interesses em favor da Ásia ou em direcção ao Oriente». Criticam Ieltsine por subordinar
os interesses da Rússia aos do Ocidente, por reduzir o poder militar russo, por faltar com o apoio
aos países tradicionalmente amigos, como a Sérvia, e por fazer reformas económicas e políticas
desfavoráveis ao povo russo. Um indicador da adesão a esta tendência é a recente popularidade das
ideias de Peter Savitsky, que, nos anos 20, defendia a tese de que a Rússia era a única civilização
euro-asiática.
Os nacionalistas mais extremados estavam divididos entre nacionalistas russos, como Solzhenitsyn,
que advogavam uma Rússia que incluísse apenas russos, bielorrussos, ucranianos e eslavos
ortodoxos, e os nacionalistas imperiais, como Vladimir Zhirinovsky, que desejavam recriar o
império soviético e o poder militar russo. Os adeptos do segundo grupo eram, por vezes,
anti-semitas, assim como antiocidentais, e pretendiam reorientar a política externa russa para o
Oriente e para o Sul, quer dominando o Sul muçulmano (que era a posição de Zhirinovsky), quer
cooperando com os Estados muçulmanos e com a China contra o Ocidente. Os nacionalistas
também eram favoráveis a um maior apoio aos Sérvios na guerra com os muçulmanos. A diferença
entre os cosmopolitas e os nacionalistas traduzia-se institucionalmente na configuração dos
Ministérios dos Negócios Estrangeiros e das Forças Armadas. Também se reflectia nas viragens da
política externa e de segurança de Ieltsine, primeiro, numa direcção e, depois, noutra.
O povo russo estava tão dividido como as elites. Uma sondagem efectuada em 1992 a um universo
de 2069 russos europeus mostrou que 40% dos inquiridos estavam «abertos ao Ocidente», 36%
«fechados ao Ocidente» e 24% eram «indecisos». Nas eleições legislativas de Dezembro de 1993 os
partidos reformistas obtiveram 34,2% dos votos, os partidos anti-reformistas e nacionalistas 43,3%
e os partidos centristas 13,7%.
167
Analogamente, em Junho de 1996, nas eleições presidenciais, o povo russo dividiu-se de novo,
com, aproximadamente, 43% a apoiarem o candidato do Ocidente, Ieltsine, e os outros candidatos
reformistas, e 52% a votarem nos nacionalistas e nos comunistas. Na questão central da sua
identidade, a Rússia dos anos 90 permanece, claramente, um país dilacerado, sendo a dualidade
ocidentalista-eslavófila «um traço inalienável do seu carácter nacional».
Turquia. Por meio de uma série de reformas cuidadosamente calculadas nos anos 20 e 30, Mustafa
Kemal Ataturk tentou forçar o seu povo a romper com o passado otomano e muçulmano. Os seis
princípios básicos, ou «as seis setas» do kemalismo, eram o populismo, o republicanismo, o
nacionalismo, o secularismo, o estatismo e o reformismo. Rejeitando a ideia de um império
multinacional, Kemal propunha-se produzir um Estado-nação homogéneo, expulsando e matando
arménios e gregos neste processo. Depôs, assim, o sultão e estabeleceu um sistema de autoridade
política republicana do tipo ocidental. Aboliu o califado, principal fonte de autoridade religiosa,
aboliu a educação tradicional e os ministérios religiosos, encerrou as escolas e as universidades
religiosas, estabeleceu um sistema secular unificado de educação pública e extinguiu os tribunais
religiosos que aplicavam a lei islâmica, substituindo-a por um novo sistema legal baseado no código
civil suíço. Também substituiu o calendá'rio tradicional pelo gregoriano, deixando o islão de ser a
religião do Estado. Como Pedro, o Grande, também proibiu o uso do fez, porque era o símbolo do
tradicionalismo religioso, encorajou o uso do chapéu e decretou que o turco seria escrito com
caracteres romanos, em vez de árabes. Esta última reforma foi de uma importância fundamental.
«Tornou praticamente impossível que as novas gerações, ensinadas a ler pelo alfabeto romano,
tivessem acesso à vasta literatura tradicional, encorajou a aprendizagem de línguas europeias e
permitiu resolver o problema do analfabetiSMo.» Tendo redefinido a identidade nacional, política,
religiosa e cultural do povo turco, Kemal, nos anos 30, tentou estimular o desenvolvimento
económico do país. A ocidentalização seguia a par da modernização e era um instrumento ao seu
serviço.
A Turquia manteve-se neutra na guerra civil do Ocidente entre 1939 e
1945. No entanto, a seguir à guerra, apressou-se a identificar-se ainda mais com o Ocidente.
Seguindo os modelos ocidentais, mudou do sistema de partido único para outro competitivamente
multipartidário. Desenvolveu pressões para ingressar na NATO e conseguiu ser membro em 1952,
confirmando, assim, a sua pertença ao mundo livre. Tornou-se beneficiária de milhares de milhões
de dólares de assistência económica e de segurança;
168
as suas forças militares foram treinadas e equipadas pelo Ocidente e integradas na estrutura de
comandos da NATO; abrigou bases americanas. A Turquia passou a ser considerada pelo Ocidente
um seu baluarte na contenção, impedindo a expansão da União Soviética em direcção ao
Mediterrâneo, ao Médio Oriente e ao golfo Pérsico. Esta ligação e auto-identificação com o
Ocidente deu origem a que os Turcos fossem denunciados pelos países não alinhados e não
ocidentais na Conferência de Bandung de 1955 e atacados como blasfemos pelos países islâmicos.
Depois da guerra fria, a elite turca continuou a defender a opção ocidental e europeia. O seu estatuto
de país membro da NATO é-lhe indispensável porque lhe fornece um laço organizacional íntimo
com o Ocidente e um equilíbrio necessário em relação à Grécia. Contudo, o empenhamento da
Turquia com o Ocidente, manifestado no seu ingresso na NATO, era um produto da guerra fria. O
seu fim suprime a principal razão deste empenhamento e conduz ao enfraquecimento e à redefinição
daquela ligação. A Turquia já não é tão útil ao Ocidente como baluarte contra a maior ameaça vinda
do Norte, mas, como aconteceu na guerra do Golfo, um parceiro possível para fazer face a ameaças
menores vindas do Sul. Durante essa guerra, a Turquia forneceu um apoio crucial à coligação
anti-Saddam Hussein ao fechar o oleoduto que atravessava o seu território e permitia que o petróleo
do Iraque atingisse o Mediterrâneo e também ao autorizar que os aviões americanos operassem a
partir de bases em território turco. No entanto, estas decisões do presidente õzal estimularam uma
maior crítica na Turquia e conduziram às exonerações do ministro dos Negócios Estrangeiros, do
ministro da Defesa e do chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas e a grandes
demonstrações públicas protestando contra a íntima cooperação de õzal com os Estados Unidos.
Seguidamente, o presidente Demirel e o primeiro-ministro Ciller exigiram o fim das sanções das
Nações Unidas contra o Iraque por constituírem um pesado fardo económico para a Turquia. A
vontade da Turquia de colaborar com o Ocidente para fazer face às ameaças islâmicas vindas do Sul
é mais incerta do que a sua vontade de alinhar com o Ocidente para se opor à ameaça soviética.
Durante a crise do Golfo, a recusa da Alemanha, um amigo tradicional da Turquia, em considerar
um ataque com mísseis sobre o país como um ataque à NATO mostrou também que a Turquia não
podia contar com o apoio ocidental para ameaças vindas do Sul. No período da guerra fria as
confrontações da Turquia com a União Soviética não levantavam qualquer questão de identidade de
civilização; não é agora o caso, no período pós-guerra fria, no seu relacionamento com os países
árabes.
169
A partir dos anos 80, um dos principais, talvez o principal, objectivo das elites ocidentalistas no que
respeita à política externa da Turquia era garantirem o ingresso na União Europeia. A Turquia
candidatou-se oficialmente em Abril de 1987. Em Dezembro de 1989 foi informada de que o seu
pedido não poderia ser considerado antes de 1993. Em 1994 a União aprovou a entrada da Áustria,
Finlândia, Suécia e Noruega. Além disso, havia razões para antever que nos próximos anos
existiriam condições favoráveis em relação à Polónia, Hungria e República Checa e, mais tarde, à
Eslovénia, Eslováquia e repúblicas bálticas. Os Turcos ficaram profundamente desapontados com a
Alemanha, o mais influente membro da Comunidade Europeia, por não ter apoiado activamente a
sua candidatura, tendo dado preferência aos países da Europa central. Pressionada pelos Estados
Unidos, a União Europeia negociou uma união aduaneira com a Turquia; no entanto, o estatuto de
membro de pleno direito continua a ser um objectivo distante e de duvidosa possibilidade.
Qual a razão por que a Turquia tem sido esquecida e parece estar sempre em último lugar? Em
público, os funcionários europeus invocam o baixo nível de desenvolvimento económico e o seu
pouco respeito pelos direitos humanos. Em privado, quer os Europeus, quer os Turcos, estão de
acordo em que as verdadeiras razões são a intensa oposição da Grécia e, mais importante ainda, o
facto de a Turquia ser um país muçulmano. Os países europeus não queriam encarar a possibilidade
de abrir as suas fronteiras à imigração de um país de 60 milhões de muçulmanos com uma elevada
taxa de desemprego. Para além disso, sentiam que os Turcos, culturalmente, não pertenciam à
Europa. A questão dos direitos humanos, como disse o presidente õzal em 1992, é «um pretexto
para justificar a recusa de ingresso na Comunidade Europeia. A verdadeira razão é que nós somos
muçulmanos e eles são cristãos», acrescentando «mas eles não o dizem». Os funcionários europeus,
por seu lado, concordam que a União é «um clube cristão» e que a Turquia «é bastante pobre,
bastante populosa, bastante muçulmana, bastante dura, bastante diferente culturalmente, bastante
tudo». O «pesadelo secreto» dos Europeus, comentou um observador, é a recordação histórica das
«vagas sarracenas sobre a Europa central e os Turcos às portas de Viena». Estas reacções, por seu
lado, geram uma «percepção comum entre os Turcos» de que «o Ocidente não encontra lugar dentro
da Europa para uma Turquia muçulmana».
Tendo rejeitado Meca e estando a ser rejeitada por Bruxelas, a Turquia agarrou a oportunidade
criada pela dissolução da União Soviética para se voltar para Tashkent. O presidente õzal e outros
dirigentes turcos têm a visão de uma comunidade de povos turcos e fazem grandes esforços para
desenvolverem laços com «os turcos do exterior» nos países vizinhos,
170
«desde o Adriático até às fronteiras da China». Tem sido dirigida uma atenção especial em relação
ao Azerbaijão e às quatro repúblicas turcófonas da Ásia central: Usbequistão, Turcomenistão,
Cazaquistão e Quirguistão. Em 1991 e 1992 a Turquia lançou uma vasta campanha concebida para
estreitar os laços com essas novas repúblicas, aumentando, consequentemente, a sua influência. As
acções efectuadas incluíram um empréstimo de 1,5 mil milhões de dólares a longo prazo e com juro
baixo,
79 milhões de dólares de ajuda directa de emergência, televisão por satélite (para substituir o canal
em língua russa), comunicações telefónicas, linha aérea, milhares de bolsas de estudo para alunos
estudarem na Turquia e formação para banqueiros, empresários, diplomatas e centenas de oficiais
dos países da Ásia central e azeris. Foram enviados professores para as novas repúblicas para
ensinarem turco e começaram a funcionar cerca de 2000 joint ventures. As afinidades culturais
facilitaram estas relações económicas. Como comentava um empresário turco, «a coisa mais
importante para o sucesso no Azerbaijão ou no Turcomenistão é encontrar o sócio certo. Para nós,
Turcos, não é dificil. Temos a mesma cultura, mais ou menos a mesma língua e comemos da mesma
cozinha.»
A reorientação da Turquia em direcção ao Cáucaso e à Ásia central foi encorajada não só pelo
sonho de ser o país director de uma comunidade de nações turcas, como também pelo desejo de
conter o Irão e a Arábia Saudita no alargamento da sua influência e promoção do fundamentalismo
na região. Os Turcos julgam-se capazes de oferecer um «modelo turco» ou uma «ideia da Turquia»
como uma alternativa - estado secular, democrático, com uma economia de mercado. Além disso, a
Turquia esperava poder conter o ressurgimento da influência russa. Oferecendo uma alternativa à
Rússia e ao islão, a Turquia esperava obter um maior apoio da União Europeia e talvez um eventual
ingresso.
A partir de 1993, a intensa actividade inicial da Turquia em direcção às repúblicas turcas abrandou
devido à limitação dos seus recursos, à sucessão de Suleyman Demirel na presidência devida à
morte de õzal e também à reafirmação da influência russa nos países vizinhos. Quando as
ex-repúblicas soviéticas turcas se tornaram independentes, os seus dirigentes precipitaram-se para
Ancara para cortejarem a Turquia. Seguidamente, como a Rússia utilizou pressão e persuasão,
tiveram de fazer marcha a trás e salientaram a necessidade de terem relações «equilibradas» entre o
parente cultural e o antigo senhor imperial. No entanto, os Turcos continuaram a tentar usar as suas
afinidades culturais para expandirem as suas ligações económicas e políticas. Tem particular
relevância o acordo conseguido com os governos interessados e as companhias petrolíferas sobre a
construção de um oleoduto que transportasse
171
o petróleo da Ásia central e do Azerbaijão, através da Turquia, para o mar Mediterrâneo.
Enquanto a Turquia se empenhava em desenvolver os seus laços com as antigas repúblicas
soviéticas turcófonas, a sua própria identidade secular kemalista estava a ser posta em causa
internamente. Primeiro, porque para a Turquia, como para muitos outros países, o fim da guerra
fria, juntamente com as perturbações resultantes do desenvolvimento social e económico, levantara
graves problemas de «identidade nacional e de identificação étnica a que a religião estava em
condições de dar uma resposta. A herança laica de Ataturk e da elite turca, que já existia há dois
terços de um século, começou a ser atacada. A experiência dos turcos no estrangeiro estimulou os
sentimentos islamitas no país. Os turcos regressados da Alemanha Ocidental «reagiram à
hostilidade a que lá foram sujeitos, voltando-se para o que lhes era familiar. E isso era o islão.» A
opinião pública e os costumes tornaram-se cada vez mais islâmicos. Em 1993 foi noticiado que «as
barbas e os véus das mulheres em estilo islâmico proliferavam na Turquia, que as mesquitas
recebiam multidões de crentes e que algumas livrarias estavam abarrotadas de livros, jornais,
cassettes, discos compactos e vídeos que glorificavam a história islâmica, os preceitos e modos de
vida islâmicos, exaltando o papel do Império Otomano em preservar os valores do profeta Maomé.»
Existiam «não menos do que 290 editoras e sociedades de imprensa, 300 publicações, incluindo
quatro jornais diários, várias centenas de rádios livres e cerca de 30 canais de televisão livre, todos
propagandeando a ideologia islâmica» .
Face a esta subida dos sentimentos islâmicos, os dirigentes turcos tentaram adoptar práticas e
apoiar-se nos fundamentalistas. Nos anos 80 e 90 o governo, dito secular, manteve um gabinete dos
assuntos religiosos, com um orçamento superior a alguns ministérios, financiou a construção de
mesquitas, decretou a educação religiosa obrigatória em todas as escolas oficiais e subsidiou as
escolas islâmicas. O seu número quintuplicou nos anos 80, abrangendo cerca de 15% dos alunos das
escolas secundárias, pregando as doutrinas islâmicas e produzindo milhares de diplomados, muitos
dos quais ingressavam no funcionalismo público. Num contraste simbólico com a França, o
governo autorizou, na prática, que as alunas usassem o tradicional lenço de cabeça muçulmano
setenta anos depois de Ataturk ter banido o feZ. Estas acções governamentais, em grande parte
motivadas pelo desejo de desviar o vento das velas dos islamitas, testemunham quão forte era
aquele vento nos anos 80 e princípios dos anos 90.
Segundo: o Ressurgimento do islão mudou o carácter da política turca. Os dirigentes políticos,
muito particularmente Turgut õzal, identificaram-se
172
muito abertamente com a simbologia e as políticas muçulmanas. Na Turquia, como em muitos
outros lugares, a democracia reforçou a indigenização e o regresso à religião. «Os políticos, na sua
avidez de conquistarem o favor do povo e de ganharem votos -e mesmo os militares, os verdadeiros
bastiões e guardiães do secularismo -, tiveram de ter em conta as aspirações religiosas da
população: não poucas das concessões que fizeram foram demagógicas.» Os movimentos populares
tinham inclinações religiosas. Enquanto as elites e a burocracia, sobretudo os militares, tinham uma
orientação secular, começaram a manifestar-se sentimentos islamitas dentro das forças armadas e
em 1987 várias centenas de cadetes foram expulsos das academias militares devido à suspeita de
sentimentos islamitas. Os maiores partidos políticos sentiam cada vez mais necessidade de
procurarem apoio eleitoral das reaparecidas tarikas muçulmanas, sociedades secretas proibidas por
Ataturk. Nas eleições autárquicas de 1994 o fundamentalista «Partido do Bem-Estar» foi o único
partido dos cinco envolvidos que progrediu no número de votos, tendo recebido 19% dos votos,
enquanto o partido do primeiro-ministro, o «Partido da Verdadeira Via», obteve 21% e o do
falecido õzal, o «Partido da Pátria», recebeu 20%. O «Partido do Bem-Estar» conquistou o controle
das duas principais cidades da Turquia, Istambul e Ancara, e tornou-se muito poderoso na região
sueste do país. Nas eleições de Dezembro de 1995 o «Partido do Bem-Estar» obteve mais votos e
ganhou mais lugares no parlamento do que qualquer outro partido e, seis meses mais tarde, tomou
conta do governo em coligação com um dos partidos seculares. Como noutros países, o apoio aos
fundamentalistas veio dos jovens, dos imigrantes retornados, «dos oprimidos e desalojados» e dos
«novos migrantes urbanos, os sans culottes das grandes cidades».
Terceiro: o Ressurgimento do islão afectou a política externa turca. Sob a liderança do presidente
õzal, a Turquia alinhou decididamente com o Ocidente na guerra do Golfo, pressupondo que esta
opção favoreceria o seu ingresso como membro da Comunidade Europeia. Este pressuposto não se
concretizou e as hesitações da NATO sobre que resposta seria dada se a Turquia fosse atacada pelo
Iraque durante aquela guerra não deu confiança aos Turcos sobre a resposta da Aliança face a uma
ameaça não russa ao seu país. Os dirigentes turcos tentaram alargar as suas ligações militares com
Israel, o que provocou uma intensa crítica dos islamitas turcos. Durante os anos 80, a Turquia
intensificou as suas relações com os países árabes e outros países muçulmanos, o que teve bastante
significado, e nos anos 90 promoveu activamente os interesses islâmicos, fornecendo apoio aos
muçulmanos Bósnios, assim como ao Azerbaijão. No que diz
173
respeito aos Balcãs, à Ásia central e ao Médio Oriente, a POlítica externa turca está a tornar-se,
progressivamente, mais islamizada.
Durante muitos anos, a Turquia satisfez dois dos requisitos mínimos para que um país dilacerado
mudasse de identidade civilizacional. As elites do país apoiavam esta evolução e a opinião pública
concordava. No entanto, as elites da civilização recipiente, a ocidental, não foram muito receptivas.
O Ressurgimento do islão dentro da Turquia activou sentimentos antiocidentais no povo e começou
a minar a orientação secularista e pró-ocidental das elites turcas. Os obstáculos levantados à
Turquia para se tornar um país perfeitamente europeu, a limitação da sua capacidade em
desempenhar um papel dominante em relação às antigas repúblicas soviéticas turcófonas e a
ascensão das tendências islâmicas estão a corroer a herança de Ataturk, tudo levando a crer que a
Turquia permanecerá por muito tempo um país dilacerado.
Os dirigentes políticos turcos, reflectindo estas duas forças contraditórias, designam frequentemente
o seu país por «ponte» entre culturas. A Turquia, disse o primeiro-ministro Tansu Ciller em 1993, é
uma «democracia ocidental» e parte «do Médio Oriente» que «liga fisica e filosoficamente duas
civilizações». Ciller, reflectindo esta ambivalência, aparece frequentemente em público e no seu
país como muçulmano. Contudo, quando se dirige à NATO, defende a ideia de que «o facto
geográfico e político é que a Turquia é um país europeu». O presidente Suleyman Demirel também
chamou à Turquia «uma importante ponte na região que vai de ocidente para oriente, isto é, da
Europa para a China». Uma ponte, no entanto, é uma criação artificial a ligar duas entidades
concretas, mas não é parte de nenhuma delas. Quando os dirigentes turcos classificam o seu país
como uma ponte estão, eufemisticamente, a confirmar que é um país dilacerado.
México. A Turquia tornou-se um país dilacerado nos anos 20. O México só nos anos 80. Todavia, o
seu relacionamento histórico com o Ocidente tem certas semelhanças. O México, tal como a
Turquia, era uma cultura claramente não ocidental. Mesmo no século XX, como disse Octávio Paz,
«o mais profundo do México é índio, não é europeu». No século XIX o México, tal como o Império
Otomano, foi desmembrado por mãos ocidentais. Na segunda e terceira década do século XX tanto
o México como a Turquia conheceram uma revolução que estabeleceu uma nova base de identidade
nacional e um novo sistema de partido único. No entanto, na Turquia a revolução implicou tanto a
rejeição da cultura tradicional islâmica e otomana como um esforço para importar a cultura
ocidental e de adesão ao Ocidente. No México, como na Rússia, a revolução
174
implicou a incorporação e a adaptação de segmentos da cultura ocidental que geraram um novo nacionalismo
oposto ao capitalismo e à democracia do Ocidente. Durante sessenta anos a Turquia tentou definir-se como
europeia, enquanto o México tentou fazê-lo em oposição aos Estados Unidos. Dos anos 30 aos 80, os
dirigentes políticos mexicanos seguiram políticas externas e económicas que desafiavam os interesses
americanos.
Nos anos 80 tudo mudou. O presidente Miguel de La Madrid começou, e o seu sucessor Carlos Salinas de
Gortari continuou, uma total redefinição das finalidades, das práticas e da identidade mexicanas no maior
esforço de mudança feito desde a revolução de 19 10. Salinas tornou-se, de facto, o Mustafa Kemal do
México. Ataturk promoveu o secularismo e o nacionalismo, temas dominantes no Ocidente nessa época;
Salinas promoveu o liberalismo económico, um dos dois temas dominantes no Ocidente nesse período (ao
outro, à democracia política, não aderiu). Estes pontos de vista, como com Ataturk, foram partilhados com as
elites políticas e económicas, muitas das quais, tal como Salinas e de La Madrid, tinham sido educadas nos
Estados Unidos. Salinas reduziu drasticamente a inflação, privatizou grande número de empresas públicas,
promoveu o investimento estrangeiro, reduziu as taxas aduaneiras e os subsídios, reestruturou a dívida
externa, desafiou o poder dos sindicatos, aumentou a produtividade e levou o México ao Acordo de Comércio
Livre Norte-Americano (NAFTA) com os Estados Unidos e o Canadá. Assim como as reformas de Ataturk
foram concebidas para transformarem a Turquia de um país muçulmano do Médio Oriente num país secular
europeu, as reformas de Salinas foram concebidas para transformarem o México de um país latino-americano
noutro norte-americano.
Esta não foi uma opção inelutável para o México. As elites mexicanas poderiam ter prosseguido uma via
proteccionista, nacionalista, terceiro-mundista e anti-EUA que os seus antecessores seguiram durante mais de
um século. Alternativamente, poderiam, como alguns mexicanos advogavam, ter tentado desenvolver com a
Espanha, Portugal e os países sul-americanos uma associação ibérica de nações.
Terá o México sucesso nesta aposta norte-americana? A esmagadora maioria das elites políticas, económicas
e intelectuais são a favor dessa opção. Diferentemente do que acontece com a Turquia, a esmagadora maioria
das elites políticas, económicas e intelectuais da civilização recipiente têm apoiado o realinhamento cultural
do México. O problema crucial intercivilizacional da imigração sublinha bem esta diferença.
O receio da maciça imigração turca gerou resistências nas elites e na opinião pública ao ingresso da Turquia
na Europa. Em contrapartida, a
175
emigração maciça, legal ou ilegal, de mexicanos para os Estados Unidos foi parte da argumentação
de Salinas para o ingresso no NAFTA: «Ou aceitais as nossas mercadorias ou aceitais as nossas
pessoas.» Além disso, a distância cultural entre o México e os Estados Unidos era bem menor do
que a existente entre a Turquia e a Europa. A religião do México é a católica, a sua língua o
espanhol, as elites estão orientadas historicamente para a Europa (para onde enviam os filhos para
serem educados) e, mais recentemente, para os Estados Unidos (para onde os mandam
actualmente). A acomodação entre a anglo-americana América do Norte e o hispano-índio México
deve ser consideravelmente mais fácil do que a da Europa cristã com a da Turquia muçulmana.
Apesar destes pontos em comum, depois da ratificação do NAFTA, tem crescido nos Estados
Unidos a oposição em relação a qualquer outro desenvolvimento com o México, surgindo
exigências para a restrição da imigração, queixas acerca da deslocação de fábricas para o Sul e a
questão da capacidade mexicana para aderir aos conceitos norte-americanos de liberdade e de
Estado de direito.
O terceiro requisito para que um país dilacerado mude de identidade com sucesso é a aprovação
geral, embora não necessariamente com o apoio da opinião pública. A importância deste factor
depende, em larga medida, da importância dos pontos de vista da opinião pública no processo de
decisão do país. A posição mexicana pró-ocidental não tinha sido testada até 1995 pela democracia.
