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CIP-Brasil. Catalogagio-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. S188p 92-0708 Samuels, Andrew A psique plural: personalidade, moralidade © 0 pai/Andrew Samuels; tradugio Rosa Maria Neves da Silva; revisio técnica Carlos Alberto Corréa Salles. — Rio de Janeiro: Imago Ed., 1992. 302p. (Série Analytica) ‘Tradugio de: The plural psyche (personality, morality and the father) Bibliografia. indice ISBN 85-312-0235-2 1. Psicanilise, 2. Pais filhos. 3. Personalidade. 4, Desenvolvimento moral. 5. Pluralismo — Aspectos psicolégicos. 1. Titulo. II. Série. CDD — 150.1954 CDU — 159.964.2 ANDREW SAMUELS A PSIQUE PLURAL Personalidade, Moralidade e 0 Pai — Série Analytica — Diregado JAYME SALOMAO ‘Tradugio ROSA MARIA NEVES DA SILVA Revisio Técnica GARLOS ALBERTO CORREA SALLES IMAGO EDITORA — Rio de Janeiro — Titulo Original THE PLURAL PSYCHE PERSONALITY, MORALITY AND THE FATHER First published in 1989 by Routledge © 1989 Andrew Samuels Copidesque: Friedrich Gustav Schmid Jénior Revisio: Pedrina Ferreira Farias Marcos José da Cunha Elisa Sankuevitz Capa: Cristina Portella Todos os direitos de reprodugio, divulgagio ¢ tradugio sio reservados. Nenhuma parte desta obra podera ser reproduzida por fotocépia, microfilmagem ou outro processo fotomecanico. 1992 Dircitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA. Rua Santos Rodrigues, 201-A — Esticio CEP 20250-430 — Rio de Janeiro — RJ Tel.: 293-1092 Impresso no Brasil Printed in Brazil para Rosie ..algumas vezes encontramos cidades, uma apés outra, na mesma regiao e com 0 mesmo nome, que nascem € morrem sem se conhecerem, sem comunicagio entre si. As vezes até os nomes dos seus habitantes permanecem os mesmos, € assim acontece com o som de suas vozes ¢ as marcas dos seus rostos; mas os Deuses que vivem ocultos nos nomes e pairam sobre os lugares ja se foram sem uma palavra, ¢ forasteiros tomaram seus lugares. Nao faz sentido perguntar se os novos habitantes sao melhores ou piores que os velhos, pois nao ha ligacao entre eles... (ftalo Calvino, Cidades Invisfveis) S6 o que é sabio, quer e nao quer ser chamado de Zeus. (Herdclito) Sumario Prefacio Agradecimentos 1. 2. 3, 10. Ds 12. A psique plural A personalidade ¢ a rede imaginativa As imagens parentais ¢ a psique auto-reguladora . Uma relagio chamada pai . O pai e seus filhos . Além do principio feminino . Sexo e borderline, ou fronteira . A imagem dos pais na cama: da cena primitiva ao pluralismo . A contratransferéncia e 0 mundus imaginalis A metdfora da alquimia A moralidade original numa cultura em depressdo A diversidade da psicologia € a psicologia da diversidade Referéncias Bibliograficas indice 13 15 31 69 89 102 119 136 155 178 214 235 260 278 288 Prefacio Espero ter publicado este livro no momento certo. No momento em que as idéias e intuigdes estao suficientemente coerentes para garantir sua expressao, mas nao tao integradas e sistematizadas que delas resulte ossificagao. Como qualquer trabalho psicoldégico, o livro oscila entre desenvolver sua propria linguagem ea necessida- de de usar uma linguagem em comum. No entanto, mesmo a linguagem comum é uma linguagem em permanente mudanga — ¢ deve ser assim para continuar viva —, por isso tentei explicar por que certas palavras novas foram usadas, ao mesmo tempo que procurei manter baixa sua incidéncia. Este é um livro simultaneamente aberto e fechado. Aberto, na medida em que se preocupa com temas reconheciveis e depende basicamente de um didlogo com 0 leitor. Fechado, por ser auto-re- ferencial ¢ autodeterminante, criando seu préprio mundo e convi- dando o leitor a entrar nele. Por vezes, o modo de expressao é intelectual. Espero, porém, que nao seja nunca abstrato. Hé nele, igualmente, uma boa quantidade de argumentagao, e o engajamen- to dai resultante com pessoas envolvidas com projetos similares € fundamental. Quando estava na escola, aprendi com um dos meus professo- res (acho que lecionava histéria econémica) a seguinte maxima: as que agora nos parecem ser descobertas intelectuais e ideolégicas do passado, sio mais bem compreendidas como descrigées das praticas contempordneas mais avancadas. Por exemplo, Maquiavel nao escreveu um manual para principes contendo idéias novas e argutas. Seria mais correto dizer que ele descreveu aquilo que os principes mais empreendedores jd estavam executando. A impor- tancia de Adam Smith nao se deve ao fato de ter promovido o capitalismo, mas de ter descrito (e por isso mesmo compreendido) © que os novos capitalistas estavam fazendo. Poder-se-ia dizer que esses autores estavam trazendo uma contribuigao para a conscién- cia de algo. Espero que isso ocorra também com boa parte do contetido deste livro. O que se parece com (e, da perspectiva emocional do autor, realmente é) descoberta € descrigao. A descoberta é uma fantasia. Mas a descricao também é uma fantasia. > Refletindo a respeito da fantasia da descrigao, gostaria de dizer algo sobre a presenca de material clinico neste livro. Aprendi com meu primeiro supervisor, Fred Plaut, a ser cuidadoso no uso de ilustracdes tiradas de casos, que parecem comprovar ou, pelo menos, reforcar o ponto de vista de um autor. A ter o maximo de cuidado quando o que é apresentado o é meramente como um “exemplo”, apenas para assegurar que determinado ponto tenha ficado bem esclarecido. Sem entrar em consideragées epistemold- gicas, tais exemplos podem ser flagrantemente manipulativos. Se bem que algum tipo de material vivo seja necessario quando o texto é tedrico. Como resolver o problema? Decidi fazer uso extensivo de transcrig6es de semindrios que coordenei sobre varios temas especificos. Portanto, o material clinico apresentado freqtiente- mente nao é meu (embora haja também relatos de meu préprio trabalho). A vantagem consiste em o leitor poder compartilhar da luta viva e imediata em que eu me empenhava para ligar minhas idéias Aquilo que os participantes do semindrio traziam. Espero que o método funcione e que suas desvantagens nao sejam muito marcantes. A palavra grega teoria significa “lancar um olhar sobre o mundo”, “contemplac¢4o”, “especulagao”, , nesses sentidos, consi- dero-me um tedrico. Mas acho que sou também um theor. Os theors eram emissarios mandados pelos estados gregos para consultar um ordculo distante ou para participar de rituais religiosos importan- tes em locais longinquos. Nos tiltimos cinco anos tive a ventura de ser convidado para falar em congressos junguianos e em socieda- des junguianas situadas em diversos paises. Espero que seja uma experiéncia comum para pessoas que fazem esse tipo de coisas retornar a suas casas com muito mais do que quando delas parti- ram. Voltei com uma visdo do projeto junguiano difundido pelo mundo que ultrapassa aquela que inspirou mcu livro Jung and the postjungians [Jung e os pds-junguianos], de modo que gostaria de dizer algumas palavras a respeito disso neste prefacio. Tal livro tinha trés vertentes: (1) um registro, organizado em forma de debate, dos desenvolvimentos da psicologia analitica desde a morte de Jung em 1961; (2) um sumario das idéias de Jung — necessario para a formulagéo do sentido da primeira vertente; (3) o estabelecimento de paralelos coma psicanilise, que nos levam a reivindicar que Jung deveria ser considerado um psicanalista pioneiro. 10 O que m jonou, quando terminci o trabalho do livro sobre os pés-junguianos, foi a mancira como as duas escolas aparentemente opostas, a desenvolvimentista e a arquetipica, rea- giram: de forma quase idéntica, iconoclastica ¢ revisionista em relagao aos principios da psicologia analitica cléssica. Nao diria que os psicélogos analiticos de orientacdo desenvolvimentista ¢ os de orientagdo arquetipica concordem em suas diferencas; com toda certeza, nao. Mas participam todos de um processo comum. Gradualmente, conforme ia refletindo sobre isso, uma questao pluralista foi surgindo: seria possivel conciliar as preocupagées monoteisticas/integrativas/unus mundus/elitistas do junguianis- mo classico com as preocupacoes politefstas/interativas/microsco- picas/democraticas dos pds-junguianos — sem perder os valores e convicgées de cada um dos grupos mencionados? Disse que era uma questo pluralista, mas ainda nao havia percebido como o pluralis- mo, como uma ideologia, poderia enfrentar esse desafio. Quando o percebi, compreendi que o tema deste livro viriaa ser muito mais abrangente que as disputas dentro da psicologia analitica. O pluralismo é uma abordagem do conflito que tenta reconciliar as diferencas sem Ihes impor uma falsa sintese e, sobretudo, sem perder de vista o valor particular € a verdade de cada elemento no contflito. O pluralismo nao é uma abordagem exclusivamente multipla porque busca manter unidade e diversidade em equilibrio, asseguran- do que a diversidade nao precisa ser base para um cisma. Encontrei, no pluralismo, um gancho para um livro sobre diferengas, sem ter como objetivo nem a comparagao nem a sintese. No nivel experiencial, temos de reconciliar nossas muitas vozes interiores, de modo que possamos, quando necessario, falar com uma sé voz. As teorias psicolégicas também estao interessadas nesse fenédmeno, investigando como as varias partes da personali- dade se relacionam com a psique como um todo sem perder suas acteristicas distintivas. As rupturas e divis6es da psicologia profunda fornecem a variante institucional deste tema. Seja no nivel pessoal, no da claboragio de teorias psicolégicas ou no das vicissitudes politicas da psicologia profunda enquanto instituicgao, neste livro mostro como o pluralismo pode ser usado como um instrumento para garantir que a diversidade nado tem inevitavelmente de conduzir a rupturas. Fis um breve sumario do livro. ca No Capitulo 1, introduzo a idéia do pluralismo como uma metafora para uma abordagem dos processos psicoldgicos da politica institucional da psicologia profunda. No Capitulo 2, tento delinear um modelo pluralista de desenvolvimento da personalidade, O Capitulo 3 examina significados naolliterais das imagens parentais (tal como aparecem no trabalho analiti- co). Nos Capitulos 4 e 5, enfoco a pessoa, a imagem € 0 corpo do pai como fundamentais para a propiciagao ou impedimento do pluralismo psicolégico, com especial referéncia & identidade se- xual. O Capitulo 6 explora a questo da existéncia ou nao de psicologias especificas para cada sexo, e, depois disso, discute 0 valor de se tomar “masculino” ¢ “feminino” como metaforas. O Capitulo 7 coloca o conceito de identidade sexual em confronto com 0 disttirbio da personalidade borderline, ou fronteiriga, levan- do a reflexdes sobre a formagio cultural de ambos. Meu interesse pela cena primitiva transporta-se para 0 Capitu- lo 8, que reagrupa muitas das questoes levantadas nos sete capitu- los anteriores: pluralismo, 0 pai, género, o equilibrio entre © literal ¢o metaférico em psicologia. Este livro é, a um sé tempo, um reconhecimento ¢ uma celebracio da tensao ¢ da articulagéo entre as compreensées literal e metaforica na psicologia. Exemplos disso encontram-se nos Ca- pitulos 9 ¢ 10, que discutem a anilise propriamente dita. A énfase Clinica recai sobre a contratransferéncia ¢ sobre o papel desempe- nhado pelo corpo de analistas. O Capitulo 11 é um ensaio sobre 0 pluralismo do processo moral; ¢ o Capitulo 12 retoma o Capitulo 1 em sua investigagao da diversidade psicolégica. . . Espero que este livro mantenha-se préximo da experiéncia vivida dentro e fora da andlise. Mas quando parecer nao ser ess¢ 0 caso, gostaria de pedir ao leitor que nao fosse critico demais muito precocemente. Com certeza, na experiéncia viva da psicologia analitica e da psicandlise, nas profundezas da alma, as coisas nao sfo necessariamente aquilo que pensamos ou sentimos que sao, nem o que desejarfamos que fossem. 1 Notado R.T.O autor segue a difcrenga entre as palavras sex e gender propria da lingua inglesa. Em portugués, “sexo” refere-se tanto ao sexo psicoldgico como aoanatémico. Em respeito & intengie do autor foram mantidos os termos ingleses nas notas a0 texto. 2 Agradecimentos As idéias expressas neste livro sao de minha responsabilidade, é claro. Gostaria de agradecer a meus pacientes por me terem concedido permissio para escrever a respeito deles. Sou grato também aos que participaram do projeto de pesquisa descrito no Capitulo 8 ¢ aos membros dos seguintes grupos ¢ instituigdes por autorizarem a transcricao das gravacées em fitas de diversos semi- narios: a Pittsburgh Jung Society, o grupo de Santa Fé da Inter-Re- gional Society of Jungian Analists ¢ a Westminster Pastoral Foundation. Também me foram titeis os comentirios feitos pelos estagidrios da Society of Analytical Psychology e da Guild of Psychotherapists. Agradeco a generdsidade daqueles que gastaram seu tempo e cnergia para fazer comentarios sobre capitulos ¢ segdes deste livro. Devo muito a: Michael Vannoy Adams, John Beebe, Giles Clark, Coline Covington, David Curry, Dorothy Daniell, Peggy Jones, Lou King, Paul Kluger, Rosalinda Mammano, Kate Newton, Stan Perel- man, Roderick Peters, Fred Plaut, Sheila Powell, Nathan Schwartz- Salant, Bani Shorter, Brian Skea e Caroline Stevens. A participagao de Rosie Parker no projeto como um todo, tendo sido ao mesmo tempo de critica € apoio, foi absolutamente essencial, Partes deste livro foram inicialmente publicadas em revistas, de modo que fico grato aos editores que me permitiram usar 0 material e também pelo primeiro trabalho de edigdo de: “The image of the parents in bed” [A imagem dos pais na cama], J. Analyt. Psychol., 27:4, 1982. “Countertransference, the Mundus Imaginalis and a research project” [Contratransferéncia, o Mundus Imaginalis cum projeto de pesquisa], J. Analyt. Psychol., 30:1, 1985. “Symbolic dimensions of eros in transference-countertransference: some cli- nical uses of Jung’s alchemical model” [Dimensées simbélicas de eros na transferéncia-contratransferéncia], Int. Rev. Psychol-Anal., 12:2, 1985, “Fragmentary vision: a central training aim” [Visio fragmentaria: um objetivo central de treinamento}, Spring, 1981. O artigo “Original morality ina depressed culture [Moralidade original numa cultura em depressao] foi publicado como parte de uma proposta de trabalho em The archetype of shadow in a split world 3 [O arquétipo da sombra em um mundo dividido] — edigéo dos trabalhos do Décimo Gongresso Internacional de Psicologia Ana- litica, por Mary Ann Mattoon (Einsiedeln, Suica: Daimon Verlag, 1987). Meus agradecimentos A editora por sua contribuicao. Em 1988, a revista Chiron publicou pela primeira vez, com 0 titulo de “Gender and the borderline” [Sexo e borderline, ou fron- teira], grande parte do material que agora aparece em diversos capitulos deste livro. Agradeco a permissao que me foi dada para fazer uma citagao da obra The imitation game [O jogo da imitagéo], de lan McEwan (Londres: Cape, 1981). Devo também agradecer a editora Routledge e a P: University Press pela autorizagio dada para usar citagdes dos Collected Works de C.G. Jung, organizados por H. Read, M. Fordham, G. Adler ¢ W. McGuire, traduzidos principalmente por R. Hull. Neste livro, as referéncias aos Collected Works (CW) sao feitas por volume e por paragrafo, exceto quando colocadas explicitamente de alguma outra forma. inceton if 1 A psique plural e capitulo de abertura pretende ser uma fonte de referéncia para o restante do livro, captando e expressando 0 espirito no qual foi escrito. O pluralismo é uma atitude em relagao ao conflito que (enta conciliar diferengas sem impor uma falsa solugao para elas & sem perder de vista 0 valor préprio de cada uma dessas posi¢ées. Enquanto ideologia, o pluralismo busca manter a unidade ¢ a diversidade em equilibrio — uma batalha téo antiga quanto a propria humanidade — em religiio, filosofia ¢ politica, para supor- as tensdes que se criam entre 0 uno ¢ o miltiplo. Meu uso do mo “pluralismo” pretende apresentar diferencas em relagdo a “ecletismo”, “sintese”, “paralelismo” e “perspectivismo”. A medida que o capitulo for se desenvolvendo, as distingdes deverao tornar- se mais claras. Da experiéncia politica aprendemos que, embora as socieda- des possam almejar a harmonia e o respeito mtituo, 0 que ocorre freqiientemente € 0 oposto. O pluralismo politico sugere que a adogao de acordos competitivos entre interesses conflitantes apre- senta resultados mais criativos que destrutivos. No entanto, nao estou tentando apenas promover o pluralismo como um estado ou. objetivo desejavel para a psicologia. Minha sugestao é a de que comecemos a usar a idéia do pluralismo como um instrumento para assegurar que a diversidade nao tem necessariamente de ser a base de conflitos cismaticos. Esse instrumento poderia também b nos dizer quando uma ruptura tornou-se inevitavel ou até mesmo desejavel. O pluralismo poderia funcionar como um instrumento para regular 0 mosaico da psique, ou da psicologia profunda, ¢ ajudar-nos a fazer retificag6es quando necessario. Poderia