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Reprod pois. A 124 do Calne Fens e es 9610 19 de fverero de 1888 CAPITULO 3 O fazer humano KELL MOONEY PHOTOGRAPHY.CORBIS-STOCK PHOTOS Introdugao No capitulo anterior, “A condigao humana”, vimos que pensar e agir séo inseparaveis, isto é, 0 ser humano age porque tem consciéncia e tem consciéncia porque 6 capaz de agir e transformar a realidade. Portanto, homo sapiens (“homem que sabe") ¢ homo faber (“homem que faz”, “que fabrica’) sAo dois as- pectos da mesma realidade. Com a denomi- nagdo homo sapiens, enfatizamos a capaci- dade do ser humano de conhecer a realidade, de ter consciéncia do mundo e de si mesmo. Homo faber a outra dimensdo, aquela pela qual desenvalvemos a habilidade de transfor mar a natureza, movidos pelos interesses de sobrevivéncia, para a satisfag&o dos nossos desejos e a realizagao dos nossos projetos. Relogio na cidade de Munique, de 1903. Desde a Idade Média, eram fabricados engenhosos relégios mec&nicos ¢ hidraulicos em que bonecos simulavam 0 movimento humana. O sonho da automagao, Porém, s6 se cumpriu no século XX, com 0 advento da robética. Devido a relacdo entre o pensar e 0 fa- zer, amaneira como agimos sobre a nature- Za influi de modo decisivo na construgao das representagoes mentais por meio das quais compreendemos a realidade. Tais elabora- goes orientam a invengao e 0 uso das técni- cas na solugao dos problemas que desafi- am a inteligéncia humana. Por exemplo: no século XVI, quando Gutenberg teve a idéia de usar tipos méveis, as tiragens de livros impressos aumentaram significativamente, passando a desempe- nhar papel decisivo na difuséio das idéias e na ampliagao da consciéncia critica. No sé- culo XX, 0 aperfeigoamento técnico do tele- fone, do telégrafo, da fotografia, do cinema, at | aX aoe ay do radio, da televisdo, bem como a comunica- ao via satélite € as infovias (como a internet), certamente vem mudando a estrutura do pen- samento, agora marcado pela cultura da ima- gem edo some pela “planetarizacao" da cons- ciéncia. Voltaremos a essas questées no capi- tulo 6, “O mundo globalizado” Veremos, entéo, como a evolucéo da técnica e da ciéncia, as modificagées no mundo do trabalho e das atividades huma- nas em geral sao decisivas para influenciar © modo de pensar das pessoas e maneira de se relacionarem. 1. Descobrir, inventar, criar Até aqui, demos alguns exemplos de inven- G6es. No entanto, a inteligéncia e a imaginacdo humanas séo capazes de intervirno mundo tam- bém pela descoberta e pela criaeao. Embora esses trés Conceitos sejam muitas vezes usa- dos como sinénimos, na verdade podemos dis- tingui-los sob certos aspectos. O inventor projeta artefatos que facilitam nossa vida, pela sua utilidade pratica e eficd- cia. No entanto, a solug&o encontrada por um pode surgir em variantes por outro: se Graham Bell no tivesse inventado o telefone, certamen- te outro poderia imaginar algo similar, tal como JA aconteceu com a construgdo de maquinas voadoras, do brasileiro Santos Dumont e dos irmaos norte-americanos Wright. A descoberta diz respeito a alguma coisa que ja existia, independentemente de nao termos conhecimenio dela, como, por exemplo, quando Pedro Alvares Cabral encontrou as terras que posterior mente receberam 0 nome de Brasil ou quando o cientista francés Claude Bernard descobriu a fungao glicogénica do tigado (ou seja, que ele produz agucar). Também nes- ses casos, pode haver mais de um desco- bridor, seja em épocas e locais diferentes, seja concomitantemente, como aconteceu com os ingleses Charles Darwin o Alfred Russell Wallace, que conceberam, ao mes- mo tempo, 0 principio da selegao natural, base da teoria evolucionista. 