A revolta de alguns milhares de guerrilheiros bem organizados e apoiados externamente no dia do
Ano Novo, em Chiapas, não foi, por si só, uma indicação de uma resistência substancial à
norte-americanização. No entanto, a reacção que obtiveram entre intelectuais, jornalistas e outros
criadores da opinião pública fez pensar que a norte-americanização, em geral, e o NAFTA, em
particular, poderiam vir a encontrar uma resistência crescente por parte das elites e do povo
mexicano. O presidente Salinas, conscientemente, atribuiu prioridade à reforma económica e à
ocidentalização em detrimento da reforma política e da democratização. Entretanto, o
desenvolvimento económico e a aproximação aos Estados Unidos reforçarão as forças promotoras
de uma real democratização do sistema político mexicano. A questão principal para o futuro do
México consiste em saber até que ponto a modernização e a democratização estimularão a
desocidentalização, produzindo a rotura com o NAFTA ou o seu drástico enfraquecimento, com as
consequentes alterações nas políticas impostas ao México pelas suas elites ocidentalizadas dos anos
80 e 90? Será a norte-americanização do México compatível com a sua democratização?
Austrália. AAU'strália, contrariamente à Rússia, à Turquia e ao México, tem sido, desde a sua
origem, uma sociedade ocidental. Durante o século
176
XX foi um fiel aliado, primeiro, da Grã-Bretanha e, depois, dos Estados Unidos; durante a guerra
fria, para além de estar no campo ocidental, fazia também parte do núcleo duro
americo-anglo-australo-canadiano ocidental em matérias militares e de informações. No entanto, em
princípios dos anos 90, os dirigentes políticos australianos decidiram que a Austrália deveria
distanciar-se do Ocidente, redefinir-se como sociedade asiática e desenvolver laços estreitos com os
vizinhos geográficos. A Austrália, disse o primeiro-ministro Paul Keating, deve deixar de ser uma
«filial do império», tornar-se uma república e «envolver-se» com a Ásia. Tal era necessário, dizia
ele, para se alcançar uma identidade da Austrália como país independente. «A Austrália não pode
apresentar-se ao mundo como uma sociedade multicultural, empenhar-se na Ásia, criar laços, e
criá-los de um modo convincente, enquanto, ao mesmo tempo, pelo menos em termos
constitucionais, permanece uma sociedade derivada.» A Austrália, prosseguia Keating, sofreu
imensos anos de «anglofilia e de torpor» e continuar associada à Grã-Bretanha seria «debilitar,
enfraquecer a nossa cultura nacional, o nosso futuro económico e o nosso destino na Ásia e no
Pacífico». O ministro dos Negócios Estrangeiros Gareth Evans exprimiu sentimentos semelhantes.
A razão para a redefinição da Austrália como país asiático baseava-se no pressuposto de que a
economia ultrapassa a cultura na construção do destino das nações. O impulso principal foi
originado pelo crescimento dinâmico das economias do Extremo Oriente, que, por seu lado,
impulsionou a rápida expansão do comércio australiano com a Ásia. Em 1971 o Extremo Oriente e
o Sueste da Ásia absorviam 39% das exportações da Austrália e constituíam 41% das suas
importações. Em 1994 estas duas regiões asiáticas absorviam 62% das exportações e forneciam
41% das importações australianas. Em contrapartida, em 1991, 11,8% das exportações australianas
foram para a Comunidade Europeia e 10,1% para os Estados Unidos. Este laço aprofundado com a
Ásia foi reforçado pela crença nas mentes australianas de que o mundo estava a caminhar em
direcção a três grandes blocos económicos e que o lugar da Austrália era no bloco do Extremo
Oriente.
Apesar destas ligações económicas, parece improvável que a opção asiática da Austrália cumpra os
requisitos necessários para uma mudança de civilização de um país dilacerado. Em primeiro lugar,
em meados dos anos 90, as elites australianas estavam longe de estarem entusiasmadas em relação a
esta opção. Era, de certo modo, uma aposta partidária à qual os dirigentes do Partido Liberal se
mantinham hesitantes ou hostis. O governo trabalhista foi bastante criticado por uma vasta gama de
intelectuais e jornalistas. Não existia qualquer consenso nas elites sobre a opção asiática.
177
Em segundo lugar, a opinião pública era ambivalente. De 1987 a
1993, a percentagem de australianos favoráveis ao fim da monarquia subiu de 21% para 46%. No
entanto, ao chegar a este nível, começou a oscilar e a enfraquecer. A percentagem de pessoas
favoráveis à eliminação da Union Jack da bandeira australiana desceu de 42% em Maio de 1992
para
35% em Agosto de 1993. Como disse um responsável australiano em 1992, «é difícil as pessoas
digerirem isso. Quando afirmo, como o faço periodicamente, que a Austrália devia ser parte da
Ásia, não digo quantas cartas furiosas recebo.»
Terceira condição e a mais importante: as elites dos países asiáticos foram menos receptivas às
iniciativas da Austrália do que os países europeus o haviam sido em relação às da Turquia. Aquelas
elites tornaram claro que, se a Austrália quer ser parte da Ásia, deve tornar-se verdadeiramente
asiática, o que julgam improvável ou mesmo impossível. «O sucesso da integração da Austrália na
Ásia», como disse um funcionário indonésio, «depende de uma única coisa - saber como é que os
países asiáticos acolhem a intenção australiana. A aceitação da Austrália na Ásia depende da forma
como o governo e o povo australianos compreenderem a cultura e a sociedade asiáticas.» Os
Asiáticos acham que há uma grande distância entre a retórica australiana sobre a Ásia e a realidade
ocidental profunda. Os Tailandeses, de acordo com um diplomata australiano, tratam com
«condescendência» a insistência australiana em afirmar que é asiática. «Culturalmente, a Austrália é
ainda europeia», declarou o primeiro-ministro Mahathir, da Malásia, em Outubro de 1994 «[ ... ]
pensamos que é um país europeu» e, como tal, a Austrália não deveria ser membro do East Asian
Economic Caucus. Nós, os Asiáticos, «somos menos dados a criticar os outros países ou a julgá-los.
Mas aAustrália, que é culturalmente europeia, julga-se no direito de dizer aos outros países o que
devem fazer, o que não devem fazer, o que está bem, o que está mal. É claro que tal não é
compatível com o grupo. São essas as razões [por que me oponho ao seu ingresso no EAEC]. Não é
a cor da pele, mas a cultura.» Em resumo, os Asiáticos estão determinados a excluírem a Austrália
do seu clube pela mesma razão por que os Europeus o fazem em relação à Turquia: são diferentes
de nós. O primeiro-ministro Keating gostava de dizer que ia procurar transformar a Austrália de
«um país diferente e isolado num país inserido*» na Ásia. Tal é, contudo, um oximoro: os
diferentes nunca fazem parte do grupo.
* «The odd man out to the odd man in» no original. (N. do T)
Como disse Mahathir, a cultura e os valores são os principais obstáculos à integração daAustrália na
Ásia. Periodicamente, estalam conflitos acerca do
178
empenhamento dos Australianos na democracia, nos direitos humanos, na liberdade de imprensa e
nos seus protestos sobre as violações daqueles direitos pelos governos praticamente seus vizinhos.
«O verdadeiro problema para a Austrália na região», como disse um diplomata australiano, «não é a
nossa bandeira, mas os nossos valores sociais profundos. Creio convictamente que nenhum
australiano está preparado para renunciar a eles apenas para ser aceite na região.» As diferenças de
temperamento, de estilo e de comportamento são também muito pronunciadas. Como sugeriu
Mahathir, os Asiáticos, geralmente, competem com os outros na perseguição dos seus objectivos de
uma forma subtil, indirecta, modulada, tortuosa, neutra, não moralizante e não conflitual. Os
Australianos, pelo contrário, são mais directos, «sem papas na língua», extrovertidos e, muitos
diriam, os mais insensíveis do mundo anglófono. Este choque de culturas foi particularmente
evidente nas relações pessoais de Keating com os Asiáticos. Keating personifica a forma extremada
das caracteristicas nacionais australianas. Político classificado de «brutal», tem um estilo
«intrinsecamente provocante e belicoso», que não hesita em apelidar os seus adversários de «sacos
de escória», «gigolos perfumados» e «deficientes mentais». Enquanto defende que a Austrália deve
ser asiática, Keating, regularmente, irrita, choca e antagoniza os dirigentes políticos asiáticos com a
sua franqueza brutal. O fosso entre culturas é tão largo que enganou o proponente da convergência
cultural na medida em que o seu próprio comportamento suscita a rejeição dos que ele reclamava
como pertencentes à mesma irmandade cultural.
A opção Keating-Evans poderia ser vista como um produto imediatista de factores económicos
sobrevalorizados, ignorando mais do que renovando a cultura do país, e um táctico expediente
político para desviar a atenção dos problemas económicos da Austrália. Mas poder-se-ia também
pensar que era uma iniciativa visionária, concebida para integrar e identificar a Austrália nos novos
centros de poder económico, político e, finalmente, militar do Extremo Oriente. Nesse sentido, a
Austrália poderia ser o primeiro de, possivelmente, muitos países ocidentais a tentar abandonar o
Ocidente para se juntar às emergentes civilizações não ocidentais. Em princípios do século XXII os
historiadores poderiam olhar para a opção Keating-Evans como um marco da decadência do
Ocidente. Contudo, se esta opção prosseguir, não fará desaparecer a herança ocidental da Austrália.
Este «país paradisíaco» será, permanentemente, um país dilacerado, simultaneamente uma «filial do
império», como dizia em tom crítico Paul Keating, e o «novo caixote de lixo branco da Ásia», como
Lee Kuan Yew desdenhosamente o alcunhava.
Tal não é um destino inelutável para a Austrália. Assumindo o seu desejo de romper com a
Grã-Bretanha, em vez de se definir como potência asiática,
179
os dirigentes políticos australianos podiam definí-la como um p'aís da bacia do Pacífico, como
tentou fazê-lo o primeiro-ministro antecessor de Keating, Robert Hawke. Se a Austrália deseja
tornar-se uma república separada da coroa britânica, podia juntar-se ao primeiro país no mundo que
o fez, um país que, tal como a Austrália, é de origem britânica, também um país de imigrantes, de
dimensão continental, anglófono, seu aliado em três guerras e que tem uma população
maioritariamente europeia, embora, como a Austrália, crescentemente, asiática. Culturalmente, os
valores da Declaração de Independência de 4 de Julho de 1776 estão mais de acordo com os valores
australianos do que os de qualquer outro país asiático. Economicamente, em vez de tentar encontrar
um caminho no meio de um grupo de sociedades face às quais é culturalmente estranha e que a
rejeitam, os dirigentes políticos da Austrália poderiam propor o alargamento do NAFTA,
transformando-o num acordo América do Norte-Pacífico Sul, englobando os Estados Unidos, o
Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. Tal agrupamento reconciliaria a cultura e a economia e
forneceria à Austrália uma identidade sólida e duradoura não proveniente de esforços fúteis para a
tornar uma Austrália asiática.
O vírus ocidental e a esquizofrenia cultural. Enquanto os dirigentes políticos australianos se
lançavam numa corrida para a Ásia, os dos outros países dilacerados - Turquia, México e Rússia -
tentavam incorporar o Ocidente nas suas sociedades e incorporar estas no Ocidente. Contudo, a
experiência demonstra largamente a força, a resiliência e a viscosidade das culturas indígenas,
assim como a sua capacidade de se renovarem e de resistirem às importações vindas do Ocidente,
de as conterem e de as adaptarem. A rejeição do Ocidente é uma opção impossível, mas a via
kemalista não teve sucesso. Se as sociedades não ocidentais querem modernizar-se, devem fazê-lo à
sua maneira, e não ao modo ocidental, e, imitando o Japão, apoiando-se nas suas tradições,
instituições e valores.
Os dirigentes políticos que têm a soberba de pensarem que podem dar uma nova forma à cultura das
suas sociedades estão condenados ao insucesso. Enquanto incorporam elementos da cultura
ocidental, são impotentes para suprimirem ou eliminarem os elementos essenciais da sua cultura
indígena. Pelo contrário, o vírus ocidental, uma vez inoculado numa outra sociedade, é dificil de
eliminar. O vírus persiste, mas não é fatal; o paciente sobrevive, mas jamais é o mesmo. Os
dirigentes políticos podem fazer história, mas não fogem à história. Produzem países dilacerados;
não podem criar sociedades ocidentais. Infectam o país com uma esquizofrenia cultural que se torna
a sua característica continuada e definidora.
180
7
Estados-núcleos, círculos concêntricos e ordem das
civilizações
Civilizações e ordem
O que sucedeu aos impérios czarista e comunista foi um bloco civilizacional, em muitos aspectos,
paralelo ao do Ocidente na Europa. O coração, a Rússia, o equivalente à França e à Alemanha, está
intimamente ligado a um círculo interior que inclui as duas repúblicas predominantes, ortodoxas e
eslavas, da Bielorrússia e da Moldávia, o Cazaquistão, em que 40% da população é russa, e a
Arménia, um íntimo aliado histórico da Rússia. Em meados dos anos 90 todos estes países tinham
governos pró-russos que, regra geral, tinham chegado ao poder por intermédio de eleições. As
relações entre a Rússia e a Geórgia (predominantemente ortodoxa) e a Ucrânia (em grande parte
ortodoxa) são mais ténues, mas ambas têm um forte sentimento de identidade nacional e da sua
passada independência. Nos Balcãs ortodoxos, a Rússia tem relações próximas com a Bulgária, a
Grécia, a Sérvia e Chipre e, em menor grau, com a Roménia. As repúblicas muçulmanas da antiga
União Soviética continuam muito dependentes da Rússia não só em termos económicos, como
também em questões de segurança. As repúblicas bálticas, pelo contrário, sob o efeito atractivo da
Europa, libertaram-se da esfera de influência russa.
Globalmente, pode dizer-se que a Rússia está a criar um bloco com um núcleo central ortodoxo sob
a sua liderança, rodeado por um «amortecedor» formado por um conjunto de Estados islâmicos,
relativamente fracos, que, em vários graus, domina e donde tentará expulsar a influência de outras
potências. A Rússia espera que o mundo aceite e aprove este sistema. Os governos estrangeiros e as
organizações internacionais, como disse Ieltsine em Fevereiro de 1993, têm de «reconhecer à
Rússia poderes especiais como garante da paz e da estabilidade nas antigas regiões da URSS».
Enquanto a União Soviética era uma superpotência com interesses globais, a Rússia é uma grande
potência com interesses regionais e civilizacionais.
191
Os países ortodoxos da ex-União Soviética têm um papel primordial no desenvolvimento de um
bloco russo coerente na Eurásia e nos assuntos internacionais. Aquando do colapso da União
Soviética, estes cinco países tomaram, de início, uma direcção muito nacionalista, querendo
acentuar a sua independência e marcar as distâncias relativamente a Moscovo. Posteriormente, o
reconhecimento das realidades económicas, geopolíticas e culturais influenciou os votantes em
quatro delas a elegerem governos pró-russos e a apoiarem as consequentes políticas. Os habitantes
destes países esperam da Rússia apoio e protecção. No quinto país, a Geórgia, a intervenção militar
russa determinou uma evolução semelhante na posição do governo.
A Arménia tem, historicamente, identificado os seus interesses com os da Rússia e esta orgulha-se
de ser a defensora do país em relação aos seus vizinhos muçulmanos. Este relacionamento
revigorou-se nos anos pós-soviéticos. Os Arménios têm estado dependentes dos apoios económico e
militar russos e, por sua vez, têm apoiado a Rússia nas questões respeitantes às relações entre as
antigas repúblicas soviéticas. Os dois países têm interesses estratégicos convergentes.
Diferentemente da Arménia, a Bielorrússia tem pouca consciência da identidade nacional. Está
também dependente do apoio russo. Muitos dos seus residentes parecem identificar-se mais com a
Rússia do que com o seu próprio país. Nas eleições de Janeiro de 1994 um conservador pró-russo
substituiu um centrista e nacionalista moderado como chefe de Estado. Em Julho de 1994, 80% dos
votantes elegeram como presidente um extremista pró-russo, aliado de Vladimir Zhirinovsky. A
Bielorrússia cedo aderiu à Comunidade de Estados Independentes (CEI); foi membro fundador da
união económica criada em 1993 com a Rússia e a Ucrânia; concordou com a existência de uma
união monetária com a Rússia; abandonou o armamento nuclear em favor da Rússia; deu o acordo
ao estacionamento de tropas russas no seu solo até ao fim do século. Em 1995 a Bielorrússia era, de
facto, parte da Rússia, excepto no nome.Depois de a Moldávia se tornar independente, com o
colapso da União Soviética, muitos pensaram na sua eventual reintegração na Roménia. Por sua
vez, o receio de que tal sucedesse estimulou o surgimento de um movimento secessionista no Leste
russófilo, com o apoio tácito de Moscovo e activo do 14.o exército russo, que levou à criação da
República do Trans-Dniestre. Contudo, o sentimento moldavo para a união com a Roménia
diminuiu face aos problemas económicos de ambos os países e também à pressão russa. A Moldávia
integrou a CEI e o comércio com a Rússia aumentou. Em Fevereiro de 1994 os partidos pró-russos
ganharam, com grande vantagem, as eleições parlamentares.
192
O eleitorado nestes três Estados, em resposta aos interesses estratégicos e económicos, produziu
governos que favoreceram o alinhamento com a Rússia. O padrão foi praticamente o mesmo do da
Ucrânia. Na Geórgia foi diferente a sucessão dos acontecimentos. A Geórgia foi um país
independente até 1801, quando o seu rei Jorge XIII pediu a protecção russa contra os Turcos.
Durante três anos após a revolução russa, de 1918 a 1921, a Geórgia foi novamente independente,
mas os bolcheviques incorporaram-na à força na União Soviética. Quando esta acabou, a Geórgia
declarou de novo a sua independência. Uma coligação nacionalista venceu as eleições, mas o seu
chefe empenhou-se numa repressão autodestruidora e foi violentamente derrubado. Eduard A.
Shevardnadze, que havia sido ministro dos Negócios Estrangeiros da União Soviética, voltou a
governar o país e foi confirmado no poder pelas eleições presidenciais de 1992 e 1995. Viu-se, no
entanto, confrontado com um movimento separatista na Abkhazia, que recebeu um importante
apoio russo, e também com uma insurreição dirigida pelo destituído Gamsakhurdia. Da mesma
fonna que o rei Jorge, concluiu que «não temos grande escolha» e voltou-se para Moscovo à
procura de ajuda. As tropas russas intervieram, apoiando-o, ao preço do seu ingresso na CEI. Em
1994 os Georgianos autorizaram que os Russos mantivessem três bases militares na Geórgia por um
período indefinido. A intervenção militar russa, primeiro para enfraquecer o governo georgiano e
depois para o apoiar, fez cair a Geórgia, que tem veleidades independentistas, no campo russo.
A ex-república soviética mais populosa e mais importante, com excepção da Rússia, é a Ucrânia,
que foi independente em vários períodos da sua história. No entanto, durante a maior parte da era
moderna fez parte de uma entidade política governada por Moscovo. O acontecimento decisivo
ocorreu em 1654, quando Bohdan Khmelnytsky, dirigente cossaco de um levantamento contra o
domínio polaco, jurou fidelidade ao czar em troca de ajuda contra os Polacos. Desde essa data até
1991, excepto durante um breve período entre 1917 e 1920, o que é agora a Ucrânia foi controlado
politicamente por Moscovo. A Ucrânia é, no entanto, um país dividido, com duas culturas distintas.
A fronteira civilizacional entre o Ocidente e a ortodoxia passa, desde há séculos, em pleno coração
da Ucrânia. No passado, durante alguns períodos, a Ucrânia Ocidental pertenceu à Polónia, à
Lituânia e ao Império Austro-Húngaro. Uma grande parte da sua população tem estado ligada à
Igreja uniata, que pratica os ritos ortodoxos, mas reconhece a autoridade do Papa. Historicamente,
os Ucranianos Ocidentais falam ucraniano e são declaradamente nacionalistas. Os habitantes da
Ucrânia Oriental, por outro lado, são esmagadoramente ortodoxos e, em grande parte, falam russo.
Em princípios dos anos
193
90 os Russos constituíam 22% da população ucraniana, existindo 3 1 % de russófonos. A maior
parte dos estudantes das escolas primárias e secundárias eram ensinados em russo. A Crimeia é
maioritariamente russa e pertenceu à Federação Russa até 1954, quando Kruchtchev a
transferiu para a Ucrânia como reconhecimento oficial da decisão tomada por’ Khmelnytsky
trezentos anos antes.
São nítidas as diferenças entre as regiões oriental e ocidental da Ucrânia nas atitudes das suas
populações. Em finais de 1992, por exemplo, um terço dos russos da região ocidental da Ucrânia,
comparados com apenas 10% em Quieve, manifestavam uma certa animosidade anti-russa. A cisão
Leste-Oeste foi muito evidente nas eleições presidenciais de Julho de,
1994. Leonid Kravchuk, que, apesar de trabalhar de perto com os políticos’ russos, se intitulava de
nacionalista, ganhou nas treze províncias ocidentais, com uma maioria que, em certos casos, atingiu
os 90%. O seu adversário, Leonid Kuchma, que recebeu lições de ucraniano durante a campanha,
conquistou as treze províncias orientais, com maiorias comparáveis. Kuchma venceu com 52% dos
votos. Com efeito, uma escassa maioria da população ucraniana confirmou em 1994 a opção de
Khmelnytsky em 1654. A eleição, como observou um analista americano, «reflectiu, ou mesmo
consolidou, a cisão entre os eslavos europeizados, na parte ocidental da Ucrânia, e a visão
russo-eslava do que a Ucrânia devia ser. Não é tanto uma polarização étnica, mas antes uma
diferenciação cultural»’.
194
Em resultado desta divisão, as relações entre a Ucrânia e a Rússia poderiam desenvolver-se num de
três modos. Em princípios dos anos 90 existiam questões criticamente importantes entre os dois
países no que dizia respeito ao armamento nuclear, à Crimeia, aos direitos dos Russos na Ucrânia, à
esquadra do mar Negro e às relações económicas. Muitos pensavam que era provável o conflito
armado, o que levou alguns analistas a defenderem que o Ocidente deveria apoiar a Ucrânia na
questão da posse de armas nucleares para dissuadir qualquer agressão russa’. No entanto, se o que
conta é a civilização, é improvável a violência entre Ucranianos e Russos. Ambos eram povos
eslavos, maioritariamente ortodoxos, que haviam tido um relacionamento íntimo ao longo dos
séculos, em cujo seio eram vulgares os casamentos mistos. Apesar da gravidade dos problemas e da
pressão dos extremistas nacionalistas de ambas as partes, os dirigentes políticos dos dois países
trabalharam arduamente e conseguiram, com sucesso, moderar estas disputas. Em meados de 1994 a
eleição na Ucrânia de um presidente abertamente pró-russo reduziu ainda mais a probabilidade da
exacerbação do conflito entre os dois países. Existiram sérias lutas entre muçulmanos e cristãos um
pouco por toda a antiga União Soviética. São grandes as tensões entre Russos e os povos bálticos, e
ocorreram mesmo alguns combates, como os de 1995. Mas não houve praticamente violência entre
Russos e Ucranianos.
Uma segunda possibilidade, talvez um pouco mais provável, era a de que a Ucrânia pudesse
cindir-se, ao longo da sua fronteira civilizacional, em duas entidades separadas, podendo a parte
oriental juntar-se à Rússia. A questão da secessão foi levantada pela primeira vez a propósito da
Crimeia. O seu povo, 70% russo, apoiou consideravelmente a independência da Ucrânia em relação
à União Soviética no referendo de Dezembro de 1991. Em Maio de 1992 o parlamento da Crimeia
também votou uma declaração de independência em relação à Ucrânia que, posteriormente, por
pressão deste país, foi anulada. No entanto, o parlamento russo votou a anulação da cessão da
Crimeia em relação à Ucrânia em 1954. Em Janeiro de 1994 os habitantes da Crimeia elegeram um
presidente que tinha feito campanha eleitoral com base numa plataforma de «unidade com a
Rússia». Tal impeliu alguns a levantarem a questão: «Será a Crimeia o próximo Nagorno-Karabakh
ou Abkhazia?» A resposta foi um claro «não!», enquanto o presidente da Crimeia recuava em
relação ao seu compromisso de organizar um referendo sobre a independência, preferindo negociar
com o governo de Quieve. Em Maio de 1994 a situação aqueceu de novo quando o parlamento da
Crimeia votou a restauração da Constituição de 1992, que a tornava virtualmente independente da
Ucrânia. No entanto, de novo a contenção dos dirigentes políticos russos e ucranianos
195
impediu que esta questão gerasse violência e a eleição do pró-russo Kuchma como presidente
ucraniano, dois meses depois, arrefeceu os ardores secessionistas da Crimeia.
No entanto, aquela eleição levantou a questão de a parte ocidental do país se separar da Ucrânia que
estava cada vez mais perto da Rússia. Alguns russos concordariam. Como disse um general russo,
«em cinco, dez ou quinze anos, a Ucrânia, ou melhor, a Ucrânia Oriental, voltará para nós. A
Ucrânia Ocidental que vá para o inferno!» Contudo, essa Ucrânia, uniata e ocidentalista, só seria
viável com uma forte e eficaz ajuda ocidental. Porém, tal ajuda só será provável se as relações entre
o Ocidente e a Rússia se deteriorarem gravemente para se assemelharem às que existiam no período
da guerra fria.
O terceiro cenário, talvez o mais provável, é o de que a Ucrânia se mantenha unida, um «país
dividido», independente e, de um modo geral, coopere proximamente com a Rússia. Uma vez
resolvidas as questões de transição relacionadas com as matérias nucleares e as forças militares, o
problema mais importante, de longo prazo, é o económico e a sua resolução será facilitada pela
comunidade cultural e pelos laços pessoais que unem os dois povos. Como disse John Morrison, as
relações russo-ucranianas são para a Europa de Leste o que as relações franco-alemãs são para a
Europa ocidental. Tal como estas fornecem o núcleo duro da União Europeia, aquelas constituem o
equivalente para a unidade do mundo ortodoxo.