ter nao somente uma meta, mas também uma medida. , Pessoalmente, em nossas vidas, experimentamos conflitos; temos que passar por eles todos os dias. Desse modo, a nogao de conflito psiquico € fundamental para as concepgoes dinamicas da psique. No que diz respeito 4 psicologia profunda, as divisGes € agrupamentos organizados em escolas € estudados ou percebidos como caéticos ¢ ridiculos fornecem a variante institucional desse tema. , No nivel pessoal, deparamo-nos com a tarefa pluralista de reconciliar nossas muitas vozes ¢ imagens no interior de nds mesmos com o desejo ea necessidade de nos sentirmos integrados e de podermos falar com uma tinica voz. Esse processo intrapsiqu- co €uma questao que envolve intensamente o sentimento. Tornou- se também uma questao do pensamento, pois a teorla psicoldgica busca também entender como os varios conflitos, complexos, atitudes, fungées, relagées Selfobjcto, selves parciais, subpersona- lidades, deintegrados, dramatis personae psiquicas, objetos internos, Areas da mente, subfases ¢ deuses se relacionam coma psique como um todo. E 0 que acontece quando uma parte sozinha, separada das muitas outras, comega a agir como se tivesse a forca e © peso do todo? A extensio da lista apresentada demonstra a variedade dos métodos descritivos ou explicativos, a universalidade do pro- blema e seu inerente fascinio. : Quando uso a palavra “psique”, estou adotando uma perspecti- ua para os processos ¢ fenémenos psicoldgicos, ¢ igualmente me referin- do A sua totalidade. Essa perspectiva caracteriza-se por uma atengao A profundidade ¢ a intensidade, obtendo-se dai um esclarecimento maior quanto A diferenga existente entre um mero evento euma experiéncia. A psique traz consigo sua propria pluralidade, sua fluidez e a existéncia de entidades relativamente auténomas em seu interior. Por fim, a psique, enquanto perspectiva, aponta para um sentido e um padrao que podem ser discerniveis pelo indivi- duo, mas nao a ponto de serem visualizados como uma predesti- nado fixa. O leitor ira notar uma tendéncia a antropomorfizar a psique — por exemplo, a psique “quer” alguma coisa, ou ansera por alguma coisa, ¢ assim por diante. E mais do que mero recurso 16 retorico. O jargao psicolégico possui entidades vivas que ficam presas a ele — as vezes pessoas, mas freqiientemente deménios, animais ou deuses. Até mesmo o freudiano mais classico e cienti- ficista fala de um ego forte ou fraco, ou das relagdes entre ego, id © superego, como se fossem trés personagens. A razio para isso € que a claboracao de teorias em psicologia parece ser impossivel sem esse tipo de personificagao implicita. Jung foi o arquiexpoente disso, toda a sua psicologia toma a forma de uma animagao de personagens interiores. Uma metdfora politica, tal como a do pluralismo, ajuda na avaliagdo das tensdes e oscilagées (Zoja, 1987) da psique. Partes desta encontram-se em estado de competigao entre si. A persona- lidade é, em qualquer momento, o resultado dessa competi¢ao. As quest6es que surgem sao: que tipo de acesso as varias partes da psique, os grupos de interesse interno, tém ao restante da psique? Que estatutos e direitos tem cada uma dessas partes? Existe uma clite com privilégios especiais? Por exemplo, existe uma dinamica centre aspectos do puer aelernus (eterna crianga) e do senex (velho) (le uma pessoa. As express6es latinas refer diferentes pers- pectivas emocionais € nao se pretendem restritas aos individuos do sexo masculino. Nao é necessario aceitar inteiramente esses termos cla psicologia analitica para conseguir ver como o pluralismo pode ser usado instrumentalmente no acompanhamento da competi¢ao senex-puer dentro da psique. O puer sugere a possibilidade de um novo comego, revolucio, renovagao e criatividade em geral. O senex remete-nos a qualidades (ais como equilibrio, fixidez, generosidade em relagao aos demais, sabedoria, clarividéncia. Qualquer uma dessas condigées pode lornar-se patolégica — um puer nao atenuado exala impaciéncia, excesso de espiritualizagao, falta de realismo, idealismo ingénuo, (endéncias a estar sempre recomecando do zero, a nao ser afetado pela idade e a darse a véos da imaginacio. O senex puro é excessivamente cauteloso e conservador, autoritdrio, obsessivo, pesado, melancdlico e sem imaginagao. Incidentalmente, esses conceitos nao sao simplesmente desenvolvimentistas (apesar de poderem ser usados como tais), pois mesmo mulheres e homens «lc idade avangada podem aparentar possuir caracteristicas de puer (ou de puella). Similarmente, o senex pode ser detectado no carater até mesmo de bebés. Nao obstante, a interagao puersenex adquire (onalidades diferentes conforme a fase do desenvolvimento. 17 Obviamente, a pessoa comum ird ter ambos os conjuntos de caracteristicas em sua configuracgao. Uma atitude de laser fare, envolvendo competi¢ao € uma certa propensao a negociacao, po ‘ parecer uma descricao apropriada do que acontecc. Por outr Jado, em determinados momentos, 0 puer iva talvez restr ingi se ao territério do puer, € 0 senex ao do senex. Cada um deles ira mono- polizar, ou colonizar, tudo aquilo que parecer cair em ae re tivas esferas naturais de influéncia. Af entao surge a possibil a de que exista algum tipo de regulamenta¢ao eg ee a 7 tudo isso (por parte do Self, por exemplo). A nova dificul serie agora, talvez scjaa de que a regulamentagao em sijaéum con do tipo senex, e, conseqiientemente, injusto para o pur 20 Serd que tanto o puer quanto oO Sine tém igual acesso 20 “poder” politico da psique como um todo? Talvez nao, se 0 5 e considera-se uma instancia mais segura € socialmente mais respei- tavel, de modo que possa ter alguns privilégios especiais. Ja © puer ésexy (embora nao tao sexual quanto poderia ser) evibrante, cisso 0 faz popular. Poderiamos prolongar essa sequepea “por 7 nr plo, perguntando na linguagem de qual deles as negociago« deveriain ser conduzidas —, mas esse exemplo pretende apenas mostrar de que mancira o pluralismo funciona como uma metafora a os processos psicoldgicos. . . Pa ateaqul Senhe discutinds o pluralismo em relagao 4 psique. Além disso, a abordagem pluralista langa luz sobre a maneira oe s questées da unidade ¢ da diversicade afetam as varias esco as da psicologia profunda. Uso a expressao ‘psicologia profunda” para “ car todas as tendéncias psicolégicas que fazem uso do conceito . inconsciente dindmico. Essa expresso, que soa um pouco fora i moda, é ttil num momento em que tanto a psicandlise sa a psicologia analitica encontram:se profundamente ee ee = Estamos precisando de um termo que refira ao fato scald ei jose uum campo, com todas as suas divisGes, € que reconhe¢a que ape logia profunda é ela prépria composta de analistas © ferapaaias’ tint os O pluralismo é uma atitude ou ideologia que pode oon er a tensdo entre as reivindicagdes de tendéncias a unidade eas Sal dicacdes de tendéncias 4 diversidade: a psicologia prota a ce quanto uma disciplina coesiva, na qual existem pontos de ian certos ¢ errados; ¢ a psicologia profunda enquanto continente de uma multiplicidade de abordagens validas. Um espaco para a realidade tiltima e uma pletora de fendmenos. 18 A fragmentagao ¢ a disputa no interior da psicologia profunda, em que analistas, tanto individualmente quanto em grupos, lutam pela aceitagao geral desta ou daquela “confissao pessoal” na qual investiram, parece a principio ser exatamente o oposto do plura- lismo, No entanto, usando a idéia da compensagio inconsciente (CW 6: pardg. 693) é possivel compreender que a psicologia profunda luta, e sempre lutou, em direcdo ao pluralismo. O que parece ser uma fuga do pluralismo pode ser também um anseio por sua plenitude, e uma aceitacao, em algum nivel, de um destino pluralista para a psicologia profunda. Sabe-se que a agressividade, (ao caracteristica dos debates entre analistas, freqiientemente con- (ém as mais profundas necessidades de contato, didlogo, ressonan- cia, afirmagao. (Ver Capitulo 11 para uma apreensao mais abrangente desse aspecto da fenomenologia da agressividade.) Muitos analistas e terapeutas mantém um compromisso com o didlogo, mas as dificuldades psicolégicas associadas 4 sustentagio de uma atitude tolerante nao podem ser minimizadas. Os analistas da psicologia profunda, por serem pessoas, constantemente fa- Iham nas tentativas de serem tao tolerantes quanto gostariam. Isso se deve, em parte, 4 sua apaixonada devogao a abordagens psico- légicas especificas. Mas onde encontrar uma proposta que combine paixéo e tolerancia na psicologia profunda? Nés damos énfase e procuramos conhecer os opostos da tolerancia —inveja, difamagdo, poder, controle, e assim por diante. Minha intengao é fazer alguma coisa positiva e realista em relacao as incorrigiveis competitividade ¢ disposigéo de polemizar trabalhando com 0 monturo de inveja como se fosse uma mina, onde se buscaria o ouro rico de tensdes que porventura poderia estar ali contido. A competigao aberta, psicologicamente integrada e valorizada, poderia levar a uma (olerancia ponderada. Através da competi¢ao com outros podemos chegar a conhecer melhor e em maior profundidade a nds mesmos ¢ nossas idéias — o que constitui um exemplo particular da impor- tancia do outro funcionando como espelho, que se vishumbra em tantas psicologias, como na de Jung, de Winnicott, de Neumann, de Lacan, de Kohut. Esse outro é um outro criativo e precisa ser cultivado, pois esté intimamente ligado a um outro “outro” — 0 conveniente receptaculo dos preconceitos e projegGes, temas que sao das fantasias de superioridade. A psicologia profunda é um movimento que, historicamente, se tem mostrado capaz de suportar conflitos e divisdes, e de gerar 19 i Ih novas hipéteses a partir disso. Tal capacidade situa-se lado a lado coma bem conhecida tendéncia que as divisdes institucionais tém de sc tornar concretas ¢ improdutivas. A psicologia profunda continua desejosa de entrar num estado plural, mas Ihe falta a necessdria metodologia. I. possivel que todos nds sejamos pluralis- tas, mas que varias formas de onipoténcia ¢ de idealizacao yvenham nos encorajar a negélo. A tendéniaa multiplicidade e & diversidade é tio forte —e criativa — quanto a busca da unidade ou a luta pela hegemonia. (Uma discussio mais ampla do uso do pluralismo como um instrumento em relagio as disputas na psicologia pro- funda pode ser encontrada no capitulo final.) Conforme formos avangando, haveremos de entender como essas duas hipéteses a respeito do pluralismo so uma tinica. Isto 6, a questo da unidade ¢ da multiplicidade na psique, ¢ as quesives da unidade e da multiplicidade em relagao as escolas da psicologia profunda sdo, na verdade, uma mesma questao. Nossa tendéncia tem sido sempre manter separadas a psique e a organizacao social da psicologia profunda. Contudo, as vicissitudes da psicologia profun- da como um movimento cultural, as divisdes, as tramas, as aliangas, os mexericos ¢ as lutas pelo poder — tudo isso revela que, em suas vidas profissionais, os terapeutas ¢ analistas participam de uma projecio poderosa. Sabemos que, quando os analistas discutem, a psique plural esta falando. Pontos de vista diferentes refletem a multiplicidade da propria psique. Jung disse certa vez que os deuses haviam se transformado em doencas. Hoje em dia as suas epifanias podem ser descobertas nas nossas diferentes abordagens das doen- cas psiquicas, conforme se expressam nas escolas de psicologia profunda. Nas palavras de Winnicott, “somos de fato pobres se ‘somos apenas saos” (Winnicott, 1945:150n). Volto a esse tema no capitulo final. Um dos meus interesses particulares é pesquisar até que ponto as diferencas de opiniao dizem mais do que as diferengas dos tipos psicolégicos daqueles que entram numa disputa. Alguns analistas, é claro, iréo por suas constituicdes psiquicas preferir ver € buscar a multiplicidade ¢ a difusio; outros irao colocar a integragao € a unidade em primeiro plano. No entanto, em sua tipologia, Jung (CW 6) teve 0 cuidado de insistir no fato de que nenhum tipo € melhor do que outro, ¢ de que para um individuo vir a ser realmente cle mesmo (isto é, individuado), todos os potenciais de scu tipo devem ser realizados. No presente capitulo (¢ ao longo de 20 todo 0 livro) veremos como essas duas consideragGes sc aplicam a disciplina da psicologia profunda: nenhum tipo de abordagem, é 4 priori, melhor, salvo como questio de preferéncia ¢ lealdade pessoais. E, para realmente vir a ser ele mesmo, ou ela mesma, o(a) analista nao pode pertencer a uma escola somente. Existe uma interdependéncia, com todas as maneiras possiveis de diver- geéncia e de convergéncia. As diferentes escolas da psicologia profunda simbolizam limites no nivel profissional dentro de cada analista, de modo que a exploracéo de uma diferenga ideoldgica transforma-se em uma expedicao rumo ao interior, uma questao de individuagao. Aquilo que € projetado sobre 0 oponente ideo- légico pode, nesse sentido, ser propriedade psicolégica daquele que projeta — e, portanto, de grande valor para ele ou ela. Uma abordagem pluralista fornece um quadro de referéncia para uso das projecées descobertas numa disputa teérica, O pluralismo percebe que a dissidéncia compreende uma perspectiva na qual varios analistas, ou varias escolas, tém de notar a existéncia uns dos outros, sem ter a unidade por objetivo; é uma abordagem modular, conversacional, na qual diferentes visées de mundo chcontram-se, mas nao tentam dominar umaa outra. E um desafio tanto emocional quanto ideolégico. Como disse Whitehead, “um Fal entre doutrinas nao é um desastre, mas uma oportunida- de”. Problemas do pluralismo I muito dificil manter-se numa atitude pluralista. O pluralismo pode parecer utdpico, na medida em que simples € confidvel mecanismo de certo ou errado tem de ser suspenso, sem ser completamente descartado. E mais, é muito dificil defender apai- xonadamente a tolerancia, ser um centrista radical em psicologia profunda, buscar aquilo que 0 parlamentarista Walter Bagehot chamou de “moderacao animada”. Seré que o pluralismo nos condena a perder a excitacéo das idéias em erupcdo, que para serem defendidas precisam especialmente de uma conviccao ea xonada? O tédio poderia ser um problema tao grande cai a lirania. A meu ver, essa preocupacao baseia-se em um mal-enten- dido e numa idealizacéo do ciclo da criatividade. Novas idéias cmergem de uma matriz pluralista e sao reabsorvidas no interior 21 dessa matriz. As idéias nao se formam fora de um contexto; nem o novo destréi necessariamente o velho, mas com freqiiéncia coexiste com ele. Por isso, de um contexto pluralista emerge conviccao ideolégica. ~ um fato bem conhecido que os pacientes beneficiam-se quando o analista tem conviccao (ou £é) em suas idéias tedricas ¢ em seus métodos clinicos, nao importando até que ponto eles possam parecer divergentes. No entanto, se 0 débito dessa convic- cdo ideolégica para com uma mise en scene plural fosse reconhecido, tais beneficios poderiam vir junto com uma tolerdncia em relagao a outros pontos de vista, com uma comunicagao franca, e coma oportunidade de aprendizado a partir da diversidade. Pois, como disse Yeats, “os piores es Outro problema do pluralismo encontrase condensado na seguinte citacio dos Ensaios de Francis Bacon: “Todas as coisas, quando consideradas apenas nas suas partes isoladas, parecem maiores; também uma pluralidade de partes dé a impressao de um volume considerdvel. Isto porque uma pluralidade de partes age mais fortemente se essas partes estiverem em uma determinada ordem: pois assim se tornam semelhantes a um infinito, impedindo a compreensio delas mesmas”, O perigo esta no fato de que um pluralista poderia vir a tornar-se alguém que sabe cada vez menos a respeito de cada vez mais. Uma resposta a essa objecdo poderia ser a de o pluralista ter consciéncia de nao saber tudo, e estar preparado para dar ouvidos a fontes mais bem informadas (€ igualmente estar atento aos aspectos de sua psicologia pessoal que impedem isso), Desde os tempos de Bacon, € possivel que nos tenhamos tornado mais desconfiados quanto 4 possibilidade de construir “ordem” a partir de “partes”. Que aconteceria se pudéssemos acusar também o pluralismo de sectarismo? Para tanto, teriamos de ir além do perspectivismo, se se propée uma tentativa desprendida e desapaixonada de expli- car diferencas, sugerindo que, embora fendmenos semelhantes sejam examinados, as perspectivas a partir das quais isto é feito sao simplesmente tao diferentes, que ¢ inevitavel o aparecimento de teorias diferentes no resultado final. Outra possibilidade € 0 para- lelismo: teorias diferentes sao simplesmente aspectos diferentes da mesma grande teoria ou verdade. Paralelismo ¢ perspectivismosdo pouco excitantes, € o probleina com eles, enquanto maneiras de pensar, é que ignorain o modo pelo qual todas as perspectivas ou 22 0 repletos de apaixonada intensidade”.