42 A criago, diferentemente da invengdo ¢ da descoberta, supde a singularidade desse ato, de tal modo que depende estritamente do seu Criador, do qual resulta um projeto Unico: nunca havera quem produza outro igual. A cri- acao artistica 6 0 exemplo por exceléncia. Se Beethoven nao tivesse existido, ninguém mais teria criado a Nona Sinfonia. Sem Portinari nao apreciariamos a tela Enterro na rede, assim como Dom Casmurro foi fruto exclusivo do ta- lento de Machado de Assis. Podernos dizer que também as teorias filosdficas sao obras que trazem a marca do seu criador, tal como falamos em platonismo, kantismo etc 2. A evolugao da técnica Entre os gregas, técnica (techné), de maneira geral, confundia-se com o termo arte, usado em sentido amplo e designan- do uma habilidade pela qual se faz algo, ao transformar a natureza em uma realidade artificial. Nesse sentido, existe uma técnica ou “arte” da navegacao, uma técnica ou “arte” do ferreiro, por exemplo. Apartir da [dade Moderna, com a revolu- cao cientifica, a técnica adquire papel de destaque, como instrumento que permite in- troduzir maior rigor na experimentacao. O fi- losofo Francis Bacon a defendeu ao afirmar que 86 a experiéncia garante a verdade e que afinalidade da ciéncia é a sua aplicagao pra- tica. Mas foi Galileu quem soube usé-la, ao aplicar 0 método experimental na fisica. Por fim, na Idade Contemporanea, o grande impulso cientifico ocorrido no sécu- lo XIX fez eclodir a revolugdo cientifico- tecnolégica, como veremos adiante. Utensilio, maquina € automagao. De maneira geral, essas so as trés etapas fun- damentais do desenvolvimento da técnica. Técnica: “Conjunto dos procedimentos bem definidos e transmissiveis, destinados a pro- duzir certos resultados considerados uteis”. (André Lalande, Vocabulario técnico e criti co da filosofia.) Repradig rabid. A 184 do Ckign Pena o Ln 9610 do 19a fovea do 1988 proud pobids. 84 do Cédgp Por oLet 9810 do 19 do fovea do 1908. Na fase inicial, o utensilio é um prolon- gamento do corpo humano: o martelo au- menta a poténcia do braco ¢ 0 arado funoi- ona como a m&o escavando o solo. A técnica passa ao estagio das maqui- nas pela utilizagdo das energias mecanica, hidrdulica, elétrica ou atémica, com a gran- de vantagem de que entao a energia pode ser armazenada. Assim, a queima do car- Vo Ou de outro combustivel produz o vapor de gua que move 0 tear, a locomotiva ou 0 navio; a explosdo da gasolina movimenta o automével; a eletricidade faz funcionar a fa- brica; a energia atémica € utilizada no cam- po da medicina, bem como aumenta o po- der bélico. Em etapa mais avangada, a autorhagéo imita o agir humano, por ser capaz de auto- regulacao. Esse processo resultou dos es- tudos da cibernética, termo criado pelo oi- entista noruegués Norbert Wiener em 1948, para designar as diversas maneiras de con- trole e as leis que regem o comportamento dos organismos vivos e também das ma- quinas; daf sua aplicagao na automagao e na robética. A partir de certos programas, é possi- vel grande flexibilidade nas “tomadas de decisdes", 0 que aproxima as “maquinas pensantes” do trabalho intelectual humano, jA que so capazes de provocar, regular e controlar os préprios movimentos. O radar corrige a rota do aviéo de acordo com as alteragdes do perourso, a célula fotoalétrica instalada na porta do elevador impede que ela se feche sobre 0 usuario, 0 jogador dis- puta o xadrez com seu computador, um rabé- substitui na fébrica o trabalho de varios ope- rarios: em todos esses casos, os coman- dos sao alterados auiomaticamente confor- me informacGes externas. 