Historicamente, a China tem-se considerado um conjunto que engloba uma «zona sínica», incluindo
a Coreia, o Vietname, as ilhas Liu Chiu e, em certas épocas, o Japão, uma «zona asiática interior»
de não chineses - Manchus, Mongóis, Uigures, Turcos e Tibetanos -, que tinham de ser controlados
por razões de segurança, e uma «zona exterior» de bárbaros, de quem «se esperava que, apesar de
tudo, pagassem tributo e reconhecessem a superioridade da China». A civilização chinesa
contemporânea tem vindo a estruturar-se de uma forma semelhante: o núcleo central da China dos
Hans; províncias afastadas que são parte da China, mas gozam de uma autonomia considerável;
províncias que fazem legalmente parte da China, mas são principalmente habitadas por povos não
chineses de outras civilizações (Tibete, Xinjiang); sociedades chinesas que serão, ou é provável
que venham a ser, parte da China de Pequim, em condições bem definidas (Hong-Kong, Taiwan [e
Macau]); um Estado, predominantemente
196
chinês, cada vez mais orientado para Pequim (Singapura); populações com enorme influência na
Tailândia, Vietname, Malásia, Indonésia e Filipinas; sociedades não chinesas (Coreias do Norte e
do Sul, Vietname) que, não obstante, partilham muito da cultura confucionista da China.
Durante os anos 50, a China definia-se como aliada da União Soviética. Depois, após a cisão
sino-soviética, considerou-se a chefe de fila do Terceiro Mundo contra as duas superpotências, o
que lhe custou caro e produziu poucos beneficios. Com a mudança da política dos EUA durante a
administração Nixon, a China procurou ser a terceira parte no jogo da balança de poderes entre as
superpotências, alinhando com os EUA durante os anos 70, quando estes pareciam fracos,
passando, depois, para uma posição mais equidistante nos anos 80, quando o poder militar dos
Estados Unidos aumentou e a União Soviética começou o seu declínio económico e se atolou no
Afganistão. No entanto, com o fim da competição entre as superpotências, a «carta chinesa» perdeu
todo o valor e a China viu-se obrigada, uma vez mais, a redefinir o seu papel nas questões mundiais.
Definiu dois objectivos: tornar-se campeã da cultura chinesa, o Estado-núcleo civilizacional, o
magneto em função do qual todas as outras comunidades chinesas deviam orientar-se; reencontrar a
sua posição histórica, perdida no século XIX, de potência hegemónica no Extremo Oriente.
Estes novos papéis da China estão a emergir: primeiro, no modo como a China define a sua posição
nas questões mundiais; segundo, na forma como as comunidades ultramarinas chinesas estão a
envolver-se na economia do país; terceiro, nas crescentes ligações económicas, políticas e
diplomáticas entre a China e as outras três principais entidades chinesas (Hong-Kong, Taiwan e
Singapura), assim como uma mais marcada orientação em relação à China por parte dos países do
Sueste asiático onde os Chineses têm uma significativa influência política.
O governo considera a China continental o país-núcleo de uma civilização chinesa em relação ao
qual todas as outras comunidades chinesas devem orientar-se. Tendo há muito abandonado os
esforços de promover os seus interesses no estrangeiro através dos partidos comunistas locais, o
governo procurou «posicionar-se como o representante dos Sínicos em todo o mundo». Para o
governo chinês, os descendentes de chineses, ainda que cidadãos de qualquer outro país, são
membros da comunidade chinesa e, assim, em certa medida, sujeitos à autoridade do governo
chinês. A identidade chinesa acaba por ser definida em termos raciais. Chineses são os que têm a
mesma «raça, sangue e cultura», como afirmou um académico da República Popular da China. Em
meados dos anos 90
197
este tema foi retomado por fontes chinesas governamentais e privadas. Para os Chineses e para os
descendentes de chineses que vivem em sociedades de outras culturas, o «teste do espelho»
torna-se, assim, o teste de identidade: «Olhem-se ao espelho», advertem os chineses pró-Pequim os
que tentam ser assimilados por sociedades estrangeiras. Os chineses da diáspora, isto é, os huaren,
ou de origem chinesa, distintos dos zhongguoren, ou povos da China, têm desenvolvido cada vez
mais o conceito de «China cultural» como uma manifestação do seu gonshi, ou consciência comum.
A identidade chinesa, sujeita a tantos ataques do Ocidente no século XX, está agora a ser redefinida
a partir de elementos perenes da cultura chinesa.
Historicamente, esta identidade tem sido compatível com as várias relações com as autoridades
centrais do Estado chinês. Este sentido de identidade cultural facilita e é reforçado pelo
desenvolvimento das relações económicas entre as diferentes Chinas, que, por sua vez, tem sido um
elemento fundamental na promoção do rápido crescimento económico na China continental (e não
só), que, finalmente, fornece o ímpeto material e psicológico para estimular a identidade cultural
chinesa.
Assim, a «Grande China» não é apenas um conceito abstracto. É uma realidade cultural e
económica em rápida expansão e está a começar a tornar-se uma realidade política. Os Chineses são
responsáveis pelo espectacular desenvolvimento económico nos anos 80 e 90 no continente, nos
tigres (asiáticos) (dos quais três em quatro são chineses) e no Sueste asiático. A economia do
Extremo Oriente está cada vez mais centrada na China e por ela dominada. Os chineses de
Hong-Kong, de Taiwan e de Singapura forneceram a maior parte do capital responsável pelo
crescimento do continente nos anos 90. Os chineses ultramarinos, em qualquer parte do Sueste
asiático, dominam as economias dos países onde residem. Em princípios dos anos 90 constituíam
1% da população das Filipinas, mas eram responsáveis por 35% das vendas das empresas locais. Na
Indonésia, em meados dos anos 80, eram 2% a 3% da população, mas possuíam, aproximadamente,
70% do capital privado local. 17 das 25 maiores empresas eram controladas por chineses e um
grupo económico chinês controla 5% do PNB da Indonésia. Em princípios dos anos 90 constituíam
10% da população da Tailândia, mas eram proprietários de nove dos dez maiores grupos
económicos do país, responsáveis por 50% do PNB. Eram cerca de um terço da população da
Malásia, mas dominavam, quase totalmente, a economia. Excluindo o Japão e a Coreia, a economia
do Extremo Oriente é, basicamente, uma economia chinesa.
A emergência de uma esfera de co-prosperidade da Grande China foi enormemente facilitada pela
«rede de bambu» das relações familiares e
198
pessoais e por uma cultura comum. Os chineses ultramarinos são muito mais capazes de negociar na
China do que qualquer ocidental ou japonês. Na China a confiança e o empenhamento dependem de
contactos pessoais, e não de leis e de documentos legais. Os empresários ocidentais acham mais
fácil fazer negócios na índia do que na China, onde o carácter sagrado de um acordo se baseia nas
relações pessoais entre as partes. A China, observava com inveja um importante dirigente japonês
em 1993, beneficiou «de uma rede sem fronteiras de negociantes chineses em Hong-Kong, em
Taiwan e no Sueste asiático». Os chineses ultramarinos, concorda um negociante americano, «têm a
perícia empresarial e a língua e, além disso, utilizam a “rede de bambu” das relações familiares para
fazerem contactos. É uma vantagem enorme sobre quem tem de reportar-se a um conselho de
administração em Akron ou em Filadélfia.» As vantagens dos chineses do exterior para fazerem
negócios com os do continente foram também salientadas por Lee Kuan Yew: «Somos de etnia
chinesa. Partilhamos determinadas características em virtude da nossa cultura e dos nossos
antepassados comuns [ ... ] As pessoas sentem uma natural empatia em relação aos que têm
atributos fisicos comuns. Este sentimento de proximidade é reforçado quando têm uma mesma base
cultural e linguística. Tudo isto promove o relacionamento e a confiança, que são o fundamento de
todas as relações de negócios.» Em finais dos anos 80 e nos anos 90 os chineses ultramarinos foram
capazes «de demonstrar a um mundo céptico que as ligações quanxi, baseadas na mesma língua e
cultura, podem compensar a falta do primado da lei e da transparência nas regras e nos
regulamentos». O facto de o desenvolvimento económico ter raízes numa cultura comum foi
salientado na II Conferência Mundial de Empresários Chineses, realizada em Novembro de 1993,
em Hong-Kong, e descrita como «a celebração do triunfalismo chinês devido à participação de
empresários chineses de todo o mundo». No mundo sínico, como em qualquer outro, a comunidade
cultural promove o empenhamento económico.
A redução do investimento económico ocidental na China a seguir aos acontecimentos da Praça de
Tianamnen, após uma década de rápido crescimento económico chinês, criou a oportunidade e o
incentivo para os chineses ultramarinos tirarem partido da sua cultura comum e dos contactos
pessoais para investirem em força na China. O resultado foi uma expansão enorme de todos os laços
económicos entre as comunidades chinesas. Em 1992, 80% do investimento directo estrangeiro na
China (11,3 mil milhões de dólares americanos) provieram dos chineses ultramarinos,
principalmente de Hong-Kong (68,3 %), mas também de Taiwan (9,3%), de Singapura, Macau e
outros lugares. Em contrapartida, o Japão
199
era responsável por 6,6% e os Estados Unidos por 4,6% do total. Num total acumulado de 50 mil
milhões de dólares de investimento estrangeiro na RPC, poder-se-á dizer que 67% pertencem a
chineses ultramarinos.
O crescimento do comércio foi igualmente impressionante. As exportações de Taiwan para a China
cresceram de quase nada em 1986 para 8% das exportações em 1992, o que representou, nesse ano,
um aumento de 35%. As exportações de Singapura para a China aumentaram 22% em 1992, quando
o crescimento global das suas exportações foi inferior a 2%. Como Murray Weidenbaum observou
em 1993, «apesar do actual domínio japonês na região, a economia efectuada por chineses na Ásia
está a surgir como um novo epicentro para a indústria, comércio e finança. Esta área estratégica
contém recursos tecnológicos e de capacidade de fabrico (Taiwan), espírito empresarial, marketing
e serviços excelentes (Hong-Kong), uma sofisticada rede de comunicações (Singapura), um
extraordinário polo financeiro (os três) e uma vasta oferta de terra, recursos e trabalho
(principalmente a RPC)» Além disso, o mercado continental chinês era, claro está, o maior de todos
os mercados em expansão e em meados dos anos 90 os investimentos na China estavam mais
orientados para a venda no mercado interno do que para a exportação.
Os chineses espalhados pelos países do Sueste asiático misturam-se, em graus diversos, com as
populações locais, dando guarida, frequentemente, a sentimentos antichineses, que, por vezes,
irrompem em violência, como foi o caso dos tumultos em Medan, na Indonésia, em Abril de 1994.
Alguns malaios e indonésios apelidam de «fuga de capitais» o fluxo de investimento chinês no
continente, mas os dirigentes políticos, liderados pelo presidente Suharto, têm garantido às
populações que estes movimentos não prejudicam a sua economia. Os chineses do Sueste asiático,
por seu lado, reafirmam que as suas lealdades vão fielmente para os países onde nasceram e não
para o país dos seus antepassados. Em princípios dos anos 90 o fluxo de capitais chineses do Sueste
asiático para a China era compensado pelo importante fluxo de capitais de Taiwan para as Filipinas,
Malásia e Vietname.
O desenvolvimento económico combinado com uma cultura chinesa comum levou Hong-Kong,
Taiwan e Singapura a envolverem-se crescentemente no continente chinês. Uma vez acomodados à
perspectiva da transferência de poderes, os chineses de Hong-Kong começaram a adaptar-se mais à
tutela de Pequim do que à de Londres. Os empresários e outros dirigentes começaram a mostrar
alguma relutância em criticarem a China ou em tomarem quaisquer atitudes que pudessem
ofendê-la. Quando tal acontece, o governo chinês não hesita em retaliar prontamente. Em 1994
centenas de homens de negócios cooperavam com Pequim, servindo como
200
«conselheiros de Hong-Kong», no que foi considerado, com efeito, um governo-sombra. Em
princípios dos anos 90 a influência económica chinesa em Hong-Kong também aumentou
espectacularmente com o investimento oriundo da RPC, que, em 1993, era superior ao do Japão e
dos Estados Unidos juntos. Em meados dos anos 90 a integração económica de Hong-Kong na
China continental estava praticamente terminada, consumando-se a integração política em 1997.
O desenvolvimento dos laços económicos de Taiwan com o continente ficou atrás do de
Hong-Kong. Todavia, começaram a verificar-se mudanças importantes a partir dos anos 80. A partir
de 1949, e durante três décadas, as duas repúblicas chinesas recusaram-se a reconhecer a existência
ou a legitimidade recíprocas, não tinham qualquer tipo de comunicação e estavam em estado virtual
de guerra, manifestado, periodicamente, pelo bombardeamento das ilhas costeiras e subsequente
resposta. Contudo, depois de Deng Xiaoping ter consolidado o seu poder e começado o processo de
reformas económicas, o governo continental tomou a iniciativa de alguns passos conciliatórios. Em
1981 o governo de Taiwan respondeu e começou a abandonar a sua anterior política dos «três nãos»
- do não aos contactos, às negociações e ao compromisso com o continente. Em Maio de 1986
verificaram-se as primeiras negociações entre representantes das duas partes sobre a devolução de
um avião da República da China que tinha sido desviado para o continente. No ano seguinte o
governo de Taiwan anulou a proibição de viagens à RPC.
O rápido crescimento das relações económicas entre Taiwan e o continente deveu-se, em grande
parte, a um «substrato sínico» comum e à confiança mútua que dele resultava. Os habitantes de
Taiwan e do continente, como observou um dos principais negociadores de Taiwan, «têm um tipo
de sentimento de que o sangue é mais espesso do que a água» e sentem orgulho nas realizações
recíprocas. Em finais de 1993 já se haviam deslocado ao continente 4,2 milhões de visitantes de
Taiwan e 40 000 chineses continentais visitaram Taiwan; eram trocadas diariamente 40 000 cartas e
13 000 chamadas telefónicas. O comércio entre as duas Chinas atingiu o total de 14,4 mil milhões
de dólares americanos em 1993 e
20 000 empresários de Taiwan investiram entre 15 e 30 mil milhões de dólares no continente. A
atenção de Taiwan foi-se focando cada vez mais no continente e o seu sucesso dependente dele.
«Antes de 1980, o mercado mais importante para Taiwan era a América», observou um alto
funcionário de Taiwan em 1993, «mas nos anos 90 aprendemos que o factor crítico do sucesso da
economia de Taiwan era o continente.» A mão-de-obra barata era a principal atracção para os
investidores de Taiwan, confrontados
201
com a sua falta no país. Em 1994 o equilíbrio capital-trabalho entre as duas Chinas começou a ser
rectificado quando as companhias de pesca de Taiwan contrataram 10 000 continentais para
tripulantes dos seus navios.
O desenvolvimento destes laços económicos levou a negociações entre os dois governos. Em 1991
Taiwan criou a Straits Exchange Foundation e a RPC a Association for Relations across the Taiwan
Strait para permitir a comunicação entre ambas. A primeira reunião foi realizada em Singapura em
Abril de 1993, com reuniões subsequentes a ocorrerem no continente e em Taiwan. Em Agosto de
1994 foi alcançado um acordo decisivo, abrangendo uma vasta gama de questões importantes, e
começou a especular-se sobre uma possível cimeira entre os líderes máximos dos dois governos.
Em meados dos anos 90 mantêm-se as principais questões entre Taipé’ e Pequim, incluindo a
questão da soberania, a participação de Taiwan nas organizações internacionais e a possibilidade de
Taiwan poder redefinir-se como Estado independente. No entanto, a possibilidade de esta última
questão se concretizar tornou-se mais remota quando o principal defensor da independência, o
Partido Progressista Democrático (PPD), concluiu que os seus votantes não queriam prejudicar o
relacionamento existente com o continente e que as suas perspectivas eleitorais seriam prejudicadas
se insistisse nesta questão. Os dirigentes do PPD concluíram que a independência não deveria
constituir um ponto imediato da sua agenda política’ se quisessem alcançar o poder. Os dois
governos também tinham um interesse comum em reivindicarem a soberania sobre as Spratleys e
outras ilhas no mar do Sul da China e em conseguirem dos Americanos o estatuto de nação mais
favorecida para o comércio com a China continental. Em princípios dos anos 90, lentamente, mas
de um modo perceptível e inelutável, as duas Chinas começavam a aproximar-se uma da outra e a
desenvolver interesses comuns a partir das crescentes relações económicas e da identidade cultural
comum.Esta evolução em direcção à acomodação foi, subitamente, interrompida em 1995, quando o
governo de Taiwan fez agressivamente pressão para o seu reconhecimento diplomático e para a sua
admissão em organizações internacionais. O presidente Lee Teng-hui fez uma visita «privada» aos
Estados Unidos e em Taiwan tiveram lugar eleições legislativas em Dezembro de 1995 e eleições
presidenciais em Março de 1996. Em resposta, o governo chinês testou mísseis em águas vizinhas
dos principais portos de Taiwan e realizou exercícios militares perto das ilhas costeiras controladas
por Taiwan. Estes acontecimentos levantaram duas questões-chave: pode, actualmente, Taiwan
permanecer democrática sem se tornar
202
formalmente independente; futuramente, poderá ser democrática sem ser realmente independente?
Com efeito, as relações entre Taiwan e o continente chinês passaram por duas fases e podem entrar
numa terceira. Durante várias décadas o governo nacionalista reclamou ser o governo de toda a
China; obviamente, esta reivindicação significava que se encontrava em conflito com o governo de
facto de toda a China, com excepção de Taiwan. Nos anos 80 o governo de Taiwan deixou cair esta
pretensão e definiu-se como governo da ilha, o que forneceu a base para a acomodação ao conceito
continental de «um país, dois sistemas». Todavia, vários indivíduos e grupos procuraram salientar a
sua identidade cultural separada, o relativo breve período que tiveram sob o domínio chinês e a sua
língua incompreensível para os falantes de mandarim. Com efeito, estavam a tentar definir a
sociedade de Taiwan como não chinesa e, consequentemente, legitimamente independente da
China. Além disso, enquanto o governo de Taiwan se tornava internacionalmente mais activo,
também parecia sugerir que era um país separado, que não fazia parte da China. Em resumo, a
autodefinição do governo de Taiwan parecia evoluir de um governo de toda a China para um
governo de uma parte da China, para um governo não chinês. Esta última posição formalizaria a sua
independência de facto, o que seria completamente inaceitável para o governo de Pequim, que já
teria, repetidamente, afirmado a sua vontade de usar a força para impedir a sua concretização. Os
dirigentes políticos chineses já tinham também declarado que a seguir à integração na RPC de
Hong-Kong, em 1997, e de Macau, em 1999, procurariam reassociar Taiwan com o continente. A
forma de tal se concretizar dependeria, presumivelmente, do grau de apoio que existisse em relação
à causa da independência formal de Taiwan, da solução da luta pela sucessão do poder em Pequim
que encorajasse o espírito nacionalista nos dirigentes políticos e militares e, finalmente, do
desenvolvimento das capacidades militares chinesas que tornassem possível um bloqueio ou uma
invasão de Taiwan. Em princípios do século XXI parece provável que, por coerção, acomodação ou
um misto de ambas, Taiwan se integre mais intimamente na China continental.
Até aos anos 70 as relações entre a firme anticomunista Singapura e a República Popular eram
geladas. Lee Kuan Yew e os outros dirigentes singapurianos menosprezavam o carácter retrógrado
chinês. Contudo, com a descolagem económica chinesa nos anos 80, Singapura começou a voltar-se
para o continente numa atitude clássica de se juntar aos vitoriosos. Em
1992 Singapura investiu 1,9 mil milhões de dólares americanos na China e nos planos dos anos
seguintes foi anunciada a construção de uma cidade industrial, «Singapura II», nos arredores de
Xangai, que envolveria investimentos
203
da ordem de vários milhares de milhões de dólares. Lee tornou-se um entusiasta fervoroso do
espectacular desenvolvimento futuro da China e um admirador do seu poder. «É na China», dizia
ele em 1993, «que as coisas se passam.» O investimento estrangeiro de Singapura, que estava
fortemente centrado na Malásia e na Indonésia, orientou-se para a China. Metade dos projectos
ultramarinos ajudados pelo governo de Singapura em 1993 foram realizados na China. Diz-se que
na sua primeira visita a Pequim, nos anos 70, Lee Kuan Yew insistira em dirigir-se aos dirigentes
chineses em inglês, e não em mandarim. É altamente improvável que fizesse o mesmo duas décadas
mais tarde.
problemas intercivilizacionais
O universalismo ocidental
Proliferação de armamentos
A difusão dos meios militares é a consequência do desenvolvimento económico e social global. À
medida que o Japão, a China e outros países
216
asiáticos se vão tornando economicamente mais ricos, tornar-se-ão militarmente mais poderosos, tal
como, mais cedo ou mais tarde, o farão as sociedades islâmicas. E também a Rússia, se tiver êxito
na reforma da sua economia. Nas últimas décadas do século XX tem-se assistido à aquisição por
muitos países não ocidentais de armamento sofisticado às sociedades ocidentais, à Rússia, a Israel e
à China, assim como à criação de indústrias locais destinadas ao fabrico autónomo desse tipo de
material. Estes processos continuarão e, provavelmente, conhecerão uma aceleração durante os
primeiros anos do século XXI. No entanto, o Ocidente, isto é, os Estados Unidos complementados
pela Grã-Bretanha e pela França, continuará a ser, durante muito tempo e na prática, o único capaz
de intervir militarmente em qualquer parte do mundo. Estes são os elementos centrais da posição
militar dos Estados Unidos, enquanto potência global, e do Ocidente, enquanto civilização
dominante no mundo. No futuro imediato a balança do poder militar convencional entre o Ocidente
e o resto do mundo penderá, com grande vantagem, para o lado ocidental.
O tempo, o esforço e o dinheiro necessários para desenvolver uma capacidade militar convencional
de alto nível fornecem enormes incentivos para que os Estados não ocidentais prossigam outros
modos de contrabalançarem o poder militar convencional do Ocidente. Um bom expediente é a
aquisição de armas de destruição maciça e de vectores para as lançar. Os Estados-núcleos das
civilizações e os países que aspiram a ser potências regionalmente dominantes têm incentivos
especiais para estas aquisições. Em primeiro lugar, permitem-lhes estabelecer um domínio sobre os
outros Estados na sua civilização ou região; em segundo, fornecem-lhes os meios para dissuadirem
a intervenção dos Estados Unidos ou de outras potências na sua civilização ou região. Se Saddam
Hussein tivesse atrasado dois ou três anos a invasão até o Iraque possuir armas nucleares, talvez
mantivesse a posse do Koweit e, muito possivelmente, também dos campos petrolíferos sauditas. Os
Estados não ocidentais retiraram as lições óbvias da guerra do Golfo. Para os militares
norte-coreanos foram as seguintes: «Não permitir que eles [os norte-americanos] concentrem as
suas forças; não permitir a utilização do poder aéreo; não deixar que tomem a iniciativa; não
permitir que travem uma guerra com poucas baixas.» Para um oficial superior indiano a lição era
ainda mais explícita: «Não lutarmos contra os Estados Unidos enquanto não possuirmos armas
nucleares.» Esta lição foi aprendida de cor pelos dirigentes políticos e pelos chefes militares de todo
o mundo não ocidental, com o respectivo corolário: «Se possuirmos armas nucleares, os Estados
Unidos não entrarão em guerra connosco.»
«Em vez de reforçarem, como é habitual, a política do poder», observou Lawrence Friedman, «as
armas nucleares confirmam, de facto, a
217
tendência de fragmentação do sistema internacional, em que as grandes potências de outrora
desempenham um papel limitado.» As armas nucleares têm para o Ocidente, no mundo pós-guerra
fria, uma função oposta à que exerciam durante essa guerra. Como referia o secretário de Estado da
Defesa norte-americano Les Aspin, as armas nucleares compensavam a inferioridade convencional
do Ocidente face à União Soviética. Eram o chamado «igualizador». Entretanto, no mundo
pós-guerra fria os Estados Unidos «têm um poder militar convencional sem rival e são os seus
potenciais adversários que poderão obter armas nucleares. Agora somos nós que temos de travar
este processo de estarmos a ser «igualizados»’.
Não surpreende, pois, que a Rússia tenha salientado a função das armas nucleares no seu
planeamento de defesa e, em 1995, tenha diligenciado comprar mísseis e bombardeiros
intercontinentais à Ucrânia. «Estamos agora a ouvir o que dantes dizíamos dos Russos nos anos
50», comentou um especialista em armamento dos EUA. «Os Russos dizem agora: “Precisamos de
armas nucleares para compensarmos a vossa superioridade convencional”.» Durante a guerra fria,
os Estados Unidos, para obterem o efeito de dissuasão, recusavam-se a renunciar à primeira
utilização de armas nucleares. De acordo com a nova função dissuasora das armas nucleares no
mundo pós-guerra fria, a Rússia, em 1993, renunciou, com efeito, ao anterior compromisso
soviético de «não primeira utilização». A China, simultaneamente, ao desenvolver a sua estratégia
nuclear de dissuasão limitada no mundo pós-guerra fria, começou também a questionar e a
enfraquecer o seu compromisso de 1964 de não primeira utilização. Quando alguns Estados
nucleares ou potências regionais adquirem armas nucleares ou outras de destruição maciça, é
provável que sigam estes exemplos, de modo a maximizarem o efeito dissuasor das suas armas
sobre qualquer eventual acção militar convencional contra eles.
As armas nucleares podem também constituir uma ameaça mais directa ao Ocidente. A China e a
Rússia possuem mísseis balísticos que podem alcançar a Europa e a América do Norte com armas
nucleares. A Coreia do Norte, o Paquistão e a índia estão a aumentar o alcance dos seus mísseis e é
provável que venham a ter a capacidade de atingir o Ocidente. Além disso, as armas nucleares
podem ser lançadas de outras formas. Os analistas militares estabeleceram um espectro da
violência, que vai desde a guerra de muito baixa intensidade, tal como o terrorismo e a guerrilha
esporádica, passando por guerras limitadas de grande escala, envolvendo maciçamente forças
convencionais, até chegar à guerra nuclear. O terrorismo é, historicamente, a arma do fraco, isto é, a
do que não possui poder militar convencional. Desde a Segunda Guerra Mundial que as armas
nucleares têm sido as armas com que os fracos compensam a sua 218
inferioridade convencional. No passado, os terroristas podiam apenas utilizar uma violência
limitada, matando algumas pessoas num sítio ou destruindo uma instalação noutro. A violência
maciça exigia forças militares maciças. No entanto, num dado momento, alguns terroristas serão
capazes de produzir violência e destruição maciças. Isoladamente, o terrorismo e o armamento
nuclear são as armas dos fracos contra o Ocidente. Se e quando se combinarem, os fracos não
ocidentais tornar-se-ão fortes.