* paralclos diferentes tém “alguma coisa” a ver uns com 0s outros. William James fez a afirmacio seguinte sobre isso em A pluralistic iniverse (Um universo pluralista] (1909), e o seu ataque As vers6es absolutistas, monistas e idealistas do mundo aplica-se igualmente ‘vo perspectivismo: wn da uma das partes do mundo encontra-se em alguns casos ligada, e em alguns outros nao, a suas outras partes, € essas formas podem ser discriminadas, pois muitas delas sio Sbvias; com isso, as diferencas tornam-se também faceis de serem percebidas. (James, 1909:40-1) De fato, como diz James, a palavra-chave é “alguns”: 0 “pluralis- mo defende... a legitimidade da nogio de alguns casos” (1909, pig. 41). O tema principal de A pluralistic universe [Um universo pluralista] é a consideracao do Uno e do Multiplo como perspec- livas complementares. No entanto, no momento em que dize- mos que sdo complementares, pousamos no campo do Multiplo. Isto pode ligarse ao que Miller, discutindo 0 monoteismo e o politeismo, chama de “henoteismo”: um deus de cada vez, mas, cm certos momentos, muitos deuses (Miller, 1981). O paradoxal & que © pluralismo fica sendo o tnico absoluto! E a tinica \nidade a ser encontrada estar4 na diversidade. O que é tao atracnte no pluralismo, quando formulado dessa maneira, é 0 seu carater antiutépico. O de poder acomodar a agressividade e a visio unilateral, 0 monotefsmo, a grande teoria, o fanatismo, © alé mesmo aquele tipo particular de preconceito que pode de repente parecer genial. Se existe alguma Verdade enorme, tini- ea, psoluta, também ela deve participar das disputas. De forma similar, a visio bilateral também € facilitada: o dualismo, a conjunctio oppositorum cte. Um derradeiro problema do pluralismo que eu gostaria de mencionar refere-se ao risco de esquecermos como a psicologia profunda é frouxamente costurada. Quando isso acontece, come- gamos a procurar diferengas numa busca artificial por areas de controvérsia. Por outro lado, segundo as palavras de Wallerstein, parece existir uma necessidade premente de uma area onde se possa testar “uma propos io psicanalitica contra outra proposi¢ao psicanalitica realmente diferente” (Wallerstein, 1983:567). 23 O self e os outros na psicologia pluralista Podemos compreender como as diversas vertentes da visao plura- lista de James aplicam-se a psicologia profunda, O campo de referéncia em principio fica aberto em todas as diregées, inclusive no da sua profundidade; podemos “conhecer” o inconsciente. Os elementos maiores incorporam os menores e vice-versa: “a imagem. éuma expressao condensada da situacao psiquica como um todo” (CW 6: parag. 745). O contraste € a diversidade nos enriquecem moralmente, ¢ isso é fundamental — sem a diversidade, a psicologia nao teria sentido nem plenitude: “toda psicologia é uma confissao, eo importante de uma psicologia para outra pessoa nao consiste nos pontos com os quais ela pode se identificar por satisfazerem suas necessidades psiquicas, mas naqueles que a estimulam no sentido de elaborar sua propria psicologia como resposta” (Hill- man, 1975a: xii). Eu faria uma pequena alterac’o nessa afirmativa, de maneira mais pluralista: “nao somente nos pontos com os quais uma pessoa pode se identificar, mas ‘também’ naqueles que a estimulam”. O pluralismo também encontra cco na onipresenga na ideagio humana da metéfora. Com isto quero dizer que o mundo vivido ndo é nem fixo nem concreto, e que o discurso simbélico é tao rigido quanto qualquer discurso légico. Poesia e ciéncia confron- tam-se em termos iguais. A psicologia profunda trata menos de “objetos” de mais de relagGes entre objetos e, em Ultima instancia, de relacées entre conjuntos de relagoes. A psicologia profunda, portanto, apresenta caracteristicas cibernéticas e sistémicas. Qual- quer impacto num determinado ponto do sistema psiquico faz. com. | que ocorram ondulagées através de todo o aparelho. Numa refle- xdo cuidadosa sobre esses argumentos, 0 leitor podera lembrar-se daquela minha idéia de que a psicologia profunda, e conseqiiente- mente os analistas da psicologia profunda, no fundo desejariam abracar o pluralismo e viver seus destinos de pluralistas. No entan- to, a situacdo é mais complicada do que isso. O analista munca conseguiu trabalhar por si mesmo no campo de outros que tém pontos de vista diferentes. Deixando de lado a questo de saber se alguma abordagem analitica é mais efetiva do que outras (questaéo nunca estabelecida cabalmente), a arrogancia do isolamente nunca se mostrou uma opgao vidvel. As correntes da psicologia nao podem ser ignoradas de maneira serena, olimpi- 24 ca, Da mesma forma, outras 4reas do conhecimento ajudam-se iutuamente a irem paraa frente. As vezes, como no caso da Fisica, ay imagens e a metodologia do campo nao-psicolégico parecem \dequar-se tao bem, que sao assumidas com a maior naturalidade (por exemplo, Keutzer, 1984). Outras vezes, os processos psiquicos tevelaram-se como dominantes no interior de outras disciplinas (foi o que descobri em relagio 4 teoria politica). Segue-se dai que \m analista da psicologia profunda nao pode repudiar (negar?) unia pluralidade de estudos e de interesses. Mesmo aqueles que se sentem desconfortaveis em relagao ao pluralismo, ¢ 0 tomam imprecisamente por “ecletismo”, devem lembrarse de que as (eorias com as quais se sentem mais 4 vontade surgiram elas proprias de uma matriz pluralista e de uma diversidade competitiva de pontos de vista. Por exemplo, 0 corpus kleiniano nao foi uma visdo isolada no tempo, genial ¢ inquestiondvel. Tal fato foi notado por Winnicott numa carta a Klein, em novembro de 1952 — uma carta notavel e angustiada. Entre muitas outras queixas, Winnicott escreveu decididamente contra “dar a impressio de que se tratasse (le um quebra-cabegas, no qual todas as pecas existissem” (Winni- colt, 1987:35). Pluralismo e praxis AsseMos a examinar agora alguns exemplos de uma abordagem pluralista para questdes-chaves da psicologia profunda. Uma cavacteristica distintiva de uma atitude analitica é a de que nenhum tipo de material clinico é considerado mais importante (lo que outros a priori. Os minimos detalhes de interagdo pessoal ia sesso e 0 material simbélico em grande escala devem disputar a atencao. Nao existe nenhum sistema preconcebido de castas de importancia, A andlise, enquanto uma Weltanschawung, ofe- vece um estranho amdlgama de precisao ¢ imprecisio. A meto- (lologia da atengao sobre um campo de referéncia leva a um ethos (le interpretagéo plural em varios niveis, chegando mesmo a uma witude vaga € por vezes de simples espera de acontecimentos psicolégicos. Existe uma tensao, na pratica clinica, entre a and- lise do processo da transferéncia-contratransferéncia e€ a andlise (lo contetdo de imagens ¢ simbolos. E mais ou menos impossivel dispensar completamente uma ou outra dessas perspectivas. Mas 25 geralmente pode ser muito dificil manter o ritmo em andamento (ver Capitulo 9, onde tento fazer isso). . . Percebemos diferencas significativas de opiniao na psicolo- gia profunda, no que diz respeito As raizes da personalidade, as fontes de informagio sobre elas ¢ 4s maneiras de transpor © conhecimento para a pratica clinica. A psicologia profunda ja deu a luz numerosas tentativas de compreensio da mistura de facetas inatas, bioldgicas, arquetipicas da personalidade, com fatores ambientais € situacionais. S6 para dar uma pequena amostra: tem-se dito que a artrite reumatéide pode ser uma doenga psicossomatica proveniente, em certo grau, de um deter- minado tipo de atitudes maternas. Mas existe também a possibi- lidade de que a crianga potencialmente reumatdide possa ser dotada de caracteristicas de personalidade inatas que lhe dao uma influéncia sobre a mae, que tende a apresentar esses (pos de padrées de cuidados maternos observados. Talvez. hoje em dia seja tio dificil aceitar a idéia de uma personalidade constitu- cional quanto um dia o foi aceitar a influéncia das primeiras vivéncias. Finalmente, podem-se antecipar explicagdes multifa- toriais ¢ interativas. As tentativas pluralistas de compreensao tentam abrir espaco para esses pontos de vista. No que concerne a fontes de informagao sobre o desenvol- vimento da personalidade, existe na psicologia profunda uma diferenga de opinido entre aqueles que advogam a observacao empirica dos bebés ¢ dos scus pais ¢ aqueles que sao mais a favor de uma abordagem empatica do paciente adulto, ¢ do seu lado crianca. Existem ainda aqueles que, trabalhando como psicélo- gos do Self, percebem a abordagem das relagdes objetais como. ®distanciada da experiéncia” (Goldberg, 1980). Diz-se que colo- car a énfase no conflito deixa de fora o sentimento, a presenca ¢ 0 funcionamento da pessoa como um todo. Poder-se-ia dizer que as discusses ficam entre aqueles que estao em busca da verdade e aqueles que buscam 0 sentido. Mas verdade € sentido parecem igualmente desejaveis. Assim sendo, uma atitude plu- ralista nao é um luxo, é uma necessidade de tentar acreditar em idéias aparentemente antitéticas, de tentar usa-las (ver Samuels, 1985a: 128, 161-2, em tentativas de integrar a psicologia do conflito com a psicologia do Self, sem perder a especificidade de cada uma delas). 26 Pluralismo e ecletismo ( pluralismo pretende ser uma atitude anti-hierarquica. A objecao jvio é simplesmente em relagao & hierarquia em si, mas A presenga ©) influéncia de hierarquias preestabclecidas: graduadas, calibra- las, um cursus honorum da psique. Todas as escolas da psicologia jrofunda apresentam justamente essa tendéncia hierarquica, nao \mportando se a boa coisa (as vezes apresentada como sendo {ndamental”) yvenha a ser rotulada de “Self”, “genitalidade”, “\magindrio”, “situagdo depressiva”, “relagdes objetais completas”, ‘\eparagdo-individuagao”, ou simplesmente de “individuagao”. A lista demonstra que o problema da hierarquia preestabelecida nao oti confinado a psicologia analitica, embora 0 exemplo que vou lornecer derive da teoria junguiana, que conhego melhor. Trata-s dia tentagao a explorar, consciente ou inconscientemente “o Self” como um conceito ¢ uma experiéncia. E possivel entender as relagdes entre o Self ¢ a psique plural demasiadamente como “ordem”, “significado” e “continente” fornecido pelo primeiro para esta ultima. Se, ¢ quando isso acontecer, a diversidade pere- veri, pois 0 poder do Self como agéncia reguladora humana é jienso, e nele estéo contidas nossas mais preciosas aspiragées. Por eases motivos, Jung referia-se as vezes ao Self como a “imagem de Deus”. > corrigir a situagao, no meu modo de ver, como um apelo ei favor da liberdade e da diversidade, temos visto na psicologia jnalitica um contramovimento que considera a visio classica do Self como pesada e estatica, com sua énfase recaindo sobre estados de integragio e percebendo o conflito principalmente em torno de sua resolugio (Samuels, 1985a: 89-182). Nada disso nega a exist@ncia e o valor das experiéncias do Self como uma “forga ou iyencia organizadora primaria fora do ‘Eu’ consciente”, ou como © “centro organizador do inconsciente”, ou mesmo como a “tota- lidade do individuo” (Redfearn, 1985: 9, resumindo Jung). Essas oxperiéncias podem ser ponto por ponto tao fluidas e mutaveis como o desejaria o mais ardente pluralista, mas definic6es assim, «até mesmo a idéia de um Self incognoscivel, tendem a impor (€ iio ha outra palavra para isso) sua escala propria de valores, uma hicrarquia especial sobre o pensamento ea experiéncia humanos. Nio deverfamos esquecer que existe uma psicopatologia do Self {ue se manifesta como uma preocupacio defensiva com hierar- 27 quia, logica, precisao, definicao, estrutura, padrao, regularidade e ordem, 4 custa de reversibilidade, mobilidade e interagao. A pers- pectiva de que 0 Self possa coexistir com uma perspectiva pluralista fica demonstrada pelo axioma de Lopez-Pedraza: “o mitiltiplo contém a unidade de cada um sem perder as possibilidades do muiltiplo” (Lopez-Pedraza, 1971: 214). Agora, se abandonarmos as hicrarquias desse tipo que vim descrevendo, entao surgem questdes sobre o que poderia estrutu- rar e organizar a psique. Se nao houver nenhum principio superor- denado (nenhuma hierarquia, seja com o Self, ou com qualquer outra coisa como ponto mais alto e abrangente), e nenhum elemen- to nem abordagem for considerado a priori mais significativo do que qualquer outro, entéo como é que um padrao eum significado podem ser estabelecidos? Para responder a essa pergunta, desejo, mais uma vez, voltar as ciéncias sociais, onde os teéricos tiveram de haver-se com problemas similares a respeito de estruturas € fundamentos. Em seu livro Spheres of justice [Esferas da justica] (1983), Michael Walzer sugere ser necessario levar em conta que a vida humana nao é homogénea. E que deveriamos enfatizar a relativa autonomia das esferas separadas que compdem a vida, em vez de dar énfase a conceituagdes mais abrangentes como “socie- dade” ou “Estado”. Ele prossegue até 0 ponto crucial em que afirma que, num mundo justo, aqueles que governam sao, em uma esfera, governantes, em outra, governados. Usa 0 termo “governo” refe- rindo-se nao tanto ao exercicio do poder, mas ao fato de que um grupo tenha “uma participagdo maior do que outros em todos os bens que estejam sendo distribufdos” (Walzer, 1983: 321). Espera- se que todos tenham sua vez nisso algum dia, em algum lugar, embora nao haja garantias para isso. Minha proposta é que, de um ponto de vista pratico, a psique possa ser compreendida como um continente de esferas relativamente auténomas de atividade e de imagens, e que, com o tempo, e de acordo com o contexto, cada esfera possa ter sua dominancia. Igualmente, de um ponto de vista mais intelectual, cada escola de psicologia profunda pode ser vista como relativamente auténoma em relacdo as demais, tendo sua teoria suas proprias forgas e fraquezas. E 0 caso de cada um assumir ser o teérico dominante por turnos, ¢ aceitar que, em certos casos e em determinadas situaces, outra pessoa possa ter uma teoria mais utilizavel (mais verdadeira?). Ai poderemos fazer um acordo bilateral para cantarmos cada um a cangio do outro — 0 que nao 28 © © mesmo que concordar em discordar, e diferente também de wy “eclético”. Ecletismo significa cantar versos selecionados ape- ius, O ecletismo ignora as contradigées entre os sistemas de J/erisamento, ao passo que o pluralismo celebra sua competigao. O ecletismo nao nos encoraja a habitar e trabalhar em um sistema eltangeiro como meio de sobrepujar a tirania e o sectarismo. O celetismo é surpreendentemente intolerante, na medida em «ue partes de uma teoria sao arrancadas do todo, Num projeto ilista, toda a teoria é usada tao fielmente quanto possivel, € ldo a lado com outras teorias, até que as inconsisténcias levem ao ‘olapso. Ai, ent&o, o préprio colapso torna-se 0 objeto de estudo. © consenso, que é um pré-requisito para o ecletismo, nao pode lurnecer o f6rum adequado para esse processo pois, paradoxal- iente, didlogos e debates dsperos entre escolas sio ao mesmo lempo impedidos ¢ favorecidos pelo consenso, que nega sua hecessidade. A diferenga entre o pluralismo ¢ 0 ecletismo foi resumida pelo ‘vquiteto Louis Sullivan numa adverténcia a um seu aluno, adver- (Oncia esta que é pluralista em seu reconhecimento de esferas separacdas: “Como vocé tem problemas para confrontar e resolver, ieixeme darthe a’seguinte sugestao: Todo problema contém Migere sua prépria solugao. Nao perca tempo procurando-a em oulwos lugares” (Sullivan, 1947). Voltando 4 questio da hierarquia, temos de admitir que jeinpre possuiremos uma tendéncia a construir hierarquias ad hoc, huseadas em nossos sentimentos. Pois, a qualquer tempo, varios [irocessos mentais, auto-imagens € mitos pessoais podem estar »perando em nés. Com o que essa hierarquia se parece? A fragili- «de de hiecrarquias preconcebidas reside em seu proprio poder de tos fazer sentir culpados por nossas preferéncias e divergéncias, e de nos fazer tentar negélas. Uma hierarquia ad hoc difere de uma llerarquia preconcebida, pois permite que a primeira seja capaz «le se ver como uma versao entre muitas possiveis. Assim, o Self, por exemplo, visto de um Angulo ad hoe, tem de ter reafirmada sua povigho na hierarquia, de modo que, em sua fungio de “continen- to" das centelhas e luminosidades da psique, possa competir em |portincia com os préprios contetidos. E bom lembrar que nem todos os processos psiquicos tém a ver com conter e ser contido, iesmo que possam precisar de um continente. E certos contetidos (ontém scu continente... plu 29 i! Agora que nossa cultura encontrou uma versio do mundo exterior caracterizada pela flexibilidade ¢ pela relatividade nao- newtoniana — essa fluidez do pensamento nao é apenas legitima; é necessdria. Tampouco é uma novidade. A. F. Bentley, tedrico politico com orientacao psicoldgica, escrevendo em 1926 respeito do impacto da teoria da relatividade de Einstein sobre a andlise social, dizia o seguinte: Essas descobertas... nos libertaram — podemos pelo menos ter a esperanca de encarar os fatos sociais ndio