3. Técnica e ciéncia Autilizagao da técnica no inicio dos tem- pos modernos (a partir do século XVII) tam- bém alterou a concepeao de ciéncia. Se na Antiguidade e na Idade Média 0 saber esta- va voltado para a compreensdo desinteres- CNTR ORC | sada da realidade, na \dade Moderna bus- cou-se 0 saber ativo, o conhecimento capaz de atuar sobre o mundo para transformé-lo. Essa nova mentalidade fez nascer a ci- €ncia moderna. Galileu inaugurou a revolu- gaa cientifica, no século XVII (ver capitulo 12, “Oconhecimento cientifico"), ao estabelecer fecunda alianga entre o labor da mente e 0 trabalho das m&os, 0 que marcou dai em diante a relagao entre ciéncia e técnica. * Sea ciéncia é um conhecimento rigoroso capaz de provocar a evolugao das técni- cas, a tecnologia moderna é a ciéncia apli- cada, Por exemplo: os estudos teéricos de termologia dao condigGes para a consiru- co de termémetros mais precisos. Atécnica tornaa ciéncia cada vez mais pre- cisa € objetiva: o termémetro mede a tem- peratura melhor do que o faz anossa pele, 0 potente telescépio Hubble vé galaxias lon- ginquas que nao veriamos a olho nu. Sao profundas as alteragées provo- cadas pela tecnologia em todos os setores da vida humana. Por mais que haja diferen- gas entre as culturas do Antigo Oriente do terceiro milénio a.C. e a da Europa do sécu- lo XV, nada se compara 4 mudanga radical no modo de vida que ocorreu desde o sécu- lo XVIII até o final do século XX, alterando profundamente nossa maneira de viver e de pensar, sobretudo nas ultimas décadas. Desde tempos remotos, em que pastores observavam o céu a olho nu, 0 ser humano busca entender 0 Universo. Hoje a tecnologia potencializa nossa percepesio: 0 teles- c6pio Hubble, em érbita em tomo da Terra desde 1990, “enxerga’ galaxias longinquas. 43 cD | ayaa Key-t0) 37-9 4. A valorizagao do trabalho Apesar da importancia hoje atribuida & técnica, nem sempre ela mereceu esse des- taque. Isso néo significa que seus beneficios fossem ignoradios, ja que os individuos sem- pre empenharam esforgos para 0 controle da natureza. Mas desde que foram abandona- das as atividades coletivas do mundo tribal, surgiram sociedades mais complexas, nas quais se deu a separagao entre trabalho inte- lectual e trabalho manual. Em decorréncia dis- so, apenas as atividades intelectuais eram consideradas verdadeiramente dignas, en- quanto a atividace bracal — inclusive a técni- ca — foi desprezada, tornando-se ocupagao restrita aos segmentos inferiorizados na es- cala social. Essa maneira de pensar pressupde a exis- tncia da divisao social, que mantém o siste- ma escravagista ou o de servidao. Aristoteles jd dizia em sua Politica: “(...) se as lancadei- Tas tecessem e as palhetas tocassem citaras por si mesmas, os construtores nao teriam necessidade de auxiliares e os senhores nao necessilariam de escravos” Também os romanos faziam essa distin- cao, chamando de dcio (atium) nao propria- mente a auséncia de ago, mas 0 ocupar-se com as artes, as ciéncias, 0 trato social, o governo, o lazer produtivo. Ao dcio opunha- se 0 negécio (0 nec-otium, ou seja, a nega- do do otium), como atividade que visa sa- tisfazer as necessidades de subsisténcia. Evidentemente, nessas sociedades, dedicar- se ao écio constitula a atividade propria do ser humano, embora se tratasse de privilé- gio reservado a poucos. A perspectiva que desvaloriza a técni- ca, como atividade menor, e o trabalho, como ocupacao de servos, comega a mu- dar a partir do Renascimento e da Idade Moderna, quando uma nova concepgao reconhece a técnica como instrumento ade- quado para transformar o ser humano em “mestre e senhor da natureza”. Averiguando as circunstancias sociais € econédmicas que possibilitaram mudanga to decisiva para a histdria da humanida- de, vemos que o surgimento da burguesia € responsavel pela nova maneira de pen- sar e de agir. Os burgueses surgiram na Baixa Idade Média e, por estarem ligados ao artesanato € ao comércio, valorizavam 0 trabalho e tinham espirito empreendedor. O SuCeSSO © 0 enriquecimento desse novo segmenio social exigiam cada vez mais o concurso