No mundo pós-guerra fria os esforços para desenvolver armas de destruição maciça e vectores para
as lançar estão concentrados nos Estados islâmicos e confucionistas. O Paquistão e, provavelmente,
a Coreia do Norte têm um reduzido número de armas nucleares ou, pelo menos, capacidade para
rapidamente as montarem. Estão também a desenvolver ou a procurar adquirir os vectores para o
respectivo lançamento. O Iraque tinha uma capacidade significativa para fazer uma guerra química
e estava a desenvolver grandes esforços para adquirir armas biológicas e nucleares.
O Irão tem um vasto programa para desenvolver armas nucleares e tem aumentado a sua capacidade
para as lançar. Em 1988 o presidente Rafsanjani declarou que os Iranianos «deviam estar
completamente equipados com armas químicas, bacteriológicas e radiológicas, ofensivas e
defensivas» e, três anos mais tarde, o seu vice-presidente declarou numa conferencia islâmica:
«Dado que Israel continua a possuir armas nucleares, nós, muçulmanos, devemos cooperar para
produzirmos uma bomba atómica, apesar das tentativas da ONU para impedir a sua proliferação.»
Em 1992 e 1993 altos responsáveis dos serviços de informações dos Estados Unidos disseram que o
Irão prosseguia com o processo de aquisição de armas nucleares e em 1995 o secretário de Estado
Warren Christopher declarou abertamente: «O Irão está a fazer um enorme esforço para conseguir
armas nucleares.» Os outros Estados muçulmanos que estão claramente interessados nesse tipo de
armas são a Líbia, a Argélia e a Arábia Saudita. «O crescente», na colorida frase de Ali Mazrui,
«está sobre o cogumelo nuclear» e pode ameaçar outros países, para além do Ocidente. O islão
poderá vir a «jogar a roleta-russa nuclear com duas outras civilizações: o hinduísmo, na Ásia
meridional, e o sionismo e o Estado judaico, no Médio Oriente».
A proliferação do armamento é o domínio onde a ligação islâmico-confucionista tem sido mais
ampla e mais concreta, desempenhando a China o papel principal no fornecimento de armamento
convencional e não convencional a muitos Estados muçulmanos. Tais fornecimentos incluem: a
construção de um reactor nuclear, projecto secreto e vigorosamente defendido, aparentemente para
investigação, mas que os peritos ocidentais julgam ser capaz de produzir plutónio; armas químicas à
Líbia;
219
mísseis de médio alcance CSS-2 à Arábia Saudita; tecnologia e materiais nucleares ao Iraque, Líbia,
Síria e Coreia do Norte; grande quantidade de armamento convencional ao Iraque. Suplementando
estes fornecimentos chineses, em princípios dos anos 90 a Coreia do Norte, via Irão, forneceu à
Síria mísseis Scud-C, assim como as plataformas móveis para os lançar.
O eixo central desta ligação logística islâmico-confucionista tem sido o relacionamento, por um
lado, entre a China e, em menor escala, a Coreia do Norte e, por outro, entre o Paquistão e o Irão.
Entre 1980 e 1981 os dois principais beneficiários do armamento chinês foram o Irão e o Paquistão,
vindo o Iraque logo a seguir.
A China e o Paquistão começaram a desenvolver, nos anos 70, um íntimo relacionamento militar.
Em 1989 os dois países assinaram um memorando de entendimento para «a cooperação militar nos
campos da aquisição, investigação e desenvolvimento conjuntos, produção conjunta, transferência
de tecnologia, assim como a exportação para terceiros países por acordo mútuo». Em 1993 foi
assinado um acordo suplementar que regulou a questão de créditos chineses ao Paquistão para a
compra de armamento. Em resultado de tudo isto, a China tornou-se «o fornecedor mais importante
e de maior confiança de equipamento militar, exportando quase tudo para qualquer dos ramos das
forças armadas paquistanesas». A China também ajudou o Paquistão a criar instalações para a
produção de aviões a jacto, carros blindados, artilharia e mísseis. Destaca-se, pela sua importância,
a ajuda dada ao Paquistão para desenvolver a sua capacidade nuclear: alegado fornecimento de
urânio enriquecido, assessoria no projecto de construção de bombas e, possivelmente, autorização
dada ao Paquistão para uma explosão nuclear no polígono chinês de testes. A China também
forneceu ao Paquistão mísseis balísticos M-11, com um alcance de 300 quilómetros e com
capacidade para transportarem armas nucleares, o que violaria um compromisso assumido com os
Estados Unidos. Em contrapartida, a China conseguiu obter do Paquistão a tecnologia para o
reabastecimento dos aviões em voo e dos mísseis Stingel.
Nos anos 90 as ligações entre a China e o Irão intensificaram-se. Durante a guerra Irão-Iraque, nos
anos 80, a China forneceu ao Irão 22% do seu armamento e em 1989 tornou-se o seu único
fornecedor de armamento. A China também colaborou activamente com os esforços explícitos do
Irão para conseguir armas nucleares. Depois de assinarem «um acordo de cooperação inicial
sino-iraniano», os dois países concordaram, em 1990, num plano decenal de cooperação científica e
de transferência de tecnologia militar. Em Setembro de 1992 o presidente Rafsanjani, acompanhado
por peritos nucleares, visitou primeiro o Paquistão e foi depois à China, onde assinou outro acordo
para a cooperação nuclear. Em Fevereiro de
220
1993 a China concordou em construir dois reactores nucleares de 300 megawatts no Irão. No
quadro destes acordos, a China transferiu tecnologia nuclear, formou cientistas e engenheiros
iranianos e forneceu ao Irão um sistema de enriquecimento. Em 1995, sob pressão dos Estados
Unidos, a China concordou em «cancelar», de acordo com os Estados Unidos, ou em «suspender»,
segundo a China, a venda dos dois reactores nucleares referidos anteriormente. A China foi também
o maior fornecedor de mísseis e respectiva tecnologia ao Irão, como, por exemplo, o fornecimento
dos mísseis Silk-worm, em 1994-1995, operação efectuada por intermédio da Coreia do Norte, e de
dúzias, talvez mesmo centenas, de sistemas de guiamento e de computação. A China também
licenciou a produção no Irão de mísseis superficie-superficie. A Coreia do Norte complementou
esta assistência, exportando os Scud para o Irão, ajudando este país a desenvolver as suas próprias
instalações de produção e, posteriormente, em 1993, concordando em fornecer ao Irão mísseis
Nodong I, mísseis com um alcance de 950 quilómetros. O Irão e o Paquistão, o terceiro lado deste
triângulo, também desenvolveram uma extensa cooperação na área nuclear, com o Paquistão a
formar cientistas iranianos e o Paquistão, o Irão e a China, em Novembro de 1992, a concordarem
em trabalhar conjuntamente em projectos nucleares. A importante ajuda chinesa ao Paquistão e ao
Irão para desenvolverem armas de destruição maciça evidencia o alto nível de empenhamento e de
cooperação existente entre estes países.
Em resultado destes desenvolvimentos e das ameaças potenciais que se colocam aos interesses
ocidentais, a proliferação de armas de destruição maciça passou para o topo da agenda das questões
de segurança do Ocidente. 221
Em 1990, por exemplo, 59% da opinião pública norte-americana pensava que impedir a difusão de
armas nucleares era um objectivo importante da política externa. Em 1994, 82% da opinião pública
e 90% dos dirigentes de política externa consideram-na como tal. Em Setembro de 1993 o
presidente Clinton salientou a prioridade dada à proliferação e no Outono de 1994 declarou «uma
emergência nacional» para tratar da «invulgar e extraordinária ameaça à segurança nacional, à
política externa e à economia dos Estados Unidos» derivada da «proliferação de armas nucleares,
biológicas e químicas e dos vectores para o seu lançamento». Em 1991 a CIA criou um centro de
não proliferação, com um quadro de
100 funcionários, e em Dezembro de 1993 o secretário da Defesa Aspin anunciou uma nova
iniciativa de defesa contra a proliferação e a criação de um novo cargo de subsecretário para a
segurança nuclear e a contraproliferação’.
Durante a guerra fria, os Estados Unidos e a União Soviética empenharam-se numa corrida aos
armamentos clássicos e no desenvolvimento de armas nucleares e vectores para o seu lançamento
cada vez mais sofisticados tecnologicamente. Era a acumulação contra a acumulação. No mundo
pós-guerra fria a competição em questões de armamento é de tipo diferente. Os adversários do
Ocidente estão a tentar adquirir armas de destruição maciça e o Ocidente está a tentar impedir que o
consigam. Não é um caso de acumulação contra acumulação, mas antes de acumulação contra
contenção. A dimensão e as capacidades do arsenal nuclear do Ocidente, para além da retórica, não
fazem parte da competição. O resultado de uma corrida aos armamentos do tipo de acumulação
contra acumulação depende dos recursos, do empenhamento e da competência tecnológica das duas
partes. Mas não é um resultado predeterminado.
O resultado de uma corrida aos armamentos entre a acumulação e a contenção é mais previsível. Os
esforços do Ocidente para forçar a contenção podem diminuir a acumulação de armas por outras
sociedades, mas não as fará parar. O desenvolvimento económico e social das sociedades não
ocidentais, os incentivos comerciais que todas as sociedades - ocidentais e não ocidentais - têm para
fazer dinheiro com a venda de armas, de tecnologia e de conhecimento especializado e, finalmente,
os motivos políticos dos Estados-núcleos e das potências regionais para protegerem a sua
hegemonia local, tudo se conjuga para subverter os esforços de imposição da contenção
desenvolvidos pelo Ocidente.
O Ocidente defende a não proliferação em nome dos interesses de todas as nações para se obter
ordem e estabilidade internacionais. No entanto, outros países vêem a não proliferação como uma
forma de servir os interesses hegemónicos do Ocidente. Tal vê-se bem quando se observam as
222
diferenças entre, por um lado, o Ocidente, mais particularmente os Estados Unidos, e, por outro, as
potências regionais cuja segurança seria afectada pela proliferação. Esta questão foi notória
relativamente à Coreia. Em 1993 e 1994 os Estados Unidos entraram num estado de espírito de
crise com a perspectiva da existência de armamento nuclear na Coreia do Norte. Em Novembro de
1993 o presidente Clinton declarou terminantemente: «A Coreia do Norte tem de ser impedida de
desenvolver uma arma nuclear. Temos de ser muito firmes nesta questão.» Senadores,
representantes e altos funcionários da administração Bush discutiram a possível necessidade de um
ataque por antecipação às bases nucleares norte-coreanas. A preocupação dos EUA em relação ao
programa norte-coreano tinha origem, em larga medida, na sua preocupação mais ampla com a
proliferação global. Não só a capacidade resultante constrangeria e dificultaria possíveis acções
norte-americanas no Extremo Oriente, como, se a Coreia do Norte vendesse tecnologia e/ou armas,
tal teria um efeito extensivo ao Sueste asiático e ao Médio Oriente.
A Coreia do Sul, por seu lado, analisava a existência da bomba em relação aos seus interesses
regionais. Muitos sul-coreanos viam uma bomba norte-coreana como uma bomba coreana, uma
bomba que nunca seria usada contra coreanos, mas antes para defender a independência e os
interesses coreanos contra o Japão ou quaisquer outras potências. Os funcionários públicos e os
militares sul-coreanos sonhavam com uma Coreia unida que possuísse tal capacidade. Os interesses
sul-coreanos seriam bem servidos: a Coreia do Norte arcaria com as despesas e sofreria o desgaste
internacional resultante do desenvolvimento da bomba; a Coreia do Sul, mais cedo ou mais tarde,
herdá-la-ia; a combinação das armas nucleares do Norte com a afirmação industrial do Sul
permitiria que uma Coreia reunificada assumisse o seu adequado papel de actor principal na cena do
Extremo Oriente. Consequentemente, existem diferenças nítidas no grau em que Washington vê, em
1994, uma crise na península da Coreia e a ausência de qualquer sentimento de crise em Seul,
criando um «fosso de pânico» entre as duas capitais. Uma das «singularidades da situação nuclear
norte-coreana, desde o princípio, há já vários anos», observou um jornalista no pico da «crise», em
Junho de 1994, «consiste em que a noção de crise aumenta à medida que nos afastamos da Coreia».
Um fosso semelhante entre os interesses de segurança americanos e os das potências regionais
ocorreu na Ásia meridional, com os Estados Unidos a mostrarem-se mais preocupados com a
proliferação nuclear do que os habitantes da região. A índia e o Paquistão têm achado a ameaça
nuclear vizinha mais fácil de aceitar do que as propostas americanas de cobrir, reduzir ou eliminar
ambas as ameaças.
223
Os esforços dos Estados Unidos e de outros países ocidentais para impedirem a proliferação das
armas «igualizadoras» de destruição maciça obtiveram e correm o risco de virem a obter pouco
sucesso. Um mês depois de o presidente Clinton ter declarado que não podia ser permitido que a
Coreia do Norte viesse a obter uma arma nuclear os serviços de informações dos EUA
informaram-no de que aquele país, provavelmente, já teria uma ou duas. A política norte-americana,
consequentemente, foi alterada para «oferecer cenouras» aos Norte-Coreanos para os convencer a
não aumentarem o seu arsenal nuclear. Os Estados Unidos foram também incapazes de inverter ou
de retardar o desenvolvimento de armas nucleares pela índia e pelo Paquistão e têm sido incapazes
de travar o progresso nuclear do Irão.
Aquando da conferência sobre o Tratado de não Proliferação Nuclear, em Abril de 1995, a questão
central consistia em saber se este deveria ser renovado por um período indefinido ou por vinte e
cinco anos. Os Estados Unidos fizeram esforços para que se tornasse permanente. Entretanto,
muitos países não se declararam favoráveis a esta renovação, salvo se fosse acompanhada por uma
redução mais drástica das armas possuídas pelas cinco potências nucleares reconhecidas. Além
disso, o Egipto recusou-se a aceitar o prolongamento, a menos que Israel assinasse o tratado e
aceitasse inspecções de verificação. No final, os Estados Unidos obtiveram um consenso sobre a
opção da renovação permanente com uma estratégia em que utilizaram o braço-de-ferro, o suborno
e as ameaças. Por exemplo, nem o Egipto nem o México, que eram contra a opção vencedora,
puderam manter essa posição, dada a dependência económica que têm em relação aos Estados
Unidos. Embora o tratado tenha sido renovado por consenso, os representantes de sete países
muçulmanos (Síria, Jordânia, Irão, Iraque, Líbia, Egipto e Malásia) e um africano (Nigéria)
exprimiram o seu desacordo durante o debate final.
Em 1993 os principais objectivos do Ocidente, tal como eram definidos pela política americana,
mudaram da não proliferação para a contraproliferação. Esta mudança foi o reconhecimento realista
de que a proliferação nuclear não podia ser evitada. Em devido tempo, a política norte-americana
passará da contraproliferação para a acomodação da proliferação e, se o governo puder romper com
as ideias herdadas da guerra fria, para a promoção da proliferação, se esta puder servir os interesses
dos EUA e do Ocidente. Entretanto, em 1995 os Estados Unidos e o Ocidente mantêm-se
empenhados numa política de contenção que, no final, está condenada a falhar. A proliferação de
armas nucleares ou outras de destruição maciça é um fenómeno central da lenta mas inelutável
difusão do poder num mundo multicivilizacional.
224
* Le Camp des saints, de Jean Raspail, foi primeiramente publicado em 1973 (Paris, Éditions
Robert Laffront), seguindo-se uma nova edição em 1985, o que reflecte o aumento da preocupação
com a imigração em França. O romance atraiu a atenção dos Americanos -quando a preocupação
com a imigração aumentava nos EUA [Matthew Conneily e Paul Kennedy, «Must it be the rest
against the West?», in Atlantic Monthly, v. 274 (Dezembro de 1994), pp. 61 e segs.] e o prefácio de
Raspail para a edição francesa de 1985 foi publicado em inglês in The Social Contract, v. 4
(Inverno de 1993-1994), pp. 115-117.
De um modo geral, as sociedades europeias não querem assimilar os imigrantes ou têm uma enorme
dificuldade em fazê-lo, além de ser ambígua a vontade dos imigrantes muçulmanos e dos seus filhos
de serem assimilados. Assim, é provável que uma imigração continuada e volumosa origine países
divididos em comunidades cristãs e muçulmanas. Este resultado pode ser evitado se os governos e
os eleitores europeus estiverem dispostos a pagar o preço de algumas medidas restritivas: custos
fiscais directos das medidas anti-imigração, custo social da rejeição de uma maior alienação das
comunidades imigradas existentes e custos económicos a longo prazo da escassez de mão-de-obra e
de menores taxas de crescimento.
No entanto, é provável que o problema da invasão demográfica muçulmana se atenue quando as
taxas de crescimento da população nas sociedades do Norte de África e do Médio Oriente atingirem
o seu máximo e começarem a declinar, como já aconteceu nalguns países. Na medida em que a
pressão demográfica estimula a emigração, é natural que a dos países muçulmanos possa vir a ser
menor em 2025. Tal não será verdadeiro para a África subsariana. Se ocorrer o desenvolvimento
económico e promover a mobilidade social na África ocidental e central, os incentivos e as
capacidades de emigrar aumentarão e a ameaça de «islamização» será substituída pela da
«africanização». O grau em que esta ameaça se concretizará será muito influenciado pela extensão
da redução da população pela SIDA e por outras epidemias e pelo grau de atracção de imigrantes
pela África do Sul.
Enquanto os muçulmanos levantam um problema imediato à Europa, os mexicanos levantam um
problema aos Estados Unidos. Partindo do pressuposto de que continuam as actuais tendências e
políticas, a população americana, como mostram os dados do quadro 8.2, mudará dramaticamente
na primeira metade do século XXI, tornando-se quase 50% branca e 25% hispânica. As alterações
na política de imigração e a eficácia de medidas anti-imigratórias podem, como na Europa,
modificar estas projecções. Mesmo assim, a questão central continuará a ser o grau em que os
hispânicos irão ser assimilados na sociedade americana, como o foram os grupos que os
antecederam. A segunda e a terceira gerações de hispânicos enfrentam uma vasta gama de
incentivos e de pressões para o serem. Por outro lado, a imigração mexicana é, em muitos aspectos
importantes, diferente das outras imigrações. Em primeiro lugar, os imigrantes da Europa ou da
Ásia atravessam os oceanos; os mexicanos passam uma linha de fronteira ou um vau de um rio. Este
facto, somado ao aumento das facilidades de transporte e de comunicação, permite-lhes manter
239
íntimos contactos com as comunidades originárias, conservando, assim, a respectiva identidade. Em
segundo lugar, os imigrantes mexicanos estão concentrados no Sudoeste dos Estados Unidos e
fazem parte de uma sociedade mexicana contínua que se estende do Iucatão ao Colorado (v. mapa
8. 1). Em terceiro lugar, alguns indícios sugerem que a resistência à assimilação é mais forte entre
os mexicanos imigrantes do que entre outros grupos homólogos e que os mexicanos tendem a
conservar a sua identidade nacional, como se tornou evidente na luta sobre a Proposta 187, na
Califórnia, em 1994. Em quarto lugar, a região ocupada pelos imigrantes mexicanos foi anexada
pelos Estados Unidos depois de terem derrotado o México no século XIX. O desenvolvimento
económico mexicano poderá gerar sentimentos revanchistas. O produto da expansão militar
norte-americana do século XIX poderá vir a ser ameaçado e, possivelmente, invertido pela
expansão demográfica mexicana do século XXI.
A alteração do equilíbrio de poderes entre civilizações torna cada vez mais difícil ao Ocidente
alcançar os seus objectivos no que respeita à proliferação de armamento, direitos humanos,
imigração e outras questões. A minimização das suas perdas nesta situação implica que o Ocidente
utilize com talento os seus recursos económicos, como «cenouras e chibatas», ao lidar com as
outras sociedades, reforce a sua unidade e coordene as suas políticas de modo a tornar mais dificil
que outras sociedades joguem um país ocidental contra outro e promova e explore as diferenças
entre nações não ocidentais. A capacidade do Ocidente para prosseguir estas estratégias dependerá,
por um lado, da natureza e da intensidade dos seus conflitos com as civilizações rivais e, por outro,
da amplitude com que puder identificar e desenvolver interesses comuns com as civilizações
hesitantes.
241
9
As civilizações são as tribos humanas mais vastas e o choque de civilizações é o conflito tribal a
uma escala global. No novo mundo emergente Estados e grupos de duas civilizações diferentes
podem formar ligações e coligações tácticas limitadas, ad hoc, para defenderem os seus interesses
contra entidades de uma terceira civilização ou para outras finalidades comuns. No entanto, as
relações entre grupos de civilizações diferentes quase nunca serão próximas, serão normalmente
frias e, frequentemente, hostis. É provável que se atenuem ou desapareçam mesmo as ligações entre
Estados de civilizações diferentes herdadas do passado, como as alianças militares da guerra fria.
As esperanças de «parcerias» intercivilizacionais próximas, tais como foram formuladas pelos
dirigentes políticos dos Estados Unidos e da Rússia para os seus países, não se concretizarão. As
relações intercivilizacionais que surgirão variarão, normalmente, entre distantes e violentas,
situando-se a maioria entre estes dois extremos. Em muitos casos é provável que se aproximem da
«paz fria», assim baptizada por Boris Ieltsine, que poderia caracterizar o futuro das relações entre a
Rússia e o Ocidente. Outras relações intercivilizacionais podem aproximar-se das condições da
«guerra fria». O termo la guerrafria foi inventado pelos Espanhóis no século XIII para descrever a
242
sua «dificil coexistência» com os muçulmanos no Mediterrâneo e nos anos
90 muitos viram de novo uma «guerra fria civilizacional» a desenvolver-se entre o islão e o
Ocidente. Num mundo de civilizações não será a única relação caracterizada por aquele termo. Paz
fria, guerra fria, guerra comercial, quase-guerra, paz dificil, relações agitadas, rivalidade intensa,
coexistência competitiva, corrida aos armamentos: estas designações são as descrições mais
prováveis das relações entre as entidades de civilizações diferentes. A confiança e a amizade serão
raras.
O conflito intercivilizacional toma duas formas. Ao nível local ou micro, os «conflitos nas
fronteiras civilizacionais» ocorrem entre Estados vizinhos de civilizações diferentes, entre grupos
de civilizações diferentes dentro de um mesmo Estado e entre grupos que, como nas antigas União
Soviética e Jugoslávia, tentam criar novos Estados a partir dos restos dos antigos. Os conflitos nas
fronteiras civilizacionais são predominantes entre muçulmanos e não muçulmanos. As razões e a
natureza e a dinâmica destes conflitos são examinadas nos capítulos 10 e 11. Ao nível global ou
macro, os conflitos entre Estados-núcleos ocorrem entre os maiores Estados das diferentes
civilizações. As questões que se colocam nestes conflitos são as clássicas da política internacional.
Incluem:
1. A influência relativa sobre o desenvolvimento global e as acções globais das organizações
internacionais, como a ONU, o FMI e o Banco Mundial;
2. O poder militar relativo que se manifesta nas discussões sobre a não proliferação e o controle de
armamentos e sobre a corrida aos armamentos;
3. O poder e a prosperidade económicos, manifestados nas disputas sobre o comércio, investimento
e noutras questões;
4. As pessoas, através dos esforços desenvolvidos por um Estado pertencente a uma civilização para
proteger os que, sendo-lhe próximos, vivem noutra civilização ou para discriminar ou excluir do seu
território pessoas de outra civilização;
5. Valores e culturas, conflitos que se iniciam quando um Estado tenta promover ou impor os seus a
pessoas de outra civilização;
6. Ocasionalmente, os territórios em que os Estados-núcleos se tornam participantes de primeira
linha nos conflitos de fronteiras civilizacionais.
Estas questões têm sido, evidentemente, as fontes de conflito entre os homens ao longo da história.
No entanto, quando estão envolvidos Estados de civilizações diferentes, as diferenças culturais
agudizam o conflito. Os Estados-núcleos, na competição entre si, tentam juntar os Estados membros
das
243
suas civilizações, obter apoio de Estados de outras civilizações, promover a divisão e a deserção no
seio de civilizações rivais e utilizar a combinação apropriada de acções diplomáticas, políticas,
económicas e clandestinas, juntamente com campanhas de propaganda e ameaças, para a
perseguição dos seus objectivos. Contudo, é improvável que os Estados-núcleos utilizem o poder
militar directamente contra os outros, excepto em situações, como as que se verificaram no Médio
Oriente ou no subcontinente indiano, em que se combateram mutuamente ao longo de linhas de
fractura civilizacionais. As guerras entre Estados-núcleos talvez só se produzam em duas
circunstâncias: em primeiro lugar, como resultado de uma escalada de conflitos nas fronteiras
civilizacionais entre grupos locais, quando grupos aparentados, incluindo Estados-núcleos,
oferecem apoio. Esta possibilidade, no entanto, cria um maior incentivo para os Estados-núcleos de
civilizações antagonistas conterem ou resolverem o conflito na fronteira civilizacional.
Em segundo lugar, uma guerra entre Estados-núcleos pode resultar de alterações no equilíbrio de
poder entre civilizações. Na civilização grega, o aumento do poder de Atenas, como escreveu
Tucídides, levou à guerra do Peleponeso. Analogamente, a história da civilização ocidental é feita
de «guerras hegemónicas» entre potências em ascensão e em declínio. A medida em que factores
semelhantes encorajam o conflito entre Estados-núcleos de civilizações diferentes dependerá, em
parte, da forma como no seio destas civilizações a maior parte dos Estados reagirão: ou aliando-se
ou opondo-se à nova potência que surge. Embora a primeira opção possa ser mais característica das
civilizações asiáticas, a ascensão do poder chinês poderá gerar esforços de Estados de outras
civilizações para contrabalançarem esse poder, nomeadamente por parte dos Estados Unidos, da
índia e da Rússia. A única guerra hegemónica que não se verificou na história ocidental opôs a
Grã-Bretanha aos Estados Unidos, devendo-se, presumivelmente, a mudança pacífica da pax
britannica para a pax americana, em grande parte, à grande afinidade cultural existente entre as duas
sociedades. A ausência desta afinidade na mudança de equilíbrio de poder entre o Ocidente e a
China não torna certo o conflito armado, mas apenas mais provável. O dinamismo do islão é a
origem de numerosas pequenas guerras civilizacionais; a ascensão da China é uma fonte potencial
de uma grande guerra intercivilizacional entre Estados-núcleos.