como bonecos falantes colocados em sistemas de outros semelhantes... O hhomem nao fica mais sentado, pesado ¢ sélido, mas se tornou um fator varidvel de acéo no conhecimento. A existéncia, como algo definivel para cada instante, sem passado nem resente, nao possui mais seu velho efcito mortifero... A sociedade humana, sem as estruturas impraticaveis de massa, espaco c tempo, e de individuos concretos, pode agora come- car a ser interpretada. (Bentley, 1926: iv-v) Minha intencao é mostrar a possibilidade de que nossa preocupa- cao coma hierarquia seja uma busca verdadeira da estrutura e, que, conseqlientemente, esteja condicionada por toda uma tradigéo de pensamento no Ocidente. O fato de necessitarmos e vivenciarmos uma estrutura de algum tipo na psique é inquestionavel. Todos os conccitos listados anteriormente completam essa estrutura. O que realmente questiono é se a forma real da estrutura é necessariamente a mesma o tempo todo, c se, de fato, existe uma estrutura completa- mente destituida de contetido. Se estrutura ¢ contetido estao unidos, ¢ este se altera, entdo a psique deve ser, até certo ponto, estruturada por esses contetidos mutantes a qualquer momento. ‘Ao longo do tempo, alguns contetidos mudam, mas nio todos. Isto significaria, por exemplo, que as imagens, ao invés de requererem um suporte ou estrutura, formariam elas mesmas as redes evanes- centes, fulgurantes, da psique. No capitulo seguinte, chamarei essas redes de “redes imaginativas”. Quero propor aqui uma alternativa para o pensamento hierarquizante, ¢ para sua busca da estrutura, 30 2 A personalidade e a rede imaginativa Neste capitulo, levo adiante o exame da conexdo entre uma abor- dayem pluralista das teorias psicolégicas que competem entre si ¢ uma abordagem pluralista da personalidade. Tenciono claborar \na conduta para a psicologia desenvolvimentista, ao invés de lentar desenvolver uma nova teoria desenvolvimentista. Neste sentido, dou prosseguimento também aos aspectos reflexivos do Gupitulo 1. Préximo do final do capitulo, deveremos estar lidando com o t6pico da personalidade, tentando entender como os con- letidos daquilo que denomino “rede imaginativa” modulam a personalidade, sem recorrer 4 idéia de uma estrutura separada desses contetidos ¢ anterior a eles, O tema € 0 impacto generalizado das experiéncias passadas sobre a personalidade atual e seu funcionamento. Este nao é 0 espaco adequado para uma revisao da histéria intelectual desse {pico responsdvel por cismas, mas é correto dizer que muitas das ravinas intransponiveis que se abriram na psicologia profunda tém ligagdo com esse tema. O que desejo fazer é usar 0 ethos pluralista «que venho desenvolvendo de modo a re-referencidr nossas varias (eorias do desenvolvimento da personalidade, possibilitando um movimento para além dos limites do personalistico, sem perder de vista o humanistico. Uma revisao da literatura mostra que o tépico da influéncia ilo passado sobre o presente é relevante tanto para a psicandlise ar ib fi. como para a psicologia analitica. Os dois principais ramos da psicologia profunda chegaram a um ponto em que, NO minimo, encontram-se preocupados € perplexos com as mesmas coisas. Por exemplo, em sua conferéncia Ernest Jones de 1984, 0 critico literdrio Frank Kermode comentou que, para certos analistas freu- dianos, “a morte do passado psicanalitico (6) um fait accompli”. As construcées histéricas de Freud por vezes parecem “delirantes” (Kermode, 1985: 9). Kermode resume: “Negar uma relagao legiti- ma entre 0 que acontece na anilise € 0 que acontecen no passado é, hoje, lugar-comum” (1985: 10). Agora, a personalidade, talcomo revelada na anilise, 6, segundo a maioria das teorias da transferén- cia, uma demonstracao de suas origens no passado. Se o que acontece na andlise nao tem relagao com o passado, entao como pode a personalidade ser tao associada a cle? A questo foi também discutida por Padel (1985). Ele escreve sobre as manciras como os modos diacrénicos de explicagdo, que tam fundamento numa base temporal, si0 questionados numa metodologia sincronéstica, essencialmente nao-histérica. E claro que, para uma psicologia pluralista, tanto a diacronia como a sincronia tém seus grupos de interesse € suas esferas de influéncia separados. O potencial de uma pluralidade de formas de entendi- mento, mobilizadas pelo contexto e pelo desejo pessoal, nao pode ser evitado. A diacronia e a sincronia vio ter de competir, bem como coexistir, € até mesmo co-operar. Importar 0 termo “sincro- nia” da lingiifstica de Saussure reflete o fato de que qualquer critica A pretensa naturalidade da teoria desenvolvimentista devera ser influenciada pelo estruturalismo. No entanto, o teor de minhas prdoprias idéias é um pouco pos-estruturalista & desconstrutivista. Embora 0 engajamento com 0 estruturalismo/pés-estruturalismo seja bastante relevante para a teoria da personalidade, oconterido do presente capitulo nao se encaixa perfeitamente em nenhum dos dois. O pensamento sincronico tem uma longa tradigéo na psicolo- gia analitica. A resposta de Jung 4 pobreza de uma abordagem historicista teve dois aspectos: primeiro, dizia Jung, nos ja temos pelo menos dois milhdes de anos. Desse modo, o que pode uma vez ter sido temporal agora é eterno. Ou melhor, o que pareciam ser experiéncias pessoais sao na verdade experiéncias humanas tipicas. Portanto, deverfamos adotar uma perspectiva filogenética (arquetipica) em relagio a dados pessoais. Jacoby (1985) explorou 32 \) imagens arquetipicas presentes em teorias do desenvolvimento, ¢ Fordham (1957: 118) em certa ocasiio comparou suas idéias a0 Mito, de criagdo de um ovo césmico”. Entretanto, esse neal de pennar 6 geralmente onganizado mais diacronicamente (por exem- jlo, Neumann, 1954) do que sincronicamente, em eats outfuses te lesenvolvimentoTalvez sto sejainevitivel,devido 3s dificulda- a ‘ " BOO um modelo sincrénico em todos os seus detalhes wn ie segues vertente da oposicao junguiana ao redutivismo tem ¢ tentar equilibrar a interpretacao causal através de abor- \inyions prospectivas ¢ orientadas para um objetivo (ver Samuels et ul, 1986: 127-8). No entanto, pouco se escreveu a respeito d prot jlemas relacionados com as idéias de Jung. Num eine abe me ¥ niger i que a idéia de Jung sobre a andlise redutivista era um. ‘ito iluséria € distante daquilo que os psicanalistas realment livia (Samuels, 1985a: 134-5), Hillman (1979: 30-2) e outr ‘ como Rychlak (1984: 49-53) chamaram a atengio para o fato d oe # (eleologia uma ideologia causalista (as causae finales de Atistote loa) © poder ser usada tao deterministicamente quanto qualqu r Huilro ponto de vista causal. E mais ainda, os analistas ‘i nia os anboin muito bem que o ponto de vista “finalista” de Jung pode ser le turpado de tal modo, que a interpretagado iransformnaise a woimiio, Segue-se dai que uma critica da causalidade nao pod omitir se cm relacao a teleologia. oe Em sua psicologia arquetipica, Hillman sugere que as teorias \losenvolvimentistas sao fantasias da mente do te6rieo (Hillman 1(078), Surpreendentemente, porém, para alguém tio comprome. ‘ido com a exploragio da fantasia e seu mundo imaginal, Hille mn ¢ontentase em deixar o argumento assim: a psicolopia desenvelvi iwentista é uma fantasia — significando com isso: irreal; en cea, ilusdria; falsa. Mas precisamos trabalhar essas fantasias, see isto {He clas sao. Pois, como argumentei no capitulo anterior, a prépriz pique pode estar falando através de seus tesricos desenivolvienere Hatas, A crianga e seus pais nao sao uma tela apenas paraas fantasia : dos psicélogos, mas também paraapropriapsique O que aconteceria se quiséssemos dar um cardter de eternida- ile \ teoria desenvolvimentista separando-a de suas origens erono I"igicas mas no eliminando 0 fator pessoal? Daf poderamos ‘ jonhecer mais a respeito da personalidade num estado de “tudo- euvum”, ea personalidade como um todo, Um paciente pode 33 (itp chegar a andlise trazendo a informacio, junto com os eae correspondentes, de que foi, muito cedo e muitas vezes, sep: i da familia, e até mesmo abandonado. Ora, sabemos que até ce! " nivel nao é absolutamente essencial que isso tenha ou nao a te. cido, sendo preferfvel valorizar a experiencia do pacieulee? ne compreensio do que se passou. Mais tarde, é bem possi ean queiramos saber (¢ 0 paciente também) oque Se us ae De um ponto de vista sincrénico, também nao é absolu i. essencial saber se a teoria desenvolvimentista especifica que vanes utilizar para ligar o passado do paciente ao seu eee fo depressivo esta correta ou nao. Ela, porém, nos cl ane a Ke veao para o mito pessoal do paciente, para 0 direcionament 0 | m sido dado & sua vida e para as redes de imagens que esa0 em ag . Interpretages do presente em termos do passado podem ee ve on terapéutico e ajudara criarum senso de coeréncia & i ign en para © paciente. Mas essas interpretacdes tornam-se também in oe a Ges do passado em termos do presente. Isto foi algo que o Proprio 1 notou em 1898, numa carta extraordinéria a Fliess. Freu aoe “A imagem especular do presente é vista como a passa‘ e a siado, que entao profeticamente se torna 0 pr esente” (Masson, eee pemacio de Freud é 0 inesperado trampolim para un questionamento da psicologia, e da abordagem descovolumenns da personalidade, enquanto consideradas como de algum modo naturais — tendo como implicagio serem tomadas como a maneira inevitavel de lidar comas coisas. As teorias desenvolvimenti es nag nos dizem o que elas mesmas sao, € Isto levanta a queso sol yes que realmente estuda a teoria desenvolvimentista. cs ae s necessdria uma teoria desenvolvimentista que surya aver’ lo prin cfpios gerais, mas, de um modo ideal, isto nao deveria pre ae nar 0 padrao ¢ 0 alcance de nosso pensamento. es bee psicologia desenvolvimentista traz em seu bojo um cau ‘0 pl "4 ceito com relagio a diacronia: causal, histrico, biografico, emp e4 ral, cronoldgico, seqiiencial, sucessivo; a explicacao ca Por meio da origem. Esta funciona como um centro, garantin lo eae a cdo de seguranca para 0 uso € para 0 usuario da teoria. eee uma origem pode tentar-nos a usda como se fosse uma es i destitufda de contetido; neste cap itulo, investigamos oe ee em particular e suas implicagdes emocionais € scope atees: é on” n&o ache que um analista que se utilize da psicologia profun 34 possa colocar-se 4 margem dessa tradicio desenvolvimentista, como que se postando numa posigao privilegiada, é no entanto questionavel i existéncia de uma ligagao ébvia direta, “natural”, entre o passado e © presente. Para tanto, faz-se necessario esclarecer diferentes estilos dla teoria desenvolvimentista e suas inter-relagdes. Um analista experiente dira que uma psicologia desenvolvi- ientista nao precisa (e nado pode) ser redutivista, causal ou meca- nicista. Quando um analista ajusta suas interpretagées a um modelo de desenvolvimento infantil, pode estar empregando uma forma de amplificagdo, adotando-se aqui um sentido correlato ao junguiano da palavra. O modelo dos processos psicolégicos infan- lis, neste caso, esta sendo usado exatamente da mesma maneira que amplificag6es mais convencionais (por exemplo, a mitologia). De fato, esse material é uma metdfora para amplificar um material escasso, para aumentar seu volume, tornando a audigaéo mais facil ¢, finalmente, para capacitar o paciente a enxergar seu problema como pessoal num certo sentido, ou como parte de uma tendéncia cultural. Se “infancia” é uma metafora lingiiistica que amplifica a interagao analitica ou ilumina o mistério da personalidade, torna-se entio compreensivel que seu uso seja tao difundido. No entanto, 4 questéo sobre quao fundamental é a infancia, em oposigao & sua ubiqitidade enquanto metdfora, talvez nao tenha sido ainda devidamente estabelecida, As abordagens tradicionais do desenvolvimento sao lineares. © oral leva ao anal, que leva ao filico, que leva ao genital; a condigao esquizoparanéide precede a depressiva; a desintegracao- reintegragao torna-se mais e mais complexa durante o amadureci- mento, Cada um desses estagios ¢ fases que se sobrep6em trazem sua contribuigéo para a consciéncia do ego, de modo que toda nogado de uma rigida escala de mudanga, que nao corresponde & experiéncia real, é descartada. Assim, em modelos lineares sofisti- cados, 0 desenvolvimento da personalidade é visto mais como um processo cumulativo do que como um estagio aniquilando seu predecessor. O modelo em espiral tem sido freqitentemente empre- gacdo como uma alternativa, sugerindo que a personalidade em desenvolvimento consiste nos mesmos elementos, mas com um yrau cada vez maior de integracio, A medida que a vida vai avangando, O aspecto linear fica menos pronunciado, mas, se a imagem de espiral for pouco coesa, novos elementos derivados do incio circunstante podem penetré-la livremente. Uma questdo mais 35 sutil é.a de decidir se o desenvolvimento deve ser entendido como continuo ou descontinuo. O psicanalista Abrams resumiu esses pon- tos de vista: “um enfatiza a compreensao em termos de determi- nantes antecedentes; o segundo enfatiza as transformacocs desenvolvimentistas, isto é, a influéncia de uma organizagao mu- tante como resultado de processos regressivos € progressivos (Abrams, 1977: 425-6). Espero que, ao descrever um modelo sincrénico em maiores detalhes neste capitulo, seja possivel enten- der de que mancira o desenvolvimento pode ser considerado simultaneamente como continuo e descontinuo. Existe outra forma de usar o conhecimento contido em todas essas tradig6es analiticas — uma forma mais pluralista. Essa mancira consiste em pensar incessantemente e verticalmente. Por exemplo, em qualquer momento de sua vida, um individuo tem um components esquizoparandide, com suas imagens € psicologia especificas € rticulares — divisio, projecao, identificacao, controle onipotente etc. Embora isto possa ter sido mais pronunciado quando o indivi- duo tinha trés meses de idade, nao € 0 ponto principal. Ou, para usar um outro esquema de desenvolvimento, em todas as épocas da vida existe uma zona oral psicologicamente ativa; questoes tals como dependéncia, separacao, confianga nao desaparecem quar do a pessoa cresce, mas permanecem na psique numa mistura Ce forma igual e ao mesmo tempo diferente. Também o tempo adquire um aspecto mais psicoldgico quando encarado dessa ma- neira. Um relacionamento a dois depende, de certa forma, de uma relagdo com um terceiro, apesar de esta tiltima ser cronologicamen- te posterior. Pois s6 quando 0 individuo experimenta uma relagao com uma terceira pessoa € que tem que encarar 0 fato de que ela _nio é a suposta primeira pessoa, ¢ de que ela nao o possul € Nao o controla, Desse modo, a experiéncia do trio (muitas vezes indese- jada) pode conduzir & experiéncia da dupla, ; A psicologia desenvolvimentista pluralista é concebida como uma série de modelos interativos, modelos parciais € modos de experiéncia” (Oakeshott, 1933). Por exemplo, quando a analidade ¢ a genitalidade interagem, sexo € sujo. Quando ° falico ea genitalidade interagem, o nimero de conquistas é que se torna o principal. Quando a agressividade é exeércida através da condigao depressiva, a discussao torna-se esclarecedora elevaaum sentimen- to de enriquecimento. Se a agressividade é exercida através da condicéo esquizoparandide, o resultado é uma discussao sem saida. 36 Todos os eventos e experiéncias podem ser vistos através de uma ordem simultanea e sucessiva. Todos os eventos e experiéncias cnraizam-se em seu préprio estilo psicolégico ¢ em sua rede imaginativa. Cada estilo ou rede tem sua atitude prépria no tempo, sua propria base temporal. Mais tarde, veremos como essa idéia de tcmpo é central em qualquer projeto desenvolvimentista. A pro- posta esbocada aqui difere da maioria dos modelos lineares pelo fato de que, na abordagem linear, cada aspecto sucessivo de um (cma particular parece contribuir para uma versao mais complexa, se nao final. Assim, como foi mencionado anteriormente, as dife- rentes formas de consciéncia, ligadas a diferentes zonas, so vistas como fomentadoras da evolugao da consciéncia do ego. Aqui, ao contrario disso, sustenta-se que cada forma é virtualmente comple- (cm si mesma, e se mantém em interagao constante, competitiva, com as outras formas (ver Samuels, 1985a: 79-81). Essa proposta difere das versdes espirais de desenvolvimento porque nao afirma que uma pessoa esteja “indo a algum lugar”; admite-se a estase ¢ a circularidade. Afinal de contas, a silaba “re” na palavra relaciona- mento nos sugere que as coisas num relacionamento estao sempre voltando a acontecer, ciclica e recorrentemente. Do que foi dito, decorrem algumas implicagées para a psico- logia analitica em particular. No que se refere 4 Escola Desenvol- vimentista, o modelo delineado avanga um pouco no sentido de resolver a contradigao da teoria da desintegragao de Fordham (1976). Quando o Self primario “descarrega” seus potenciais ar- quetipicos, eles parecem emergir numa forma pura, isentos de complicagées provocadas por fatores externos, prontos para en- contrarem-se com os seus correspondentes do mundo exterior. Nao ha muito espago nessa teoria para a possibilidade (ou a probabilidade) de que os potenciais inatos no interior do Self primario sejam afetados uns pelos outros antes de serem “des- carregados”. A separacao entre os elementos inatos ¢ os corres- pondentes externos nao sé é exagerada como também parece supor que os varios deintegrados nao tenham uma interagéo centre si; resumindo: 0 modelo, aparentemente dindmico, tem uma qualidade estatica oculta. Uma variante mais dinamica da (coria permitiria uma influéncia sobre a personalidade por parte dos deintegrados em todos os seus estagios — in potentia, em (ransigao, como reintegrados — e colocaria mais peso na intera- do dos deintegrados. 