da técnica para a ampliagdo dos negocios: navios mais velozes, aperfeicoa- mento dos reldgios, bussola para a orienta- gao nos mares em busca de novos portos Um bom exemplo do efeito transforma- dor da técnica € a pdlvora, conhecida havia muito tempo nas civilizagdes orientais, como. a China, onde era utilizada em fogos de arti- ficio. Ao ser levada para a Europa, transfor- mou-se em instrumento de poder, quando ca- nhées destruiam muralhas dos castelos da nobreza. Também 0 trabalho, antes considerado um castigo — etimologicamente, “trabalho” vem de iripalium, instrumento de tortura —, adquire um sentido positivo. Constatamos essa mudanga na obra do fildsofo inglés John Locke (1632-1704), nao por acaso, tedrico do liberalismo burgués. Para justificar a proprie- dade pessoal de algo que no inicio dos tem- pos teria sido comum a todos, Locke diz que “(...) 0 trabalho do seu corpo e a obra das suas Maos” sao do trabalhador, o que Ihe dé direito sobre o que colheu ou 0 que fez. Quiros pensadores, porém, criticaram as distorgdes desse processo de apropriagao que se cumpriu em detrimento da maioria. No sé- culo XIX, Karl Marx denunciou as contradigGes da economia politica burguesa, que reconhe- cia no trabalho a origem de todo valor e de toda riqueza, mas de fato privilegiava a propri- edade, ¢ nao o trabalhador. Destacamas a importancia que esse filésofo deu as relagdes de trabalho, como atividade por exceléncia pela qual cada ser humano se liberta da natu- Teza e se humaniza porque, ao mesmo tempo que produz alguma coisa, também se autoproduz como pessoa. No entanto, foi tam- bém Marx quem desenvolveu a teoria da alie- nag&o no trabalho, que impede essa realiza- (80, como veremos adiante. prot pri, i 184 do Chlge Pena Lo 9 GH0do 19 fverra de 1988 : TUE | Ferodugso proba Ait 184 do Code Penal Let 610 do 19 do favre de 1928. No mundo contemporaneo, embora per- sista a esperanga em um trabalho no-alie- nado, que permita a autocriagao humana, nem sempre essa atividade tem merecido ocupar 0 ponto ceniral, devido ao interesse crescente pela utilizagao do tempo livre. Por- Que, se 0 trabalho pode nos libertar e fazer florescer nossa subjetividade, por outro lado 6 preciso saber 0 que temos feito com essa liberdade € com nossos talentos, quando o tempo de trabalho vai além dos limites: mui- tas vezes, 0s workaholics — os viciados em trabalho esquecem-se dessa verdade. Se- gundo André Comte-Sponville, uma enfermei- ta lhe disse certa vez que nunca vira alguém, No leito de morte, queixar-se de nao ter traba- thado mais uma hora, mas sim lamentado amargamente “ndo ter visto os filhos bastan- te, nao ter vivido bastante, pensado, amado”, 5. Surgem as fabricas As transformagées das técnicas, acelera- das pelo desenvolvimento da ciéncia, tinham como pano de fundo os interesses da classe burguesa emergente. A estimulagao e apro- priagdio das invengoes, tais como amaquina a vapor no século XVIII, alteraram completamen- te o modo de producao e as relagdes sociais. Desde 0 século XVII, as maquinas das manufaturas domésticas aos poucos foram sendo adquiridas pelos capitalistas, que as agrupavam nos galpdes das primeiras fa- bricas. Com os novos donos dos meios de produgao surgiu a classe proletaria assala- tiada, estabelecendo-se relagdes de traba- |ho muito diferentes das vigentes até entao. Jana segunda metade do século XVIII, operarios da regiao de Lancashire, na In- glaterra, destruiram o maquinario de diver- sas instalagGes fabris. Os “quebradores de maquinas”, na verdade, anteviam, com afli- 40, as profundas modificagdes decorren- tes da passagem da produgao artesanal e doméstica para a fabril. Que mudangas radicais eram essas? O auge do desenvolvimento do sistema fabril ocorreu no século XIX, principalmente na Inglaterra, quando o