O islão e o Ocidente
Alguns ocidentais, entre eles o presidente Bill Clinton, têm defendido que o Ocidente não tem
problemas com o islão, mas apenas com os
244
extremistas islamitas violentos. Quatrocentos anos de história demonstram o contrário. As
relações entre o islão e o cristianismo, quer ortodoxo, quer ocidental, têm sido frequentemente
agitadas. Cada um tem sido o outro do outro. O conflito do século XX entre a democracia liberal e o
marxismo-leninismo não é senão um fenómeno fugaz e superficial quando comparado com o
conflito contínuo e profundo entre o islão e o cristianismo. Por vezes, tem prevalecido a
coexistência pacífica; mais frequentemente o relacionamento tem sido de rivalidade intensa e de
guerra, com intensidades variadas. A sua «dinâmica histórica», comentava John Esposito, «[ ... ]
com frequência colocou as duas comunidades em competição e, por vezes, fê-las entrar em
combates mortais pelo poder, pela terra e pelas almas»’. Ao longo dos séculos, o destino destas
duas religiões conheceu a expansão e o declínio numa sequência ondulatória de maré alta, pausas e
maré vazante.
A expansão árabe-islâmica inicial decorreu entre princípios do século VII e meados do século VIII
e estabeleceu o domínio muçulmano no Norte de África, na Península Ibérica, no Médio Oriente, na
Pérsia e na índia setentrional. As linhas de separação entre o islão e a cristandade estabilizaram
durante, aproximadamente, dois séculos. Depois, em finais do século XI, os cristãos retomaram o
controle do Mediterrâneo ocidental, conquistaram a Sicília e capturaram Toledo. Em 1095 a
cristandade lançou as cruzadas e, durante um século e meio, os potentados cristãos tentaram, com
decrescente sucesso, dominar a Terra Santa e as áreas vizinhas no Próximo Oriente, acabando por
perder Acre, o seu último bastião, em 1291. Entretanto, surgiram em cena os Turcos Otomanos.
Primeiro, enfraqueceram Bizâncio e, depois, conquistaram uma boa parte dos Balcãs, assim como o
Norte de África, tomaram Constantinopla, em 1453, e cercaram Viena, em 1529. «Durante quase
um milénio», nota Bernard Lewis, «do primeiro desembarque mouro em Espanha ao segundo cerco
de Viena, a Europa esteve sob a ameaça constante do islão.» O islão é a única civilização que pôs em
causa a sobrevivência do Ocidente e fê-lo, pelo menos, duas vezes.
No entanto, no século XV a maré começou a mudar. Os cristãos foram, gradualmente,
reconquistando a Península Ibérica, tendo completado essa tarefa em 1492, com a conquista de
Granada. Ao mesmo tempo as inovações europeias no domínio da navegação oceânica permitiram
aos Portugueses, e depois a outros, contornar o heartland muçulmano e penetrar no oceano Índico e
mais além. Simultaneamente, os Russos puseram fim ao domínio de dois séculos dos Tártaros. Em
seguida, os Otomanos fizeram uma última investida, cercando de novo Viena em 1683. Este
insucesso marcou o princípio de uma longa retirada que incluiu a luta dos
245
povos ortodoxos dos Balcãs para se libertarem do jugo otomano; a expansão do império dos
Habsburgos; e o dramático avanço dos russos para o mar Negro e o Cáucaso. No espaço
aproximado de um século, o «flagelo da cristandade» transformou-se «no doente da Europa»’. No
final da Primeira Guerra Mundial, a Grã-Bretanha, a França e a Itália deram o golpe de misericórdia
final e estabeleceram o seu domínio, directo ou indirecto, sobre os restos do Império Otomano,
excepto no território da República Turca. Em 1920 apenas quatro países muçulmanos - Turquia,
Arábia Saudita, Irão e Afganistão - permaneciam independentes de qualquer tutela não muçulmana.
Por seu turno, o recuo do colonialismo ocidental começou lentamente nos anos 20 e 30 e acelerou
dramaticamente no seguimento da Segunda Guerra Mundial. O colapso da União Soviética trouxe a
independência a outras sociedades muçulmanas. De acordo com algumas contas, governos não
muçulmanos tomaram o controle de 92 territórios muçulmanos entre
1757 e 1919. Em 1995, 69 destes territórios estavam de novo sob domínio muçulmano e cerca de 45
Estados independentes têm populações maioritariamente muçulmanas. A natureza violenta destas
alterações está reflectida no facto de 50% de guerras envolvendo dois Estados pertencentes a
religiões diferentes, entre 1820 e 1929, terem sido guerras entre muçulmanos e cristãos.
As causas deste padrão de comportamento conflituoso não assentam em fenómenos transitórios,
como o apaixonado ímpeto cristão do século XII ou o fundamentalismo muçulmano do século XX.
Fluem da natureza das duas religiões e das civilizações que se baseiam nelas. O conflito é um
produto da sua diferença, particularmente entre a ideia muçulmana do islão como modo de vida
transcendente, unificando religião e política, em oposição ao conceito cristão da separação dos
reinos de Deus e de César. Todavia, o conflito também resulta das suas semelhanças. Ambas são
religiões monoteístas que, de modo diferente das politeístas, não podem assimilar facilmente
divindades adicionais e vêem o mundo em termos dualistas: de um lado, nós; do outro, eles. Ambas
são universalistas, proclamando serem a verdadeira fé a que todos os homens devem aderir. Ambas
são religiões missionárias, acreditando que os seus fiéis têm a obrigação de converter à verdadeira
fé os não crentes. Desde as suas origens que o islão se expandiu pela conquista, tendo o cristianismo
feito o mesmo quando a oportunidade surgiu. Os conceitos paralelos de jihad e de «cruzada» têm
uma grande semelhança que as distingue das outras grandes religiões mundiais. O islamismo e o
cristianismo, juntamente com o judaísmo, têm um conceito teleológico da história, em contraste
com a visão cíclica ou estática que prevalece nas outras civilizações.
246
O nível de conflito violento entre o islão e o cristianismo ao longo da história tem sido função do
crescimento ou declínio demográfico, do desenvolvimento económico, das alterações tecnológicas e
da intensidade do fervor religioso. A difusão do islão no século VII foi acompanhada por migrações
maciças dos povos árabes para as terras dos Impérios Bizantino e Sassânida «numa escala e a uma
velocidade» sem precedentes. Alguns séculos mais tarde as cruzadas foram, em grande parte,
produto do crescimento económico, do aumento da população e do «renascimento cluniacense» na
Europa do século XI, que tornaram possível a mobilização de um grande número de cavaleiros e de
camponeses para a marcha sobre a Terra Santa. Quando a primeira cruzada atingiu Constantinopla,
escreveu um cronista bizantino, parecia que «todo o Ocidente, nomeadamente as tribos bárbaras que
viviam entre o Adriático e as Colunas de Hércules, tinha começado uma imensa migração, se tinha
posto em marcha para penetrar maciçamente na Ásia com todos os seus pertenceS». No século XIX
o espectacular crescimento da população produziu uma erupção europeia, gerando a maior
migração da história, que atingiu tanto terras muçulmanas como outras.
Um conjunto de factores comparável tem feito endurecer o conflito entre o islão e o Ocidente em
finais do século XX: primeiro, o crescimento da população muçulmana tem gerado um número
enorme de desempregados e de jovens descontentes que se tornam fiéis à causa islamita, exercem
pressões sobre as sociedades vizinhas e emigram para o Ocidente; segundo, o Ressurgimento
islâmico tem dado aos muçulmanos uma confiança renovada no carácter diferente e nos valores da
sua civilização em comparação com os do Ocidente; terceiro, os esforços simultâneos do Ocidente
para universalizar os seus valores e instituições, para manter a sua superioridade militar e
económica e para intervir em conflitos no mundo muçulmano geram ressentimentos entre os
muçulmanos; quarto, o colapso do comunismo fez desaparecer o inimigo comum do Ocidente e do
islão e originou que cada um visse o outro como a sua principal ameaça; quinto, o contacto
crescente entre muçulmanos e ocidentais estimula em cada parte um novo sentido da sua própria
identidade e mostra melhor as suas diferenças, exacerbando também as diferenças sobre os direitos
dos membros de uma civilização dominada pelos membros da outra. Nas sociedades muçulmana e
cristã a tolerância de uma em relação à outra diminuiu drasticamente nos anos 80 e 90.
As causas do conflito renascido entre o islão e o Ocidente assentam, assim, em questões
fundamentais de poder e cultura. Kto? Kovo? Quem domina? Quem é dominado? A questão central
da política definida por Lenine é a raiz da disputa entre o islão e o Ocidente. No entanto, há um
247
conflito adicional, que Lenine teria classificado como desprovido de sentido, entre as duas versões
do que é certo e errado e, como tal, quem está certo e errado. Enquanto o islão continuar a ser o
islão (o que acontecerá) e o Ocidente permanecer o Ocidente (o que é mais duvidoso), este conflito
fundamental entre as duas grandes civilizações e os respectivos modos de vida continuará a definir
as suas relações futuras, como aconteceu nos últimos catorze séculos.
Estas relações são igualmente marcadas por um considerável número de questões substantivas em
que as suas posições diferem ou se opõem. A questão territorial foi, historicamente, bastante
importante, mas é hoje em dia relativamente insignificante. Nos anos 90, dezanove dos vinte e oito
conflitos civilizacionais entre muçulmanos e não muçulmanos ocorreram entre cristãos e
muçulmanos. Onze foram com cristãos ortodoxos e sete com cristãos ocidentais, na África e no
Sueste asiático. Apenas um destes violentos, ou potencialmente violentos, conflitos - entre Croatas e
Bósnios - ocorreu ao longo da linha de fractura entre o Ocidente e o islão. O fim efectivo do
imperialismo territorial ocidental e a ausência, até à data, de uma renovada expansão territorial
muçulmana produziram uma tal segregação geográfica que apenas em alguns lugares dos Balcãs as
comunidades ocidental e muçulmana se encontram contíguas. Os conflitos entre o Ocidente e o
islão estão, deste modo, menos centrados no território do que em questões intercivilizacionais mais
amplas, como a proliferação do armamento, os direitos humanos e a democracia, o controle do
petróleo, a imigração, o terrorismo islamita e a intervenção ocidental.
No final da guerra fria representantes de ambas as comunidades reconheceram a crescente
intensidade deste antagonismo histórico. Em 1991, por exemplo, Barry Buzan encontrava muitas
razões para o surgimento de uma guerra fria entre as sociedades «do Ocidente e o islão em que a
Europa poderia estar na primeira linha».
Este desenvolvimento resulta, em parte, da oposição entre valores seculares e religiosos, em parte,
da rivalidade histórica entre a cristandade e o islão, em parte, do ciúme do poder ocidental, em
parte, de ressentimentos resultantes da dominação ocidental sobre as estruturas políticas
pós-coloniais do Médio Oriente e, em parte, da amargura e da humilhação suscitadas pela
comparação entre as realizações das civilizações islâmica e ocidental nos últimos dois séculos.
Além disso, notava ele, «uma guerra fria que envolvesse as sociedades serviria para fortalecer a
identidade europeia num momento crucial do seu processo de união». «Poderia, assim, constituir-se
um grupo
248
importante no Ocidente que não só apoiaria uma guerra fria com o islão, como adoptaria políticas
que a encorajassem.» Em 1990 Bernard Lewis, um dos grandes especialistas ocidentais do islão,
concluía a sua análise sobre as raízes da violência muçulmana com as seguintes palavras:
“Devia agora ser claro que estamos a ser confrontados com um estado de espírito e um movimento
que transcendem em muito os problemas, as políticas e os governos que as seguem. Não é nada
menos do que um choque de civilizações - reacção, talvez irracional, mas seguramente histórica, de
um antigo rival contra a nossa herança judaico-cristã, o nosso presente laico e a expansão universal
de ambos. É extremamente importante que, pela nossa parte, não sejamos levados a uma reacção
igualmente histórica, mas também irracional contra aquele rival”.
Da parte da comunidade islâmica chegam observações semelhantes. «Há sinais inequívocos», notou
um destacado jornalista egípcio, Mohammed Sid-Ahmed, em 1994, «de um choque cada vez mais
forte entre a ética judaico-cristã ocidental e o movimento de renovação islâmico que actualmente se
estende do Atlântico, a ocidente, até à China, a oriente.» Um proeminente muçulmano indiano
previu em 1992 que a «próxima confrontação do Ocidente proviria, sem dúvida, do mundo
muçulmano. É nas nações islâmicas, do Magrebe ao Paquistão, que a luta por uma nova ordem
mundial começará.» Para um importante jurista tunisino, a luta está já em curso: «O colonialismo
tentou deformar todas as tradições culturais do islão. Não sou islamita. Não penso que haja um
conflito entre religiões. Há um conflito entre civilizações.»
Nos anos 80 e 90 a tendência geral no islão tem sido numa direcção antiocidental. Esta é, em parte,
a consequência natural do Ressurgimento islâmico e da reacção contra a gharbzadegi ou a
«ocidentoxicação» das sociedades muçulmanas. A «reafirmação do islão, seja qual for a sua forma
sectária específica, significa o repúdio da influência europeia ou americana sobre a sociedade, a
política e a moral locais». No passado os dirigentes muçulmanos diziam, por vezes, aos seus povos:
«Devemos ocidentalizar-nos.» Se qualquer dirigente muçulmano dissesse o mesmo no último
quarto deste século, ficaria muito isolado. É, de facto, difícil encontrar hoje declarações vindas de
muçulmanos, sejam políticos, funcionários, académicos, empresários ou jornalistas, que louvem os
valores e as instituições ocidentais. Pelo contrário, salientam as diferenças entre a sua civilização e
a ocidental, a superioridade da sua cultura e a necessidade de a preservar contra a intrusão ocidental.
Os muçulmanos receiam e ofendem-se com o poder do Ocidente e com a ameaça que este constitui
para a sua sociedade e para as suas crenças. Consideram a cultura ocidental
249
materialista, corrupta, decadente e imoral. Também a vêem como sedutora e, por isso, sublinham a
necessidade de resistir ao seu impacto no seu modo de vida. Cada vez mais os muçulmanos atacam
o Ocidente, não por aderir a uma religião imperfeita e errónea, que seria, apesar de tudo, «uma
religião de livro», mas por não aderir a qualquer religião. Aos olhos muçulmanos o secularismo
ocidental, a irreligiosidade e, portanto, a imoralidade são os piores males que o cristianismo
ocidental produziu. Na guerra fria, o adversário do Ocidente era o «comunismo sem Deus»; no
conflito de civilizações pós-guerra fria, os muçulmanos vêem o seu opositor como o «Ocidente sem
Deus».
Os imãs fundamentalistas não são os únicos a terem esta imagem de uma civilização arrogante,
materialista, repressiva, brutal e decadente. É também a imagem que têm aqueles que o Ocidente
considera seus aliados e apoiantes naturais. Poucos livros de autores muçulmanos publicados no
Ocidente nos anos 90 receberam tantos elogios como O Islão e a Democracia, de Fatima Memissi,
geralmente saudado pelos Ocidentais como um testemunho corajoso de uma muçulmana moderna e
liberal. No entanto, o retrato que ela traça do Ocidente dificilmente pode ser menos lisonjeiro. O
Ocidente é «militarista» e «imperialista» e tem traumatizado as outras nações pelo «terror colonial»
(pp. 3, 9). O individualismo, a marca da cultura ocidental, é a «fonte de todos os males» (p. 8). É
preciso recear o poder ocidental. O Ocidente «decide unilateralmente se os satélites serão usados
para educar os Árabes ou para os bombardear [ ...] Arruína as nossas potencialidades e
invade as nossas vidas com os produtos que importamos e os filmes de televisão que inundam as
ondas do espaço [... ] É uma potência que nos arruína, que cerca os nossos mercados, que controla
os nossos mais simples recursos, iniciativas e potencialidades. Era assim que nos apercebíamos da
situação, o que a guerra do Golfo veio confirmar» (pp. 146-147). O Ocidente «cria o seu poder por
meio de investigação científica militar» e depois vende o produto resultante aos países
subdesenvolvidos, que são os seus «consumidores passivos». Para nos libertarmos desta
subserviência, o islão deve desenvolver os seus próprios engenheiros e cientistas, construir as suas
próprias armas (a autora não especifica se convencionais ou nucleares) e «libertar-se da
dependência militar do Ocidente» (pp. 43-44). Repito que estes não são pontos de vista de um
barbudo ayatollah de turbante.
Sejam quais forem as suas opiniões políticas ou religiosas, os muçulmanos concordam que existem
diferenças fundamentais entre a sua cultura e a ocidental. Para o xeque Ghanoushi, «as nossas
sociedades baseiam-se em valores diferentes dos do Ocidente. Os Americanos ‘chegam aqui'», diz
um funcionário superior do governo egípcio, «e querem que sejamos como
250
eles. Não compreendem os nossos valores nem a nossa cultura.» «Somos diferentes», concorda um
jornalista egípcio, «temos um fundo cultural diferente, uma história diferente. Temos, portanto,
direito a futuros diferentes.» Quer as publicações muçulmanas populares, quer as intelectualmente
sérias, descrevem insistentemente o que consideram ser as tramas e os planos do Ocidente para
subordinar, humilhar e minar as instituições e a cultura islâmicas.
Esta reacção hostil ao Ocidente não se observa só nos círculos intelectuais responsáveis pelo
Ressurgimento islâmico, mas também na mudança de atitudes dos governos muçulmanos face ao
Ocidente. Os governos que imediatamente se seguiram à era colonial tinham, geralmente,
ideologias políticas e económicas ocidentais, assim como a sua política externa era pró-ocidental,
com excepção da Argélia e da Indonésia, cuja independência resultou de uma revolução
nacionalista. Entretanto, um de cada vez, os governos pró-ocidentais têm cedido o lugar a governos
menos identificados com o Ocidente ou abertamente antiocidentais no Iraque, Líbia, Iémene, Síria,
Irão, Sudão, Líbano e Afganistão. A orientação e o alinhamento de outros Estados, como a Tunísia,
a Indonésia e a Malásia, registaram mudanças menos dramáticas, mas na mesma direcção. Os dois
mais sólidos aliados militares muçulmanos dos Estados Unidos do período da guerra fria - a
Turquia e o Paquistão - estão sujeitos a uma pressão interna islamita e os seus laços com o Ocidente
sujeitos a uma crescente tensão.
Em 1995 o único Estado muçulmano que é abertamente mais pró-ocidental do que era há dez anos é
o Koweit. Actualmente, os melhores amigos do Ocidente no mundo árabe ou são dependentes
militarmente, como o Koweit, a Arábia Saudita e os Emiratos Árabes, ou são dependentes
economicamente, como o Egipto e a Argélia. Em finais dos anos 80 os governos comunistas da
Europa de Leste ruíram quando se tornou evidente que a União Soviética não podia ou não queria
fornecer-lhes mais apoio económico e militar. Se se tornar evidente que o Ocidente não pode mais
manter os seus regimes muçulmanos satélites, é provável que estes venham a ter um destino
semelhante. Ao crescente antiocidentalismo dos muçulmanos responde o Ocidente com «a ameaça
islâmica», materializada principalmente pelo extremismo muçulmano. O islão é visto como fonte de
proliferação nuclear, de terrorismo e, na Europa, de imigrantes indesejáveis. Estas preocupações são
partilhadas pela opinião pública e pelos dirigentes políticos. Um exemplo: interrogados, em
Novembro de 1994, se a «renovação islâmica» era uma ameaça para os interesses dos Estados
Unidos, 61%, num universo de
35 000 americanos interessados em política externa, responderam sim e
251
28% não. Um ano antes, quando inquiridos sobre qual o país que constituía o maior perigo para os
Estados Unidos, uma amostra representativa da opinião pública apontou o Irão, a China e o Iraque
como os três mais perigosos. Uma nova sondagem, em 1994, pedia para indicar as «ameaças
críticas» aos Estados Unidos: 72% do público e 61% dos responsáveis pela política externa
indicaram a proliferação nuclear; 69% do público e 33% dos responsáveis políticos indicaram o
terrorismo internacional - duas questões largamente associadas ao islão. Além disso, 3 3 % do
público e 39% dos responsáveis políticos consideraram uma ameaça a possível expansão do
fundamentalismo islâmico. Os Europeus têm posições semelhantes. Por exemplo, na Primavera de
1991, 5 1 % da opinião pública francesa disseram que a principal ameaça à França vinha do Sul e
apenas 8% que podia vir do Leste. Os quatro países que a opinião pública francesa mais receava
eram todos muçulmanos: o Iraque, 52%; o Irão, 35%; a Líbia, 26%; a Argélia, 22%. Os dirigentes
políticos ocidentais, incluindo o chanceler alemão e o primeiro-ministro francês, exprimiram
preocupações semelhantes. O secretário-geral da NATO declarou, em 1995, que o fundamentalismo
islâmico era, «pelo menos, tão perigoso como o comunismo» tinha sido para o Ocidente e um «alto
responsável da administração Clinton apontou o islão como o rival global do Ocidente.
Com o virtual desaparecimento da ameaça militar vinda do Leste, o planeamento da NATO é cada
vez mais dirigido para as ameaças vindas do Sul. «O flanco sul», comentou um analista do exército
dos EUA em 1992, está a substituir a frente central e está «a tornar-se rapidamente a linha da frente
da NATO». Para fazer face a estas ameaças do Sul, os membros do Sul da NATO - Itália, França,
Espanha e Portugal - começaram a fazer planeamento e treino operacional conjuntos.
Simultaneamente fizeram consultas com os governos do Magrebe sobre a forma de conterem os
extremistas islamitas. Esta percepção das ameaças também justifica a continuação da presença
militar norte-americana na Europa. «Embora as forças dos EUA não sejam uma panaceia para os
problemas causados pelo fundamentalismo do islão», declarou um antigo oficial superior
norte-americano, «aquelas forças dão uma forte cobertura ao planeamento militar relacionado com a
região. Lembram-se do sucesso que foi o posicionamento das forças americanas, francesas e
britânicas no Golfo em 1990-1991? Os da região lembram-se. » E podia ter acrescentado que se
lembram com medo, ressentimento e ódio.
Tendo em conta as percepções predominantes que os muçulmanos e os Ocidentais têm uns dos
outros e a ascensão do extremismo islamita, não admira que a seguir à revolução iraniana se tivesse
desenvolvido uma
252
quase-guerra intercivilizacional entre o islão e o Ocidente. É uma quase-guerra por três razões:
primeira, não é todo o islão que está contra todo o Ocidente; são dois Estados fundamentalistas
(Irão e Sudão), três Estados não fundamentalistas (Iraque, Líbia e Síria), mais um vasto leque de
organizações islamitas com o apoio financeiro de outros países muçulmanos, como a Arábia
Saudita, que se opõem aos Estados Unidos e, por vezes, à Grã-Bretanha, França e a outros Estados e
grupos ocidentais, assim como a Israel e aos judeus de um modo geral; segunda, é uma
quase-guerra porque, com excepção da guerra do Golfo de 1990-1991, tem sido travada com meios
limitados: terrorismo, por um lado, e poder aéreo, acções clandestinas e sanções económicas, por
outro; terceira, é uma quase-guerra porque, embora a violência tenha persistido, não tem sido
contínua; tem compreendido acções intermitentes de uma parte que provocam respostas da outra.
De qualquer forma, uma quase-guerra é, no entanto, uma guerra. Mesmo excluindo as dezenas de
milhares de soldados e civis iraquianos mortos pelos bombardeamentos ocidentais em
Janeiro-Fevereiro de 1991, o número de mortos e de vítimas conta-se em milhares, praticamente em
cada ano desde 1979. Foram mortos muitos mais ocidentais durante esta quase-guerra do que
durante a «verdadeira» guerra no Golfo.
Além disso, ambas as partes reconheceram que este conflito é uma guerra. Khomeini declarou
muito cedo e com muita clareza que «o Irão estava, efectivamente, em guerra com a América» e
Kadhafi proclama com regularidade a guerra santa contra o Ocidente. Dirigentes muçulmanos de
outros grupos ou Estados extremistas têm feito declarações em termos análogos. No lado ocidental,
os Estados Unidos têm classificado sete países como «Estados terroristas», cinco dos quais são
muçulmanos (Irão, Iraque, Síria, Líbia e Sudão); Cuba e a Coreia do Norte são os outros. Isto, com
efeito, identifica-os como inimigos, porque estão a atacar os Estados Unidos e os seus amigos com a
arma mais eficaz ao seu dispor, reconhecendo deste modo a existência de um estado de guerra com
eles. Os funcionários dos EUA referem-se com frequência a estes Estados como «fora-da-lei» e
«renegados» - colocando-os, assim, fora da ordem internacional civilizada e tornando-os alvos
legítimos para contramedidas multilaterais ou unilaterais. O governo dos Estados Unidos acusou os
responsáveis pelo atentado bombista contra o World Trade Center de terem a intenção de «travar
uma guerra de terrorismo urbano contra os Estados Unidos» e defendeu que os conspiradores,
encarregados de planearem outros atentados em Manhattan, eram «soldados» numa luta «que
implicava uma guerra» contra os EUA. Se os muçulmanos alegam que o Ocidente guerreia o islão e
se os Ocidentais alegam que grupos
253
islâmicos guerreiam o Ocidente, parece razoável concluir que está em curso qualquer coisa muito
próxima de uma guerra.
Nesta quase-guerra cada parte tem explorado as suas próprias forças e as fraquezas da outra parte.