37 No que se refere 4 confessadamente antidesenvolvimentista Escola Arquetipica da psicologia analitica, sua posigéo pode ser redimensionada ou revista com resultados surpreendentes. Apesar de tudo, Hillman produziu uma psicologia que fala diretamente de relacionamentos pessoais humanos, comuns, especialmente os da infancia, aparentemente evitada como tema em seu projeto. Pode- mos examinar algumas das express6es-chaves da psicologia arque- tipica: especificidade, multiplicidade, fluidez ¢ mobilidade (Hillman, 1983). Cada um desses termos refere-se também a temas nucleares centrais do relacionamento humane, pois as pessoas jnteressam-nos mais do que o meio. De fato, a vida de relagao pode ser considerada como o desdobramento da especificidade; por exemplo, a crianga relacionando-se de formas cada vez mais pes- soais com sua mie. Ou os parceiros num casamento, vivenciando cada vez mais particularmente as razGes por que s¢ mantém juntos ou porque devem se separar. Pr feréncias ¢ ambivaléncias signifi- cam que toda relagao é um relacionamento miltiplo, pois a manci- ra pela qual vemos ¢ experimentamos 0 outro altera-se com as mudangas circunstanciais ¢ também com as necessidades. As rela- cées entre as pessoas refletem “movimento” no sentido proposto por Hillman, que é 0 de serem autonomamente criativas, vividas emocionalmente em profundidade, ¢ dindmicas. A psicologia da ala torna-se a psicologia das pessoas que se encontram num relaciona- mento. Mais tarde, no capitulo seguinte e também nos Capitulos 9 e 11, deveremos explorar mais esses paradoxos. Hillman observou corretamente que existem outros arquétipos além daqueles ligados a mae ¢ crianga, ¢ que a transformagao nao é 0 tinico processo psicoldgico digno de nota (Hillman, 1973). Considera que o problema com a psicologia do desenvolvimento éasua restrigao ao ponto de vista da/de uma crianga (comunicagio pessoal, 1985). O restante da psicologia como um todo € por isso omitido junto com sua populacao enormemente variada de ima- gens ¢ de mitos. Assim, 0 desenvolvimento é destrutivo para a psicologia! Estou certo de que o problema coma idéia de “desenvolvimen- to” resulta da uma fascinagao pela imagem numinosa da mae com © filho. Certas dificuldades parecem advir de uma tendéncia a considerar relacionamentos subseqiientes principalmente, ou uni- camente, como reverberagoes da dinamica mie-filho. Os funda- mentos desse ponto de vista seriam: primeiro, que as pessoas 38 jondem a repetir padrdes de relacionamerito; segundo, que a telagio mée-filho, sendo o primeiro relacionamento, tem uma ju{luéncia extraordindria. Nesse sentido, a relagéo mae-filho estaria eiitio sendo entendida como um parametro para as demais rela- «Ges; qualquer elemento caracteristico que se encontrasse presente ii velagio de uma pessoa com sua mie caracterizaria todas as outras relagdes diddicas — dessa forma, inclusive, ou especialmente, velacao analitica. E claro que ninguém iria realmente discutir que \petmas a relacio mae-filho tem essa importéncia, mas acredito que iim habito mental, uma hierarquia evoluiram para um consenso (ue (ende'a excluir outros tipos de relagdes: com o pai, com os \vmios, com o(a) companheiro(a), com o(a) s6cio(a), com os pro- (essores, com os empregadgs, com os rivais, com Deus. Seria mesmo necessario ter algum tipo de paradigma para os yelacionamentos, um principio regulador, um elemento funda- mental? Podemos explorar essa questdo buscando 0 tema emocio- jul do continente, a respeito do qual muito ja se escreveu. Kreqiientemente se diz que, num relacionamento, uma pessoa. *contém” a outra ou que a relagio contém as pessoas. Essas afirma- (es nada nos dizem sobre o espectro das caracteristicas emocionais do yelacionamento. Numa amizade, por exemplo, pode muito bem acontecer que esta contenha os amigos. Mas isto nao quer dizer que (al amizade necessariamente tenha a ver apenas com 0 continente, oxcluindo qualidades tais como mutualidade, igualdade ¢ troca. larece ser muito dificil restringir a nogao de continente a apenas uma de uma série de caracteristicas que podem estar presentes num yelacionamento. Qualquer predominancia atribuida ao continente Jasciase no fator j4 mencionado: a imagem é numinosa, adquiriu lima posigao superior numa hierarquia conceitual e terminou absor- vida por um consenso. O uso desproporcional da rekacao mae-filho, «a maneira como a descrevi, é uma intromissio indevida numa abordagem pluralista da psicologia desenvolvimentista. Estados arquetipicos da mente \ esta altura, podemos retomar a tarefa de claborar uma aborda- yjem sincrénica e pluralista do desenvolvimento, na qual varios cstigios ¢ fases do desenvolvimento nao sejam considerados esvae- centes ou em evolucio para estagios ou fases aparentemente mais 39 maduros, ou sendo integrados ao longo do tempo, ou tendo um comportamento tal que os levard a uma meta final. Usando uma nomenclatura nova, cada um dos elementos da personalidade seria eternamente pessoal. Cada estagio ou fase seria observada como um clemento ativo e interativo da psique, com sua prépria forma e estilo. Tal perspectiva poderia coexistir com modelos lineares ecm espiral, como os que descrevemos em linhas gerais ha pouco, ¢ as diferentes versées da psicologia desenvolvimentista poderiam ser consideradas conjuntamente, permitindo a ocorréncia de uma competitividade pluralista entre elas. Um modelo desenvolvimen- lista sincr6nico seria pluralista num outro sentido: daria igual peso a multiplicidade e 4 unidade da personalidade, que compensaria a tendéncia a dar maior peso 4 unidade e A integracao, as quais sio elementos dos dois modelos, tanto do linear como do modelo em espiral. Nao haveria necessidade em insistir no fato de que todos os aspectos do desenvolvimento tém um telos, ou meta (ver capitulo seguinte, para uma discussao maior da teleologia). : Existe um paradoxo associado & idéia de desenvolvimento. Podemos dizer que A leva a B, ou que B emerge de A. Isto é cerlamente um ponto de vista desenvolvimentista. Mas de um outro angulo, igualmente desenvolvimentista, para B vir a existir, A deve existir — 0 que no é 0 mesmo que dizer que A seja a causa de B. Embora B pareca ter existido depois de A, ambos podem sempre ter coexistido. Na yerdade, podem até garantir a existéncia um do outro. Embora B tenha ganho vida posteriormente, sua eventual presenga é necessaria para que A, que ganhou vida antes, Possa existir em condicées de qualidade. Conclui-se dai que existe uma interacio entre A e B € que isto constitui tanto uma questao do desenvolvimento quanto das miltiplas maneiras pelas quais um elemento leva a outro. Ser possivel conceber a existéncia de partes adultas infantis na personalidade de maneira que nao se coloque uma separacio rigida entre clas? Os potenciais dos adultos nao siio causados pela infancia, esto presentes nela, Embora a idade adulta venha apés a infancia, sua existéncia é necessaria para fornecer significado e identidade a longo prazo para a crianca. Se nao existir futuro, a experiéncia da infancia estar cortada. Podemos evitar uma disso- ciag4o entre o adulto ea criancga concebendo-os em um continuum de mao dupla. . ; Houve diversos precursores na pesquisa de uma psicologia 40 ‘lesenvolvimentista sincrénica. Na psicandlise, Balint (1968: 28-9) escreveu que existem areas da mente, acrescentando que “pode-se igualmente designélas por espacos, esferas, niveis, localidades ou iustancias”. Pensando na idéia da personalidade eterna, é interes- ‘ante ver que Balint imagina suas areas verticalmente, “estenden- (lo-se através” da mente, desde o id até o €go_¢ 0 superego. Mais tecentemente, Stern, em sua tentativa de fundir a psicologia basea- ‘lt em pesquisa com psicologia psicanalitica desenvolvimentista, props que, apesar de ser possivel identificar quatro sentidos diferentes para o Self, cada um deles formando-se num determina- (lo ponto € cada um deles com suas préprias caracteristicas emo- Cionais e sociais, “esses sentidos dados ao Self nao sio considerados como fases sucessivas que se substituem umas As outras. Uma vez lormado, cada aspecto do Self permanece funcionando plena e auvamente por toda a vida. Tudo continua a crescer e a coexistir” (Stern, 1985:11). Existe ainda um outro conceito que se pode atribuir a Freud \ambém o fato de operar nesse campo paradoxal do eternamente pessoal. Em Mourning and melancholia [Luto ¢ melancolial, publi- edo em 1917, é importante observar que a internalizacio do objeto perdido € considerada patolégica, ocorrendo apenas na ticlancolia. No Tuto resolvido normalmente, diz Freud, a libido & 'ctirada do objeto, e chega ao seu fim. Quando Freud escreveu The «yo and the id [O ego € 0 id] em 1923, desenvolveu a idéia de que existe um mundo interno feito de imagens ¢ objetos derivados de experiéncias passadas. Dessa proposiczo surgiu 0 consenso psica- nalitico contemporaneo de que o que faz uma relacio “boa” é a sua transmutagao em um objeto interno bom, contendo lembran- cas ¢ experiéncias da pessoa perdida (ou ausente). Quando lutamos conua a perda, usamos 0 que é pessoal ¢ eterno para nos ajudar. ‘nsaiamos uma relago, uma aproximacao, até dialogamos com um elemento interno que, na pratica, tratamos ndo como tendo sido introjetado ou internalizado, mas como tendo estado sempre li. O processo do luto nao é uma rentincia de um investimento emocional, mas antes uma reorientagao vivencial desse investimen- to para o interior. Nada morre; tudo se conserva —estaéa dindmica eculta do luto, em flagrante contradigao com o principio de realidade! O conceito junguiano de complexo reflete tanto uma aborda- sem vertical, quanto caracteristicas horizontais ou em espiral. Jung 41 relutou em relacionar sua teoria dos complexos com um esquema desenvolvimentista preciso. Num outro trabalho (Samuels, 1985a: 184-6) sugeri que isto ocorreu porque, consciente ou inconscien- temente, Jung cedera o territério do desenvolvimento da persona- lidade para Freud. Mas existem outras possibilidades, que tema ver principalmente com a extrema dificuldade de construir uma linguagem que nos possibilite usar um modelo sincrénico. (Quero dizer que isto constitui um problema para os analistas da psicologia profunda porque outros, como por exemplo os astrélogos, estao fazendo tentativas justamente nesse sentido: cf. Greene, 1984.) No entanto, dizer que os complexos tém um niicleo arquetipi- co, ¢ por isso esto sempre presentes, significa que sao concebidos como elementos capazes de influenciar uma pessoa ao longo de toda a sua vida. Eles sao eternos ¢, a0 mesmo tempo, pessoais, ea énfase pode ser colocada tanto na sua continuidade psicoldgica como no seu desenvolvimento/evolucao/mudanga, Para © propo- sito que temos em mente agora, Jung argumentou de modo decisivo que toda fase particular do desenvolvimento torna-se um complexo psiquico aut6nomo. Isto é, as fases do desenvolvimento nao desaparecem obrigatoriamente, nem se transformam em ver- ses “superiores” de si préprias. Gonforme ia pesquisando a literatura, antes de escrever 0 presente capitulo, fui compr eendendo que a abordagem vertical, por possibilitar um modelo sincrénico, tinha tido uma longa € subversiva historia na psicologia profunda. O que ndo foi informado foi a intengao deliberada de experimentar tal abordagem. Por exemplo, em 1975 Plaut afirmaya que processo: iniciais tais como o de divisio nao apenas continuam ao longo da vida toda, como tam- bém contribuem para um tipo de individuacio radicalmente dife- rente da descrigéo convencional que privilegia a integracao. Num trabalho anterior (1959), Plaut havia sugerido que a consciéncia inicial baseia-se num “ego arcaico” que nunca desaparece comple- tamente. Hillman (1973: 31) cita Picasso dizendo que: “Fico surpreso de ver como as pessoas abusam da palavra ‘desenvolvimento’. Eu nao me desenvolvo: eu sou”, Esse protesto de Picasso ilustraa dificuldade da maioria das pessoas, ¢ nao somente a dos analistas, em inter- romperem 0 tempo linear, cronoldgico, de modo a permitir que outros contetidos possam emerg) Por que é tao dificil pensar incronicamente? Claro, o pensa- mento cronolégico é valioso clinicamente por sua capacidade de 42 seduzir a ansiedade ¢ aumentar a compreensio. Mas pode existir ‘ina sombra na cronologia, no sentido da existéncia de um senti- mento genérico, inconsciente, de poder ligado a ela. Se € assim, /nitio o meio pelo qual o poder é exercido é pela interpretagao. Nem todo poder de interpretagio é negativo, pois 0 ato interpretativo @ dnvar iavelmente criativo (a menos que uma teoria preconcebida seja aplicada mecanicamente). Mas 0 ato interpretativo é também \lLumente seletivo, parcial e inconscientemente profético, pois esta conectado no apenas aos valores do intérprete, mas também & viniio que este tem do futuro, como notou o historiador E. H. Carr (11061:107-8), Carr disse também que o historiador pelo menos é conhecido pelas causas que “invoca” para um ou outro evento. Na verdlade, argumentou Garr que a invocagao de uma causa é sempre 0 resultado do estabelecimento de uma hierarquia de causas i \ finalidade de decidir qual € a mais importante. Como vimos no Capitulo 1, a construgao de uma hierarquia de idéias ¢ a de poder estio intimamente ligadas. Antes, referindo-me aos complexos, mencionei seus nicleos \rquetipicos. Pode ser util refletir um pouco sobre o que pode ser entendido por “arquetipico”, além da descrigao convencional de {ue © termo sugere, isto é, numénica, subjacente a estruturas pricossomaticas postuladas como base, tanto das imagens quanto ‘los instintos (ver também Samuels, 1985a: 23-54, ¢ Samuels et al, 186; 26-8). , ° Em sintese, 0 arquetfpico pode também ser visto como uma wradacdo de afeto, algo no olho € no coragao do observador ¢ nao Naquilo que observa ou vivencia. Podemos pensar na qualidade de tia percepcao, de um conjunto de percep¢ées, caracteristicas de picocupagao, de fascinio, de autonomia, de admiracio. Uma ana- he ria poderia ser feita com um filtro sempre a mao, colorindo ou in{luindo naquilo que é visto ou vivenciado. No sentido de que 0 liltro fosse a vivéncia, em caso contrario, a experiéncia ficaria ort sem o filtro. O filtro é aquilo que chamamos de arquetipico. \ implica- 0 disto é que a profundidade esta no filtro. O filtro é uma espécie ile distirbio da atengao, uma distor f fe iS aoe ;Ao mesmo. E um meio de ivoduzir imagens no mundo e de impor imagens a um mundo, le modo a tornédo um mundo vivenciado. (Ver, nas pp. 59-68, a wo sobre a rede imaginativa.) a oe conotagio do arquetipico difere daquela citada por M. ‘icin (1987: 64) como sendo “a de uso junguiano mais comum”. 