setor secundario (in- distria) se sobrepés em importancia ao setor primario (agricultura e pecuaria), definindo as caracteristicas dos paises industrializados e, portanto, modernos: intense urbanizagao, uso de varias formas de energia, organizagéo hierarquizada da empresa, técnico espe- cializado versus operario semiqualificado. Enquanto na atividade artesanal domés- tica o trabalhador conhecia todas as fases da produgao, a mecanizagao fabril estimu- lava a divisdo do trabalho, visando aumen- tar a produgdo. Essa forma de producao fragmentada culminou no inicio do século XX com a linha de montagem, tipica do fordismo, introduzida por Henry Ford em suas fabricas de automdveis Embora a produgao aumentasse signifi- cativamente, 0 operdrio deixava de ter a vi- so global do que estava sendo produzido e, ao perder 0 saber técnico, cabia a ele ape- nas executar o que fora concebido e planeja- do em outro setor, acentuando-se, portanto, a separacao entre concepcdoe execugaodo trabalho, Em decorréncia, surgia a figura do técnico especialista, de saber qualificado, como engenheiros, administradores etc. 6. A sociedade pés-industrial No final do século XX, 0 avango tecnolégico alterou ainda mais as relagdes de produgao. A utilizagao de robés nas fa- bricas mudou o perfil do operario, ao exigir dele melhor qualificacao e flexibilidade de acdo. JA que aquelas mAquinas eletronicas se incumbem das tarefas repetitivas, o tra- balhador deve aprender a controlar varias delas ao mesmo tempo e ser capaz de atuar em equipe, adquirindo maior poder de parti- cipagao e decisao. Desde meados do século XX, consta- tou-se outra transformacao, talvez tao radi- cal como a do inicio da era Moderna. Na atual sociedade pds- industrial, a produgao de bens materiais exige a ampliagao dos servigos (setor terciario). Estatisticas mos- tram como cresceu 0 numero de emprega- dos em servigos de sauide, educagao, ali- mentacao, seguros, recreagao, turismo, 45 = jean SNe a hosso)a1-9 lazer, comunicac¢ao, publicidade, empresas de comércio e de finangas. Com 0 vertiginoso desenvolvimento das técnicas de informacao e de comunicagao, sobretudo da informatica, 0 setor terciario ten- de a crescer ainda mais. Basta lembrar a di- fusao do uso do computador pessoal, do fax, do modem, do acesso a redes internacionais que possibilitam 0 contato imediato com qual- quer parte do mundo. Nessas circunstancias, a tecnologia que conta 6, em ultima andlise, a da informa- cdo. sso no significa que o setor secun- dario (industrial) tenha perdido importancia, e sim que também ele sofre alteragoes de- correntes da informatizagao. 7. Trabalho e alienacao Recapitulando: o ser humano transforma o mundo por meio do trabalho, mediante es- forgo coletivo ao arar a terra, colher seus fru- tos, domesticar animais, modificar paisagens, construir cidades e pontes. E nao é so. Cria instituigdes como a familia, o Estadio, a esco- la; obras de pensamento como a mito, a ci- éncia, a arte, a filosofia; estabelece valores, desde as mais simples regras de convivén- cia social até as leis do Direito. Alem disso, 0 ser humano se faz pelo trabalho, ou seja, a0 mesmo tempo que produz coisas, torna-se humano, constréi a propria subjetividade. Porém, vimos que nao é bem assim que acontece ao longo da historia, ja que o tra- balhador, como escravo ou servo, permane- ceéu inferiorizado nas sociedades hierar quizadas. Quando surgiu o proletario — liberto da servidéo, mas confinado nas fa- bricas instaladas pelos capitalistas —, criou-se outro tipo de submissao. Ao perder os instrumentos de trabalho e a posse do produto, 0 operario perde também sua auto- nomia. Deixando de ser 0 centro de si mes- mo, nao escolhe horério, ritmo de trabalho tampouco 0 valor do seu salario. Ocorre entéo uma grande inverséo, em que 