Sob o ponto de vista militar, tem sido, principalmente, uma guerra de terrorismo contra o poder
aéreo. Militantes islâmicos empenhados exploram a abertura das sociedades ocidentais e colocam
carros armadilhados em alvos seleccionados. Militares profissionais ocidentais exploram os céus
abertos do islão e lançam bombas inteligentes em alvos seleccionados. Os conspiradores islâmicos
planeiam • assassinato de ocidentais proeminentes; os Estados Unidos maquinam • derrube de
regimes islâmicos extremistas. Durante os quinze anos que medeiam entre 1980 e 1995, de acordo
com o Departamento de Defesa dos EUA, este país empenhou-se em dezassete operações militares
no Médio Oriente, todas elas dirigidas contra muçulmanos. Nenhuma outra civilização suscitou
semelhante mobilização militar da parte dos Estados Unidos.
Até à data, salvo durante a guerra do Golfo, cada parte tem mantido a violência a um nível bastante
baixo e evitado considerar actos de guerra os actos violentos perpetrados pela parte contrária que
requerem uma resposta total. «Se a Líbia ordenasse a um dos seus submarinos o afundamento de
um navio mercante», escreveu The Economist, «os Estados Unidos tratariam este caso como um
acto de guerra desencadeado por um governo e não pediriam a extradição do comandante do
submarino. Em princípio, o atentado bombista de um avião de passageiros realizado pelos serviços
secretos da Líbia não é diferente. Todavia, os participantes nesta guerra empregam tácticas muito
mais violentas contra a outra parte do que os Estados Unidos e a União Soviética o fizeram
directamente durante a guerra fria. Nenhuma das superpotências, com raras excepções, matou
propositadamente civis ou mesmo militares do outro campo. Contudo, é o que acontece, com
frequência, na quase-guerra que se trava.
Os políticos americanos alegam que os muçulmanos envolvidos nesta quase-guerra são uma
pequena minoria cujo uso da violência que utilizam é rejeitado pela grande maioria dos
muçulmanos moderados. Talvez seja verdade, mas faltam provas de que assim seja. Os protestos
contra a violência antiocidental têm estado totalmente ausentes nos países muçulmanos. Os seus
governos, mesmo os governos «protegidos»*, amigos e dependentes do Ocidente, têm sido
chocantemente reticentes quando chega o momento de condenarem os actos terroristas contra o
Ocidente.
* Bunker governments no original. (N. do T).
254
Por outro lado, os governos europeus e a opinião pública têm apoiado bastante e raramente criticado
as acções que os Estados Unidos têm desencadeado contra os seus adversários muçulmanos,
enquanto as acções americanas contra a União Soviética e o comunismo, durante a guerra fria,
suscitavam viva hostilidade. Nos conflitos civilizacionais, diferentemente do que se passa nos
ideológicos, toma-se o partido dos «irmãos».
O problema central para o Ocidente não é o fundamentalismo islâmico. É o islão, uma civilização
diferente cujos membros estão convencidos da superioridade da sua cultura e obcecados com a
inferioridade do seu poder. O problema para o islão não é a CIA ou o Departamento de Defesa dos
EUA. É o Ocidente, uma civilização cujos membros estão convencidos da universalidade da sua
cultura e crêem que o seu poder, embora em declínio, lhe impõe a obrigação de espalhar a sua
cultura por todo o mundo. Estes são os ingredientes básicos que alimentam o conflito entre o islão e
o Ocidente.
10
A propensão muçulmana para o conflito violento é também sugerida pelo grau de militarização das
sociedades muçulmanas. Nos anos 80 os países muçulmanos tinham taxas de militarização (isto é, o
quantitativo de pessoal militar por 1000 habitantes) e índices de esforço militar (a taxa das forças
existentes em relação à riqueza do país) significativamente mais altos do que os dos outros países.
Pelo contrário, os países cristãos têm taxas de militarização e índices de esforço militar
significativamente mais baixos do que aqueles países. A média das taxas de militarização e dos
índices de esforço militar dos países muçulmanos era dupla da dos países cristãos (quadro 10.3).
«Há muito claramente», conclui James Payne, «uma ligação entre o islão e o militarismo.»
Os Estados muçulmanos também têm tido uma maior propensão para recorrerem à violência em
crises internacionais, empregando-a para resolverem 76 crises num total de 142 em que estiveram
envolvidos entre 1928 e 1979. Em 25 casos a violência foi o principal meio para lidarem com a
crise; em 51 crises os Estados muçulmanos usaram a violência, para além de outros meios. Quando
recorreram a ela, utilizaram violência de alta intensidade, recorrendo à guerra em 41% dos casos em
que a violência foi usada e envolvendo-se em 38% em recontros de alguma dimensão. Enquanto os
Estados muçulmanos recorreram à violência em 53,5% das
304
suas crises, esta foi utilizada pelo Reino Unido em 11,5% apenas, pelos Estados Unidos em 17,9% e
pela União Soviética em 28,5% das crises em que estiveram envolvidos estes países. Entre as
grandes potências, apenas a propensão da China para a violência excede a dos Estados
muçulmanos: empregou a violência em 76,9% das suas criseS. A belicosidade e a violência
muçulmanas são realidades que em finais do século XX nem os muçulmanos nem os não
muçulmanos podem negar.
O que foi responsável pelo ressurgimento das guerras civilizacionais em finais do século XX e pelo
papel central dos muçulmanos em tais conflitos? Primeiro, estas guerras têm raízes históricas.
Como no passado houve recurso à violência civilizacional intermitente entre grupos de civilizações
diferentes, no presente há memórias desse passado que, de um modo geral, geram receio e
insegurança em ambas as partes. Muçulmanos e hindus no subcontinente indiano, Russos e
Caucasianos no Norte do Cáucaso, Arménios e Turcos nas regiões transcaucasianas, Árabes e
Judeus na Palestina, católicos, muçulmanos e ortodoxos nos Balcãs, Russos e Turcos dos Balcãs à
Ásia central, Cingaleses e Tâmiles no Sri Lanka, Árabes e Negros de uma costa à outra de África:
são todas relações que através dos séculos envolveram, alternadamente, coexistência desconfiada e
violência vingativa. Existe um legado histórico de conflito a ser explorado e utilizado por aqueles
que aí encontram razão para tal. Neste relacionamento a história é viva, activa e aterradora.
Entretanto, a história de massacres intermitentes não explica, por si só, a razão pela qual a violência
recrudesceu na parte final do século XX.
Apesar de tudo, como muitos recordaram, Sérvios, Croatas e muçulmanos viveram juntos muito
pacificamente durante décadas na Jugoslávia. Do mesmo modo o fizeram muçulmanos e hindus na
índia. Na União Soviética coexistiram muitos grupos étnicos e religiosos, com poucas e notáveis
excepções, que foram da responsabilidade do governo soviético. Os Tâmiles e os Cingaleses
também viveram calmamente juntos numa ilha frequentemente descrita como um paraíso tropical.
A história não impediu que este relacionamento relativamente pacífico prevalecesse durante
grandes períodos de tempo; donde a história, por si só, não pode explicar o recomeço das
hostilidades. Devem ter surgido outros factores nas últimas décadas do século XX.
As mudanças no equilíbrio demográfico foram um desses factores. A expansão numérica de um
grupo gera pressões políticas, económicas e
305
sociais sobre os outros grupos e induz respostas reactivas. Mais importante ainda, produz pressões
militares sobre os grupos demograficamente menos dinâmicos. O colapso, em princípios da década
de 70, da ordem constitucional no Líbano, que vigorava há trinta anos, foi em grande parte
resultado do espectacular aumento da população xiita em relação à cristã maronita. No Sri Lanka,
como mostrou Gary Fuller, os picos da sublevação nacionalista cingalesa, nos anos 70, e da
insurreição tâmil, em finais dos anos 80, coincidiram exactamente com os anos em que a faixa
etária entre os 15 e os 24 anos daqueles grupos excedeu 20% do total da população do respectivo
grupo (V. figura 10. 1). Como observou um diplomata norte-americano no Sri Lanka, a insurreição
cingalesa era toda ela feita por jovens com menos de 24 anos de idade e os Tigres tâmiles, como foi
noticiado, «tinham como particularidade apoiarem-se num exército de crianças», recrutando
«rapazes e raparigas com 11 anos de idade», enquanto aqueles que tombaram no combate não eram
«ainda adolescentes no momento da morte: apenas alguns tinham pouco mais de 18 anos». Os
Tigres, observou The Economist, estavam a travar uma «guerra de menor idade». De modo análogo,
as guerras civilizacionais entre os Russos e os povos muçulmanos do Sul foram alimentadas por
grandes diferenças no crescimento da população. Em princípios dos anos 90 a taxa de fertilidade
das mulheres na Federação Russa era de 1,5, enquanto nas ex-repúblicas soviéticas da Ásia central,
predominantemente muçulmanas, a taxa de fertilidade era cerca de 4,4. As taxas de crescimento
líquido (taxa de natalidade bruta menos a taxa de mortalidade bruta) em finais dos anos
80 eram nestas últimas cinco a seis vezes as da Rússia. Os Chechenos
306
aumentaram 26% nos anos 80, tornando-se a Chechénia uma das regiões mais densamente
povoadas da Rússia, com as suas elevadas taxas demográficas a produzir emigrantes e combatentes.
De igual modo, as elevadas taxas muçulmanas de natalidade e a emigração para Caxemira a partir
do Paquistão estimularam uma renovação da resistência ao domínio indiano.
O complicado processo que conduziu às guerras intercivilizacionais na antiga Jugoslávia tem muitas
causas e muitos pontos de partida. No entanto, provavelmente, o factor mais importante que
originou estes conflitos foi a alteração demográfica que teve lugar no Cossovo. O Cossovo era uma
província autónoma dentro da República Sérvia, com todos os poderes de facto das seis repúblicas
jugoslavas, excepto o direito de secessão. Em 1961 a respectiva população era 67% albanesa
muçulmana e 24% sérvia ortodoxa. Todavia, a taxa de natalidade albanesa era a mais elevada da
Europa e o Cossovo tornou-se a área mais densamente povoada de toda a Jugoslávia. Nos anos 80
cerca de 50% dos albaneses tinham menos de 20 anos de idade. Face a estes números, a população
sérvia emigrou do Cossovo à procura de oportunidades económicas em Belgrado e noutros lugares.
Daqui resultou que em 1991 o Cossovo tivesse 90% de muçulmanos e 10% de sérvios. No entanto,
os Sérvios consideram o Cossovo a sua «terra santa», ou a sua «Jerusalém», o local onde, entre
outras coisas, se travou a grande batalha de 28 de Junho de 1389, data em que foram derrotados
pelos Turcos otomanos e, como resultado, ficaram sob o jugo otomano durante quase cinco séculos.
Em finais da década de 80 a alteração do equilíbrio demográfico levou os Albaneses a exigirem que
o Cossovo fosse elevado ao estatuto de uma república jugoslava. Os Sérvios e o governo jugoslavo
resistiram, receando que, quando o Cossovo adquirisse o direito de secessão, o reivindicasse e,
possivelmente, se unisse à Albânia. Em Março de 1981 ocorreram protestos e tumultos em apoio à
exigência de lhe ser outorgado o estatuto de república. De acordo com os Sérvios, intensificou-se a
discriminação, as perseguições e a violência contra a sua etnia. «No Cossovo, a partir de finais dos
anos 70», notava um protestante croata, «[ ... ] têm-se verificado numerosos incidentes violentos
que incluem danos materiais, perdas de emprego, perseguições, violações, agressões e homicídios.»
Como resultado, «os sérvios exigem que a ameaça que pesa sobre eles seja considerada como tendo
as proporções de um genocídio, que, como tal, não poderá ser tolerado». A situação dos sérvios do
Cossovo teve eco em toda a Sérvia e em 1986 deu origem a uma declaração, assinada por 200
proeminentes figuras públicas sérvias - intelectuais, políticos, dirigentes religiosos e militares,
incluindo o editor do jornal da oposição Praxis -, que
307
exigia que o governo tomasse medidas vigorosas para pôr fim ao genocídio dos sérvios no Cossovo.
Esta acusação era francamente exagerada, seja qual for a definição de genocídio utilizada, embora,
de acordo com um observador simpatizante dos Albaneses, «durante os anos 80 os nacionalistas
albaneses tenham sido responsáveis por um grande número de ataques violentos a sérvios e pela
destruição de alguns dos seus bens materiais.
Tudo isto avivou o nacionalismo sérvio e Slobodan Milosevic aproveitou a oportunidade. Em 1987
pronunciou um discurso no Cossovo apelando aos Sérvios para que reivindicassem a sua terra e a
sua história. «Imediatamente um grande número de sérvios - comunistas, não comunistas e mesmo
anticomunistas - começaram a juntar-se à sua volta, determinados não só a protegerem a minoria
sérvia no Cossovo, como a suprimir os albaneses e a transformá-los em cidadãos de segunda classe.
Em seguida Milosevic foi reconhecido como chefe nacional.» Dois anos mais tarde, em 28 de Junho
de 1989, Milosevic voltou ao Cossovo, juntamente com 1 a 2 milhões de sérvios, para comemorar o
600.o aniversário da grande batalha que simboliza a guerra eterna contra os muçulmanos.
Os receios sérvios e o nacionalismo provocado pelo crescente número e poder dos Albaneses foram
agravados pelas mutações demográficas na Bósnia. Em 1961 os Sérvios constituíam 43% da
população da Bósnia-Herzegovina e os muçulmanos 26%. Em 1991 as percentagens eram quase
exactamente as inversas: os Sérvios baixaram para 31%, enquanto os muçulmanos subiram para
44%. Durante estes trinta anos os Croatas desceram de 22% para 17%. A expansão étnica de um
grupo originou a limpeza étnica pelo outro. «Por que matamos as crianças?», perguntou e respondeu
um combatente sérvio em 1992: «Porque qualquer dia eles crescem e então teremos de os matar.»
De um modo menos brutal, foi assim que as autoridades croatas da Bósnia actuaram para
impedirem que as suas terras fossem «ocupadas demograficamente» pelos muçulmanos@.
As alterações demográficas e largas camadas etárias jovens de 20% ou mais em relação ao que seria
normal são a causa de muitos dos conflitos intercivilizacionais de finais do século XX. Contudo,
não os explicam todos. Por exemplo, a luta entre Sérvios e Croatas não pode ser atribuída à
demografia, e só parcialmente à história, dado que estes dois povos viveram juntos de uma forma
relativamente pacífica até os Ustachis croatas massacrarem os Sérvios durante a Segunda Guerra
Mundial. Neste caso, como noutros, a política é uma causa suplementar de conflito.
O colapso dos Impérios Austro-Húngaro, Otomano e Russo no final da Primeira Guerra Mundial
estimulou os conflitos étnicos e civilizacionais
308
entre os povos e os Estados que lhes sucederam. O final dos Impérios Britânico, Francês e Holandês
produziu um efeito semelhante depois da Segunda Guerra Mundial. A queda dos regimes
comunistas na União Soviética e na Jugoslávia ocasionou o mesmo no fim da guerra fria. As
pessoas já não se identificavam como comunistas, cidadãos soviéticos ou jugoslavos e precisavam
desesperadamente de encontrar novas identidades. Encontraram-nas na etnia e na religião. A ordem
repressiva mas pacífica de Estados que não acreditavam na existência de Deus foi substituída pela
violência de povos dedicados a deuses diferentes.
Este processo foi exacerbado pela necessidade de as novas entidades políticas adoptarem
procedimentos democráticos. Quando a União Soviética e a Jugoslávia começaram a desintegrar-se,
os dirigentes no poder não organizaram eleições nacionais. Se o tivessem feito, os dirigentes
políticos teriam competido pelo poder central e poderiam ter tentado apelar ao eleitorado
multiétnico e multicivilizacional e juntar no parlamento coligações semelhantes. Em vez disso, quer
na União Soviética, quer na Jugoslávia, as eleições foram organizadas ao nível da república, que
criou o incentivo irresistível para os dirigentes políticos fazerem campanha contra o centro,
apelando ao nacionalismo étnico e promovendo a independência das suas repúblicas. Mesmo na
Bósnia a população votou segundo as linhas de separação étnica nas eleições de 1990. O
multiétnico Partido Reformista e o antigo partido comunista conquistaram menos de 10% da
votação. Os votos no Partido Muçulmano de Acção Democrática (34%), no Partido Democrático
Sérvio (30%) e na União Democrática Croata (18%) correspondem, aproximadamente, às
percentagens de muçulmanos, sérvios e croatas na população. As primeiras eleições livres em quase
todas as repúblicas das antigas União Soviética e Jugoslávia foram vencidas pelos dirigentes
partidários que apelaram aos sentimentos nacionalistas e prometeram acções vigorosas para
defenderem a sua nacionalidade contra os outros grupos étnicos. A competição eleitoral encoraja os
apelos nacionalistas e promove, assim, a transformação dos conflitos civilizacionais em guerras
civilizacionais. Quando, para usar uma frase de Bogdan Denitch, «o ethnos se torna demos», o
resultado inicial é polemos, ou guerra.
Ao findar o século XX, a questão que permanece é esta: por que estão os muçulmanos mais
empenhados na violência intergrupal do que os povos de outras civilizações. Será que foi sempre
assim? No passado os cristãos mataram os seus irmãos cristãos e outras pessoas em números
iinpressionantes. Avaliar a propensão da violência ao longo da história requereria uma investigação
que não é agora possível. Contudo, podem identificar-se as possíveis causas da actual violência do
grupo muçulmano,
309
tanto dentro como fora do islão, e distinguir as causas que podem explicar uma maior propensão
para o conflito grupal ao longo da história, caso exista, assim como as que podem explicar essa
propensão apenas no final do século XX. Podemos pensar em seis causas possíveis. Três explicam
apenas a violência entre muçulmanos e não muçulmanos e três outras explicam também essa e
ainda a violência entre muçulmanos. Três explicam só a propensão muçulmana contemporânea para
a violência, enquanto as outras três explicam também essa e ainda a propensão histórica, caso
exista. Contudo, se não existir esta propensão histórica, então as presumíveis causas que não podem
explicar a inexistência de propensão histórica, também presumivelmente, não explicam a propensão
muçulmana contemporânea para a violência de grupo. Esta apenas poderá ser explicada por causas
do século XX que não existiam em séculos anteriores.
Primeira causa: pode dizer-se que o islão tem sido, desde o início, uma religião de espada que
glorifica as virtudes militares. O islão tem origem «entre as tribos nómadas beduínas hostis»,
estando esta «origem violenta gravada na fundação do islão. O próprio Maomé é recordado como
um valente guerreiro e um comandante militar competente.» (Ninguém diria o mesmo de Cristo ou
de Buda.) A doutrina do islão, argumentam alguns, obriga à guerra contra os infiéis, e, quando a
expansão do islão abrandou, os grupos muçulmanos, bem ao contrário da doutrina, começaram a
lutar entre si. A percentagem da fítna, ou conflito interno, em comparação com a jihad, basculou
pronunciadamente em favor da primeira. O Corão e outros textos muçulmanos fundamentais
contêm poucas proibições de violência e da doutrina e da prática muçulmanas está ausente qualquer
conceito de não violência.
Segunda: desde a sua origem, na Arábia, a expansão do islão através do Norte de África, de uma
boa parte do Médio Oriente, da Ásia central, do subcontinente indiano e dos Balcãs proporcionou
aos muçulmanos um
310
contacto directo com muitos povos diferentes, que conquistaram e converteram, e o legado deste
processo ainda persiste. Na sequência das conquistas otomanas nos Balcãs, os eslavos meridionais
das cidades converteram-se ao islamismo, o que não aconteceu com os camponeses. Assim nasceu a
clivagem entre bósnios muçulmanos e sérvios ortodoxos. Pelo contrário, a expansão do império
russo para o mar Negro, o Cáucaso e a Ásia central originou um conflito contínuo, durante vários
séculos, com uma enorme variedade de povos muçulmanos. O apoio do Ocidente, no apogeu do seu
poder face ao islão, a uma pátria judaica no Médio Oriente está na base do presente antagonismo
israelo-árabe. A expansão por terra, muçulmana e não muçulmana, deu como resultado que
muçulmanos e não muçulmanos vivam numa estreita proximidade fisica por toda a Eurásia. Em
contrapartida, a expansão do Ocidente por mar não levou a que os povos ocidentais vivessem numa
proximidade territorial com os povos não ocidentais: estes ou foram sujeitos ao domínio europeu
ou, com excepção da África do Sul, foram quase exterminados pelos colonos ocidentais.
Uma terceira fonte de conflito entre muçulmanos e não muçulmanos relaciona-se com o que um
certo estadista, referindo-se ao seu próprio país, denominou a «inassimilabilidade» dos
muçulmanos. No entanto, a inassimilabilidade existe nos dois sentidos: os países muçulmanos têm
problemas com as minorias não muçuhnanas comparáveis aos que os países não muçulmanos têm
com as minorias muçulmanas. O islão é uma fé absolutista, mais do que o é o cristianismo. Mistura
religião e política e traça uma vincada linha que separa os que fazem parte do Dar al-Islam dos que
fazem parte do Dar al-harb. Daqui resulta que os confucionistas, os budistas, os hindus, os cristãos
ocidentais e os cristãos ortodoxos tenham menos dificuldade em se adaptarem e viverem uns com
os outros do que qualquer destes grupos em se adaptar e viver com os muçulmanos. As minorias
étnicas chinesas, por exemplo, são minorias economicamente dominantes na maior parte dos países
do Sueste asiático. Têm-se integrado perfeitamente nas sociedades budista, da Tailândia, e católica,
das Filipinas; não há praticamente casos significativos de violência antichinesa nesses países
praticados pelos grupos maioritários. Em contrapartida, têm ocorrido tumultos e/ou violência
antichineses na muçulmana Indonésia e na Malásia, também muçulmana, e o papel dos chineses
naquelas sociedades permanece uma questão sensível e potencialmente explosiva de um modo que
não se verifica na Tailândia e nas Filipinas.
Militarismo, inassimilibilidade e vizinhança próxima com grupos não muçulmanos são
características permanentes do islão e podem explicar a propensão muçulmana para o conflito ao
longo da história, se tal for o caso. Três outros factores, mais limitados no tempo, podem contribuir
para esta propensão no final do século XX. Uma explicação avançada pelos
311
próprios muçulmanos é o facto de o imperialismo ocidental e a sujeição das sociedades muçulmanas
nos séculos XIX e XX terem produzido uma imagem de fraqueza militar e económica dos
muçulmanos que encorajou os grupos não islâmicos a considerarem os muçulmanos um alvo
remunerador. De acordo com este argumento, os muçulmanos são vítimas de um preconceito
antimuçulmano muito generalizado, só comparável ao anti-semitismo que, ao longo da história, se
espraiou pelas sociedades ocidentais. AkbarAhmed considera que os grupos muçulmanos, como os
palestinianos, os bósnios, os naturais de Caxemira e os chechenos, são como «índios
peles-vermelhas, grupos deprimidos, privados de dignidade, encurralados nas reservas em que se
transformaram as terras dos seus antepassados». Contudo, o argumento do muçulmano como vítima
não explica os conflitos entre as maiorias muçulmanas e as minorias não muçulmanas em países
como o Sudão, o Egipto, o Irão e a Indonésia.
Um factor mais convincente, que poderia explicar o conflito intra e extra-islâmico, é a ausência de
um ou de mais Estados-núcleos no islão. Os defensores do islão alegam frequentemente que os seus
detractores ocidentais acreditam que existe uma força central, conspiratória e directora no islão que
mobiliza e coordena as suas acções contra o Ocidente e não só. Se os críticos acreditam nisto, estão
errados. O islão é uma fonte de instabilidade no mundo porque lhe falta um centro dominante. Os
Estados que aspiram a ser os dirigentes do islão, como a Arábia Saudita, o Irão, o Paquistão, a
Turquia e, potencialmente, a Indonésia, competem para conseguirem ter influência no mundo
islâmico, mas nenhum deles está numa posição forte que lhe permita mediar conflitos no interior do
islão, assim como nenhum deles é capaz de actuar com autoridade em nome do islão para regular
conflitos entre muçulmanos e não muçulmanos.
Finalmente, e muito importante, a explosão demográfica nas sociedades muçulmanas e a
disponibilidade de grande número de indivíduos do sexo masculino com idades entre os 15 e 30
anos, frequentemente desempregados, tornaram-se uma fonte de instabilidade e de violência no seio
do islão e contra os não muçulmanos. Mesmo que possam existir outras causas, este factor seria
suficiente para explicar a violência muçulmana nos anos 80 e 90. O envelhecimento desta geração
avantajada e dificil de assimilar* na terceira década do século XXI e o desenvolvimento económico
das sociedades muçulmanas, caso ocorra, podem, consequentemente, conduzir a uma significativa
redução da propensão muçulmana para a violência e, como tal, provocar um declínio geral na
frequência e intensidade das guerras civilizacionais.
* Pig-in-the-python generation no original.
312
11
PARTE V
O fim da história aparece, pelo menos, uma vez e, ocasionalmente, mais do que uma em cada
civilização. Quando uma civilização atinge a universalidade, o seu povo fica cego por aquilo a que
Toynbee chamou a «miragem da imortalidade» e convence-se de que ela é a forma final da
sociedade humana. Assim aconteceu com o Império Romano, o califado dos Abássidas, o Império
Mongol e o Império Otomano. Os cidadãos de um Estado universal, «a despeito dos factos
aparentemente evidentes [ ...] sentem-se inclinados a olhá-lo, não como um abrigo para a noite
numa zona selvagem, mas como a Terra Prometida, a meta de todos os esforços humanos». O
mesmo se passou com o auge da pax britannica. Em 1897, para a classe média inglesa, «a história,
como a viam, tinha acabado [...] E os Ingleses têm todos os motivos para se congratularem com o
estado de felicidade permanente que este fim da história lhes oferece.» No entanto, as sociedades
que assumem que a sua história chegou ao fim são, normalmente, sociedades cuja história está
próxima do declínio.
355
Será o Ocidente uma excepção a este padrão? Melko forinulou perfeitamente as duas questões
fundamentais:
Primeira: será a civilização ocidental uma nova espécie, numa categoria à parte, incomparavelmente
diferente de todas as outras civilizações que existiram?