43 Naquela, a énfase é posta numa realidade dita “subjacente”, numa “estrutura enraizada profundamente na base psiquica”. Mas, sera que existem mesmo tais estruturas? ou serao, nas palavras de L. Stein (1958: 10), hipdteses, “entidades tedricas”, “colocadas ali para realizar uma tarefa”? Ser4 que a psique fem de parecer-se com uma casa, com alicerces e andares supcriores? Tem a psique de parecer- se comalguma coisa? Ou antes, supondo que a psique nao se pareca com coisa alguma, sera que os analistas da psicologia profunda deveriam propor que ela se parecesse com uma casa, sem questio- nar tal afirmacao e sem se perguntarem por que é tao dificil aceitar a psique simplesmente como psique? Na verdade, é dificil manter essa tendéncia emocional de ter a hierarquia sob controle, como vimos no capitulo anterior. Stewart assume uma posigao intermediaria em relagao a estru- turas, comentando, de forma um tanto rebuscada, que “ha estru- turas € estruturas” (Stewart, 1987: 159n). Ele adota essa posigéo porque considera os afetos uma “ponte fundamental” entre o corpo ¢ a psique, € os afetos nao sao o mesmo que estruturas profundas, subjacentes. Embora Stewart nao tente livrar-se inteira- mente das estruturas, sua tendéncia a trabalhar de fora para dentro (expressao emocional) representa um movimento livre dentro da psicologia junguiana, que evita os problemas de uma compreensio demasiadamente literal de estrutu Postular 0 arquetipico como alguma coisa no olho e€ no cora- ¢ao do observador nao nega que exista uma arte clinica legitima para distinguir pontos profundos no material aparentemente banal do paciente, como assinalou M. Stein (1987: 64-5). Partindo dessa versio do arquetipico, podemoa arriscar uma descrigdo dos estados arquetipicos da mente. Esses estados guar- ‘dam uma relacio com as fases de desenvolvimento do mesmo modo que num modelo linear. Mas, por serem concebidos como presentes desde 0 nascimento, ou mesmo antes dele, até a morte, ou mesmo depois dela, os estados arquetipicos da mente nos convidam a@ fazer wma elaboragéo vertical. O que se sugere é que existam psicologias identificaveis, pertencentes a cada estado arquetipico da mente. Nao wma psicologia, embora sem excluir isto, mas mntiltiplas psicologias, provavelmente em interagao, embora poten- cialmente separadas. Conclui-se daf que uma expressao tal como “o pai arquetipico” nao implica que os seres humanos nascam com uma imagem estru- 44 (urante ou com qualquer expectativa sobre um personagem mas- culino chamado pai. Entio, o que significa a expresso “pai arque- lipico” — se é que significa alguma coisa? Essa imagem pode ser (omada como um elemento que nos remete a tudo que tenhaa ver com a imagem arquetipica de um pai: dominante, numinosa, adiiravel, até mesmo religiosa de uma certa manceira, ou possivel- mente psicdtica, O elemento arquetipico est no interior da pessoa quando a imagem do pai é confrontada, ou quando se defronta com a imagem genérica do pai. O pai arquetipico ndo esta de forma ulguma no pai mas na percepcdo que a crianga tem dele (ver Samuels, 1985a: 52-3, 261-5). Essa reelaboragao da idéia do “arquetipico” é vantajosa quando temos de lidar com a presenga e a influéncia de {atores culturais no desempenho psicolégico. Como clinicos traba- Ihando numa sociedade evanescente, os analistas véem-se face a face com o problema de avaliar a verso cultural geral das imagens, {al como a imagem do pai, que seus pacientes estdo constantemen- tc repetindo, Por exemplo, quando se diz que pai tem a ver com “autoridade”, as imagens internas do pai tendem a organizar-se em (orno da autoridade. Em outras palavras, a abordagem clinica tem de incluir uma andlise do esterestipo cultural. Se o paciente esta descrevendo seu pai, muito dificilmente o analista conseguira fazer com que os parametros culturais nao estejam na sua mente. Considero que qualquer coisa que a cultura diga a respeito do pai € verdadeira, embora nao necessariamente de forma literal. I; verdadeira no sentido de que, ja que vivemos todos num tipo qualquer de cultura, nossas concepg6es internas de pai devem fazer uso das associagées culturais ligadas ao pai. Por “cultura” entendo a reuniao, limitada no tempo e no espago, da heranca de uma comunidade de qualquer tipo — social, material, mental, espiritual, artistica, religiosa ou ritualistica. Cultura traz a cono- lacdo de um grupo que desenvolveu, em algum nivel, sua propria identidade. As imagens geradas por uma cultura ¢ no interior dela nado 0, em todos os casos, arquetipicas. Mas, para o clinico, podem (cra mesma importancia que um material mais obviamente arque- lipico. A imagem do pai gerada pela cultura é um exemplo do tipo de filtro que acabei de descrever. Tudo que tem a ver com 0 pai sé pode ser visto através do filtro do pai. Antes de prosseguir descrevendo essa abordagem do desen- yolvimento em maiores detalhes, faz-se premente discutir as rela- 45 des € o equilibrio entre os aspectos literal e metaférico de nossas descrigdes da personalidade. E na interface do literal ¢ do metafé- rico que podemos encontrar um espaco para o conceito de sincro- nicidade no desenvolvimento da personalidade. Costumo ser bastante cuidadoso ao diferenciar as afirmacécs literais ¢ metafé- ricas a respeito da ctiologia da personalidade; por exemplo, se falo de uma crianga real, histérica, de uma crianga-no-adulto ou de uma crianca como simbolo, No momento, estou menos preocu- pado em fazer essas distingdes, € as razdes para isso nio tém. nada a ver com o descaso. Acho até que perdi alguma coisa em relacdo & minha exatidao pois, gradualmente, comecei a per- ceber que existem tantas conexées entre as descricées literais € metaféricas da personalidade quanto discrepfncias. & muito dificil estabelecer um principio geral que fundamente essas conexées. Nesse sentido, a nocao de sincronicidade é particular- mente titil. Igualmente significativo é o que pode ser denominado de “realidade do metaférico”. Quando se empregam os atributos da infancia metaforicamente para esclarecer 0 comportamento adulto, a fonte da metdfora nao pode ser descartada. E, reciproca- mente, o contetido do discurso metaférico sobre a crianga tem seu impacto préprio sobre a crianga “real” no tempo histérico, ao que Freud se referia como “profecia”. De certa maneira, essa suges- tao é similar A descoberta, na fisica, de que massa ¢ energia sao interconversiveis: a massa estaria representando aqui a crianga real, enquanto a energia, a crianga metaférica. No préximo capi- tulo, deverei introduzir um modelo clinico bascado na realidade: do metaférico, juntamente com varias ilustragaos do seu uso na pratica. Voltemos agora 4 questio dos estados arquetipicos da mente. Uma diferenga essencial entre 0 uso que eu faco do termo “estado arquetipico da mente” € 0 uso do termo “complexo” por Jung € que, no primeiro caso, ha a possibilidade de que um estado arquetipico da mente em particular possa funcionar com a forga e aautoridade da mente como um todo. Do ponto de vista da teori dos complexos, isso seria considerado possessao por uma inflagao, A questio de o ego identificar-se com um estado arquetipico d: mente, ou de ser inconsciente dele, de projeté-lo ou de confronta. lo, nao é colocada, pois a pessoa esta nele, e nao é “ele” que esta na pessoa. Um estado arquetipico da mente pode arcar com divisOes convencionais entre 0 ego ¢ Oo inconsciente, a satide e 46 patologia. A prépria terapia pode ocorrer dentro de um estado arquetipico da mente. Para explorar todas essas quest6es mais detalhadamente, terei de tomar emprestada a abordagem numéri- ca de Rickman (1951) — unidade, dualidade, trindade, quaternida- de (sendo esta ultima nao mencionada por ele). Devemos lembrar © paradoxo de que nenhuma dessas psicologias é “anterior” ou “posterior” as demais, embora possam, é claro, ser descritas dessa maneira. Nem uma é necessariamente mais importante para o destino de um individuo do que outra. Estamos no reino dos deuses da mente. Da mesma forma que os deuses da antigitidade, cada estado arquetipico da mente luta por uma supremacia, mas nao pode aniquilar completamente os outros. A idéia de que nenhum cstado arquetipico da mente esta se transformando para tornar-se outro nao exclui sua influéncia reciproca, e nao deveriamos subes- timar a possibilidade de que possam trabalhar harmoniosamente lado a lado. O estado arquetfpico da mente chamado unidade envolve o narcisismo natural, estados religiosos (unidade com Deus), nostal- gia e devaneio criativo, bem como psicose (na qual o interno e 0 externo sAo vivenciados como uma unidade), disttirbios psicosso- imaticos (mente e corpo confundidos como se fossem um s6), € {alsa auto-organizac4o — uma resposta a invasdes da unidade. Desse modo, 0 estado de unidade tem seu préprio padrao e psicologia identificaveis. Assim também €é o estado de dualidade. Em estados saudaveis, a dualidade tem a ver com confianga € capacidade de relacionar-se com uniao e€ separagao, com a capacidade de tolerar a ambivaléncia de sentir preocupacao. Um estado religioso de dualidade implica © sentimento de ter sido criado, que esta além de uma fantasia onipotente de ter criado a si mesmo e 0 mundo. Do ponto de vista patoldgico, a dinamica da dualidade caracteriza a personalidade esquizdide e os estados depressivos. O estado arquetipico da mente, chamado trindade, abrange as conseqiiéncias emocionais da diferenciacdo entre mie e pai, cena primitiva e 0 complexo de Edipo. Na satide: expressiio sexual, casamento, procriagao, € os aspectos sociais da sensibilida- de religiosa. Na patologia: perversao, ciime mérbido, incesto concreto, um superego extremamente rigido, e alguns problemas sexuais. A quaternidade envolve tudo aquilo que possibilita a coexistén- 47 cia dos quatro estados arquetipicos da mente e seu trabalho conjunto (quando o fazem). Também pode ser considerada uma forma de unidade, como no famoso axioma da alquimista Maria Prophetissa: “Do Um vem 0 Dois; do Dois vem 0 Trés; do Terceiro vem o Um como 0 Quarto.” No entanto, o impulso integrativo da quaternidade confere a ela uma qualidade um tanto diferente das demais (cf. Plaut, 1973). Na pratica clinica, um analista pode ser capaz de relacionar qualquer material com tudo aquilo que parega ser relevante em relagao ao estado arquetipico da mente ou a combinagio de estados arquetipicos seus. Por exemplo, se um paciente tem difi- culdade em confiar nas pessoas, 0 analista pode ndo pensar nem no relacionamento do paciente com sua mae, nem na dinamica transferencial do aqui-e-agora. O que seria predominante no pen- samento do analista, ao invés disso, poderiam ser as conexées, similaridades e discrepancias entre a situagio atual do paciente e as consideragées gerais sobre 0 estado arquetipico da mente na dualidade, particularmente em relacgio 4 questao da confianga, Exatamente da maneira como é descrito na literatura da psicologia desenvolvimentista. De outra maneira, a confianga entre uma mae real ¢ seu filho é um exemplo muito importante da confianga como um tema geral da dualidade. A relagdo mae-filho nao é necessaria- mente um modelo de confianga. Os estados arquetipicos da mente afetam a interacao analitica na medida em que dao um colorido préprio ao campo intersubje- tivo. Os fenédmenos da transferéncia-contratransferéncia podem, entao, ser considerados em relagio a um estado arquetipico da mente particular, bem como aos padrées de relacionamento do passado do paciente. As lembrangas do paciente, ou a reconstrucado do passado dele feita pelo analista, nos alertam para o que é relevante, o tema geral. O paciente e 0 analista exploram esse tema, especialmente na relacdo de transferéncia-contratransfe- réncia. Uma questao essencial refere-se ao que os analistas estéo fazendo quando exploram o passado do paciente com 0 préprio paciente. Como disse no inicio, 0 contedido de um modelo sincrénico de desenvolvimento nao traria surpresas. O essencial é 0 uso pluralis- ta, a servico do qual o conhecimento existente poderia ser empre- gado. No restante deste capitulo focalizaremos as questées que parecem ser as mais problematicas, mas também (ou talvez por 48 causa disto) as mais interessantes. Essas quest6es sao: (1) modos de vivenciar os estados arquetipicos da mente; (2) a possibilidade de a cronologia da teoria desenvolvimentista; (3) como os cstados arquetipicos da mente siio organizados e vivenciados, Modos de experiéncia Quer sejam os estados arquetipicos da mente concebidos vertical- incnte, como o fazemos aqui, quer empregados, como podem ser, de modo linear ou em espiral, deverao ter pontos ou areas de contato em comum, Se chamarmos esses pontos de contato de “twansig6es”, correremos 0 risco de sugerir um movimento para a lrente, na diregao de um objetivo. Isto, como vimos, é uma descri- (io valida para eventos, mas nao é a que propomos aqui. Se bem (ine a idéia das caracteristicas transicionais na qualidade do afeto seja \ma idéia que merega ser conservada, Por exemplo, a transicgao entre a unidade ¢ a dualidade pode ser discutida de uma maneira linear, em termos da desmistificagio gradual das fantasias de onipoténcia da crianga. Ou a trans igo pode ser conceituada “ncronicamente como uma interface entre ilusées de onipotén- «las, por um lado, e dependéncia de alguém por outro. Uma interface com a qual estamos familiarizados. A proposicéo desen- volvimentista sustenta-se para esclarecer uma situagdo genérica, adult, afetiva, , No entanto, devido ao fato de os pontos de transig&o expres- sarem um conflito entre os varios estados arquetipicos da mente, cles carregam consigo uma carga psicolégica maior que a média. Voltando a discussio anterior sobre a definigao de “arquetipico” em relagao aos afetos, a situagdo emocional no ponto de transicio entre um estado arquetipico da mente ¢ outro é provavelmente \na primeira localizagio do arquétipo. Este existiria nas fendas entre os estados arquetipicos da mente. O arquetipico é um {cnémeno limiar, fronteirico. Na andlise, 0 profissional depende daquilo que se relaciona com 0 afeto do paciente para se orientar. Se um paciente fica zangado por causa das férias iminentes do analista, a qualidade ea tonalidade do afeto é que deveré conduzir ‘'resposta empitica do analista a raiva do paciente. O paciente fica lurioso com a destruicao stibita de uma fantasia de onipoténcia na «ual o analista simplesmente nao existe? Nesse caso, entao, éa 19 ruptura da unidade pelas férias que necesita deuma Tesposta. Ou talvez o paciente nado consiga ver como lidar com a auséncia do analista, e sinta-se trafido e abandonado. Nesse caso, a raiva éa raiva da dualidade, da confianga quebrada e da dependéncia malresol- vida. O paciente pode sentir citimes da pessoa com quem imagina que o analista ira passar as férias; tais sentimentos trazem o selo da trindade. Talvez duas ou mais dessas possibilidades possam ser verda- deiras ao mesmo tempo. O paciente pode sentir-se mais confor- tavel lidando com sua emocio de uma forma ou de outra, de modo que o verdadeiro estado de coisas fica disfarcado. Pode ser preferivel revelar um sentimento de abandong aadmitir o citime, por exemplo. Assim, aquilo a que nos referimos como conflito entre os estados arquetipicos da mente também reflete as prefe- réncias inconscientes, a organizacao defensiva e a auto-imagem do paciente. . Certos problemas, tais como as dificuldades sexuais, geralmen- te ocupam mais de um estado arquetipico. Os distiirbios psicosse- xuais podem revelar um estilo narcisista da personalidade, com auséncia de referéncia por parte da pessoa como um todo. Assim, as fantasias de estar sendo sufocado, engolido ou dilacerado falam de problemas de dualidade ou relacionados a dualidade. As inibi- Ges ea violéncia sexual carregam aspectos edipianos. Clinicamen- te, é util rever essas possibilidades, nao de uma maneira particularmente sistematica, mas como parte de uma atitude ana- litica geral para com o paciente. Ao lidar tanto com os problemas sexuais quanto com as conseqiiéncias das férias, o analista usa sua prdpria reagdo para com 0 paciente para aprender com ele sobre _qual tipo de afeto foi constelado na interacao dos estados arqueti- picos da mente. . Voltando a questao do conflito entre os estados arquetipicos da mente, é possivel ver como um estado arquetipico em especial pode atuar como uma presenga oculta num outrorestado arqueti- pico, subvertendo os propésitos do estado “oficial”. Um exemplo bastante comum desta ocorréncia seria a presenga de uma dinami- ca de dualidade de relagdo ¢ de dependéncia no cerne de uma fantasia ou vivéncia de unidade. Do ponto de vista literal, sabemos que uma relacao de dualidade prematura e ativa existe ao longo e no meio de um estilo mental solipsistico que reflete as fantasias de ter criado o mundo e de ser, com ele, uno, Zinkin (1979), seguindo 50 0s passos de Buber, lembrou que o “didlogo precede 0 autoconhe- cimento” e que a questao de a crianga estar “realmente” fundida Numa uniao com a mae inflama as discuss6es da psicologia analitica lo desenvovimento. Tudo, afinal, depende de ponto de vista: de (lentro para fora, um ajustamento adequado proporciona fantasias © sentimentos de onipoténcia e de unidade como mundo exterior. De fora para dentro, uma protoconversacio intensa acontece «desde o nascimento, ou até mesmo antes dele, Pode ser que qualquer um dos estados arquetipicos da mente contenha todos os demais, ¢ que a aparente existéncia de estados irquetipicos isolados seja por si mesma iluséria, havendo, na verdade, uma sé experiéncia nao dividida. Mas mesmo se houver alguma coisa indivisivel e completa, a que nés chamamos de experiéncia, ainda assim deveremos levar em conta nossa tendén- cia a considerar as situagdes de uma mane parcial, distinta e cheia de afetividade. De fato, até quando experimentamos a “tota- lidade” de uma forma mistica, a modulagao varia de mistica para mistica; ha misticismos de unidade, de dualidade e de trindade (veja o Capitulo 9 para esclarecimentos a respeito de um “misticis- mo de pessoas”). Se a diversidade nao fosse um fato real, cada pessoa nao teria sua experiéncia tinica, mas todos nés terfamos a mesma experiéncia. Questdes dessa ordem formam a esséncia do livro Experience and its modes [A experiéncia e seus modos] (1983), do filésofo Michael Oakeshott. Este ficou perplexo com a coexisténcia da experiéncia como algo completo, concreto, coerente, com os “mo- dos” de