0 produto vale mais que 0 proprio opera- rio, uma vez que determina as condiodes de trabalho, as contratagdes e as demissées. Tra- 46. = ta-se de uma inversdo, porque aquilo que é inerte (a coisa, o produto) passa a “ter vida” 0 que é vivo (o ser humano) se transforma em. “coisa”. Assim se configura 0 que chamamos de trabalho alienado. Alienacéo: etimologicamente, a palavra alie- nagovem do latim alienare, alienus (‘que per- tence a um outro”). Alienar, portanto, é “tornar alheio’, é “transferir para outrem o que é seu’. Ora, se ao mesmo tempo que o ser hu- mano faz uma coisa também se faz a simes- mo, concluimos que o trabalho alienado é condigéo de desumanizagao, porque os operarios perdem o controle do produto e, conseqtentemente, de si mesmos, incapa- zes de atuar no mundo de modo auténomo ecritico. Veremos no capitulo 10 como a ide- ologia € um instrumento de dominagao que impede o trabalhador de tomar consciéncia da sua alienagao. Ao examinarmos, porém, as mudangas de flexibilizagao do trabalho na sociedade pos-industrial, talvez devéssemos nos pergun- tar se essas ocorréncias, sejana industria, seja no setor de servigos, ndo teriam alterado de modo positivo a relac&o do trabalhador com © seu oficio e com o dono do capital. A exi- géncia de melhor qualificacaéo do operario fabril ou a maior circulago de informagao no setor de servigos nao estariam oferecendo condi¢Oes para se superar, ou pelo menos minimizar, a alienag&o? Afinal, essas novas maneiras de trabalhar nao propiciariam mai- or “intelectualizagéo do trabalho” e, conse- quentemente, uma feliz reconciliagao entre o trabalho intelectual e o manual? Embora tenha havido melhora nas con- digdes de trabalho, sobretudo devido as longas € arduas lutas sindicais, é inegavel que o capitalismo se orienta pela “logica do mercado”. Entao, por mais iniciativa que um operario qualificado e um alto executi- vo possam ter, decidir o que fazer, quanto e quando fazer certamente lhes escapa por completo. Veremos como, em tempos de Reprod pti. Art 84d én Panal Lea 610 do 18 overeoda 899. igo Pana ees 9610 19 de tveeia de 1998, Pproaues cic 18420 globalizagéo da economia, decisdes des- se tipo nao dependem sequer dos propri- etarios de pequenas empresas e, muitas vezes, nem de governos. Além disso, 0 aumento do indice de desemprego e 0 trabalho auténomo sem amparo das conquistas trabalhistas vém enfraquecendo os 6érgdos representativos de classe, como os sindicatos. A terceirizagao dos servigos fragiliza aqueles que trabalham por conta propria, sem os beneficios sociais adquiridos anteriomente. Sem duvida, os problemas na socieda- de de classes continuam existindo porque, apesar da riqueza produzida pela socieda- de opulenta, a grande maioria nao tem aces- So aos seus bens fundamentais. e 8. A tecnocracia O desenvolvimento acelerado da produ ao, principalmente nos dois Ultimos sécu- los, criou © mito do progresso, a crenga no constante aperfeigoamento tecnoldgico e cientifico como um bem em si. Segundo essa concepgao, aceita-se como natural a busca do aumento da produgao (ideal de produti- vidade). Para tanto, sao estimuladas a competitividade e a especializagao, a fim de que cada vez mais as decisdes sejam toma- das por especialistas na area e toda empre- sa se torne melhor naquilo que produz. Por isso, desde 0 inicio do século XX, o controle de produgao e a divisdo do tra- balho se tornaram mais rigorosos, com métodos cientificos de “racionalizagao”, tendo em vista os objetivos ja referidos de produtividade, competitividade e especi- alizagéo. O mundo da produgo assim configura- do desemboca na tecnocracia, que signifi- ca a submisséo de uma organizagao social a0 poder da técnica e dos técnicos. Ou seja: na civilizagao tecnicista e cientificista, a ulti- ma palavra é sempre