Segunda: a sua expansão mundial ameaçará (ou garantirá) o fim da possibilidade de
desenvolviinento de todas as outras civilizações?
A tendência da maior parte dos Ocidentais será, naturalmente, para responderem afirmativamente a
estas duas questões. E talvez tenham razão. No entanto, no passado, os povos das outras
civilizações pensavam da mesma forma e estavam errados.
É óbvio que o Ocidente difere de todas as outras civilizações que existiram pela influência essencial
que teve sobre todas as outras que existiram desde 1500. Também deu origem aos processos de
modernização e de industrialização que se espalharam por todo o mundo, o que deu como resultado
que as sociedades de todo o mundo tentassem alcançar o Ocidente na riqueza e na modernidade.
Significarão, contudo, estas características do Ocidente que a evolução e a dinâmica da sua
civilização são fundamentalmente diferentes dos padrões que prevaleceram nas outras civilizações?
Os dados da história e as análises dos especialistas de história comparada das civilizações não vão
nesse sentido. Até agora o desenvolvimento do Ocidente não se afastou significativamente dos
padrões de evolução comuns a todas as civilizações ao longo da história. O Ressurgimento islâmico
e o dinamismo económico da Ásia demonstram que as outras civilizações estão bem vivas e que,
pelo menos, representam uma ameaça potencial para o Ocidente. Uma grande guerra entre o
Ocidente e os Estados-núcleos de outras civilizações não é inevitável, mas pode acontecer. Um
cenário alternativo seria o declínio gradual e irregular do Ocidente, que começou em princípios do
século XX e que poderia continuar nas próximas décadas e, talvez mesmo, nos próximos séculos.
Ou o Ocidente poderia passar por um período de renascimento, invertendo a sua decrescente
influência nos assuntos mundiais, reconfirmando a sua posição como líder que as outras civilizações
querem seguir e imitar.
Carroll Quigley, no que é, provavelmente, a mais útil periodização das civilizações históricas,
encontra um padrão comum com sete fases. Segundo esta abordagem, a civilização ocidental
começou, gradualmente, a tomar forma entre os anos 370 e 750 da nossa era, misturando elementos
provenientes das culturas clássicas, semíticas, sarracenas e bárbaras. O período de gestação, que
durou entre meados do século VIII e fins
356
do século X, foi seguido, o que não é usual nas civilizações, de movimentos em frente e para a
retaguarda, entre fases de expansão e fases de conflito. No dizer de Quigley e de outros especialistas
em civilizações, o Ocidente parece estar agora a sair da fase conflitual. A civilização ocidental
tornou-se uma zona de segurança; as guerras internas, com excepção de uma ocasional guerra fria,
são impensáveis. O Ocidente está a desenvolver, como foi discutido no capítulo 2, o equivalente a
um império universal sob a forma de um sistema complexo de confederações, federações, regimes e
outros tipos de instituições cooperativas que encarnam ao nível civilizacional o seu empenhamento
na política democrática e pluralista. Em resumo, o Ocidente tornou-se uma sociedade adulta, entrou
no que as gerações futuras, segundo este modelo de periodização das civilizações, considerarão uma
«idade de ouro», um período de paz resultante, segundo Quigley, «da ausência de qualquer forma
de conflito entre unidades dentro da área da civilização e da improbabilidade ou mesmo ausência de
lutas com as sociedades exteriores». É também um período de prosperidade que resulta do «fim da
destruição beligerante interna, da redução das barreiras comerciais, do estabelecimento de um
sistema de pesos, medidas e moedas e da generalização de um sistema de despesas públicas
associado ao estabelecimento de um império universal».
Nas civilizações anteriores esta feliz fase da idade de ouro, com as suas visões de imortalidade,
terminou ou dramatica e rapidamente com a vitória de uma sociedade exterior, ou lenta, mas
também penosamente, devido à desintegração interna. O que acontece dentro de uma civilização é
tão importante para resistir à destruição vinda do exterior, como o é para evitar a decadência que
vem do seu interior. As civilizações desenvolvem-se, disse Quigley em 1961, porque dispõem de
um «instrumento de expansão», que é uma organização militar, religiosa, política ou económica que
acumula os excedentes e os investe em inovações produtivas. As civilizações declinam quando
param com «a aplicação dos excedentes em novas formas de fazer coisas. Em linguagem moderna,
dizemos que a taxa de investimento diminui.» Tal acontece porque os grupos sociais que controlam
os excedentes estão interessados «na satisfação dos seus objectivos pessoais não produtivos [...]
consagrando os excedentes ao consumo e não criando mais métodos eficazes de produção». As
pessoas vivem do seu capital e a civilização passa de um período de Estado universal para o período
da decadência. É um período de grave depressão económica, diminuição dos níveis de vida, guerras
civis entre os diferentes grupos de interesses e crescente aumento de iliteracia.
357
A sociedade torna-se cada vez mais fraca. Para parar este processo de desgaste legisla-se em vão. Mas o
declínio continua. Os diferentes níveis religiosos, intelectuais, sociais e políticos da sociedade começam a
perder em grande escala a confiança da população. Começam a alastrar na sociedade novos movimentos
religiosos. Há uma crescente relutância em lutar pela sociedade, ou mesmo apoiá-la, pagando os impostos.
A decadência conduz à fase da invasão «quando a civilização já não é capaz de se defender porque não tem
vontade de se defender, ficando aberta aos ‘invasores bárbaros'», que, frequentemente, provêm de «outra
civilização, mais jovem e mais poderosa».
A lição primordial da história das civilizações, no entanto, consiste em que muitas coisas são possíveis, mas
nenhuma é inevitável. As civilizações podem e têm-se reformado e renovado. A questão crucial do Ocidente é
a de saber se, para além de qualquer alteração externa, é capaz de travar e de inverter o processo interno de
decadência. Poderá o Ocidente renovar-se ou assistir-se-á à continuação desse apodrecimento interno e ao seu
fim e/ou subordinação a outras civilizações económica e demograficamente mais dinâmicas*?
* Quigley conclui com uma previsão que pode estar certa, mas que não está apoiada pela sua análise teórica e
empírica: «A civilização ocidental não existia até ao ano 500; começou a existir em pleno cerca de 1500 e,
seguramente, deixará de existir no futuro, talvez por volta de 2500.» As novas civilizações na China e na
índia, substituindo as destruídas pelo Ocidente, acrescenta ele, entrarão nas suas fases de expansão e
ameaçarão as civilizações ocidental e ortodoxa [Carroll Quigley, The Evolution of Civilizations: An
Introduction to Historical Analysis, Indianapolis, Liberty Press, 1979 (publicado originalmente por Macmillan
em 1961), pp. 127 e 164-166].
Em meados dos anos 90 o Ocidente tinha muitas características que Quigley identificou como as de uma
civilização à beira da decadência.
O Ocidente era economicamente mais rico do que qualquer outra civilização, mas também tinha menor
crescimento económico e taxas de poupança e de investimento mais baixas, principalmente quando em
comparação com as sociedades do Extremo Oriente. O consumo individual e colectivo tinha prioridade sobre
a criação de capacidade para garantir o futuro poder económico e militar. O crescimento demográfico natural
era pequeno principalmente se comparado com o dos países islâmicos. No entanto, nenhum destes problemas
teria, inevitavelmente, consequências catastróficas. As economias ocidentais estão ainda em crescimento; os
povos ocidentais estão a viver cada vez melhor; o Ocidente lidera a investigação científica e a inovação
tecnológica. É improvável que as baixas taxas de natalidade sejam melhoradas pelos governos (cujos esforços
para o
358
conseguirem têm ainda menos sucesso do que os seus esforços para reduzirem o crescimento
demográfico). Contudo, a imigração seria uma potencial fonte de novo vigor e de capital humano
desde que fossem satisfeitas duas condições: primeira, que fosse dada prioridade a pessoas capazes,
qualificadas e enérgicas dotadas do talento e das qualificações de que o país de acolhimento
necessita; segunda, que os novos imigrantes e os seus descendentes fossem assimilados às culturas
do país e do Ocidente. É provável que os Estados Unidos tenham problemas na satisfação da
primeira condição e que os países europeus os tenham na satisfação da segunda. Contudo,
estabelecer políticas que definam os níveis, origens, características e assimilação de imigrantes está
dentro da experiência e da competência dos governos ocidentais.
Os problemas do declínio moral, do suicídio cultural e da desunião política são bem mais
importantes do que a economia e a demografia. De entre as mais evidentes manifestações de
declínio moral, citamos:
1 . Aumento de comportamentos anti-sociais, como o crime, consumo de drogas e, mais geralmente,
violência;
2. Declínio da família, incluindo aumento das taxas de divórcio, de nascimentos ilegítimos, da
gravidez de menores e de famílias monoparentais;
3. Diminuição do «capital social» (pelo menos nos Estados Unidos), isto é, participação em
associações voluntárias, o que significa uma menor confiança entre as pessoas;
4. Enfraquecimento geral da «ética do trabalho» e de um culto da condescendência pessoal;
5. Menor empenhamento no saber e na actividade intelectual, que se manifesta nos Estados Unidos
em níveis escolares mais baixos.
O futuro vigor do Ocidente e a sua influência nas outras sociedades dependem, em considerável
medida, do seu sucesso em fazer face a estas tendências, que, a manterem-se, darão razão a
reivindicações de superioridade moral de muçulmanos e asiáticos.
A cultura ocidental é contestada por grupos dentro das sociedades ocidentais. Um desses desafios
provém dos imigrantes de outras civilizações, que rejeitam a assimilação e continuam a aderir e a
propagar os valores, costumes e culturas das suas sociedades de origem. Este fenómeno é mais
notório entre os muçulmanos na Europa, que são, contudo, uma pequena minoria. Também se
manifesta em menor grau entre os hispânicos nos Estados Unidos, onde são uma grande
minoria. Se a assimilação não for feita, os Estados Unidos tornar-se-ão um país dividido, com
359
potencial para uma luta interna e para a consequente desunião. Na Europa a civilização ocidental
pode também ser minada pelo enfraquecimento da sua componente central, o cristianismo.
Percentagens decrescentes de europeus têm crenças, cumprem práticas e participam em actividades
religiosas. Esta tendência reflecte não tanto hostilidade à religião, mas antes É indiferença.
Contudo, os conceitos, práticas e valores cristãos impregnam a civilização europeia. «Os Suecos
são, provavelmente, o povo menos religioso da Europa», comentou um deles, «mas para se poder
compreender verdadeiramente este país é preciso saber que as nossas instituições, práticas sociais,
famílias, política e modo de vida são fundamentalmente moldados pela nossa herança luterana.»
Contrariamente aos Europeus, os Americanos acreditam maioritariamente em Deus, consideram-se
pessoas religiosas e vão à igreja em grande número. Este ressurgimento da religião, que não se
manifestava em meados da década de 80, manifestou-se na década seguinte com uma actividade
religiosa intensa. A erosão do cristianismo entre os Ocidentais não é senão, na pior das hipóteses,
uma ameaça a longo prazo para o vigor da civilização ocidental.
Os Estados Unidos estão confrontados com uma ameaça mais imediata e mais séria.
Historicamente, a identidade nacional americana tem sido definida, culturalmente, pela herança da
civilização ocidental e, politicamente, pelos princípios constantes do credo americano, com os quais
a esmagadora maioria do povo concorda: liberdade, democracia, individualismo, igualdade perante
a lei, constitucionalismo e propriedade privada. Em finais do século XX estas componentes
políticas e culturais da identidade americana estão sujeitas a um ataque poderoso, concentrado e
sustentado por um pequeno mas influente número de intelectuais e articulistas. Em nome do
multiculturalismo, atacam a identificação dos Estados Unidos com a civilização ocidental, negam a
existência de uma cultura americana comum e promovem identidades e agrupamentos subnacionais
raciais, étnicos e outros. Denunciam, usando palavras de um dos seus textos, «a sistemática
predisposição para a cultura europeia e seus derivados» na educação e a «dominação da perspectiva
monocultural euro-americana». Os multiculturalistas são, como disse Arthur M. Schlesinger Jr.,
«muito frequentemente separatistas etnocêntricos que pouco mais vêem na herança ocidental do que
crimes ocidentais». O seu «estado de espírito é o de libertarem os Americanos da pecaminosa
herança europeia, procurando infusões redentoras de culturas não ocidentais».
A tendência multicultural também se tem manifestado na variada legislação que se seguiu à
aprovação das leis sobre direitos civis dos anos 60 e a administração Clinton, na década de 90, fez
da defesa da diversidade um dos seus objectivos. O contraste com o passado é chocante. Os
360
Founding Fathers viram a diversidade como uma realidade e como um problema: daí o lema
nacional, et pluribus unum, escolhido por um comité do Congresso Continental constituído por
Benjamin Franklin, Thomas Jefferson e John Adams. Mais tarde, os dirigentes políticos,
conscientes dos perigos da diversidade racial, étnica, económica e cultural (que, de facto, originou a
maior guerra do século, entre 1815 e 1914), responderam ao apelo de união e adoptaram como sua
principal responsabilidade a promoção da unidade nacional. «A maneira absolutamente certa de
arruinar este país, de impedir qualquer possibilidade de continuar como uma nação», avisou
Theodore Roosevelt, «seria permitir que se tornasse um emaranhado de nacionalidades litigantes.»
Contudo, na década de 90 os dirigentes dos Estados Unidos não só permitiram, como promoveram,
a diversidade, em vez da unidade, do povo que governam.
Os dirigentes políticos de outros países tentaram, por vezes, como já vimos, o repúdio da sua
herança cultural e a transferência da identidade do seu país de uma civilização para outra. Até agora
nenhum caso teve sucesso; pelo contrário, criaram países esquizofrénicos dilacerados.
Analogamente, os multiculturalistas americanos rejeitam a herança cultural do seu país. Contudo,
em vez de tentarem identificar os Estados Unidos com outra civilização, desejam criar um país de
muitas civilizações, ou seja, um país que não pertence a nenhuma civilização, faltando-lhe um
núcleo cultural. A história ensina-nos que nenhum país assim constituído pode perdurar como
sociedade coerente. Uns Estados Unidos multicivilizacionais não seriam os Estados Unidos, seriam
as Nações Unidas.
os multiculturalistas também põem em causa um elemento central do credo americano, substituindo
os direitos individuais pelos direitos do grupo, principalmente definidos em termos de raça, etnia,
sexo e preferência sexual. O credo, disse Gunnar Myrdal em 1940, reforçando os comentários de
observadores estrangeiros, de Hector St. John de Crèvecoeur a Alexis de Tocqueville, tem sido «o
cimento da estrutura desta grande e díspar nação». Richard Hofstader concordou: «Tem sido o
nosso destino como nação não ter ideologias, mas apenas uma?.» O que aconteceria então aos
Estados Unidos se aquela ideologia fosse repudiada por uma parte significativa dos seus cidadãos?
O destino da União Soviética - o outro grande país cuja unidade, mesmo mais do que a dos Estados
Unidos, foi definida em termos ideológicos - é um sério exemplo para os Americanos. «O total
inssucesso do marxismo [...] e a dramática fragmentação da União Soviética», escreveu o filósofo
japonês Takeshi Umehara, «são apenas os precursores do colapso do liberalismo ocidental, a
principal corrente da modernidade. Longe de ser a alternativa ao marxismo e de ser
361
a ideologia reinante no fim da história, o liberalismo será a próxima pedra de dominó a tombar.»
Numa época em que todos os povos se definem em termos culturais que lugar haverá para uma
sociedade sem um núcleo cultural e apenas definida pelo credo político? Os princípios políticos não
são uma base sólida em que assente uma comunidade duradoura. Num mundo multicivilizacional,
onde a cultura é um elemento central, os Estados Unidos seriam a última reserva de um mundo
ocidental em extinção onde primava a ideologia.
A rejeição do credo e da civilização ocidental significaria o fim dos Estados Unidos como os
conhecemos. Também significaria o fim da civilização ocidental. Se os Estados Unidos se
desocidentalizassem, o Ocidente ficaria reduzido à Europa e a alguns países de colonização
europeia pouco povoados. Sem os Estados Unidos o Ocidente tornar-se-ia uma minúscula e
decrescente parte da população mundial numa pequena e inconsequente península na extremidade
da massa terrestre da Eurásia.
O choque entre os defensores do multiculturalismo e os defensores da civilização ocidental e do
credo americano é o «verdadeiro conflito» dentro do segmento americano da civilização ocidental,
no dizer de James Kurth. Os Americanos não podem deixar de se interrogar se são ou não um povo
ocidental. O futuro dos Estados Unidos e do Ocidente depende da reafirmação dos Americanos em
favor da civilização ocidental. Ao nível interno, tal significa fechar os ouvidos aos «cantos de
sereia» do multiculturalismo. Ao nível internacional, tal significa rejeitar as tentativas ilusórias de
assimilação dos Estados Unidos à Ásia. Quaisquer que sejam os laços económicos que possam
existir entre estes dois espaços, o enorme fosso cultural existente entre as sociedades asiática e
americana exclui a sua junção num «lar comum». Os Americanos fazem, culturalmente, parte da
família ocidental; os multiculturalistas podem danificar ou até destruir aquela relação, mas não
podem substituí-la. Quando os Americanos procuram as suas raízes culturais, encontram-nas na
Europa.
Em meados dos anos 90 surgiu uma nova discussão sobre a natureza e o futuro do Ocidente, sobre o
reconhecimento renovado da existência de tal realidade, procurando saber o que fazer para
salvaguardar a sua continuada existência. Em parte, esta discussão resultou da necessidade de
alargar a primeira instituição ocidental - a NATO - para associar os Estados do Ocidente aos do
Leste e das sérias divisões que se levantaram no campo ocidental sobre a forma de dar resposta à
divisão da Jugoslávia. Também reflectia, de um modo geral, a ansiedade existente acerca da
unidade futura do Ocidente na ausência da ameaça soviética e, principalmente, quais os reflexos do
empenhamento dos Estados Unidos em relação à Europa. À medida que os países ocidentais têm
crescentes
362
ligações com sociedades não ocidentais, cada vez mais poderosas, tornam-se mais conscientes do
núcleo comum cultural ocidental que os une. Os dirigentes de ambas as margens do Atlântico
realçam a necessidade de rejuvenescer a comunidade atlântica. No final de 1994 e em 1995 os
ministros da Defesa alemão e inglês, os ministros dos Negócios Estrangeiros, Henry Kissinger e
várias outras figuras de proa abraçam essa causa.
Esta foi resumida pelo ministro da Defesa britânico Malcolm Rifkind, que, em Novembro de 1994,
defendeu a necessidade de «uma comunidade atlântica», assente em quatro pilares: defesa e
segurança, garantidas pela NATO; «crença comum no primado da lei e na democracia parlamentar;
«capitalismo liberal e livre comércio»; «herança cultural europeia comum, emanando da Grécia e de
Roma, através do Renascimento, e que inclui a partilha de valores, de crenças e de civilização do
nosso próprio século». Em 1995 a Comissão Europeia lançou um projecto de «renovação» da
relação transatlântica que levou à assinatura de um extenso pacto entre a União e os Estados
Unidos. Simultaneamente, muitos políticos europeus e empresários apoiaram a criação de uma área
de comércio livre transatlântico. Embora o AFL-CIO se oponha ao NAFTA e a outras medidas de
liberalização, o chefe deste sindicato apoiou calorosamente este acordo de comércio transatlântico
que não ameaçaria postos de trabalho americanos em concorrência com países com mão-de-obra
muito barata. Foi também apoiado por conservadores, quer europeus (Margaret Thatcher), quer
americanos (Newt Gingrich), assim como por dirigentes políticos canadianos e outros britânicos.
O Ocidente, como foi discutido no capítulo 2, conheceu uma primeira fase europeia de
desenvolvimento e de expansão, que durou vários séculos, e depois uma segunda fase americana, no
século XX. Se a América do Norte e a Europa renovarem a sua vida moral, baseada nas suas
afinidades culturais, e desenvolverem formas estreitas de integração económica e política, para
complementar a sua colaboração na segurança, poderão originar uma terceira fase euro-americana
de prosperidade económica e influência política. Uma significativa integração política poderia, em
certa medida, opor-se ao relativo declínio do Ocidente na situação demográfica, no produto
económico e no potencial militar e renovar o poder do Ocidente aos olhos dos dirigentes das outras
civilizações. «Com o seu poder comercial», avisou os Asiáticos o primeiro-ministro Mahathir, «a
confederação UE-NAFTA poderia ditar a lei ao resto do mundo.» No entanto, manter o Ocidente
unido política e economicamente depende principalmente de os Estados Unidos reafirmarem a sua
identidade como nação ocidental e de definirem o seu papel global como líderes da civilização
ocidental.
363
O Ocidente no mundo
Um mundo onde as identidades culturais - étnicas, nacionais, religiosas e civilizacionais - são
centrais e as afinidades e as diferenças culturais decidem as alianças, os antagonismos e a
orientação política dos Estados, um mundo assim produz três grandes consequências para o
Ocidente, em geral, e para os Estados Unidos, em particular.
Primeira: os estadistas só podem mudar construtivamente a realidade se a conhecerem e a
compreenderem. As novas políticas de cultura, o ascendente poder das civilizações não ocidentais e
a crescente afirmação destas sociedades têm sido amplamente reconhecidos no mundo não
ocidental. Os dirigentes europeus têm chamado a atenção para as forças culturais que unem e
separam as pessoas. Em contrapartida, os seus homólogos americanos têm sido lentos a aceitar e a
enfrentar estas novas realidades. As administrações Bush e Clinton apoiaram a unidade das
multicivilizacionais União Soviética, Jugoslávia, Bósnia e Rússia e tentaram, em vão, opor-se às
poderosas forças étnicas e culturais que empurravam para a desunião. Promoveram planos de
integração económica multicivilizacionais que não fazem sentido, como é o caso da APEC
(Asia-Pacific Economic Cooperation), ou envolvem custos políticos e económicos dificeis de
prever, como é o caso do NAFTA (North America Free Trade Agreement), devido ao México.
Tentaram desenvolver relações estreitas com os Estados-núcleos de outras civilizações, sob a forma
de «parceria global», com a Rússia, ou «empenhamento construtivo», com a China, face aos
naturais conflitos de interesses entre os Estados Unidos e esses países. Ao mesmo tempo, a
administração Clinton não conseguiu envolver profundamente a Rússia na busca da paz na Bósnia,
apesar do grande interesse da Rússia naquela guerra por ser o Estado-núcleo da ortodoxia. A
administração Clinton, persistindo na ideia quimérica de um país multicivilizacional, não
reconheceu o direito à autodeterminação das minorias sérvia e croata e ajudou a criar nos Balcãs um
Estado islâmico, parceiro do islão. Com o mesmo espírito, o governo americano também apoiou a
sujeição de muçulmanos ao domínio ortodoxo, afirmando que «sem qualquer dúvida, a Chechénia é
parte da Federação Russa».
Apesar de todos os europeus reconhecerem o significado fundamental da linha divisória entre a
cristandade ocidental, por um lado, e a ortodoxia e o islão, por outro, nos Estados Unidos o seu
secretário de Estado disse que «não reconheceria qualquer linha de divisão fundamental entre partes
da Europa destinadas a católicos, ortodoxos e islâmicos». No entanto, aqueles que não reconhecem
divisões fundamentais estão condenados a sofrer frustrações por sua causa. No princípio a
administração Clinton
364
pareceu esquecer a oscilação verificada na balança de poder entre os Estados Unidos e as
sociedades asiáticas do Extremo Oriente, só assim se explicando ter proclamado repetidas vezes
objectivos respeitantes a comércio, direitos humanos, proliferação nuclear e outras questões que não
foi capaz de concretizar. De um modo geral, o governo dos EUA tem tido uma enorme dificuldade
em adaptar-se a uma era em que a politica global é moldada por tendências culturais e
civilizacionais.
Segunda consequência: a política externa americana mostra alguma relutância em abandonar, alterar
ou, por vezes, reconsiderar políticas adoptadas para fazerem face às necessidades da guerra fria.
Para alguns a União Soviética ainda é considerada uma ameaça potencial ressuscitada. De um modo
mais geral, tende-se a santificar as alianças e os acordos de controle de armamentos do período da
guerra fria. A NATO deve ser mantida como estava durante a guerra fria. O Tratado de Segurança
entre o Japão e os Estados Unidos é essencial para manter a segurança no Extremo Oriente. O
Tratado ABM (referente aos mísseis antibalísticos) é inviolável. O tratado CFE (sobre forças
convencionais na Europa) deve ser respeitado. Obviamente, nenhuma destas ou de outras heranças
da guerra fria deveria ser ligeiramente posta de lado. Todavia, também não é do interesse dos
Estados Unidos ou do Ocidente que se mantenham na forma da guerra fria. As realidades de um
mundo multicivilizacional sugerem que a NATO devia ser alargada, incluindo outras sociedades
ocidentais desejosas de aderirem à organização e reconhecendo o absurdo que consiste em ter como
membros dois Estados que são os piores inimigos um do outro e onde faltam afinidades culturais
com os outros membros. Um tratado ABM concebido para fazer face às necessidades da guerra fria
e garantir a mútua vulnerabilidade das sociedades soviética e americana e, assim, dissuadir a guerra
nuclear soviético-americana pode dificultar a capacidade dos Estados Unidos e de outras sociedades
de se protegerem contra ameaças nucleares imprevisíveis ou contra ataques de movimentos
terroristas e de ditadores irracionais. O Tratado de Segurança entre os Estados Unidos e o Japão
ajudou a dissuadir uma agressão soviética contra o Japão. Que finalidade se propõe servir no
período pós-guerra fria? Conter e dissuadir a China? Abrandar a velocidade do processo de
acomodação japonês à emergente China? Impedir uma maior militarização japonesa? Levantam-se
crescentes dúvidas, no Japão, acerca da presença militar americana nesse país e, nos Estados
Unidos, acerca da necessidade de um empenhamento não recíproco de defender o Japão.
O Acordo sobre Forças Convencionais na Europa foi concebido para moderar a confrontação
NATO-Pacto de Varsóvia na Europa central, ameaça que desapareceu. Agora o principal impacto
do acordo é criar dificuldades
365
à Rússia para fazer face ao que ela entende serem ameaças à sua segurança vindas dos povos
muçulmanos do Sul.