experiéncia inerentemente parciais que formam “mundos de idéias” auténomos. Ele fala de uma “apreensao” da experiéncia, igo que pode ser entendido num sentido bem préximo ao de um tado arquetipico da mente: uma tendéncia global de tentar experimentar as coisas de uma certa maneira. Oakeshott sustenta que um modo de experiéncia nao é “uma ilha no mar da experién- cia” (p. 71), querendo mencionar um tipo limitado de experiéncia. Ao contrario, um modo de experiéncia é a totalidade da experién- ia conhecida, a partir de um ponto de vista especifico. No projeto de Oakeshott, esses pontos de vista especificos so aqueles das disciplinas intelectuais diversas, tais como a ciéncia, a historia, a filosofia. Para nés, esses pontos de vista especificos sio os diversos estados arquetipicos da mente, Tais consideragées diferem do perspectivismo, devido ao sen. 51 hi ry timento de plenitude produzido por um estado arquetipico da mente, sentimento esse apoiado no postulado de que todos os estados arquetipicos da mente estado sempre em algum estado de coexisténcia. Essa abordagem perspectivista ignora explicitamente © fato de que pode haver alguma ligacio entre as varias perspecti- vas. Pode-se perceber aqui o valor da palavra “alguns” nas conside- racdes de James (ver pp. 22-24). Cada estado arquetipico esta de alguma maneira ligado a ou envolvido com os demais. A substancia ¢ a importancia das ligagGes e dos desenvolvimentos aparecem na nossa capacidade e desejo de ter a experiéncia de sentir nossa personalidade como um todo. O que geralmente ocorre é que o conflito entre os estados arquetipicos da mente se resolve em favor daquele estado que proporciona a experiéncia mais completa, daquele que mais se aproxima de uma experiéncia como um todo. Ocorre-nos aqui 0 comentario de Walzer (1983) nas paginas 28-29 deste livro de que a justiga consiste no respeito pelos valores das diversas esferas da vida, enquanto o destino dos estados aparentemen- te “derrotados” é um assunto que deve ser explorado no futuro. Nem os “modos de experiéncia” de Oakeshott, nem os meus “estados arquetipicos da mente” podem ser organizados hierarqui- camente, de forma que um possa ser considerado principal ou fundamental, cronolégica ou experimentalmente. A tarefa da filo- sofia e da psicologia pluralista é a de manter os modos em relagao entre si, permitindo um didlogo entre eles. Mais que isto, os diversos estados ou modos nao resultam de faculdades ou tipolo- gias humanas diversas, ja que todas as faculdades humanas estéo contidas em algum modo de experiéncia ou estado arquetipico. Conclui-se que nao analisamos a infancia s6 porque ela é, ou pode ser, num plano causal, a primeira. Por que 0 fazemos entao? Porque os temas arquetipicos da conditio humana sio mais clara- mente visiveis quando a socializacdo ainda esté em seu estagio menos desenvolvido. Mas, se 0 analista toma os acontecimentos da infancia de mancira exageradamente literal, eles podem ser vistos como presos pela armadilha do estado arquetipico da dualidade. Oliteralismo, quando exagerado, é um sinal de depressio doentia, onde uma apercepcao concreta da fantasia, que funciona como base para severos autojulgamentos, ocorre. Como a depressio é parte do fenémeno da dualidade, pode ser que a perspectiva psicoldgica da dualidade domine nossa psicologia desenvolvimen- tista, quando tomamos essa psicologia de forma excessivamente 52 literal (Kugler, comunicagao pessoal, 1985). Quando a unidade (ou «ualquer conceito psicolégico a esse respeito) é tomada de forma cxageradamente literal, esta sendo vista através da 6tica da depres- sio, com todos os prejuizos da dualidade. s E essencial que se mantenham as ligagdes com a patologia presentes nos varios estados arquetipicos da mente. Freud obser- you que a psicanilise (e, do meu ponto de vista, a psicologia analitica) nao pode privilegiar qualquer dos trés ramos que a constituem: a investigacao da vida inconsciente, o corpo do conhe- cimento tedrico e, essencialmente para os nossos propésitos, os mecios de tratamento. O direcionamento caracteristico da psicolo- gia profunda, partindo de uma consideracio do patolégico, 0 anormal, o que repousa na doenca, até chegar as suas implicacdes huma escala mais global, é basico para a consolidacio dessa divisio a iplice como um todo. Paradoxalmente, o caso individual é um fendmeno mais profundo e coerente do que a descricao geral. O «aso contém a norma. E por isso que a psicologia profunda se utiliza de dados colhidos de pacientes com histdrias de vida dificeis, traumé- licas ou incomuns, para esclarecer questées relevantes a todos. Ouso do conceito de estados arquetipicos da mente possibilita que nos dediquemos ao fato Iégico e 4 compreensao da dinamica scmelhante do comportamento psicolégico aparentemente desse- nelhante. O narcisista obcecado pela preocupacio de ser posto de lado (€ que por isso mesmo consegue aceitacio popular) eo deprimido que se sente punido ¢ rejeitado (cujo comportamento compulsivamente provoca uma repeticao dessa rejeicao), na verda- de compartilham das mesmas caracteristicas psicolégicas. Da mes. ma forma, o complacente que sabe — ou pensa que sabe — ter seu lugar proprio (e conseqiientemente se contenta em deixar sua identidade pessoal submergir num grupo, numa relacéo, numa idcologia, numa carreira profissional). A utilidade de um conceito amplo como o do estado arquetfpico é que todas essas re se) ntagdes podem ser colocadas juntas. B _ Se nao aceitamos o comportamento psicolégico adulto como inteira e literalmete resultante da infancia, qual pode ser entdo sua origem? Na biologia, Rupert Sheldrake introduziu 0 conceito dos campos morfogenéticos para explicar a evolugio dos organismos vivos. Apesar de controvertida, essa teoria tem despertado muito interesse. As criaturas “recebem influéncia do exterior, como se fossem tansmissdes de televisio, Para estar sintonizado com essas 53 transmissdes, um organismo deve possuir o material genético adequado... Esses campos morfogenéticos podem estar distantes no tempo € no espaco. Eles so, na verdade, transmiss6es de formas reais de antigos membros de uma espécie em particular” (Sheldra- ke, 1985: 195), Sheldrake chama os meios pelos quais isso acontece de “ressondncia mérfica”. Outra de suas sugestdes é que a memoria das pessoas pode ser formada por ressondncias mérficas entre acontecimentos do passado € 0 cérebro, € que nao estariam sim- plesmente armazenadas no cérebro Pode-se considerar que o comportamento psicoldgico do indi- viduo, como se observou, pode ter-se desenvolvido a partir da ressondncia mérfica de comportamentos anteriores do individuo no passado (verticalmente), ¢ nao em razio de determinantes pessoais da infancia (horizontalmente). Nesse sentido, a denomi- nacao de estados “arquetipicos” da mente torna-se importante por ter a conotagio de que tais estados sempre existiram, sendo na verdade uma condicao sine qua non do ser humano. ‘Tomemos, por exemplo, a crise da meia-idade. Ao invés de reconhecé-la meramen- te como 0 resultado de um processo de desenvolvimento, ou como uma etapa no decorrer do desenvolvimento, podemos entendéla como uma ressonancia com todas as outras crises de meia-idade ja ocorridas, colocada no topo de uma pilha enorme de crises da meia-idade. A vantagem de estabelecer um sdlido modelo sincrénico do desenvolvimento da personalidade é que ele nos proporciona uma nova maneira de examinar as alitudes positivistas, redutivistas, causais e deterministas do desenvolvimento. Rycroft (1972: ix) afirma que ha muito ele ¢ outros vém fazendo conjecturas sobre a possibilidade de garantir que o comportamento humano tenha causas da mesma forma que o fendmeno fisico, ou se a personalidade humana pode, de fato, ser explicada como o resultado de eventos ocorridos na infancia”. Como j4 mencionei no livro Jung and the postjungians [Jung e os pésjunguianos] (Samuels, 1985a), a critica de Jung ao que ele viu como o redutivismo freudiano antecipou as crescentes diividas entre os psicanalistas, embora a teleologia nao parega ter interessado a muitos deles. Hoje é praticamente impossivel que um analista de certa sofisti ‘0 se confesse um determinista causal. Ao contrario, seu discurso fala de modelos, de ligagées, de herme- néutica e de articulagio via significado. O maior problema da causalidade é que a causalidade nunca pode estar errada — no dizer 54 de Freud, ela é uma profecia retrospectiva. Se procurarmos causas ia infancia para estados adultos, sempre as encontraremos: os estados adultos determinam o que deveriam ter sido os estados da infincia, para que os estados adultos possam ter vindo a ser como wo, O que muitos analistas modernos nio podem aceitar é a sua propria decepgao, ou a decepgio dos seus pacientes, quando se proclama que o passado “causa” o presente de alguma mancira “cientifica”. Mas fico pensando que talvez tenhamos perdido alguna coisa com essa maneira intelectual de ser tao cautelosa com a causalidade, Sc o modelo vertical/sincr6nico se estabelecesse mais solidamente, cncontrariamos alguma forma de equilfbrio para as avaliagées causa- listicas do desenvolvimento da personalidade, Se a nossa proposta for ade unir os modelos nao-causais sincrdnicos com os modelos causais liacrOnicos, entio teremos que carregar os dois pélos com teorias de pesos correspondentes. No momento, entretanto, esbarramos em obstaculos, ja que o modelo sincrénico nao tem sido bem trabalhado, injo permitindo que um modelo causal possa se manifestar comple- lamente, seja na sua forma redutivista ou na teleolégica. O que aconteceria se, tendo estabelecido um modelo ndo-causal \inerénico, de novo abrissemos espaco para um modelo causal e determi- nista? Determinismo implica acreditar que tudo 0 que acontece tem uma causa ou causas, ¢ 86 poderia ter acontecido de outra forma se a causa também tivesse sido diferente. Nosso dia-a-dia s6 é possivel porque acreditamos que o comportamente é determinado por causas e que é possivel apontar essas causas. Nossa interpreta- cio do comportamento alheio baseia-se na crenga de que tem de haver uma causa para ela. E, H. Carr diz que “o dilema légico sobre odeterminismo ¢ 0 livre-arbitrio nao aparece na vida real. Nao que algumas das atitudes humanas sejam livres ¢ outras predetermina- das. A questao € que todas as atitudes humanas sao, ao mesmo cmp, livres e predeterminadas, dependendo apenas de pontos de vista diferentes” (Carr, 1964: 95). Pondo-se a parte essa defesa do determinismo, temos que respeitar a conviccao de Padel, expressa em seu artigo j4 mencionado (Padel, 1985:26), de que “seja incon- cebivel que os fatos acontecidos no passado do paciente nao sejam relevantes para o que cle esteja vivenciando no presente”. Acho que o problema do determinismo tem sido a supremacia tirdnica do tempo objetivo. Nao é nenhuma surpresa a inseguranga das pessoas para se confessarem deterministas. Tenho apresentado exemplos de que a matéria-prima para efetuar as reparacoes neces- 55 sdrias esta ao nosso alcance, ¢ tenho demonstrado que os analistas vém tendo as posigdes mais variadas a esse respeito. Quanto mais @ vontade nos sentimos em relacdo a um modelo sincrénico, maior a chance de usarmos efetivamente um modelo determinista-causat in tandem. Assim, como sugeriu Powell, o analista cria um didlogo intimo, uma forma de devaneio que permite movimentos diretos com o quadro que se apresenta (comunicagao pessoal, 1987). Precisamos de um determinismo sem as press6es do tempo. O tempo e a psicologia Os questionamentos relacionados com a primazia do tempo obje- tivo tém se tornado lugares-comuns. Esse questionamento ¢ hoje parte de uma reagao geral do mundo ocidental as conseqiténcias indesejadas da tecnologia ¢ do industrialismo, ¢ tem levado a uma idealizagao do conceito de tempo derivado da percepcao dos ritmos naturais, dos ciclos dos planetas, das mudangas das estagoes etc, Esse “tempo psiquico” é geralmente apresentado como inimi- go do tempo objetivo, estabelecendo-se ai uma ruptura entre ambos. Obviamente, essas duas abordagens sao bastante distintas, mas devem, por isso, ser deixadas em oposigao permanente? . O propésito desta breve segao é colocar lado a lado varios conceitos de tempo, que, no conjunto, nos permitam fazer minar a cronologia da sua fung&o de compreensao do desenvolvimento da personalidade a tal ponto que as perspectivas diacrénica € sincrénica possam ter uma chance de coexisténcia. As bases para essa colocacao tem raizes na fisica (Davies, 1984), na psicologia (von Franz, 1978) e na arte (Baudson, 1986). oo. A humanidade apresenta uma profunda ambivaléncia no que diz respeito ao tempo objetivo. Apesar de o tempo objetivo parecer quase sempre distante da experiéncia, é usado na nossa vida pratica, na arte, na religiéio. Todavia, na busca da imortalidade, ansiamos por ultrapassar o tempo, Segue-se dai que mesmo se uma psicologia determinista causal pudesse provar sua exatidao, ainda assim pareceria inadequada € insuficiente. Essa afirmativa se faz necessdéria como um antidoto para a alegagaéo comum entre os analistas (ver Fordham, 1978: 125-9) de que a reconstrucao das experiéncias da infancia na andlise reduz a ansiedade do paciente ¢ contribui para seu discernimento com relacio ao significado da 56 vida, O reverso é também verdadeiro: reconstrug6es orientadas (/onologicamente levam a um sentimento de anomia e impoténcia (wando o paciente é confrontado com a inevitabilidade da sua hieurose. Minha proposta nao é a de que as reconstrugdes nado sejam mais utilizadas, porém, ao contrario, de que os analistas possam estar sintonizados com a ambivaléncia humana em geral selacionada com o tempo. Um exemplo de ambivaléncia é a forma pela qual a meméria ( usada para congelar o passado temporal e, em particular, o papel (li nostalgia nesse processo (ver Jacoby, 1985, e Peters, 1985). Nesse ponto observa-se uma clara aversio pelo tempo objetivo \isado para os propdsitos patolégicos e criativos. Criativo, na inedida em que a regressio nostalgica permite & pessoa uma ‘cnovagao (de si mesma); patolégica, jd que a nostalgia geralmente (raz elementos de rigidez de carater e autocontrole excessivo, Depois de Freud, os analistas reconheceram uma forma de \empo especifico do inconsciente, encontrada principalmente, mas iio exchusivamente, no sonho. Neste, o tempo € 0 espaco sao quase sempre ignorados, podendo-se dizer o mesmo a respeito de quan- «lo se sonha acordado e de outros tipos de fantasia. Parece-me, no entanto, que chegou 0 momento de encarar a contradigdo entre os modelos cronoldgicos de desenvolvimento da personalidade e 0 conhecimento do lempo inconsciente na psicologia profunda. Eventos ocorridos em oulros campos do conhecimento podem ser auxiliares dteis na iellexao sobre esse hiato entre a teoria e o método. Desenvolvi- Mentos recentes da neurofisiologia, por exemplo (ver Pribram, 1971), propdem que aquilo que percebemos como realidade sélida ¢, de fato, constituido no cérebro de acordo com prinefpios holo- jrilicos, Objetos sdlidos sao registrados pelo cérebro como mode- los compostos de varias camadas de ondas. Os objetos vibram ou ressoam em sintonia com os varios receptores no cérebro. A idade é vista como um produto harménico decorrente dessa interagao. Ora, se isto é verdadeiro em relacao aos objetos sélidos, pode muito bem ser verdadeiro em relagao ao passado, ou a historia das pessoas. A percepcao que as pessoas tem do passado pode também ser vista como um produto harmonioso da interagio entre os eventos do passado e a percepgao do presente. K interessante pensar no papel dos olhos em tudo isso. Tradi- cionalmente, na ciéncia ¢ na mitologia, os olhos sio tidos como canais de entrada para o cérebro e a psique. Mas os olhos sao, em 37 muitos casos, um canal de safda, os meios pelos quais as projegdes sao conduzidas ¢ colocadas no mundo exterior. Quando falamos de investimento do mundo com as expectativas arquetipicas, do Umwelt [mundo exterior], do ambiente percebido subjetivamente, do discernimento de um padrao na matéria-prima experimental, ou até mesmo de desintegracao, nao devemos negligenciar os olhos como um canal de saida. Sabemos, por varias fontes, que o tempo nao é uma constante: © tempo nao é regular, mas abrupto ¢ imprevisivel (mecdnica quantica); o tempo € experimentalmente relativo (lembrem-se da yelha anedota sobre um beijo de cinco minutos que parece durar s6 cinco segundos, ao contrario da mao colocada sobre uma chama por cinco segundos que parecem durar cinco minutos); 0 tempo pode ser criado, como na teoria do big bang; 0 tempo pode ser destrufdo, como no buraco negro; as escalas de tempo diferem, dependendo do “relégio” ou do “calenddrio” usado — 0 noticidrio das nove horas ou Era de Aquario. O tempo nao é uma entidade unificada — Kant referiu-se a ele como senso de duragaéo (uma intuigio) e como perspectiva (uma categoria conceitual). J. B. Priestley sugeriu que existem no minimo trés maneiras