dada pelo especialis- ta, pelo “técnico competente”’ (eT ste Sener naa) ‘ODez0, SEGUNDA PETRA O Ore Jim Davis, Garfield. No entanto, quando nos referimos a racionalidade da sociedade moderna e con- temporanea, convém indagar a respeito de que tipo de razao se fala: a que serve ao desenvolvimento da técnica 6 a razdo ins- trumental, segundo © conceito criado pelos fildsofos contemporaneos Horkheimer e Adorno, integrantes da Escola de Frankfurt. Para eles, a razao foi “declarada incapaz de determinar os objetivos supremos da vida”, ficando reduzida a um mero instrumento, Porque se ocupa apenas com os meios, & nao com os fins. Essa raz4o pragmatica, que busca resultados Lteis e imediatos, vincula- se a0 poder, j& que esta a servigo da domi- nacao da natureza e, por conseguinte, do ser humano sobre o seu semelhante. Em contraposigao, existe um outro tipo de razao, aquela comprometida com o “mun- do da vida", caracteristico das relagdes afetivas, cujo entendimento se faz pela co- municagao entre iguais, nao mais pelo man- do € pelo lucro, e sim pela cooperacéo e pela solidariedade*. Apenas esse tipo de raz4o permitiria a compreensao critica da situagao vivida e nos encaminharia para o “bem vi- ver". Mas sera que aprendemos a usé-lo? Deparamo-nos, entéo, com uma estra- nha situagao: embora nunca tenhamos ad- ' Sobre esse assunto, ver a leitura complementar “A ag4o comunicativa’, de Barbara Freitag, segunda parte do. capitulo 13, ‘O que so valores”. Be TEMAS DE FILOSOFIA quirido tanto saber nem tanto poder, é preci- so reconhecer que ambos nao tém sido acompanhados de sabedoria. Sabemos o que fazer e como fazer, mas perdemos de vista 0 para que fazer. Vivemos, portanto, em uma sociedade altamente desenvolvida do ponto de vista tecnolégico, mas que pouco, ou quase nada se preocupa com as questies do convivio humano. Ter olhos para 0 humano € perce- ber a injustiga que decorre da ma distripui- Gao da riqueza e a consequente generaliza- cdo da miséria, 0 desequilibrio ecoldgico, a violéncia das guerras com seus armamen- tos cada vez mais precisos e devastadores, os niveis insuportaveis de competi¢ao na so- ciedade individualista, o consumo desenfre- ado de futilidades, as desordens morais da sociedade centrada nos valores de posse. Hoje, no entanto, muitas vozes se levan- tam contra essa viséo de mundo tecnicista, ao desmistificar 0 ideal do progresso inexoravel, mostrando sua face perversa. Sob essa nova Otica, o valor da técnica deveria ser sempre confrontado com indagagdes de naturezas ética e politica. E 0 que fazem as organizagées de defesa do meio ambiente, os que discutem sobre a ética nos negocios, na politica e na aplicagao da ciéncia, tal como. nos debates sobre biostica, assuntos a que voltaremos em outros capitulos. Para vincular 0 ser humano ao real a fim de escolher © que é melhor para sua vida, 0 traba- tho da reflexdo filosdfica consiste em recuperar a razéo sabia, a razo vital, como instrumento de resgate do sentido humano do mundo. Conclusao Apesar das criticas feitas, nao ha como desprezar a tecnologia, da qual também resultam beneficios. O mal est na sua pre- ponderancia, quando se desobriga das in- dagagées éticas e politicas: so por meio dessas indagagGes, poderemos impedir que 0 ideal de produtividade seja medido em termos de estrutura de:poder — como de fato acontece no mundo de hoje. © problema persistird, portanto, en- quanto os meios forem perversamente trans- formados em fins. Diz Horkheimer: “O tra- balho &rduo com um fim significativo pode ser fruido e até mesmo amado. Uma filoso- fia que faz do trabalho um fim em simesmo conduz posteriormente ao ressentimento em relagao a todo irabalho”.. vids. Ai 64 do Cxigo Pena Le 9610 do 19 do tvoev0 do 1008.

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