Terceira consequência: a diversidade cultural e civilizacional põe em questão o Ocidente,
particularmente a crença americana na importância universal da cultura ocidental. Esta crença
exprime-se num plano descritivo e normativo. No primeiro plano, significa que todos os povos de
todas as sociedades querem adoptar os valores, as instituições e as práticas ocidentais. Se parecem
não ter aquele desejo e estar empenhados nas suas culturas tradicionais, são vítimas de uma «falsa
consciência» comparável àquela que os marxistas encontravam nos proletários que apoiavam o
capitalismo. Normativamente, a crença universalista do Ocidente parte do pressuposto de que os
povos do mundo deviam adoptar os valores, as instituições e a cultura ocidentais, que contêm em si
o modo de pensar mais elaborado, esclarecido, racional, moderno e civilizado da humanidade.
A crença ocidental na universalidade da cultura ocidental, neste novo mundo de conflitos étnicos e
de choques de civilizações, sofre de três defeitos graves: é falsa, é imoral e é perigosa. A sua
falsidade tem sido o tema central deste livro, bem sumarizada por Michael Howard: «A ideia
partilhada pelos Ocidentais de que a diversidade cultural é uma curiosidade histórica que está a ser
minada rapidamente pelo desenvolvimento de uma cultura comum mundial, ocidentalizada e
anglófona, concebida sobre os nossos valores fundamentais [...] é muito simplesmente falsa.» Se
existe no mundo um leitor que, até este momento, não esteja convencido do senso comum do
pensamento de Sir Michael, ele vive num mundo que nada tem a ver com o descrito neste livro.
A crença de que os povos não ocidentais devem adoptar valores, instituições e cultura ocidentais é
imoral nas suas consequências. O alcance quase universal do poder europeu em finais do século
XIX e o domínio global dos Estados Unidos em finais do século XX fizeram expandir grande parte
da civilização ocidental por todo o mundo. No entanto, o globalismo europeu já não existe. A
hegemonia americana está a diminuir, quanto mais não seja porque já não é necessária para proteger
os Estados Unidos contra a ameaça soviética, como foi o caso durante a guerra fria. A cultura, como
temos defendido, segue o poder. Se as sociedades não ocidentais estão de novo a ser moldadas pela
cultura ocidental, tal só acontece como resultado da expansão, do desenvolvimento e do impacto do
poder ocidental. O imperialismo é a necessária consequência lógica do universalismo. Além disso,
como civilização madura, o Ocidente já não tem o dinamismo económico ou demográfico requerido
para impor a sua vontade a outras sociedades e qualquer esforço para o tentar é também
366
contrário aos valores ocidentais de autodeterminação e de democracia. À medida que as civilizações
asiática e muçulmana começam a afirmar cada vez mais a importância universal das suas culturas,
os Ocidentais avaliarão cada vez mais as ligações existentes entre universalismo e imperialismo.
O universalismo ocidental é perigoso para o mundo, porque poderá conduzir a uma grande guerra
intercivilizacional entre os Estados-núcleos, e é perigoso para o Ocidente, porque poderá levar à
derrota do Ocidente. Com o colapso da União Soviética, os Ocidentais vêem a sua civilização numa
posição de domínio sem paralelo, enquanto, ao mesmo tempo, as mais fracas sociedades asiática,
muçulmana e outras estão a começar a ganhar força. Poderiam, assim, ser levados a adoptar como
sua a poderosa lógica de Brutus:
As nossas legiões estão completas e a nossa causa está madura. Todos os dias o nosso inimigo é
cada vez mais numeroso; Quando atingimos o topo, o declínio ameaça-nos. Nos assuntos humanos
há uma maré. Se apanharmos a vaga certa, ela levar-nos-á àfortuna; Se a deixarmos passar, toda a
viagem da nossa vida’ Passará por baixios e por misérias. Estamos agora a navegar no mar alto.
Devemos seguir a corrente certa Ou perderemos as nossas venturas.
Todavia, esta lógica ocasionou a derrota de Brutus em Filipos. Uma postura prudente para o
Ocidente seria não tentar suster a deslocação do poder, mas aprender a navegar em baixios, a
suportar tormentas, a moderar as apostas e a preservar a sua cultura.
Todas as civilizações passam pelas mesmas etapas: emergência, desenvolvimento e declínio. O
Ocidente difere das outras civilizações, não no modo como se tem desenvolvido, mas no carácter
distinto dos seus valores e das suas instituições. Nestes incluein-se, principalmente, o cristianismo,
o pluralismo, o individualismo e o primado da lei, que tornaram possível ao Ocidente inventar a
modernidade, expandir-se pelo mundo e tornar-se objecto de inveja pelas outras sociedades. Estas
características são, no seu conjunto, peculiares ao Ocidente. A Europa, como disse Arthur M.
Schlesinger Jr., «é a fonte - a única fonte» das «ideias de liberdade individual, democracia política,
primado da lei, direitos humanos e liberdade cultural [ ... ] Estas são ideias europeias, não são
asiáticas, africanas ou do Médio Oriente, excepto por adopção». Elas tornam a civilização
367
ocidental única. A civilização ocidental é valiosa, não por ser universal, mas por ser única. A
principal responsabilidade dos dirigentes ocidentais, consequentemente, não é tentar moldar as
outras civilizações à imagem do Ocidente, o que está para além do seu poder em declínio, mas
preservar, proteger e renovar as qualidades únicas da civilização ocidental. Esta responsabilidade
recai maioritariamente nos Estados Unidos por serem o mais poderoso país ocidental.
Para preservar a civilização ocidental face ao declínio do poder do Ocidente, é do interesse dos
Estados Unidos e dos países europeus:
• Alcançar uma maior integração política, económica e militar e coordenar as suas políticas de
modo a impedir que Estados de outras civilizações explorem as suas diferenças;
• Integrar na União Europeia e na NATO os Estados ocidentais da Europa, ou seja, os países do
Visegrado, as repúblicas bálticas, a Eslovénia e a Croácia;
• Encorajar a ocidentalização da América Latina e, tanto quanto possível, o estreito alinhamento dos
seus Estados com o Ocidente;
• Restringir o desenvolvimento do poder militar, convencional e não convencional, dos países
islâmicos e sínicos;
• Contrariar o afastamento do Japão do Ocidente e a sua acomodação com a China;
• Aceitar a Rússia como o Estado-núcleo da ortodoxia e uma grande potência regional com
interesses legítimos na segurança das suas fronteiras meridionais;
• Manter a superioridade tecnológica e militar sobre as outras civilizações;
• E, mais importante, reconhecer que a intervenção ocidental nos assuntos das outras civilizações é,
provavelmente, a mais perigosa causa de instabilidade e de potencial conflito global num mundo
multicivilizacional.
Após a guerra fria, os Estados Unidos viram-se envolvidos num imenso debate sobre a correcta
orientação para a política externa americana. No entanto, na presente era os Estados Unidos nem
podem dominar o mundo nem isolar-se dele. Nem internacionalismo, nem isolacionismo, nem
multilateralismo, nem unilateralismo, servirão melhor os seus interesses. Estes serão melhor
servidos se evitarem tomar posições extremas e adoptarem uma política atlantista de estreita
cooperação com os seus parceiros europeus a fim de salvaguardarem e afirmarem os valores da sua
civilização comum.
368
Guerra civilizacional e ordem civilizacional
Uma guerra global que envolva os Estados-núcleos das maiores civilizações do mundo é altamente
improvável, mas não é impossível. Uma guerra deste tipo, como já dissemos, poderia resultar da
escalada de uma guerra civilizacional entre grupos de civilizações diferentes, mais provavelmente
envolvendo, de um lado, muçulmanos e, do outro, não muçulmanos. A escalada seria mais provável
se os candidatos a Estados-núcleos competissem entre si para fornecerem assistência aos seus
correligionários em luta. Seria menos provável se os interesses dos Estados secundários e terciários
da mesma família tivessem um interesse comum em não se envolverem profundamente na guerra. A
modificação do equilíbrio de poderes entre civilizações e os seus Estados-núcleos é a fonte mais
perigosa de uma guerra global intercivilizacional. Se prosseguir a emergência da China e a sua
crescente afirmação como «grande actor da história da humanidade», tal poderá ocasionar uma
grande tensão na estabilidade internacional em princípios do século XXI. A emergência da China
como potência dominante no Oriente e no Sueste asiático seria contrária aos interesses americanos
como têm sido historicamente definidos. Tendo em atenção este interesse americano, como poderia
deflagrar uma guerra entre os Estados Unidos e a China? Suponhamos que nos encontramos em
2010. As tropas americanas já não estão na Coreia, que se reunificou, e os Estados Unidos têm uma
presença reduzida no Japão. Taiwan e a China continental chegaram a uma situação de acomodação
em que a primeira continua a ter uma independência de facto, mas que, em contrapartida, reconhece
explicitamente a suserania de Pequim, que, por sua vez, patrocinou a admissão de Taiwan nas
Nações Unidas, seguindo o modelo da Ucrânia e da Bielorrússia em 1946. A exploração dos
recursos petrolíferos no mar do Sul da China tem prosseguido a bom ritmo, realizada, na sua maior
parte, pelos Chineses, mas com algumas áreas sob controle vietnamita a cargo de companhias
americanas. Consciente da sua crescente capacidade de projecção de poder, a China anuncia que
estabelecerá o controle total de todo o mar, sobre o qual, aliás, reclamava há muito a sua soberania.
Os Vietnamitas resistem e ocorre um combate entre navios chineses e vietnamitas. Os Chineses,
desejosos de vingarem a humilhação que sofreram em 1979, invadem o Vietname. Os Vietnamitas
pedem o auxílio americano. Os Chineses avisam os Estados Unidos para se manterem afastados do
conflito. O Japão e outros países asiáticos estremecem. Os Estados Unidos declaram que não podem
aceitar a conquista chinesa do Vietname, apelam à imposição de sanções económicas à China e
enviam uma das suas restantes esquadras com um
369
porta-aviões para o mar do Sul da China. Os Chineses denunciam esta acção como uma violação
das águas territoriais chinesas e lançam ataques aéreos contra a esquadra. Falham os esforços do
secretário-geral da ONU e do primeiro-ministro japonês para negociar um cessar-fogo e os
combates alastram a outras áreas do Extremo Oriente. O Japão proíbe a utilização das bases
americanas no seu território para quaisquer acções contra a China; os Estados Unidos ignoram essa
proibição; o Japão anuncia a sua neutralidade e coloca as bases em quarentena. Submarinos
chineses e aviões posicionados em bases terrestres, quer no continente, quer em Taiwan, provocam
graves danos em navios e instalações norte-americanas no Extremo Oriente. Entretanto, forças
terrestres chinesas entram em Hanói e ocupam vastas áreas de território vietnamita.
Desde que a China e os Estados Unidos possuem mísseis capazes de atingir os respectivos
territórios, existe uma paralisia implícita, não sendo este tipo de armas utilizado nas primeiras fases
da guerra. No entanto, existe o receio deste tipo de ataques em ambas as sociedades,
particularmente mais forte nos Estados Unidos. Daqui resulta que muitos americanos comecem a
perguntar por que devem sujeitar-se a este tipo de perigo. Que diferença faz que a China controle ou
não o mar do Sul da China, o Vietname ou mesmo todo o Sueste asiático? A oposição à guerra é
particularmente forte nos estados dominados por hispânicos do Sudoeste dos Estados Unidos, cujas
populações e governos dizem que «não é a nossa guerra», tentando adoptar o modelo da Nova
Inglaterra na guerra de 1812. Depois de os Chineses consolidarem as suas vitórias iniciais no
Extremo Oriente, a opinião pública americana começa a optar por uma atitude semelhante à que o
Japão devia ter tomado em 1942: são muito grandes os custos de vencer esta recente afirmação de
poder hegemónico; vamos, pois, caminhar para um fim negociado desta luta esporádica ou desta
«guerra falsa» em curso no Pacífico ocidental.
Contudo, a guerra está a ter impacto nos principais Estados das outras civilizações. A índia
aproveita a oportunidade de a China estar ocupada no Extremo Oriente para um ataque devastador
sobre o Paquistão com a finalidade de degradar totalmente as capacidades militares do país nos
campos nuclear e convencional. Inicialmente a iniciativa tem sucesso, mas a aliança militar entre o
Paquistão, o Irão e a China entra em acção e o Irão vem em socorro do Paquistão, com o envio de
forças militares modernas e sofisticadas. A Índia atola-se na luta contra as tropas iranianas e a
guerrilha paquistanesa, conduzida por diferentes grupos étnicos. Quer o Paquistão, quer a índia,
apelam aos Estados árabes para lhes darem ajuda -a índia fazendo avisos sobre o perigo do domínio
do Irão sobre o Sudoeste asiático -, mas os sucessos iniciais da China na sua guerra
370
contra os Estados Unidos estimulam movimentos antiocidentais mais fortes nas sociedades
muçulmanas. Um após outro, os últimos governos pró-ocidentais no mundo árabe e na Turquia são
submersos por movimentos islamitas alimentados por numerosos grupos de jovens. A vaga de
antiocidentalismo provocada pela fraqueza ocidental conduz a um ataque árabe maciço sobre Israel,
que a muito reduzida 6. esquadra da marinha dos EUA é impotente para impedir.
A China e os Estados Unidos tentam reunir apoios de outros Estados importantes. Enquanto a China
regista sucessos militares, o Japão começa por, nervosamente, alinhar com a China, mudando a sua
posição de neutralidade formal para uma neutralidade positiva pró-chinesa. Finalmente, cede às
exigências chinesas, tornando-se beligerante. As forças japonesas ocupam as ainda existentes bases
militares americanas no Japão, evacuando os Estados Unidos rapidamente as suas tropas. Os
Estados Unidos decretam um bloqueio ao Japão e navios americanos e japoneses envolvem-se em
combates esporádicos no Pacífico ocidental. No princípio da guerra a China propõe um pacto de
segurança mútua com a Rússia (uma vaga reminiscência do pacto entre Hitler e Estaline). Contudo,
as vitórias chinesas têm um efeito contrário ao que tiveram com o Japão. A perspectiva de uma
vitória chinesa e de um domínio chinês total no Extremo Oriente aterroriza Moscovo. Quando a
Rússia se movimenta numa direcção antichinesa e começa a reforçar as suas tropas na Sibéria, os
numerosos colonos chineses existentes na região interferem nestes movimentos. A China intervém
então militarmente para proteger os seus compatriotas, ocupando Vladivostoque, o vale do rio
Amur e outras áreas sensíveis da Sibéria oriental. Quando a luta se generaliza entre a Rússia e as
tropas chinesas na Sibéria central, irrompem tumultos na Mongólia, que a China havia colocado
anteriormente sob «protectorado».
O controle do petróleo e o acesso a esse bem são de importância capital para todos os combatentes.
Apesar do seu enorme investimento na energia nuclear, o Japão está ainda altamente dependente da
importação de petróleo, o que explica a sua tendência para uma acomodação com a China, de modo
a garantir o abastecímento de combustível do golfo Pérsico, da Indonésia e do mar do Sul da China.
Durante a guerra, como os países árabes ficaram sob o controle de militantes islâmicos, o
abastecimento de petróleo ao Ocidente a partir do golfo Pérsico ficou reduzido a quase nada e,
consequentemente, passou a haver uma muito maior dependência de fornecimentos provenientes da
Rússia, do Cáucaso e da Ásia central. Tal levou o Ocidente a intensificar os seus esforços para
colocar a Rússia do seu lado, apoiando-a no alargamento do seu controle sobre as áreas
muçulmanas do Sul, ricas em petróleo.
371
Entretanto, os Estados Unidos tentam ansiosamente mobilizar o apoio total dos seus aliados
europeus. Estes, embora aumentem a assistência diplomática e económica, estão relutantes em se
envolverem militarmente. Contudo, a China e o Irão receiam que os países ocidentais se ponham,
finalmente, ao lado dos Estados Unidos, exactamente como estes o fizeram quando deram apoio à
Grã-Bretanha e à França durante as últimas duas guerras mundiais. Para impedir que tal aconteça, a
China e o Irão posicionam secretamente na Bósnia e na Argélia mísseis de alcance intermédio com
capacidade nuclear como forma de aviso às potências ocidentais para se manterem fora do conflito.
Esta iniciativa tem consequências contrárias às que a China pretendia, tal como quase sempre
aconteceu com os esforços chineses para intimidarem outros países, com excepção do Japão. Os
serviços de informações dos EUA detectam e difundem esta acção e a NATO declara que os mísseis
devem ser imediatamente retirados. No entanto, antes que a NATO possa actuar, a Sérvia invade a
Bósnia com o desejo de reclamar o seu papel histórico de defensora do cristianismo contra os
Turcos. A Croácia associa-se a esta acção e os dois países ocupam e partilham a Bósnia, capturam
os mísseis e continuam a esforçar-se por completarem a linpeza étnica que foram forçados a
interromper nos anos 90. A Albânia e a Turquia tentam auxiliar os Bósnios; a Grécia e a Bulgária
lançam ofensivas contra a parte europeia da Turquia, e o pânico instala-se em Istambul, enquanto os
Turcos fogem, atravessando o Bósforo. Entretanto, um míssil com uma ogiva nuclear, lançado da
Argélia, explode nos arredores de Marselha, enquanto a NATO retalia com ataques aéreos
devastadores contra objectivos na África do Norte.
Os Estados Unidos, a Europa, a Rússia e a índia estão, assim, envolvidos num conflito
verdadeiramente global contra a China, o Japão e grande parte do islão. Como pode terminar esta
guerra? Ambas as partes têm grandes capacidades nucleares e, se estas viessem a ser utilizadas para
além do mínimo, os principais países pertencentes a estas coligações seriam substancialmente
destruídos. Se a dissuasão mútua funcionasse, a exaustão mútua poderia levar à negociação de um
armistício, que não resolveria, contudo, a questão da hegemonia chinesa no Extremo Oriente. Outra
alternativa seria o Ocidente tentar derrotar a China usando o poder militar convencional. No
entanto, o alinhamento do Japão com a China fornece a esta a protecção de um cordão sanitário
insular que impede os Estados Unidos de utilizarem o seu poder naval contra os centros
populacionais e industriais litorais. Outra solução seria aproximar a China do Ocidente. Os
combates entre a Rússia e a China levaram a admitir aquele primeiro país como membro da NATO
e a cooperar com a Rússia para iinpedir as incursões chinesas na Sibéria, mantendo o controle russo
sobre
372
o petróleo e o gás muçulmanos da Ásia central, fomentando insurreições tibetanas, uigures e
mongóis contra o domínio chinês e, gradualmente, mobilizando e posicionando forças ocidentais e
russas a leste da Sibéria para o ataque final a Pequim através da Grande Muralha, à Manchúria e ao
heartland do país Han.
Seja qual for o resultado final desta guerra civilizacional global - devastação nuclear mútua,
suspensão negociada como resultado da exaustão mútua ou avanço das forças russas e ocidentais
para a Praça Tianamnen -, a consequência a nível geral e a longo prazo seria, quase
inevitavelmente, o declínio dos poderes económico, demográfico e militar de todos os grandes
países participantes na guerra. Outro resultado: o poder global, que ao longo dos séculos transitou
do Oriente para o Ocidente e começara a regressar ao Oriente, começa agora a deslocar-se do Norte
para o Sul. Os grandes beneficiários da guerra das civilizações serão aqueles que se abstiverem de
nela participarem. Com o Ocidente, a Rússia, a China e o Japão devastados em diversos graus, fica
aberto o caminho para a índia, caso escape à devastação, mesmo que tenha sido participante, refazer
o mundo segundo uma orientação hindu. Vastos sectores da opinião pública americana acusam as
elites WASP de serem as responsáveis pelo declínio americano devido à sua estreita visão
ocidental. Dirigentes hispânicos chegam ao poder apoiados pela promessa de um vasto plano de
ajuda tipo plano Marshall - proveniente dos prósperos países da América Latina, que se mantiveram
fora da guerra. A África, por outro lado, não só tem pouco para oferecer para a reconstrução da
Europa como lança hordas de emigrantes socialmente mobilizadas para pilharem os despojos. Na
Ásia, se a China, o Japão e a Coreia fossem devastados pela guerra, o poder deslocar-se-ia para o
Sul, com a Indonésia, que se manteve neutral, a tornar-se o Estado dominante e, sob a orientação de
conselheiros australianos, a estender a sua acção a uma área que vai da Nova Zelândia, a leste, ao
Myanmar e ao Sri Lanka, a oeste, e ao Vietname, a norte. Todo este cenário é presságio de um
futuro conflito entre a Índia e uma China renascida. De qualquer modo, o centro da política mundial
move-se para o Sul.
Se o leitor achar que este cenário é fantasista e inverosímil, tanto melhor. Vamos esperar que não
existam outros cenários de guerra civilizacional global com maiores possibilidades. No entanto, o
que é mais plausível e, portanto, mais perturbador neste cenário é a causa da guerra: a intervenção
efectuada por um Estado-núcleo de uma civilização (os Estados Unidos) numa disputa entre um
Estado-núcleo de outra civilização (a China) e um Estado membro dessa civilização (o Vietname).
Tal intervenção seria necessária para os Estados Unidos fazerem respeitar o
373
direito internacional, repelirem uma agressão, protegerem a liberdade dos mares, manterem o seu
acesso ao petróleo do mar do Sul da China e impedirem a dominação de todo o Extremo Oriente por
um único país. Para a China tal intervenção seria uma tentativa completamente intolerável e
tipicamente arrogante do Estado ocidental dominante, concebida com a finalidade de humilhar e
intimidar a China, provocar oposição dentro da sua legítima esfera de influência e negar à China o
papel que lhe é devido nas questões mundiais.
Em resumo, para evitar uma grande guerra entre civilizações nos tempos que se aproximam é
necessário que os Estados-núcleos se abstenham de intervir nos conflitos que surjam em
civilizações que não sejam as suas.
Esta é, sem dúvida, uma verdade que alguns Estados, nomeadamente os Estados Unidos, acharão
dificil de aceitar. Esta regra de abstenção dos Estados-núcleos de se absterem de intervir em
conflitos de outras civilizações é o primeiro requisito para a paz num mundo multicivilizacional e
multipolar. O segundo requisito é a regra da mediação conjunta, ou seja, que os Estados-núcleos
negoceiem entre si para conterem ou impedirem guerras civilizacionais entre Estados ou grupos
pertencentes às respectivas civilizações.
A aceitação destas regras e de um mundo com uma maior igualdade entre civilizações não será fácil
quer para o Ocidente, quer para aquelas civilizações que pretendam suplementar ou suplantar o
Ocidente no seu papel dominador. Num mundo destes, por exemplo, os Estados-núcleos poderão
considerar ser prerrogativa sua a posse de armas nucleares e a negação deste tipo de armas a outros
membros da sua civilização. Zulfikar Ali Bhutto justificou nestes termos os esforços feitos para
desenvolver uma «capacidade nuclear verdadeira» para o Paquistão: «Sabemos que Israel e a África
do Sul têm capacidade nuclear real. As civilizações cristã, judaica e hindu possuem esta capacidade.
Apenas a civilização islâmica não a possui, mas esta posição tem de mudar». A competição pela
hegemonia no interior de uma civilização a quem falta um Estado-núcleo pode estimular a
competição no campo das armas nucleares. Embora tenha relações de estreita cooperação com o
Paquistão, o Irão sente que precisa de armas nucleares, tal como o Paquistão. Em contrapartida, o
Brasil e a Argentina desistiram dos programas que apontavam na direcção nuclear e a África do Sul
destruiu as suas armas nucleares, embora possa desejar readquiri-las se a Nigéria começar a
desenvolver essa capacidade. Embora, obviamente, a proliferação nuclear envolva riscos, como
Scott Sagan e outros observaram, um mundo em que um ou dois Estados-núcleos de cada grande
civilização tivessem armas nucleares e os outros Estados as não tivessem seria um mundo
razoavelmente estável.
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A maior parte das principais instituições internacionais surgiram pouco depois da Segunda Guerra Mundial e
estão moldadas de acordo com os interesses, valores e práticas ocidentais. À medida que o poder do Ocidente
diminui em relação ao de outras civilizações, estas desencadearão pressões para reformularem aquelas
instituições internacionais para as acomodarem aos seus interesses. A questão mais óbvia, mais importante e,
provavelmente, mais provocante diz respeito ao estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança
da ONU. Este estatuto foi atribuído às principais potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial e está
pouco relacionado com a actual distribuição do poder real no mundo. Dado que o caminho a percorrer é
longo, ou são feitas mudanças na atribuição do estatuto, ou o mais provável é que venham a ser adoptados
procedimentos menos formais para tratar de questões de segurança, tal como acontece com o G-7 para as
questões económicas globais. Num mundo multicivilizacional seria ideal que cada civilização tivesse, pelo
menos, um lugar permanente no Conselho de Segurança. Actualmente, apenas três o têm. Os Estados Unidos
concordaram com a atribuição do estatuto de membro permanente ao Japão e à Alemanha mas,
evidentemente, tal só seria possível se o mesmo fosse também atribuído a outros países. O Brasil sugeriu
cinco novos membros permanentes, embora sem direito de veto: Alemanha, Japão, índia, Nigéria e o próprio
Brasil. No entanto, tal deixaria mil milhões de muçulmanos sem representação, salvo se a Nigéria assumisse
essa responsabilidade. De um ponto de vista civilizacional, é evidente que o Japão e a índia deviam ser
membros permanentes e que a África, a América Latina e o mundo muçulmano deveriam ter lugares
permanentes, sendo estes ocupados rotativamente pelos Estados dominantes dessas civilizações; a selecção
deveria ser feita pela Organização da Conferência Islâmica, pela Organização da Unidade Africana e pela
Organização dos Estados Americanos (com a abstenção dos Estados Unidos). Também seria ajustado rever os
lugares atribuídos à Grã-Bretanha e à França, passando a haver um único lugar da União Europeia, com a
representação a ser efectuada por rotatividade por designação da União. Cada uma das sete civilizações teria,
assim, um lugar de membro permanente, excepto o Ocidente, que teria dois, uma representação que traduziria,
de um modo geral, a distribuição da população, da riqueza e do poder no mundo.