de repre- sentar 0 tempo, radicalmente diferentes da representagao linear do tempo objetivo. A primeira delas é que, a partir de um dado momento, abrem-se corredores alternativos de eventos para uma pessoa ou grupo. A histéria pode ser conduzida em formas parale- las ¢, ainda assim, ter finais diversos. A segunda mostra que existe © tempo serial como aquele proposto por J. W. Dunne. “Nessa teoria de tempo, somos todos uma série de observadores numa série de tempos correspondentes, ¢ és6 como observador ntimero 1 no tempo 1 que podemos ser entendidos como mortais, enquan- to os observadores subseqiientes se mantém imortais. O sr. Dunne foi levado a claborar essa teoria por causa de sua descoberta, que cu particularmente considero valida, de que, nos sonhos, o futuro nos é revelado” (Priestley, 1947: viii). Finalmente, existe o tempo circular, no qual os eventos da histéria humana sao vistos como recorrentes. Samuel Beckett também utiliza uma “teoria” de tempo, mas de forma diferente de Priestley. O editor de Beckett, John Calder, afirmou que quando os personagens de Beckett inventam fantas- mas ou sombras, que continuarao a viver e ser lembrados depois da morte; quando eles perscrutam a memoria com detalhes minu- 58 ciosos, € que o escritor d& sua resposta “ao nosso temor do ‘monimato, ao medo de ter nascido, ao ter de enfrentar o trauma (le viver, ao morrer e ser esquecido, ao perder logo e para sempre (odo o registro da existéncia. Tememos menos morrer do que ser esquecidos” (Calder, 1986: 13), Em seu livro Time and timelessness [O tempo e a eternidade] (1983), Hartocollis afirma que, longe de ser uma constante, 0 (cmpo geralmente utiliza as mesmas matrizes do desenvolvimento emocional. Necessidades nao satisfeitas na infancia, que levam A ‘nsiedade e a depressao, introduzem o sentido de tempo. Partindo (la idéia de que o tempo € 0 desenvolvimento emocional penetram ho mundo subjetivo simultaneamente, conclui-se que o sentido de impo que uma pessoa tem é afetado pela sua condicdo emocional. !artocollis fala de deslocamentos temporais distintos ocorrendo em condigées diversas como na esquizofrenia e na personalidade lvonteiriga. Dessa forma, traz.a contribuicao da psicologia profun- la para aqueles que defendem a causa de que o é tempo relativo. Experiéncia e organizagao: a rede imaginativa' No capitulo anterior, mencionei alguns dos problemas relaciona- clos com a nogao de uma estrutura subliminar onde as imagens se “prendem”. O contetido fenomenolégico ea implicacao especifica dla imagem podem ser negligenciados quando esta é colocada uma hierarquia condicionada pela importancia relativa dessa estrutura subliminar. Mas, mesmo que a estrutura seja insuficiente como uma explicagao para a organizacao de imagens, ainda assim precisamos entender melhor o que as torna coerentes. Para esse lim, introduzo 0 conceito de uma rede imaginativa. Qualquer dos estados arquetipicos da mente é formado pela experiéncia de algum ou todos os contevidos dessa rede imaginativa. O termo “imaginativo” pode ser pouco familiar. Ele foi intro- duzido por Corbin (1972) para designar um lugar na psique situado “entre as impressées de sentido primarias ¢ a cognicéo mais «esenvolvida ou a espiritualidade”. Essa regio é habitada por imagens, constituindo-se, sob todos os aspectos, num estado inter- da T. Optamos pelo termo imaginativo, indicando “capacidade de imaginar”, ¢ que nos parece acompanhar a idéia do autor. 59 medidrio: entre consciente € inconsciente, entre corpo e mente e, (como veremos em detalhe no Capitulo 9), entre uma pessoa e outra pessoa. O termo “imaginativo” é preferivel, em vez de “imagindrio”, para indicar um modo de ser e perceber, e nao uma avaliagao. 14 grandes semelhangas entre essa idéia e a de “terceira area”, “Area da ilusdo”, ou “Area da experiéncia”, defendidas por Winnicott (Winnicott, 1974: 3). As diferencas significativas sio também discutidas no Capitulo 9. O mundo imaginativo, ou mun- dus imaginalis, é 0 locus onde se alojam a fantasia inconsciente ¢ a imaginacao arquetipica. ‘A palavra “rede” significa, originariamente, qualquer trabalho no qual “linhas, arames, ou qualquer outro material é tecido em rede”. O uso moderno da palavra é mais complicado e exige uma classificagio gramatical flexivel, j4 que o substantivo é “rede”, 0 verbo é “enredar” ou “enredear”, e o gertindio é “enredando”. Em seu livro The networking book [O livro do enredeamento] (1986), Lipnack & Stamps apresentam varios ideogramas que mostram a. esséncia da palavra “rede” como é usada atualmente em seus sentidos organizacional e social. Assim como acontece com 0 pluralismo, a rede nos oferece tanto uma metéfora para a perso- nalidade quanto um instrumento de monjtorizagao da atividade dentro da prépria personalidade. Assim também, 0 léxico politico- social é relevante para a psicologia profunda. De acordo com: Lipnack & Stamps, uma rede é: — um sistema fisico que se parece com uma drvore ou uma grade — um sistema de médulos e elos — um mapa de linhas entre pontos — uma identidade persistente de relacionamentos — uma rede de pesca mal amarrada — uma estrutura que nao conhece fronteiras — uma comunidade nao-geografica — um sistema de sustentagaéo — uma linha da vida — todas as pessoas que vocé conhece — todos que conhecem quem... faz natagao, coleciona moe- das, canta no coral da igreja, cuida das criangas que vém para a escola, lé Teilhard de Chardin... (Lipnack & Stamps, 1986: 2) 60 \pesar de as redes, como as de velhos companheiros, serem bem conhecidas, o que diferencia o fenémeno contempordneo da rede ios grupos politicos e de pressao de todos os tipos é 0 seu uso consciente como instrumento organizacional. As redes sao geral- mente descritas como RIPS' — rede/ideoldgica/policéfala/ seg- mentada (Lipnack & Stamps, 1986: 5). Diferentemente da Inirocracia, que entra em colapso quando um dos seus elementos « vemovido, cada segmento de uma rede é auténomo do ponto de vista organizacional e sobrevive & perda de outros segmentos. A palavra “policéfala”, que significa “de muitas cabegas”, quando ‘plicada a redes, sugere uma organizacao de pares, companhciros, ou ‘no minimo’ um modelo de lideranga do tipo primus inter pares. ‘to de que as redes sao ideolégicas significa que elas dependem (le um alto grau de valores compartilhados. Um comentario final sobre as redes é 0 de que tém limites pouco distintos: As conex6es baseadas em valores compartilhados tendem a aumentar e diminuir de acordo com as mudangas de circuns- ‘incias sofridas pelo individuo ou pela sociedade. Assim como nao podemos enumerar nossa rede pessoal, que por algum motivo poderia mudar amanha, uma rede grupal (também raramente conhece a extensio da sua influéncia e clos seus recursos. (Lipnack & Stamps, 1986: 7-8) Nio é dificil observar como a psicologia nesse ¢ desse modelo (le organizagao social reage com o que tem sido proposto até ‘ora. A psicologia pluralista é policéfala; o fator moral interfere fonstantemente; nunca conhecemos completamente a extensio (la nossa “participagdo, influéncia e recursos” — tudo isto é Inconsciente, Entao, como poderia um conceito de rede ser iplicado a imagens? E, conseqiientemente, 4 natureza da perso- iilidade? Precisamos, primeiro, verificar 0 que queremos dizer fom imagem. Muito tem sido escrito sobre as imagens, o que clas sao, como (onccituar nossa experiéncia com elas, e como usé-las na terapia. Navece haver trés linhas de definigao importantes com relacgao a lis: | N. da T. A sigla SPIN e inglés significa segmented/policephalous/ ideological/network. 61 (1) Imagens como correlatos mentais (evocando a finalidade, na linguagem de Jung) dos sentidos (visio, audicao, olfato etc.) € dos instintos (sexualidade, moralidade, espiritualidade, agres- sao etc.) Inclui-se, aqui, a imaginagao inconsciente da fantasia inconsciente (ver pp. 65-67). (2) Imagens como um fator interveniente entre os dados de entra- da e os estimulos do mundo exterior por um lado, e por outro os dados de saida, e a resposta do individuo. Nessa definigao, aimagem é uma construgao hipotética exigida pelo fato de que os dados de entrada psicolégicos e¢ os estimulos diferem dos dados de saida e das respostas. Alguma coisa tem que mostrar essa diferenca. (3) Imagens como desencadeadoras de sentimentos, comporta- mentos ¢ sensagées fisicas, que podem ocorrer na auséncia de qualquer outro estimulo direto, exceto a prépria imagem. Ou seja, fendmenos que ocorrem como se fossem o resultado de estimulos diretos, embora nao haja, na verdade, estimulos presentes. E este Ultimo aspecto da imagem que eu quero verificar — a natureza auénoma e auto-sustentada da imagem, que parte das duas primeiras definigdes por forca do potencial criativo atribuido: 4 imagem. Com isso, as imagens deixam de ser vistas como analo- gias psicoldgicas de qualquer coisa (como os instintos), ou como. versdes secundarias e codificadas de sentimentos, .experiéncias e comportamentos. Em vez disso, 0 que é realgado € sua transitivida- de, a capacidade das imagens de fazer ou construir outras imagens, modelando, assim, a experiéncia sem contato direto com estimulos externos (0 que nao é menosprezar a imaginacgao como funcionan- do segundo 0 que foi proposto pelas definigdes (1) e (2); os trés modos poderiam atuar todos ao mesmo tempo). A transitividade pode estar contida numa imagem em menor ou maior grau e, dessa forma, podemos encontrar imagens transitivas, menos transitivas e intransitivas. Uma imagem altamente transitiva funciona como. se tivesse, ou fosse, um campo de transitividade operando a distan- cia, exercendo influéncia além das aparéncias. O termo “transitivi- dade” tem sua origem no léxico € seu uso nesse contexto nao é portanto um mero acaso. Como disse Lacan, 0 inconsciente é estruturado da mesmo forma que a lingua e, por isso, sua gramatica tem de ser elucidada. 62 Kssa abordagem relativa 4 imagem ilustra de modo bem inte- fessante as ligagdes entre as imagens ¢ as relagdes pessoais encon- tradas na andlise. Qual é a fungao do “outro” em termos do desenvolvimento da imagem? A psique precisa do outro para carregar suas imagens de uma mancira projetada. Entao pessoa (ce objetos para esse fim) sao sugadas para o mundo da imaginacao. {sso, no entanto, nao nega o processo inverso, no qual os aspectos «lo relacionamento se expressam melhor, ou sé podem expressar-se i imaginagéo. Meu interesse é pela tendéncia a encontrar 0 tnundo interior de uma pessoa nas suas imagens de outras pessoas. lor exemplo, uma das minhas pacientes criou uma imagem a que vu chamei de “A Mae de Pedra”. Esta se referia 4 experiéncia lintcrior da paciente com sua mae, e com 0 lado onipotente e duro (le si mesma. (O Capitulo 3 é dedicado a uma exploragao das liyages entre as imagens de pessoas, especialmente os pais, e a dindmica interna.) Podem-se delinear conexées semelhantes entre a imaginacgao © a emogao, O pensamento causal geralmente da prioridade 4 emogao. Pensamos nessas ocorréncias de forma pictdrica, retrata- vel, Quando sentimos uma emogdo forte sobre alguém, ou alguma coisa, isso produz uma imagem, como se fosse uma pintura repro- duzida na mente. Assim, a imagem sonhada de uma pessoa pode ser interpretada em termos do efeito geralmente provocado por \quela pessoa. Novamente, nossa percep¢ao pode ser modificada (le forma tal, que uma imagem que parece impulsionar o sentimen- lo nao “vem” necessariamente de lugar nenhum. O interesse analitico pela imaginagio surgiu dessa conclusio (le que os retratos de “pessoas” nos dados clinicos eram de natureza slmbdlica. Em outro momento (Samuels, 1985a: 118-120), mostrei (luas alterag6es conceituais da maior importancia que ocorreram na psicologia analitica: mudamos de um enfoque que levava em conta os signos (Freud) para os simbolos (Jung), ¢ desses simbolos para as imagens (Hillman), sendo que esta tiltima formulagao é em tudo semelhante aquela defendida por Fordham, declaradamente feu oponente conceitual. Tanto Hillman quanto Fordham sao contra os diciondrios preconcebidos de interpretagSes, que ambos perceberam terem marcado a metodologia junguiana dos anos sessenta, Eles estavam convencidos de que o trabalho pioneiro de Jung e Freud criaria um obstdculo para a psicologia profunda, especialmente se, ao abstrair metodicamente os simbolos das ima- 63 gens, estas sc perdessem., Para os analistas modernos, o simbolo nao é mais momentdneo. Como diz Hillman, os simbolos torna- ram-se “bases de sustentagao para conceitos” (Hillman, 1977: 68). Parece-me que os seguidores de Fordham e Hillman tém se esque- cido de que hé um equilibrio ¢ uma interagao necessdrios entre personagens reais € imagens aut6nomas: a Escola Desenvolvimen- tista dando importancia exagerada a primeira posicdo, ¢ a Escola Arquetipica & segunda (ver Capitulo 8). Jung mostrou que aquilo que experimentamos ¢ percebemos nao é “realidade”, mas apenas imagens: Pouquissimas vezes na teoria ¢ nunca na pratica nos lembr: mos de que a consciéncia nao tem relagao direta com qual- quer objeto material. O que percebemos sao apenas imagens transmitidas a nés indiretamente por um complicado sistema nervoso. Conseqtientemente, 0 que nos parece realidade imediata consiste, na verdade, em imagens cuidadosamente processadas, ¢ que, além disso, vivemos somente num mundo de imagens... Longe, portanto, de ser um mundo material, este € um mundo psiquico, que nos permite apenas fazer inferéncias hipotéticas sobre a natureza real da matéria. A psique em si tem uma realidade imediata, e esta inclui todas as formas psiquicas, até mesmo idéias e pensamentos “irre: ’ que nao tém nenhuma referéncia externa. Podemos denomi- na-las “imaginacao” ou “ilusdes”, mas isso nado diminui em nada a sua eficacia. (CW 8: pardgs. 382-3) Jung nos diz que experimentamos a realidade indiretamente. Nao *concordo, no entanto, com a implicagdo de que experimentamos a imaginacéo diretamente (CW 8: parag. 497), Parece-me, no entan- to, que, pelo menos aqui, Jung est supervalorizando o ego quando reconhece a possibilidade de que a experiéncia com a imagem possa ser direta. Isto, levando-se em conta que o ego muda de posicao ao se confrontar com modelos alter nantes de imagens. 0 ego esta sujeito aos diversos estados arquetipicos da mente da mesma forma que demonstra resisténciaa eles. O ego experimenta isso através de imagens e em imagens. Nao é como ter um ponto de observagao tinico, fixo e estavel, oposto a um mundo imprevi- sivel e em movimento; a consciéncia é tao instavel quanto os objetos 64 tl consciéncia, Além do mais, a questao da consciéncia do ego ‘ono atinica forma real de consciéncia permanece aberta: falamos de uma consciéncia do corpo, de autoconsciéncia, e até mesmo de ‘onsciéncia da anima. Contudo, a posigao de Jung de que a realidade é apreendida em (magens tem sido reforgada, e nao enfraquecida, pelos recentes ‘nvolvimentos da neurofisiologia ¢, em particular, pelo que hoje se sabe a respeito da dor, que é aparentemente a mais direta \le (odas as realidades fisicas, A teoria do controle de passagem da (lor ¢ uma proposta a respeito do meio pelo qual os impulsos HWervosos, atingindo a medula espinhal, interagem com outros lipulsos nervosos, € sao controlados por impulsos subseqiientes je descem do cérebro, A hipétese é de que “o estimulo somatico (shi sujcito A influéncia moduladora do controle antes que evoque # perecpgao da dor e uma resposta da dor” (Melzack & Wall, 1982: W2), & teoria do controle de passagem foi bem recebida pelos iedicos, que sabiam que a dor nao se comportava como “deveria”, # por psicdlogos, que sabiam que a dor tem dimensoes culturais ¢ Jemoais. Acima de tudo, “a transmissio dos sinais da dor levados ccrcbro n&o mais estava restrita a um simples corredor; assim, {u/howwse possivel especular a respcito das relacdes funcionais de iuulquer sistema ascendente ou descendente (Melzack & Wall, HM2; 240). Citci os trabalhos dos professores Melzack e Wall, pioneiros da feorla da dor, porque precisava enfatizar que o nao direcionamento HA percepeao eda experiéncia, juntamente com seu transporte tipico Vi Iaginagio, nao implica um enfraquecimento do corpo — anato- (ili, fisiologia, medicina... Aliés, como Achterberg (1985) j demons- f91), existe hoje vasta literatura comprovando a justaposigao e a Hilerpenctragdo do corpo e da imagem. A crenca de que as sensagdes fines sio também imagens é uma tematica constante neste livro, Wiilo, de fato, uma extensao das intuicdes de Jung quando introduziu fHonecito do “inconsciente psicdide” — um nivel de realidade no qual ¥) jiileolégico e o fisiolégico, e até mesmo o inorganico, so aspectos Wlernativos um do outro (ver Capitulos 8, 9 € 10). 0 necessario nao direcionamento do mundo imaginativo sem- fie fol conhecido pelo misticismo. Diz Meister Eckhart: Sempre que os poderes da alma entram em contato com a (Hlitura, recebem imagens e semelhangas criadas das préprias 5

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